PINGUE? Usando uma vestimenta laranja-açafrão que combinava com a cor de seus introspectivos olhos, justa
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e leve em razão da destinação esportiva, Gaio,
equilibrando-se graciosa e verticalmente numa perna, tendo a outra dobrada pelo pé dela erguido e os braços estendidos em direções opostas – para frente e para trás –, as pontas dos dedos mantidas firmemente unidas iguais aos bicos das aves, passava a impressão que pretendia alçar voo num dos pátios da Escola Bodhidharma onde treinava individualmente kung fu, como a garça branca lhe estampada no tecido de naylon sobre o peito. Era começo de uma manhã de sábado fresca, sob um céu limpo. O Sol começava a despontar, mas Gaio, ao contrário do que um desavisado poderia imaginar, já estava encerrando sabiamente sua sessão de exercícios extenuantes antes que o astro Rei principiasse a rechinar. Os pátios se achavam cheios, contudo, em virtude de seus pródigos tamanhos, todos os esportistas dispunham de suficiente espaço para praticar. Diante da agitação e de cantos alegres, que saudavam a liberdade, de diversos pássaros a empoleirar de galho em galho nas árvores frondosas que ornamentavam as orlas dos pátios, Gaio realizou mais alguns movimentos finais, calculados passos, torções suaves do torço e deslocamentos ligeiros dos braços que terminavam de forma abrupta; cessando, pegou uma toalha próxima, de dentro de sua sacola deixada a um
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canto. Enxugava o suor que escorria pelo rosto, quando
alguém se avizinhou e lhe pousou a mão num ombro. – Por que a preferência ultimamente pelo estilo garça-branca? – quis saber o jovem Chang, trajando uma calça comprida de moletom com camiseta e portando uma prancheta na mão. – Bom dia, mestre Ji! Não sei se o senhor vai acreditar em mim, mas, noutro dia desses, eu presenciei uma garça engalfinhando-se com um macaco tal e qual aquela mesma... na verdade, parecida..., luta da lenda que um lama tibetano dizia ter testemunhado. Chang se mostrava sinceramente interessado e inclinado a acreditar, com sua atenção e riso da graça do relato inusitado, não do relator. – Vindo de você, não é difícil de acreditar – disse Chang. – Sei que sempre dedica tempo para observações delongadas, acuradas e analíticas do ambiente. Desse modo, estará sempre sujeito a testemunhar acontecimentos inesperadamente ímpares de tudo o que o cerca de maravilhoso e natural. – Pois é – Gaio estava tão animado em poder contar a um mestre de kung fu sua observação que, tinha certeza, deveria ser muitíssimo incomum, que nem se preocupou em acabar se sentindo ridículo. – Não cheguei a ver o motivo da briga. Lembro-me de que a ave e o símio se encontravam sobre galhos delgados de
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uma árvore às margens de um rio – Gaio até gesticulava
no intuito de ilustrar seu relato. – O macaco, robusto, sabe, avançava agressivo, saltando pesado de galho em galho, guinchando estridentemente, como se achasse muito irritado com a adversária; pois a garça, impassível, deslocava-se em fuga com agilidade ao saltar suave, impulsionada por um bater de asas que, conferindo-lhe uma breve silhueta simétrica três vezes o tamanho de quando elas ficavam recolhidas, sob a emissão de um ruído semelhante ao som saído de um guarda-chuva sendo armado, assustava e acuava ligeiramente o inimigo símio. E não é que a ave, astutamente, foi conduzindo o primata a galhos cada vez mais frágeis, até que um se quebrou e o precipitou na água. Ainda bem que a margem era rasa, dando pé para ele. Coitado do macaco, ao menos a lição tinha lhe valido: não voltou mais a encrencar-se com a garça. – E você, extraiu alguma lição do que presenciou? – Sim. A de que agilidade e astúcia superam brutalidade e afoiteza em um combate de aparentes desiguais. – Exatamente o que levou o lama, segundo a lenda, a criar o estilo garça-branca – disse Chang Ji satisfeito. Chang Ji acenou para que caminhassem um pouco entre os pátios, chafarizes e árvores que projetavam boas sombras.
