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Afogado em Sangue

Cap. III:

AFOGADO EM SANGUE

Em um amplo quarto, com banheiro e acesso sem


porta a uma biblioteca particular, em formato estrelário
e onde as paredes estavam cobertas, de fora a fora, por
altas estantes repletas de brochuras dos mais diversos
temas de ciência, filosofia e literatura, Gaio conversava
com Polaris.
– Da última vez em que estive em seu quarto, não
me recordo de ter visto este cartaz – disse Polaris
enquanto tirava, nos intervalos da conversa
despretensiosa com o amigo, uma ou outra nota
metálica de uma guitarra personalizada que empunhava.
Achava-se sentado em um pufe, de onde tinha acabado
de ler três frases interrogativas existenciais: Quem
somos?; De onde viemos?; Para onde vamos?; escritas
em branco num fundo escuro cheio de pontos luminosos
movendo-se continuamente para os cantos de uma tela
digital retangular fixa na parede ao seu lado. – Você o
colocou recentemente, não foi?
– Foi, sim – disse Gaio, deitado ressupino em sua

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cama arrumada, de calçado e tudo, olhando


distraidamente uma fantástica reconstrução holográfica
e dinâmica do Sistema Solar que pendia do teto. As
sombras progressivas do entardecer percebido por uma
porta-janela escancarada e avarandada se adensavam
com mais força dentro de seu quarto, propositadamente
com as luzes apagadas. – Só não me peça as respostas,
pois eu não as tenho. – Ele riu. – Por enquanto, não é?
Se continuar devorando um livro após outro, em breve
estará habilitado a respondê-las.
– Não, nunca estarei – garantiu Gaio. – Até porque o
encanto maior delas está no mistério indesvendável que
representam desde os primórdios da ruminação
humana, na era axial. São elas que instigaram e
continuam a instigar a nossa sôfrega curiosidade, esta o
motor que nos move pela busca incessante por
conhecimento, por respostas. Quando o sapiens...
– Não era darwins? – interrompeu Polaris.
– É, é. Darwins, wallacis. Mas, infelizmente, por
força contrária de uma arquitetura cerebral nata, para
muita gente ainda não – disse Gaio meio desalentado. –
Então, como ia lhe dizendo, quando o Cro-Magnon... na
verdade, darwins... conseguir unificar as quatro forças,
se vier a fazê-lo, é claro, pessoalmente, acho que será o
momento ideal de sermos extintos, já que não haverá
mais horizontes a ser desbravados. Pois, como lhe disse,

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é a curiosidade insaciável que nos define enquanto


espécie. O feito de Charles Darwin é a maior prova do
que digo.
O quarto de Gaio tinha, ainda, nas paredes, quadros
animados digitalmente com as imagens da Via-Láctea e
Andrômeda, de nebulosas, supernovas, buracos-negros
etc.. Igualmente impressionante era a imagem, em
tempo real, da Terra vista do espaço por meio de um
satélite que circulava o planeta uma volta completa a
cada 60 minutos. E numa certa parede especial havia um
grande e requintado quadro pintado a um óleo com
propriedades reflexivas. Entre cores brancas e escuras, a
pintura se constituía de uma mão sustentada por um
braço todo coberto por um pelo denso e escuro. Essa
mão apontava do canto superior direito o dedo indicador
para o muito próximo mesmo dedo de uma outra mão,
só que agora sustentada por um braço nu, vinda do
canto inferior esquerdo. A imagem com tinta especial
era uma profusão de perspectivas, pois, englobando
toda essa representação, em primeiro plano, nela ainda
aparecia uma lente de tamanho desproporcional e
levemente inclinada de um par de óculos de um senhor
calvo e com longa barba alva caindo-lhe do queixo, além
de cobrir-lhe quase toda as faces pelas laterais até as
orelhas. De perfil voltado ligeiramente para dentro, esse
senhor de fisionomia austera ainda trazia um besouro

