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Para-raios

Cap. V:

PARA-RAIOS

PINGUE?
Usando uma vestimenta laranja-açafrão que
combinava com a cor de seus introspectivos olhos, justa

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e leve em razão da destinação esportiva, Gaio,


equilibrando-se graciosa e verticalmente numa perna,
tendo a outra dobrada pelo pé dela erguido e os braços
estendidos em direções opostas – para frente e para trás
–, as pontas dos dedos mantidas firmemente unidas
iguais aos bicos das aves, passava a impressão que
pretendia alçar voo num dos pátios da Escola
Bodhidharma onde treinava individualmente kung fu,
como a garça branca lhe estampada no tecido de naylon
sobre o peito.
Era começo de uma manhã de sábado fresca, sob
um céu limpo. O Sol começava a despontar, mas Gaio, ao
contrário do que um desavisado poderia imaginar, já
estava encerrando sabiamente sua sessão de exercícios
extenuantes antes que o astro Rei principiasse a
rechinar. Os pátios se achavam cheios, contudo, em
virtude de seus pródigos tamanhos, todos os esportistas
dispunham de suficiente espaço para praticar.
Diante da agitação e de cantos alegres, que
saudavam a liberdade, de diversos pássaros a empoleirar
de galho em galho nas árvores frondosas que
ornamentavam as orlas dos pátios, Gaio realizou mais
alguns movimentos finais, calculados passos, torções
suaves do torço e deslocamentos ligeiros dos braços que
terminavam de forma abrupta; cessando, pegou uma
toalha próxima, de dentro de sua sacola deixada a um

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canto. Enxugava o suor que escorria pelo rosto, quando


alguém se avizinhou e lhe pousou a mão num ombro.
– Por que a preferência ultimamente pelo estilo
garça-branca? – quis saber o jovem Chang, trajando uma
calça comprida de moletom com camiseta e portando
uma prancheta na mão.
– Bom dia, mestre Ji! Não sei se o senhor vai
acreditar em mim, mas, noutro dia desses, eu presenciei
uma garça engalfinhando-se com um macaco tal e qual
aquela mesma... na verdade, parecida..., luta da lenda
que um lama tibetano dizia ter testemunhado.
Chang se mostrava sinceramente interessado e
inclinado a acreditar, com sua atenção e riso da graça do
relato inusitado, não do relator.
– Vindo de você, não é difícil de acreditar – disse
Chang. – Sei que sempre dedica tempo para observações
delongadas, acuradas e analíticas do ambiente. Desse
modo, estará sempre sujeito a testemunhar
acontecimentos inesperadamente ímpares de tudo o
que o cerca de maravilhoso e natural.
– Pois é – Gaio estava tão animado em poder contar
a um mestre de kung fu sua observação que, tinha
certeza, deveria ser muitíssimo incomum, que nem se
preocupou em acabar se sentindo ridículo. – Não
cheguei a ver o motivo da briga. Lembro-me de que a
ave e o símio se encontravam sobre galhos delgados de

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uma árvore às margens de um rio – Gaio até gesticulava


no intuito de ilustrar seu relato. – O macaco, robusto,
sabe, avançava agressivo, saltando pesado de galho em
galho, guinchando estridentemente, como se achasse
muito irritado com a adversária; pois a garça, impassível,
deslocava-se em fuga com agilidade ao saltar suave,
impulsionada por um bater de asas que, conferindo-lhe
uma breve silhueta simétrica três vezes o tamanho de
quando elas ficavam recolhidas, sob a emissão de um
ruído semelhante ao som saído de um guarda-chuva
sendo armado, assustava e acuava ligeiramente o
inimigo símio. E não é que a ave, astutamente, foi
conduzindo o primata a galhos cada vez mais frágeis, até
que um se quebrou e o precipitou na água. Ainda bem
que a margem era rasa, dando pé para ele. Coitado do
macaco, ao menos a lição tinha lhe valido: não voltou
mais a encrencar-se com a garça.
– E você, extraiu alguma lição do que presenciou?
– Sim. A de que agilidade e astúcia superam
brutalidade e afoiteza em um combate de aparentes
desiguais.
– Exatamente o que levou o lama, segundo a lenda,
a criar o estilo garça-branca – disse Chang Ji satisfeito.
Chang Ji acenou para que caminhassem um pouco
entre os pátios, chafarizes e árvores que projetavam
boas sombras.