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– Tenho observado também ultimamente que você
tem treinado com muito afinco, pontualidade e disciplina, utilizando boa parte do seu tempo. Por que nunca pratica com os outros, ou participa de torneios? – É... – Gaio sentiu-se inseguro se respondia com franqueza. – Não gosto muito, na verdade, nenhum pouco, de competir. Não ligo que haja pessoas melhores do que eu, nem que eu possa ser melhor do que elas, não sei se o senhor me entende?. Pode ser que eu esteja me iludindo, mas assim prefiro ao não pôr minha técnica à prova e achar que sou tão bom quanto qualquer outro – sendo sincero, ele temeu uma reprovação do mestre quanto à sua atitude. – Eu o entendo perfeitamente, Gaio. O importante é nos sentirmos bem, confiante no resultado de nossos esforços – Gaio não acreditou que seu mestre compreendia os seus modos que ele próprio não considerava muito normais. – Mas é sabido igualmente que uma disputa contra um bom adversário pode nos apontar deficiências que, posteriormente, poderemos corrigi-las. Embora Gaio soubesse que nada podia ser perfeito mesmo, ainda assim não contava com a admoestação; sacudiu a cabeça em entendimento mesmo certo de que jamais iria acatar o conselho do mestre, a despeito de reconhecer a sua importância.
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– E sua mãe como vai, Gaio? – oportunamente,
trocou de assunto Chang ao notar que o pupilo, encabulado, teria de levar mais tempo para digerir a advertência que lhe fizera. – Acho que ela não queria, mas já posso perceber que a ação inexorável do tempo já começou a cicatrizar- lhe a alma. – Ninguém escapa às instilações regulares e incessantes do bálsamo da ampulheta – admitiu Chang. Eles deixaram as sendas que contornavam os pátios cimentados e movimentados, subiram uma escada larga que dava para um dos inúmeros pavilhões, prosseguindo pelos intermináveis corredores de ripas que rangiam suavemente sob os passos. De um lado, percebia-se pelas portas de correr entreabertas que a maioria das salas se achava ocupada por praticantes de kung fu, alguns permitindo escapar gritos enérgicos e silvos longos, masculinos e femininos, libertadores de energia. – Só que ela até agora não conseguiu abandonar os tons lutuosos – disse Gaio preocupado. De repente, imaginou o mestre suspeitando que o motivo de seu recente aumento de dedicação no treinamento em artes-marciais fosse a segurança da mãe e a ausência do pai. – Esperei terminar seus treinos hoje pois queria abordá-lo para lhe dizer que estou contente e
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agradecido por ter usado sua sugestão de procurar um
especialista em hipnose para me tratar. Já tive, inclusive, algumas sessões. A última delas com resultados que, creio, me serão úteis para finalmente desobstruir meus meridianos. – Que bom! Estou contente também que o tenha ajudado. – Ajudou, Gaio. Se eu tivesse seguido a sugestão de Árktos, acredito que eu jamais obteria qualquer resultado. Talvez até houvesse piorado os meus traumas psicológicos. Você sabe bem, Gaio, muitos de nós estamos cansados de delegar a solução de nossos problemas a todos esses aparelhos movidos a elétrons. Eles só têm tornado nossas vidas cada vez mais impessoal, apática e previsível. Essa situação tem forçado a uma formatação cada vez mais mecânica de nossas mentes. Agimos sempre mais conforme a conveniência dessas máquinas. São elas que têm definido nossa maneira de ser! Acredito que isso só piora o tédio crescente que toma conta de nós, ameaçando seriamente o nosso tão perfeito equilíbrio social. Por causa disso, de certo modo até acho bom que nossa tecnologia esteja atualmente estagnada, conforme dizem alguns. Qualquer novo avanço já não fará mais sentido para nós, humanos.