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em uma das mãos, a única retratada. Quando se


observava de frente a pintura desse complexo quadro,
os dedos que indigitavam atrás da lente ocular um para
o outro se tocavam e, ao fundo, se revelava a
constelação de libra conectada por séries de elos
coligados. Uma escrivaninha de canto estava apinhada
com papéis eletrônicos wi-fi cheios de anotações,
brochuras em papel sintético abertas, livros eletrônicos e
um laptop double-screen (com duas telas leds, uma
horizontal para digitação ao toque e outra vertical para
visualização) personalizado e fazendo downloads todo o
tempo. Um console-projetor de videogame,
especialmente num outro canto do quarto, apontava
para uma parede de dois metros quadrados onde fazia
desfilar silenciosamente sucessivas imagens poligonais
foto-realistas dos ambientes de Zelda 64.000.
– Eu o pendurei aí porque estou germinando
algumas ideias existenciais que, mais tarde, quem sabe,
pretendo enfeixá-las num livro de filosofia.
– Quando terminá-lo, se lembre de me emprestá-lo
– Polaris tirou mais algumas notas metálicas que
ecoaram longamente pelo grande quarto. – E aquele seu
estranho manual de artes marciais com ênfase em unhas
e dentes que estava escrevendo? Finalmente o
abandonou, não é?

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– Não, de modo algum. Ainda continuo trabalhando


nele. É verdade que eu o releguei por esses dias. Estava
detido em um detalhe difícil e fundamental: tenho
tentado chegar ao tamanho ideal de unha. Ela não deve
ser muito pequena, de forma que não perca as
características de uma lâmina afiada, nem grande
demais, para que não possa se quebrar com facilidade
quando estiver bem enterrada na carne viva. Outra coisa
que me toma tempo são os tipos de investidas. Estou
trabalhando em várias técnicas de ataques e contra-
ataques. Se a contenda for mortal, em desagravo à
honra, todos devem ser dirigidos de modo fulminante
expressamente em cima do pescoço, preferencialmente
sobre as carótidas. Se for com a boca, são cinquenta
quilos de força maxilar humana, Pô. E toda essa força
empregada no material mais duro e pontiagudo de nossa
constituição física, que é o esmalte que reveste nossos
dentes. E no caso das unhas, embora não conte com a
força animal dos músculos maxilares, se a deixarmos
devidamente sujas, imundas, imagine a infecção que
poderíamos causar com um bom arranhão, para não
falar de um verdadeiro talho? Com minha técnica,
quanto maior a quantidade de músculos do adversário,
simplesmente maior poderá ser o naco de carne dele
arrancado com os dentes!

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A despeito de meio abismado diante de Gaio,


Polaris sabia que o amigo dizia tudo aquilo com uma
naturalidade irônica.
– Teorizando persistentemente dessa maneira, você
vai acabar virando bicho, cara! – disse Polaris também
com ironia.
– Pensando bem, talvez você tenha razão, Pô. É
melhor eu parar com isso; pois veja, ando até me
esquecendo de cortar as unhas ultimamente – disse Gaio
com riso, enquanto mostrava as unhas das mãos ao
amigo.
– Sim. Vai agir como um legítimo animal. Vai até
acabar andando pelado por aí – disse Polaris igualmente
com um riso.
– E de quatro! – completou Gaio zombando e se
divertindo com o absurdo das próprias ideias. Vem aqui,
vou lhe mostrar uma coisa que bolei – Gaio se levantou e
levou o amigo até um armário, que abriu, revelando um
aparelho parecido com uma roleta em que, em uma roda
segmentada em casas, o eixo fazia o papel do Sol e as
bolinhas lançadas, um total de dez, o de planetas em um
sistema planetário. – Vamos supor que, com base na
numeração das casas, na quantidade de bolinhas
lançadas e com as mesmas condições iniciais, você tem a
chance de uma em mil de acertar a sequência. Então, se
quiser dispor de cem por cento de chances de acertar,