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– Tenho observado também ultimamente que você


tem treinado com muito afinco, pontualidade e
disciplina, utilizando boa parte do seu tempo. Por que
nunca pratica com os outros, ou participa de torneios?
– É... – Gaio sentiu-se inseguro se respondia com
franqueza. – Não gosto muito, na verdade, nenhum
pouco, de competir. Não ligo que haja pessoas melhores
do que eu, nem que eu possa ser melhor do que elas,
não sei se o senhor me entende?. Pode ser que eu esteja
me iludindo, mas assim prefiro ao não pôr minha técnica
à prova e achar que sou tão bom quanto qualquer outro
– sendo sincero, ele temeu uma reprovação do mestre
quanto à sua atitude.
– Eu o entendo perfeitamente, Gaio. O importante é
nos sentirmos bem, confiante no resultado de nossos
esforços – Gaio não acreditou que seu mestre
compreendia os seus modos que ele próprio não
considerava muito normais. – Mas é sabido igualmente
que uma disputa contra um bom adversário pode nos
apontar deficiências que, posteriormente, poderemos
corrigi-las.
Embora Gaio soubesse que nada podia ser perfeito
mesmo, ainda assim não contava com a admoestação;
sacudiu a cabeça em entendimento mesmo certo de que
jamais iria acatar o conselho do mestre, a despeito de
reconhecer a sua importância.

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– E sua mãe como vai, Gaio? – oportunamente,


trocou de assunto Chang ao notar que o pupilo,
encabulado, teria de levar mais tempo para digerir a
advertência que lhe fizera.
– Acho que ela não queria, mas já posso perceber
que a ação inexorável do tempo já começou a cicatrizar-
lhe a alma.
– Ninguém escapa às instilações regulares e
incessantes do bálsamo da ampulheta – admitiu Chang.
Eles deixaram as sendas que contornavam os pátios
cimentados e movimentados, subiram uma escada larga
que dava para um dos inúmeros pavilhões, prosseguindo
pelos intermináveis corredores de ripas que rangiam
suavemente sob os passos. De um lado, percebia-se
pelas portas de correr entreabertas que a maioria das
salas se achava ocupada por praticantes de kung fu,
alguns permitindo escapar gritos enérgicos e silvos
longos, masculinos e femininos, libertadores de energia.
– Só que ela até agora não conseguiu abandonar os
tons lutuosos – disse Gaio preocupado. De repente,
imaginou o mestre suspeitando que o motivo de seu
recente aumento de dedicação no treinamento em
artes-marciais fosse a segurança da mãe e a ausência do
pai.
– Esperei terminar seus treinos hoje pois queria
abordá-lo para lhe dizer que estou contente e

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agradecido por ter usado sua sugestão de procurar um


especialista em hipnose para me tratar. Já tive, inclusive,
algumas sessões. A última delas com resultados que,
creio, me serão úteis para finalmente desobstruir meus
meridianos.
– Que bom! Estou contente também que o tenha
ajudado.
– Ajudou, Gaio. Se eu tivesse seguido a sugestão de
Árktos, acredito que eu jamais obteria qualquer
resultado. Talvez até houvesse piorado os meus traumas
psicológicos. Você sabe bem, Gaio, muitos de nós
estamos cansados de delegar a solução de nossos
problemas a todos esses aparelhos movidos a elétrons.
Eles só têm tornado nossas vidas cada vez mais
impessoal, apática e previsível. Essa situação tem
forçado a uma formatação cada vez mais mecânica de
nossas mentes. Agimos sempre mais conforme a
conveniência dessas máquinas. São elas que têm
definido nossa maneira de ser! Acredito que isso só piora
o tédio crescente que toma conta de nós, ameaçando
seriamente o nosso tão perfeito equilíbrio social. Por
causa disso, de certo modo até acho bom que nossa
tecnologia esteja atualmente estagnada, conforme
dizem alguns. Qualquer novo avanço já não fará mais
sentido para nós, humanos.