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Gaio compreendia o mestre ao balançar a cabeça
positivamente. – Mas voltando a falar sobre o meu tratamento: não fui, ainda, capaz de superar totalmente o meu trauma e de trazer à tona tudo das lembranças das mortes de meus pais, mas, pelo que relatei ao hipnólogo por sugestão quando hipnotizado e ele me repassou verbalmente em seguida, sem a hipnose, agora sei mais ou menos quando e mais detalhadamente como elas foram. Descobri, inclusive, que morreram separados por um intervalo de tempo de poucos meses, o que sempre imaginei erroneamente diferente, que tivessem morrido juntos, embora parentes meus já me tenham dito o contrário, o que agora sei que era o certo, apenas provavelmente nunca tenha aceitado a ou qualquer informação de terceiros sobre os trágicos fatos de que fui testemunha viva. Mas, por estranha coincidência, eles perderam suas vidas de maneira muito semelhante, em fatalidades relacionadas à Natureza. Gaio divisou, ou imaginou ter divisado, Chang reprimindo de chofre uma vontade acachapante de chorar um pouco. Fora essa observação em diferente, o mestre procurava imprimir tanta naturalidade em suas palavras externadas dolorosamente tal qual um pus que se extrai ao esvurmar as feridas da alma que ele, Gaio, se via na obrigação de oprimir o menor constrangimento.
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– Minha mãe eu perdi, segundo relatei ao
hipnólogo, primeiro, conforme confirmei ao consultar, depois de relutar todos esses anos, a lápide do túmulo dela. Por volta dos meus seis anos de idade... assim eu sei porque o tio Pingue deixou o Mosteiro dos Esquecidos para vir cuidar de mim tão logo fiquei órfão, pois ele, após sua longa experiência no mosteiro, já era a pessoa mais bem preparada para me criar..., por volta dos meus seis anos de idade, em uma viagem de férias, eu e minha mãe nos encontrávamos nos banhando às margens de um ribeirão, num balneário natural, distante da Cidade Aérea. Ela havia me deixado brincando na areia na companhia de outras crianças para poder ir nadar um pouco. Mergulhava e, ao emergir, percebeu que eu e meus colegas de idade parecida nos achávamos em pânico geral por um motivo aparentemente inexplicável. Na verdade, havia ocorrido no local um súbito tremor de terra, o qual não percebido direito pelas pessoas que se encontravam dentro da água, já que ali a gravidade é menor. Alguns até choravam compulsivamente, chamando e procurando desesperadamente por suas mães ou responsáveis. E minha mãe viu pais saindo de todos os lados a fim de consolar seus filhos, quando o alarme de evacuação do balneário ressoou. As pessoas na água, além de minha mãe, já bastante apreensivas, partiram afobadas em
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direção à pequena praia. Na confusão de braçadas e
pernadas, porém, minha mãe não saiu a tempo de evitar uma vaga de tragá-la junto à maioria dos que lutavam para sair da água, aquilo uma cena a que eu tinha assistido toda, completa e angustiantemente impotente. A vaga fora alimentada pela água irrompida de um represamento acima do balneário; as barragens haviam desmoronado por causa de violento terremoto ocorrido instantes antes e que ecoara nesse tremor menor sentido por mim e pelas as outras crianças na areia. Do lugar em que me encontrava, parece que acabei presenciando tudo, em detalhes. Antes que Gaio lamentasse, Chang continuou: – Meu pai, agora sei, eu perdi apenas poucos meses depois de minha mãe. Tínhamos ido fazer um retiro justamente em memória a ela, num lugar bem distante. Então, estávamos peregrinando pela trilha de uma região de caatinga. Armava uma tempestade cuja ferocidade podia ser medida pelos estrondos dos trovões e quantidade de raios despedidos generosamente em todas as direções do horizonte. O dia findava e, como o mau tempo se revelava cada vez mais certo pelo avultamento rápido da turbulência atmosférica pelo céu, nós, fatigados da jornada diurna como estávamos, havíamos decidido acampar na próxima clareira que achássemos. Acampados, em meio
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às rajadas de vento que chacoalhavam nossa pequena