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terá de jogar por mil vezes. Muito difícil? Não se puder


girar a roleta solar quantas vezes quiser. Não se dispuser
de um tempo realmente grande para ficar jogando, um
tempo cósmico. Sim, Pô. Estou falando de um contexto
cósmico. É exatamente isso o que quero ilustrar: num
contexto cósmico, podemos contar ainda com uma
simultaneidade enorme, talvez até infinita! As roletas
não apenas giram incontáveis vezes, mas juntas em
quantidades inumeráveis, como num salão de jogos
interminável. Pois é isso o que torna o Universo
verdadeiramente imenso: não importa em seu Contexto
quão pequena seja a probabilidade de algo acontecer,
ela ainda sim poderá se repetir infindáveis vezes!
– Que doido, Gaio! – disse Polaris impressionado. –
Como bolou isso?
– Ah!, com ideias meio malucas. Só isso – Polaris
discordava. – Acho que vou levar essa coisa para a feira
de ciências. Só não sei se alguém vai parar à minha
frente enquanto eu tento explicá-la. Mas mudando de
assunto: você viu, Pô? Nossa hipótese do alienígena
pegou o mestre Ji de surpresa – Gaio levou o amigo de
volta ao pufe.
– Foi mesmo. Não só ele, mas também minha mãe,
meu pai e sua mãe ficaram de queixo caído.

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– É verdade. Outro dia eu estava lendo um livro


sobre extraterrestres, e me lembrei daquele episódio
ocorrido em Varginha. Todos o conhecem muito bem.
– É. Aquele fato extraordinário entrou para a
história como o único comprovado, embora muito
posteriormente, de visita extraterrestre acobertada pelo
governo.
– Fico feliz que os cidadãos daquela cidade tenham
sabido aproveitar o fabuloso episódio para fantasiá-la
toda com temas que pertencem ao além-Terra. Mas a
comprovação não veio da forma que todos imaginavam.
Antes, aquele fato até então aparentemente
extraordinário deu origem a mais bem acabada
dissertação sobre os caminhos padronizados...
movimentação misteriosa e repentina do exército,
relatos de abdução, supostos objetos luminosos no céu
noturno, acontecimentos inesperados forçosamente
correlacionados como a morte de um envolvido,
repercussão oportunista e exagerada pela mídia... pelos
quais uma coletividade chega a uma conclusão
equivocada. Carl Jung já havia falado sobre isso:
sugestionamento coletivo. Era óbvio que, se o objetivo
fosse manter-nos preservados, só poderíamos sofrer
uma abordagem alienígena do tipo cultural.
Polaris concordou. – Soft power.

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– Hoje comparo aquele episódio com o de meu pai.


Não sei se há alguma conexão entre os dois fatos. E não
seria muito improvável que ambos os visitantes
pertençam a uma mesma civilização.
– Pelo menos, olhos vermelhos e saltados das duas
descrições eles têm em comum – disse Polaris
brincando. Decidindo ir até a porta-janela escancarada,
Gaio atravessou a soleira e, no parapeito da curta
varanda, debruçou-se para contemplar o cair da noite, as
primeiras estrelas, eventuais formações em flocos e
pinceladas de nuvens tingidas de dourado pelo Sol; havia
ainda o chilrear de pássaros acrobatas cruzando o céu e
se preparando para o resguardo noturno e a aragem
vespertina estava refrescante. Sua camiseta, branca e
regata, ostentava nas costas o número 137, grande. Da
sua varanda de cima com canteiro de flores, de uma
altura de um andar, se via um belo jardim com fonte,
cheio de árvores médias e marchetado com flores e
roseiras. Na verdade, Gaio morava em um apartamento
tríplex que, como todos os seus vizinhos do imenso
condomínio elevado, mas muito mais extenso
horizontalmente, dispunha de uma espécie de varanda-
jardim ampla a se prolongar do primeiro pavimento.
Dessa forma, de uma perspectiva de fora, parecia que
uma floresta de fato densa escalava todos os
apartamentos.

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– De qual lugar do céu terão eles vindo? – indagava-


se Gaio mirando o firmamento. – De alguma das
constelações zodiacais? De Ofiúco, talvez? Sua civilização
deve estar habitando nossa Galáxia, possivelmente a
periferia, em um braço externo e oposto ao nosso, onde
a poeira estelar do plano e a enorme distância que nos
separa nos impossibilitaram que captássemos seus sinais
de rádio. Eles, ao contrário, devem dispor de detectores
mais sensíveis do que os nossos, ou algum tipo de
satélite ultra-avançado de monitoramento de amplitude
galáctica, posicionado acima do plano, para ter nos
achado primeiro.
– Mais uma prova de que eles estão bem mais
adiantados tecnologicamente do que nós – disse Polaris
e arriscou uma sequencia de notas rápida que fez as
caixas amplificadoras tremerem o quarto. – E eles, é
claro, provavelmente fazem uso de buracos-de-minhoca
para viajar de um extremo ao outro da Galáxia. Sabe,
quando penso no assunto sobre alienígenas, um livro de
ficção científica, escrito por um doutor em
neurociências, me vem sempre à cabeça. Trata-se de
uma supercivilização que destacava exploradores de
sistemas planetários para a busca de iguarias nativas.
Eles tinham máquinas que, encontrando vida em outros
mundos, independentemente da posição relativa que ela
ocupasse na cadeia evolutiva local, contanto que fosse