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Gaio compreendia o mestre ao balançar a cabeça


positivamente.
– Mas voltando a falar sobre o meu tratamento: não
fui, ainda, capaz de superar totalmente o meu trauma e
de trazer à tona tudo das lembranças das mortes de
meus pais, mas, pelo que relatei ao hipnólogo por
sugestão quando hipnotizado e ele me repassou
verbalmente em seguida, sem a hipnose, agora sei mais
ou menos quando e mais detalhadamente como elas
foram. Descobri, inclusive, que morreram separados por
um intervalo de tempo de poucos meses, o que sempre
imaginei erroneamente diferente, que tivessem morrido
juntos, embora parentes meus já me tenham dito o
contrário, o que agora sei que era o certo, apenas
provavelmente nunca tenha aceitado a ou qualquer
informação de terceiros sobre os trágicos fatos de que
fui testemunha viva. Mas, por estranha coincidência, eles
perderam suas vidas de maneira muito semelhante, em
fatalidades relacionadas à Natureza.
Gaio divisou, ou imaginou ter divisado, Chang
reprimindo de chofre uma vontade acachapante de
chorar um pouco. Fora essa observação em diferente, o
mestre procurava imprimir tanta naturalidade em suas
palavras externadas dolorosamente tal qual um pus que
se extrai ao esvurmar as feridas da alma que ele, Gaio, se
via na obrigação de oprimir o menor constrangimento.

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– Minha mãe eu perdi, segundo relatei ao


hipnólogo, primeiro, conforme confirmei ao consultar,
depois de relutar todos esses anos, a lápide do túmulo
dela. Por volta dos meus seis anos de idade... assim eu
sei porque o tio Pingue deixou o Mosteiro dos
Esquecidos para vir cuidar de mim tão logo fiquei órfão,
pois ele, após sua longa experiência no mosteiro, já era a
pessoa mais bem preparada para me criar..., por volta
dos meus seis anos de idade, em uma viagem de férias,
eu e minha mãe nos encontrávamos nos banhando às
margens de um ribeirão, num balneário natural, distante
da Cidade Aérea. Ela havia me deixado brincando na
areia na companhia de outras crianças para poder ir
nadar um pouco. Mergulhava e, ao emergir, percebeu
que eu e meus colegas de idade parecida nos achávamos
em pânico geral por um motivo aparentemente
inexplicável. Na verdade, havia ocorrido no local um
súbito tremor de terra, o qual não percebido direito
pelas pessoas que se encontravam dentro da água, já
que ali a gravidade é menor. Alguns até choravam
compulsivamente, chamando e procurando
desesperadamente por suas mães ou responsáveis. E
minha mãe viu pais saindo de todos os lados a fim de
consolar seus filhos, quando o alarme de evacuação do
balneário ressoou. As pessoas na água, além de minha
mãe, já bastante apreensivas, partiram afobadas em

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direção à pequena praia. Na confusão de braçadas e


pernadas, porém, minha mãe não saiu a tempo de evitar
uma vaga de tragá-la junto à maioria dos que lutavam
para sair da água, aquilo uma cena a que eu tinha
assistido toda, completa e angustiantemente impotente.
A vaga fora alimentada pela água irrompida de um
represamento acima do balneário; as barragens haviam
desmoronado por causa de violento terremoto ocorrido
instantes antes e que ecoara nesse tremor menor
sentido por mim e pelas as outras crianças na areia. Do
lugar em que me encontrava, parece que acabei
presenciando tudo, em detalhes.
Antes que Gaio lamentasse, Chang continuou:
– Meu pai, agora sei, eu perdi apenas poucos meses
depois de minha mãe. Tínhamos ido fazer um retiro
justamente em memória a ela, num lugar bem distante.
Então, estávamos peregrinando pela trilha de uma
região de caatinga. Armava uma tempestade cuja
ferocidade podia ser medida pelos estrondos dos
trovões e quantidade de raios despedidos
generosamente em todas as direções do horizonte. O dia
findava e, como o mau tempo se revelava cada vez mais
certo pelo avultamento rápido da turbulência
atmosférica pelo céu, nós, fatigados da jornada diurna
como estávamos, havíamos decidido acampar na
próxima clareira que achássemos. Acampados, em meio

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às rajadas de vento que chacoalhavam nossa pequena