habitação de náilon, tínhamos, de repente, percebido um barulho crescente de estalidos ao redor. Saímos depressa para checar o que era, e imediatamente confirmamos o que temíamos: a queda de raios produzira um incêndio que se alastrava rápido em função da ventania a açoitar a vegetação rasteira, nos cercando de todos os lados. Claro, não dispúnhamos de um celular para chamar o socorro dos bombeiros mesmo a centenas de quilômetros. Por opção, o único aparelho que portávamos podia apenas medir a temperatura do ambiente, a pressão atmosférica e a localização geográfica por GPS. Então, meu pai, entendendo que a gravidade da situação não nos permitiria esperar, decidiu agarrar o meu braço para procurarmos desesperadamente por uma saída entre aqueles arbustos estalejantes engolidos pelas labaredas de vermelho intenso. Tínhamos esperança de que a chuva finalmente caísse. Havíamos conseguido inclusive acessar locais mais seguros que levariam para ser invadidos pelo fogo algum tempo. A chuva, contudo, não veio, ficou só na promessa, e o custo de enfrentarmos aquele calor desidratante e aquela fumaça sufocante... esta última a qual, meu pai sabia, era o mal pior daquela adversidade extrema e do qual eu poderia ter mais chances de escapar por ser bem menor, por poder me
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locomover com rapidez por debaixo das nocivas nuvens
de fuligem..., o custo daquilo tudo foi a vida dele, intoxicado que ficou. Por sorte, ou não, fui encontrado pouco depois por aventureiros coincidentemente de passagem por ali. Chang fez uma pausa que ensejou Gaio concluir um raciocínio pertinente surpreendente e igualmente terrível: – O tremor da terra, a água da vaga, o fogo do mato e a fumaça trazida pelo ar em movimento levaram os seus pais... Caramba! A Natureza foi implacável com o destino do senhor, mestre. Lamento muito – condoeu-se ele. – Obrigado, Gaio – cedendo alguma coisa à força avassaladora da consternação que lhe torcia o peito, Chang já não era capaz de imprimir toda naturalidade possível às suas palavras, pronunciando-as com um leve amuo. – Parece fazer algum sentido, não é? O meu trauma pelas mortes de meus pais por fatalidades naturais e a minha incapacidade de desenvolver a Técnica Elementar. Acredito que o intervalo tão curto entre as duas trágicas mortes presenciadas por mim, em detalhes, das duas pessoas que me eram as mais importantes, tenha me agravado o choque psicológico.
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– Quem sabe novas sessões de hipnose o ajude a
desobstruir os seus meridianos de uma vez e a lidar melhor com o seu trauma – desejou Gaio em consolo. – Vou continuar a fazê-las – garantiu Chang de humor mais animado, um sorriso débil sendo capaz de puxar-lhe ligeiramente os cantos da boca com as perspectivas positivas do tratamento. – Como lhe disse, o resgate verbal dos detalhes das mortes de meus pais, que o hipnólogo conseguiu arrancar de mim e me repassar num relato que me possibilitou reconstituí-lo mentalmente com imagens vivas mediante minha imaginação, me contentou muito. A despeito de toda dor que me aguardam essas lembranças, eu queria e carecia vitalmente de tê-las em registro, um registro coerente. Chang e Gaio desceram por uma nova escada que retornava para os pátios, seguindo por outro caminho estreito a margear um pátio repleto de mook jongs – modelos de madeira com articulações que simulavam braços e pernas –, contra os quais vários treinadores, homens e mulheres, desferiam sucessões de pancadas sem dó, aperfeiçoando seus bloqueios e contra-ataques. – Gaio, tenho outra novidade para lhe contar em primeira mão. Acabei de receber a autorização do Conselho de Especialistas em Segurança Pública e do Comitê para Liberação e Uso dos Recursos Racionados
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para eu executar a obra da Escola Elementar. Árktos me
ajudou a convencê-los ao repetir aquela nossa primeira experiência... a de suplantar, numa bússola, a polarização do campo magnético terrestre com uma polarização invertida do campo eletromagnético mental... perante eles. Estou apenas acertando os últimos detalhes do modelo estético e funcional da arquitetura do edifício para poder enviar as instruções às máquinas e elas começarem a executar o projeto. Já defini o local: será na região da Grande Zona Central de Aerópolis. Depois irei lhe mostrar a maquete holográfica.
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ESCOLA ELEMENTAR
– Hã-hã! Após transferirmos nosso treinamento
para a Escola Elementar será uma questão de tempo até dominarmos a Técnica Elementar, não é verdade? – Sim, Gaio. As especificações da Escola Elementar, dando ênfase especial à sua resistência física e à funcionalidade de sua destinação, nos permitirão explorar ao máximo as possibilidades que a Técnica Elementar tem a oferecer, sem nos preocuparmos com restrições de qualquer ordem ou natureza. Em Bodhidharma, já estávamos nos arriscando a queimar tudo, com todos aqueles pequenos acidentes com os quais lidávamos todas as vezes que lá praticávamos. O fogo escapa ao nosso controle com muita facilidade. Contornavam a balaustrada de cimento cercando um tanque ornamental de água rasa forrado de lodo ao fundo, tendo ao centro a representação do nó sem fim que significava a interdependência de todas as coisas, feita em bronze e envolvida por uma toalha dobrada cor laranja-açafrão que tremulava ao vento matinal, e, então, Chang e Gaio estacaram para contemplar o símbolo auspicioso, suas mãos pousadas sobre o parapeito. Dali, seus ouvidos captaram uma bela canção distante e lenta, executada exclusivamente por flauta.
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– A partir de agora, terei de prestar explicações
constantes aos parlamentares – disse Chang. – A incrivelmente fabulosa Técnica Elementar, apresentada ao vivo repetidas vezes, sem possibilidade de truque de edição e dando quase nenhuma margem a dúvidas, os impressionou bastante. De fato, terei mesmo é de passar a fazer parte do Conselho de Especialistas em Segurança Pública. Precisarei buscar insistentemente o apoio de seus integrantes. Agora, parece que sou o maior responsável pela segurança de Aerópolis. Não são poucos os que têm dito que eu já superei até o Googledata! Quanta responsabilidade!... Só espero que consiga dar conta. – Mestre Ji – chamou Gaio, interrompendo-os. – O mestre Pingue me convidou a fazer um retiro de sete anos no Mosteiro dos Esquecidos. Estive pensando; quando me formar no colegial, acho que devo fazê-lo... O que acha? – Faz pouco tempo que eu cheguei de lá. Foi quando seu pai me procurou. Fui para lá logo completei meus quatorze anos. Achava que lá eu poderia saber mais que as máquinas. E suponho que não deva ter me enganado. Não há outro lugar no mundo onde podemos receber nem um sétimo do conhecimento que lá obtemos – disse Chang impressionado com a intenção do adolescente. – Na primeira vez que visitamos o mosteiro devemos
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obrigatoriamente fazê-lo após atravessarmos a pé o
enormemente árido deserto do Tibete. Quando menores, temos de estar acompanhados de um adulto. E essa é apenas uma das monumentais provas que precisamos enfrentar ao decidirmos fazer uma estadia lá. Você já discutiu com sua mãe a possibilidade de se ausentar por sete anos seguidos sem poder trocar nenhuma correspondência com ela ou com quem quer que seja? – Já, sim. Ela não me faz nenhuma objeção. Em vez disso, acredita que lá eu irei ter a oportunidade de encontrar muitas das respostas pelas quais ela disse que procuro. É verdade, mestre Ji, que no mosteiro nós realmente podemos encontrar respostas às perguntas existenciais? Por quê? O que eles lá estudam? Eles praticam os exercícios filosóficos de Marco Aurélio? Chang olhou surpreso para Gaio. E, depois, se perguntou se deveria mesmo se surpreender com aquele jovem, garoto!. – Eles, os exercícios, são fundamentais para mim – disse Gaio. – Para todo grande sábio também, Gaio – disse Chang maravilhado por poder conversar com alguém tão denso, profundo, e em idade tão tenra. – Já leu Montaigne? – Sim! Distância!