habitação de náilon, tínhamos, de repente, percebido
um barulho crescente de estalidos ao redor. Saímos
depressa para checar o que era, e imediatamente
confirmamos o que temíamos: a queda de raios
produzira um incêndio que se alastrava rápido em
função da ventania a açoitar a vegetação rasteira, nos
cercando de todos os lados. Claro, não dispúnhamos de
um celular para chamar o socorro dos bombeiros mesmo
a centenas de quilômetros. Por opção, o único aparelho
que portávamos podia apenas medir a temperatura do
ambiente, a pressão atmosférica e a localização
geográfica por GPS. Então, meu pai, entendendo que a
gravidade da situação não nos permitiria esperar, decidiu
agarrar o meu braço para procurarmos
desesperadamente por uma saída entre aqueles
arbustos estalejantes engolidos pelas labaredas de
vermelho intenso. Tínhamos esperança de que a chuva
finalmente caísse. Havíamos conseguido inclusive
acessar locais mais seguros que levariam para ser
invadidos pelo fogo algum tempo. A chuva, contudo, não
veio, ficou só na promessa, e o custo de enfrentarmos
aquele calor desidratante e aquela fumaça sufocante...
esta última a qual, meu pai sabia, era o mal pior daquela
adversidade extrema e do qual eu poderia ter mais
chances de escapar por ser bem menor, por poder me

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locomover com rapidez por debaixo das nocivas nuvens


de fuligem..., o custo daquilo tudo foi a vida dele,
intoxicado que ficou. Por sorte, ou não, fui encontrado
pouco depois por aventureiros coincidentemente de
passagem por ali.
Chang fez uma pausa que ensejou Gaio concluir um
raciocínio pertinente surpreendente e igualmente
terrível:
– O tremor da terra, a água da vaga, o fogo do mato
e a fumaça trazida pelo ar em movimento levaram os
seus pais... Caramba! A Natureza foi implacável com o
destino do senhor, mestre. Lamento muito – condoeu-se
ele.
– Obrigado, Gaio – cedendo alguma coisa à força
avassaladora da consternação que lhe torcia o peito,
Chang já não era capaz de imprimir toda naturalidade
possível às suas palavras, pronunciando-as com um leve
amuo. – Parece fazer algum sentido, não é? O meu
trauma pelas mortes de meus pais por fatalidades
naturais e a minha incapacidade de desenvolver a
Técnica Elementar. Acredito que o intervalo tão curto
entre as duas trágicas mortes presenciadas por mim, em
detalhes, das duas pessoas que me eram as mais
importantes, tenha me agravado o choque psicológico.

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– Quem sabe novas sessões de hipnose o ajude a


desobstruir os seus meridianos de uma vez e a lidar
melhor com o seu trauma – desejou Gaio em consolo.
– Vou continuar a fazê-las – garantiu Chang de
humor mais animado, um sorriso débil sendo capaz de
puxar-lhe ligeiramente os cantos da boca com as
perspectivas positivas do tratamento. – Como lhe disse,
o resgate verbal dos detalhes das mortes de meus pais,
que o hipnólogo conseguiu arrancar de mim e me
repassar num relato que me possibilitou reconstituí-lo
mentalmente com imagens vivas mediante minha
imaginação, me contentou muito. A despeito de toda
dor que me aguardam essas lembranças, eu queria e
carecia vitalmente de tê-las em registro, um registro
coerente.
Chang e Gaio desceram por uma nova escada que
retornava para os pátios, seguindo por outro caminho
estreito a margear um pátio repleto de mook jongs –
modelos de madeira com articulações que simulavam
braços e pernas –, contra os quais vários treinadores,
homens e mulheres, desferiam sucessões de pancadas
sem dó, aperfeiçoando seus bloqueios e contra-ataques.
– Gaio, tenho outra novidade para lhe contar em
primeira mão. Acabei de receber a autorização do
Conselho de Especialistas em Segurança Pública e do
Comitê para Liberação e Uso dos Recursos Racionados

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para eu executar a obra da Escola Elementar. Árktos me


ajudou a convencê-los ao repetir aquela nossa primeira
experiência... a de suplantar, numa bússola, a
polarização do campo magnético terrestre com uma
polarização invertida do campo eletromagnético
mental... perante eles. Estou apenas acertando os
últimos detalhes do modelo estético e funcional da
arquitetura do edifício para poder enviar as instruções às
máquinas e elas começarem a executar o projeto. Já
defini o local: será na região da Grande Zona Central de
Aerópolis. Depois irei lhe mostrar a maquete holográfica.