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– Isso. Distância. Segundo Montaigne, e, também,
Marco Aurélio, a distância é a capacidade de alheamento, de estranhamento, a fim de impedir que os hábitos e os automatismos cotidianos cancelem nossa percepção. – A purificação do olhar de todos os vícios ideológicos – resumiu Gaio com outro brilhantismo incoerente com sua idade. – Mas cuidado, Gaio – disse Chang preocupado. – Talvez seja muito jovem para enxergar a realidade como de fato ela é. Não estou subestimando o seu preparo emocional, mas quero que viva um pouco mais primeiro, antes de conhecer a verdade. – Viver? Ou se acondicionar? – disse Gaio provocativo, em tom sarcasticamente rebelde. Chang fraquejou e se desconcertou. Em seguida, refletindo, decidiu, antes de enfrentar, conduzir o irrequieto interlocutor, pois era esse o seu propósito como mestre, além de adulto, diante de um adolescente. – Lá, no Mosteiro dos Esquecidos – explicava Chang –, os monges estudam 14 horas diárias, sete dias por semana. Aliás, nesse lugar não há divisão dos dias. Estudam, basicamente, filosofia, teologia e história de todas as eras e de todos os povos. Mas, por maior que seja o conhecimento lá adquirido, este não será suficiente para que possamos alcançar a resposta sobre
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a Grande Questão. Por quê? Não quero desanimá-lo,
mas não há conhecimento humano que possa respondê- La. De fato, existe, sim, uma conclusão inevitável sobre tal questionamento a que todos chegam ao final, mas, compreenda, não devo revelá-la a você. Você é quem deve obtê-la por contra própria, após seu longo amadurecimento intelectual. – Embora não queira me responder, acredito que, para o bem ou para o mal, eu já possua a resposta – disse Gaio ainda rebelde, para sufoco de Chang Ji. – Simplesmente, a resposta é que não há uma resposta, não a Resposta. Por quê?, porque não há um porquê, não o Porquê, para o Tudo. Com os olhos perdidos no interlocutor, Chang percebeu que já podia a ele se render. Mas, apesar de séria dificuldade à vista, decidiu tentar estabelecer um ponto de equilíbrio na discussão entre os dois. – É... Sim, Gaio. Mas isso não quer dizer que não haja resposta a nada. – Epistemologia! Já li alguns livros a respeito. Questões relativas! É só o que podemos responder; ou seja, nada que vá além de nós mesmos em nossos contextos especiais, aprisionados em seus horizontes circunstanciais. – Gaio – a despeito da resistência, Chang tomou novo fôlego –, mas isso não deve ser uma satisfação
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limitada. Observe – Chang voltou a contemplar a
representação do nó sem fim à sua frente e Gaio o imitou –: O relativismo, embora não consiga ir além do ser, pode, por outro lado, lhe propiciar a plenitude em si mesmo. – No relativismo, tudo o que se refere ao ser não passa de autoengano, mestre. Já falei ao senhor antes sobre autoengano. Para que o nosso ser não entre em completa dissolução no vácuo da falta de uma identidade, carecemos desesperadamente de autoafirmações que nos permitam representar, no sentido pouco abonador de encenar, um Para-si, um conjunto de ideias de nós mesmos na presença alheia, real ou imaginária, que nos for mais conveniente, o ideal, mesmo que essas autoafirmações sejam tão consistentes quanto o ar mais rarefeito. Eu tenho uma ideia de mim do outro e, por temer a dissolução de meu ser projetado num ideal que pretendo uma identidade íntegra e imune à nidificação, insisto nessa ideia embora esta represente minha autoenganação enquanto uma tentativa de tentar me justificar em uma justificativa que me justifica, mas me aprisiona porque nela eu me acondiciono. Olho para o outro e enxergo um espelho que captura a minha imagem de mim, refletindo-me para que à qual eu viva em função de sustentar, privado de qualquer liberdade. Por isso, a mim, não basta só a plenitude do ser, este
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que aprisiona, encerra em si mesmo. Quero buscar a
compreensão do absoluto, mesmo que isso leve ao nada, que não liberta, mas também não aprisiona, porque não há um ser e a projeção que deste em função do outro tiramos e sustentamos. Chang ficou a contemplar agora, e achando graça conforme revelava num riso, o semblante de Gaio. Este também sorriu, pois notou que o mestre mostrava que, por meio do bom humor, havia desistido de tentar domar suas ideias e opiniões. Depois, enquanto voltava a se distrair com a representação do nó sem fim, Chang riu novamente, talvez de algo que, Gaio imaginou, acabara de lhe surgir nos pensamentos. – Antes de partir para o seu longo retiro no Mosteiro dos Esquecidos, tio Pingue, logo que se tornou maior de idade, atravessou um período muito conturbado e igualmente hilário de sua vida. Tão cômico que ele acabou sendo, ao final, chamado jocosamente por seus amigos com a de certa forma apropriada alcunha de “Para-raios”. – O mestre Pingue?, “Para- raios”? Que engraçado! Mas por quê? – quis saber Gaio surpreso e rindo. – Foi na ocasião de uma obsessão implacável que o acometera. Àquela época, tio Pingue, recém-formado do colegial, morava com o pai, um sujeito extremamente
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culto, mas igualmente severo e sistemático que não
tolerava nem a menor das falhas e manifestava ideológica aversão a toda tecnologia desnecessária. Ele era, sim, um grande defensor do low tec, sabe – contava Chang. – No seu quintal suspenso, meu avô exibia com grande orgulho uma estátua de madeira, de sofisticado e detalhado entalhe, de Tara, que dizia haver pertencido a várias gerações passadas suas. E certa vez, meus avós tinham resolvido realizar um demorado passeio pelas fascinantes ruínas do mundo anterior ao Grande Cataclismo e, ausentando-se, então incumbido o único filho de um dever da mais alta importância, do qual não poderia se negligenciar sob hipótese alguma: encobrir Tara com uma capa metálica, de efeito Faraday, ao menor sinal de chuva; naquela região em que eles moravam, um grande condomínio em sofisticado estilo oriental próximo de uma luxuriante floresta com elevada transpiração, qualquer chuvinha podia fulminar o chão com uma quantidade de raios de fazer inveja a muitas tempestades de outros cantos e, portanto, estando a estátua desprotegida, ela corria um respeitável risco de ser torrada por uma descarga atmosférica. “Aí, tio Pingue, que possuía pelo pai tanto respeito quanto medo, mais medo do que respeito, para ser preciso, passara a cumprir sua tarefa com tamanho rigor que a fazia diariamente, tão logo escurecia, até
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ignorando de propósito uma caprichosa imposição de
meu avô, o qual havia deixado claro, antes de partir, que não queria saber pelos vizinhos que a estimada estátua estava pernoitando noites calmas toda embrulhada. Se dependesse somente de tio Pingue, ele deixaria Tara encoberta o tempo todo, noite e dia, para se livrar daquele que considerava um fardo maçante ter de se preocupar em observar o céu de hora em hora e acabar ficando com um torcicolo, pois naquelas condições extremas não confiava e nem estava autorizado a usar aparelhos de previsão de tempo. Mas se largasse a estátua encoberta durante todo o tempo, seu pai acabaria sabendo por confiáveis vizinhos encarregados de dedurá-lo e lhe daria a coça de vara que havia lhe prometido caso não cumprisse à risca todas as regras que lhe impusera. “Pode parecer estranho a muitas culturas, mas apanhar feio do próprio pai, mesmo depois de adulto, é bastante comum entre nós enquanto permanecemos vivendo na casa paterna. Todos nós aceitamos isso sem protestos. É um sinal de reconhecimento da autoridade absoluta de nossos progenitores e uma forma objetiva, porque não mesquinha e cínica, de resolvermos problemas familiares relacionados à indisciplina dos filhos.
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“Após a surra, contanto que a disciplina se
restabeleça, tudo volta ao normal, sem cretinos ressentimentos. “Voltando ao tio Pingue, já à noite, ele se arriscava em deixar Tara envolvida no embrulho metálico até o alvorecer do dia seguinte, pois acreditava que os vizinhos, todos sistemáticos, iguais ao seu pai, no hábito de dormir cedo, não a notariam atravessar madrugadas serenas horrivelmente coberta. “E os dias de seus pais ausentes transcorriam todos conforme o esperado e trazendo os alívios almejados, quando tio Pingue não resistiu e se permitiu cair na tentação de descumprir uma outra regra importantíssima, a de, novamente em hipótese alguma, não se embriagar para desforrar uma calúnia de um desafeto. Ele, como você bem sabe, sempre fora especializado no estilo Parabêbado: quanto mais entorna aguardente de boa qualidade, mais refinada é sua técnica e mais flexuoso é seu corpo. Mas, nesse dia em que precisou ser socorrido pela birita, parece que, por temor de encher a cara demais e acabar deixando o resto do dia passar batido junto à sua obrigação vital de proteger Tara no início de uma noite de previsão incerta do tempo, ele não chegou a beber o suficiente, pois assim me justificou, mais tarde, a surra que tomou de
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seu desafeto e que, para piorar e muito, o largou
esparramado inconsciente na sarjeta. Muito interessado, Gaio, debruçado sobre o parapeito da balaustrada a cercar o tanque d’água ornamental do nó sem fim, começou a achar mais graça ao prever o trágico desfecho da cômica história que o mestre lhe narrava. – E não é que foi a chuva de um temporal de fim de tarde que o acordou na sarjeta ao fustigar-lhe a cara já sovada. Tio Pingue desembestou apavorado para acudir a estátua, desprotegida, esperançoso na estatística popular que diz que um raio não cai duas vezes no mesmo lugar, ou seja, interpretando favoravelmente que só mesmo um castigo poderia fazer cair a descarga atmosférica justamente em cima de Tara. Adentrando o quintal de sua casa, a proteção de Faraday nas mãos e a estátua a poucos passos de ser alcançada, infelizmente tio Pingue pareceu que fora duramente castigado por aquele amargo dia. A punição descera do céu num clarão tão intenso diante dele, que tio Pingue gravou na cabeça cada desvio do risco escalonado da descarga como se a ponta de uma faca lhe tivesse talhado o mesmo traço serrilhado no córtex do cérebro. Tara ficou irrecuperavelmente danificada, com a cabeça e parte do torso calcinados.