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ESCOLA ELEMENTAR

– Hã-hã! Após transferirmos nosso treinamento


para a Escola Elementar será uma questão de tempo até
dominarmos a Técnica Elementar, não é verdade?
– Sim, Gaio. As especificações da Escola Elementar,
dando ênfase especial à sua resistência física e à
funcionalidade de sua destinação, nos permitirão
explorar ao máximo as possibilidades que a Técnica
Elementar tem a oferecer, sem nos preocuparmos com
restrições de qualquer ordem ou natureza. Em
Bodhidharma, já estávamos nos arriscando a queimar
tudo, com todos aqueles pequenos acidentes com os
quais lidávamos todas as vezes que lá praticávamos. O
fogo escapa ao nosso controle com muita facilidade.
Contornavam a balaustrada de cimento cercando
um tanque ornamental de água rasa forrado de lodo ao
fundo, tendo ao centro a representação do nó sem fim
que significava a interdependência de todas as coisas,
feita em bronze e envolvida por uma toalha dobrada cor
laranja-açafrão que tremulava ao vento matinal, e,
então, Chang e Gaio estacaram para contemplar o
símbolo auspicioso, suas mãos pousadas sobre o
parapeito. Dali, seus ouvidos captaram uma bela canção
distante e lenta, executada exclusivamente por flauta.

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– A partir de agora, terei de prestar explicações


constantes aos parlamentares – disse Chang. – A
incrivelmente fabulosa Técnica Elementar, apresentada
ao vivo repetidas vezes, sem possibilidade de truque de
edição e dando quase nenhuma margem a dúvidas, os
impressionou bastante. De fato, terei mesmo é de passar
a fazer parte do Conselho de Especialistas em Segurança
Pública. Precisarei buscar insistentemente o apoio de
seus integrantes. Agora, parece que sou o maior
responsável pela segurança de Aerópolis. Não são
poucos os que têm dito que eu já superei até o
Googledata! Quanta responsabilidade!... Só espero que
consiga dar conta.
– Mestre Ji – chamou Gaio, interrompendo-os. – O
mestre Pingue me convidou a fazer um retiro de sete
anos no Mosteiro dos Esquecidos. Estive pensando;
quando me formar no colegial, acho que devo fazê-lo...
O que acha?
– Faz pouco tempo que eu cheguei de lá. Foi quando
seu pai me procurou. Fui para lá logo completei meus
quatorze anos. Achava que lá eu poderia saber mais que
as máquinas. E suponho que não deva ter me enganado.
Não há outro lugar no mundo onde podemos receber
nem um sétimo do conhecimento que lá obtemos – disse
Chang impressionado com a intenção do adolescente. –
Na primeira vez que visitamos o mosteiro devemos

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obrigatoriamente fazê-lo após atravessarmos a pé o


enormemente árido deserto do Tibete. Quando
menores, temos de estar acompanhados de um adulto. E
essa é apenas uma das monumentais provas que
precisamos enfrentar ao decidirmos fazer uma estadia
lá. Você já discutiu com sua mãe a possibilidade de se
ausentar por sete anos seguidos sem poder trocar
nenhuma correspondência com ela ou com quem quer
que seja?
– Já, sim. Ela não me faz nenhuma objeção. Em vez
disso, acredita que lá eu irei ter a oportunidade de
encontrar muitas das respostas pelas quais ela disse que
procuro. É verdade, mestre Ji, que no mosteiro nós
realmente podemos encontrar respostas às perguntas
existenciais? Por quê? O que eles lá estudam? Eles
praticam os exercícios filosóficos de Marco Aurélio?
Chang olhou surpreso para Gaio. E, depois, se
perguntou se deveria mesmo se surpreender com aquele
jovem, garoto!.
– Eles, os exercícios, são fundamentais para mim –
disse Gaio. – Para todo grande sábio também, Gaio –
disse Chang maravilhado por poder conversar com
alguém tão denso, profundo, e em idade tão tenra. – Já
leu Montaigne?
– Sim! Distância!

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– Isso. Distância. Segundo Montaigne, e, também,


Marco Aurélio, a distância é a capacidade de
alheamento, de estranhamento, a fim de impedir que os
hábitos e os automatismos cotidianos cancelem nossa
percepção.
– A purificação do olhar de todos os vícios
ideológicos – resumiu Gaio com outro brilhantismo
incoerente com sua idade.
– Mas cuidado, Gaio – disse Chang preocupado. –
Talvez seja muito jovem para enxergar a realidade como
de fato ela é. Não estou subestimando o seu preparo
emocional, mas quero que viva um pouco mais primeiro,
antes de conhecer a verdade.
– Viver? Ou se acondicionar? – disse Gaio
provocativo, em tom sarcasticamente rebelde.
Chang fraquejou e se desconcertou. Em seguida,
refletindo, decidiu, antes de enfrentar, conduzir o
irrequieto interlocutor, pois era esse o seu propósito
como mestre, além de adulto, diante de um adolescente.
– Lá, no Mosteiro dos Esquecidos – explicava Chang
–, os monges estudam 14 horas diárias, sete dias por
semana. Aliás, nesse lugar não há divisão dos dias.
Estudam, basicamente, filosofia, teologia e história de
todas as eras e de todos os povos. Mas, por maior que
seja o conhecimento lá adquirido, este não será
suficiente para que possamos alcançar a resposta sobre