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“Tamanha foi a raiva de tio Pingue com seu
infortúnio que, parecendo realmente que o raio tinha caído era em sua cabeça, ele insanamente jurou naquele instante que iria excomungar de alguma forma a divindade, seja qual fosse, responsável pelas descargas atmosféricas das tempestades. O tio Pingue esperava o pior possível. Pois seu pai, ao retornar, imediatamente o esbofeteou até quebrar uma mão; foi quando o tio Pingue, pela primeira vez em toda a sua vida, não conteve um insulto dirigido ao pai ao lhe dizer na cara que o que ele sentia mesmo por Tara não passava de tesão. Seu pai, então, não engolindo o desaforo, o espancou até quebrar a outra mão, e, com as duas mãos fraturadas, ficou impossibilitado de surrar o filho com a prometida e extremamente dolorosa vara. – Ui, coitado do mestre Pingue! – condoeu-se Gaio, parecendo ter sentido na própria pele as violentas palmadas de fato e um pouco do que poderia ter sido a surra com vara que o mestre Pingue quase levara. – Mas a culpa não foi dele. Seu pai é que deveria ter providenciado um para-raios para proteger a estátua. – Sim; mas um recurso desses tiraria uma importante oportunidade que meu avô teria para testar o exercício da responsabilidade, daquela vez já adulta, por seu filho – explicou Chang. – Além do mais, meu avô não queria de forma alguma um enorme mastro de
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Para-raios
metal destoando completamente da esmerada
arquitetura local. Gaio, você precisa ver as cerejeiras que florescem lá. “A briga entre os dois, pelo que eu soube mais tarde, foi realmente feia. Meu avô, acho, nunca chegou a perdoar plenamente o meu tio. Principalmente porque o culpou inteiramente por acabar sendo obrigado a se exceder com toda aquela violência. Pingue pareceu ter enlouquecido temporariamente, obcecado por atribuir a culpa de seu infortúnio a uma suposta divindade. Passou inutilmente a persegui-la o tempo todo, registrando perigosamente em vídeos qualquer tempestade que pudesse, acreditando que seria capaz de identificá-la rindo sarcasticamente dele posteriormente no reexame minucioso das imagens gravadas. Com o risco faiscante que o desgraçara cravado na cabeça, ele estava desarrazoadamente decidido a não admitir sua incompetência e a transferir sua culpa mesmo que fosse a uma divindade, coisa em que até o momento desditoso nunca havia acreditado, com exceção de um certo Dragão da Sorte. Foi então que seus amigos não o pouparam e o troçaram ao botarem-no a alcunha de Para-raios. – A despeito de tudo, do risco que correu e de sua insanidade temporária, o mestre Pingue deve ter acumulado um precioso material de manifestações
Homem Elementar: Através da mente, sobrevivendo aos carrascos
Para-raios
atmosféricas extremas, não é? – disse Gaio com visível
interesse. – Sim – disse Chang não entendendo direito esse interesse de Gaio. – Logo depois de meu avô despachar tio Pingue para o Mosteiro dos Esquecidos a fim de que pudesse repensar a vida, ele avaliou útil deixar as filmagens à disposição da primeira rede de estudos meteorológicos que lhe veio à cabeça.
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