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a Grande Questão. Por quê? Não quero desanimá-lo,


mas não há conhecimento humano que possa respondê-
La. De fato, existe, sim, uma conclusão inevitável sobre
tal questionamento a que todos chegam ao final, mas,
compreenda, não devo revelá-la a você. Você é quem
deve obtê-la por contra própria, após seu longo
amadurecimento intelectual.
– Embora não queira me responder, acredito que,
para o bem ou para o mal, eu já possua a resposta –
disse Gaio ainda rebelde, para sufoco de Chang Ji. –
Simplesmente, a resposta é que não há uma resposta,
não a Resposta. Por quê?, porque não há um porquê,
não o Porquê, para o Tudo.
Com os olhos perdidos no interlocutor, Chang
percebeu que já podia a ele se render. Mas, apesar de
séria dificuldade à vista, decidiu tentar estabelecer um
ponto de equilíbrio na discussão entre os dois.
– É... Sim, Gaio. Mas isso não quer dizer que não
haja resposta a nada.
– Epistemologia! Já li alguns livros a respeito.
Questões relativas! É só o que podemos responder; ou
seja, nada que vá além de nós mesmos em nossos
contextos especiais, aprisionados em seus horizontes
circunstanciais.
– Gaio – a despeito da resistência, Chang tomou
novo fôlego –, mas isso não deve ser uma satisfação

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limitada. Observe – Chang voltou a contemplar a


representação do nó sem fim à sua frente e Gaio o
imitou –: O relativismo, embora não consiga ir além do
ser, pode, por outro lado, lhe propiciar a plenitude em si
mesmo.
– No relativismo, tudo o que se refere ao ser não
passa de autoengano, mestre. Já falei ao senhor antes
sobre autoengano. Para que o nosso ser não entre em
completa dissolução no vácuo da falta de uma
identidade, carecemos desesperadamente de
autoafirmações que nos permitam representar, no
sentido pouco abonador de encenar, um Para-si, um
conjunto de ideias de nós mesmos na presença alheia,
real ou imaginária, que nos for mais conveniente, o ideal,
mesmo que essas autoafirmações sejam tão consistentes
quanto o ar mais rarefeito. Eu tenho uma ideia de mim
do outro e, por temer a dissolução de meu ser projetado
num ideal que pretendo uma identidade íntegra e imune
à nidificação, insisto nessa ideia embora esta represente
minha autoenganação enquanto uma tentativa de tentar
me justificar em uma justificativa que me justifica, mas
me aprisiona porque nela eu me acondiciono. Olho para
o outro e enxergo um espelho que captura a minha
imagem de mim, refletindo-me para que à qual eu viva
em função de sustentar, privado de qualquer liberdade.
Por isso, a mim, não basta só a plenitude do ser, este

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que aprisiona, encerra em si mesmo. Quero buscar a


compreensão do absoluto, mesmo que isso leve ao nada,
que não liberta, mas também não aprisiona, porque não
há um ser e a projeção que deste em função do outro
tiramos e sustentamos.
Chang ficou a contemplar agora, e achando graça
conforme revelava num riso, o semblante de Gaio. Este
também sorriu, pois notou que o mestre mostrava que,
por meio do bom humor, havia desistido de tentar
domar suas ideias e opiniões.
Depois, enquanto voltava a se distrair com a
representação do nó sem fim, Chang riu novamente,
talvez de algo que, Gaio imaginou, acabara de lhe surgir
nos pensamentos.
– Antes de partir para o seu longo retiro no
Mosteiro dos Esquecidos, tio Pingue, logo que se tornou
maior de idade, atravessou um período muito
conturbado e igualmente hilário de sua vida. Tão cômico
que ele acabou sendo, ao final, chamado jocosamente
por seus amigos com a de certa forma apropriada
alcunha de “Para-raios”. – O mestre Pingue?, “Para-
raios”? Que engraçado! Mas por quê? – quis saber Gaio
surpreso e rindo.
– Foi na ocasião de uma obsessão implacável que o
acometera. Àquela época, tio Pingue, recém-formado do
colegial, morava com o pai, um sujeito extremamente

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culto, mas igualmente severo e sistemático que não


tolerava nem a menor das falhas e manifestava
ideológica aversão a toda tecnologia desnecessária. Ele
era, sim, um grande defensor do low tec, sabe – contava
Chang. – No seu quintal suspenso, meu avô exibia com
grande orgulho uma estátua de madeira, de sofisticado e
detalhado entalhe, de Tara, que dizia haver pertencido a
várias gerações passadas suas. E certa vez, meus avós
tinham resolvido realizar um demorado passeio pelas
fascinantes ruínas do mundo anterior ao Grande
Cataclismo e, ausentando-se, então incumbido o único
filho de um dever da mais alta importância, do qual não
poderia se negligenciar sob hipótese alguma: encobrir
Tara com uma capa metálica, de efeito Faraday, ao
menor sinal de chuva; naquela região em que eles
moravam, um grande condomínio em sofisticado estilo
oriental próximo de uma luxuriante floresta com elevada
transpiração, qualquer chuvinha podia fulminar o chão
com uma quantidade de raios de fazer inveja a muitas
tempestades de outros cantos e, portanto, estando a
estátua desprotegida, ela corria um respeitável risco de
ser torrada por uma descarga atmosférica.
“Aí, tio Pingue, que possuía pelo pai tanto respeito
quanto medo, mais medo do que respeito, para ser
preciso, passara a cumprir sua tarefa com tamanho rigor
que a fazia diariamente, tão logo escurecia, até

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ignorando de propósito uma caprichosa imposição de


meu avô, o qual havia deixado claro, antes de partir, que
não queria saber pelos vizinhos que a estimada estátua
estava pernoitando noites calmas toda embrulhada. Se
dependesse somente de tio Pingue, ele deixaria Tara
encoberta o tempo todo, noite e dia, para se livrar
daquele que considerava um fardo maçante ter de se
preocupar em observar o céu de hora em hora e acabar
ficando com um torcicolo, pois naquelas condições
extremas não confiava e nem estava autorizado a usar
aparelhos de previsão de tempo. Mas se largasse a
estátua encoberta durante todo o tempo, seu pai
acabaria sabendo por confiáveis vizinhos encarregados
de dedurá-lo e lhe daria a coça de vara que havia lhe
prometido caso não cumprisse à risca todas as regras
que lhe impusera.
“Pode parecer estranho a muitas culturas, mas
apanhar feio do próprio pai, mesmo depois de adulto, é
bastante comum entre nós enquanto permanecemos
vivendo na casa paterna. Todos nós aceitamos isso sem
protestos. É um sinal de reconhecimento da autoridade
absoluta de nossos progenitores e uma forma objetiva,
porque não mesquinha e cínica, de resolvermos
problemas familiares relacionados à indisciplina dos
filhos.

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“Após a surra, contanto que a disciplina se


restabeleça, tudo volta ao normal, sem cretinos
ressentimentos.
“Voltando ao tio Pingue, já à noite, ele se arriscava
em deixar Tara envolvida no embrulho metálico até o
alvorecer do dia seguinte, pois acreditava que os
vizinhos, todos sistemáticos, iguais ao seu pai, no hábito
de dormir cedo, não a notariam atravessar madrugadas
serenas horrivelmente coberta.
“E os dias de seus pais ausentes transcorriam
todos conforme o esperado e trazendo os alívios
almejados, quando tio Pingue não resistiu e se permitiu
cair na tentação de descumprir uma outra regra
importantíssima, a de, novamente em hipótese alguma,
não se embriagar para desforrar uma calúnia de um
desafeto. Ele, como você bem sabe, sempre fora
especializado no estilo Parabêbado: quanto mais entorna
aguardente de boa qualidade, mais refinada é sua
técnica e mais flexuoso é seu corpo. Mas, nesse dia em
que precisou ser socorrido pela birita, parece que, por
temor de encher a cara demais e acabar deixando o
resto do dia passar batido junto à sua obrigação vital de
proteger Tara no início de uma noite de previsão incerta
do tempo, ele não chegou a beber o suficiente, pois
assim me justificou, mais tarde, a surra que tomou de

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Para-raios

seu desafeto e que, para piorar e muito, o largou


esparramado inconsciente na sarjeta.
Muito interessado, Gaio, debruçado sobre o
parapeito da balaustrada a cercar o tanque d’água
ornamental do nó sem fim, começou a achar mais graça
ao prever o trágico desfecho da cômica história que o
mestre lhe narrava.
– E não é que foi a chuva de um temporal de fim de
tarde que o acordou na sarjeta ao fustigar-lhe a cara já
sovada. Tio Pingue desembestou apavorado para acudir
a estátua, desprotegida, esperançoso na estatística
popular que diz que um raio não cai duas vezes no
mesmo lugar, ou seja, interpretando favoravelmente que
só mesmo um castigo poderia fazer cair a descarga
atmosférica justamente em cima de Tara. Adentrando o
quintal de sua casa, a proteção de Faraday nas mãos e a
estátua a poucos passos de ser alcançada, infelizmente
tio Pingue pareceu que fora duramente castigado por
aquele amargo dia. A punição descera do céu num clarão
tão intenso diante dele, que tio Pingue gravou na cabeça
cada desvio do risco escalonado da descarga como se a
ponta de uma faca lhe tivesse talhado o mesmo traço
serrilhado no córtex do cérebro. Tara ficou
irrecuperavelmente danificada, com a cabeça e parte do
torso calcinados.

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Para-raios

“Tamanha foi a raiva de tio Pingue com seu


infortúnio que, parecendo realmente que o raio tinha
caído era em sua cabeça, ele insanamente jurou naquele
instante que iria excomungar de alguma forma a
divindade, seja qual fosse, responsável pelas descargas
atmosféricas das tempestades. O tio Pingue esperava o
pior possível. Pois seu pai, ao retornar, imediatamente o
esbofeteou até quebrar uma mão; foi quando o tio
Pingue, pela primeira vez em toda a sua vida, não
conteve um insulto dirigido ao pai ao lhe dizer na cara
que o que ele sentia mesmo por Tara não passava de
tesão. Seu pai, então, não engolindo o desaforo, o
espancou até quebrar a outra mão, e, com as duas mãos
fraturadas, ficou impossibilitado de surrar o filho com a
prometida e extremamente dolorosa vara.
– Ui, coitado do mestre Pingue! – condoeu-se Gaio,
parecendo ter sentido na própria pele as violentas
palmadas de fato e um pouco do que poderia ter sido a
surra com vara que o mestre Pingue quase levara. – Mas
a culpa não foi dele. Seu pai é que deveria ter
providenciado um para-raios para proteger a estátua.
– Sim; mas um recurso desses tiraria uma
importante oportunidade que meu avô teria para testar
o exercício da responsabilidade, daquela vez já adulta,
por seu filho – explicou Chang. – Além do mais, meu avô
não queria de forma alguma um enorme mastro de

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Para-raios

metal destoando completamente da esmerada


arquitetura local. Gaio, você precisa ver as cerejeiras que
florescem lá.
“A briga entre os dois, pelo que eu soube mais
tarde, foi realmente feia. Meu avô, acho, nunca chegou a
perdoar plenamente o meu tio. Principalmente porque o
culpou inteiramente por acabar sendo obrigado a se
exceder com toda aquela violência. Pingue pareceu ter
enlouquecido temporariamente, obcecado por atribuir a
culpa de seu infortúnio a uma suposta divindade. Passou
inutilmente a persegui-la o tempo todo, registrando
perigosamente em vídeos qualquer tempestade que
pudesse, acreditando que seria capaz de identificá-la
rindo sarcasticamente dele posteriormente no reexame
minucioso das imagens gravadas. Com o risco faiscante
que o desgraçara cravado na cabeça, ele estava
desarrazoadamente decidido a não admitir sua
incompetência e a transferir sua culpa mesmo que fosse
a uma divindade, coisa em que até o momento desditoso
nunca havia acreditado, com exceção de um certo
Dragão da Sorte. Foi então que seus amigos não o
pouparam e o troçaram ao botarem-no a alcunha de
Para-raios.
– A despeito de tudo, do risco que correu e de sua
insanidade temporária, o mestre Pingue deve ter
acumulado um precioso material de manifestações

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Para-raios

atmosféricas extremas, não é? – disse Gaio com visível


interesse.
– Sim – disse Chang não entendendo direito esse
interesse de Gaio. – Logo depois de meu avô despachar
tio Pingue para o Mosteiro dos Esquecidos a fim de que
pudesse repensar a vida, ele avaliou útil deixar as
filmagens à disposição da primeira rede de estudos
meteorológicos que lhe veio à cabeça.

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