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nutritiva, disseminavam bactérias nanorrobóticas para


manipular os cérebros de populações inteiras e fazer do
lugar um curral infalivelmente amestrado, de porte
planetário, para o abate. De lá, então, os cruentos
exploradores, com objetivos puramente comerciais,
remetiam toda a carne para a origem deles. Eram aliens
que dispunham de tecnologia inimaginavelmente
avançada para predar e explorar implacavelmente outras
formas de vida consciente ou não. E do que a tecnologia
deles não era capaz? – Gaio falava aterrorizadamente
absorto em si mesmo, olhando eventualmente para o
amigo. – Da mais terrível e só há pouco tempo
imaginada prisão para um ser vivo: uma máquina
Tamagochi que pode copiar por mimetismo elétrico, em
todos detalhes, qualquer consciência razoavelmente
elaborada para um personagem virtual que, então, pode
servir para os mais diversos propósitos experimentais,
tanto lúdicos quanto científicos. Já pensou você, Pô,
fazer parte de um programa de computador de
simulação da vida real controlado por um indivíduo de
outra espécie dominante? Suas agruras, da mais amena
até a mais excruciante, oscilariam continuamente ao
sabor do humor desse indivíduo! Imagine um videogame
clássico, de tiro: o seu eu, tão perfeitamente lúcido como
agora, em seu corpo físico, poderia morrer infinitas vezes
no joystick de um alienígena!...

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Assustado, Polaris sorriu um sorriso que na verdade


foi de assombro, pois até se esqueceu da guitarra no
colo. – Veja pelo “lado bom”, Pô: esses games seriam
animados como jamais sonhou o mais inveterado
gamemaníaco que já existiu! – Gaio também sorria para
Polaris, mas, ao inverso deste, que se assombrava, o riso
daquele era de assombração, algo que nem por isso
deixava de igualmente afetá-lo.
Ainda encarando o céu diurno-noturno, Gaio ficou
calado por um instante, procurando pensar em outras
coisas.
– Mudando de assunto, de novo – Gaio saiu da
varanda e foi até sua escrivaninha. Lá, pegou um livro em
brochura cuja capa era ilustrada pelos cinco sólidos
platônicos –; para mim, o mestre Ji mandou uma cópia
do livro da Técnica Elementar impresso em papel físico.
Ele sabe que tenho preferência pelos livros
confeccionados como antigamente aos eletrônicos. Na
verdade, o mestre Ji me dissera que mandaria o original,
manuscrito pelo próprio punho de meu pai. Mas,
infelizmente, você sabe, ele foi roubado, há poucos dias,
do Cofre Central.
Gaio entregou o livro nas mãos do amigo. Polaris,
numa cara de lamento, havia largado a guitarra para
recebê-lo.

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– A sua versão já deve ter sido enviada para o seu


laptop – Gaio sentou-se num outro pufe, defronte do
amigo. Este, apesar do quarto que escurecia, folheava
com grande interesse o livro lhe passado pelo primeiro. –
Ela, e a minha também, é uma cópia da versão
armazenada no Googledata, aquela mesma da qual
Assur provavelmente tirou uma cópia ilegal para si.
– Foi hoje que o mestre Ji lhe enviou? – Gaio fez que
sim com um balanço afirmativo da cabeça. – Ainda não
conferi o meu laptop, hoje nem cheguei a ligá-lo, na
aula. Se meu iPhone estivesse comigo...
– Não se preocupe. O mestre Ji me disse que
enviaria os exemplares a todos hoje mesmo. Além do
mais, se quiser, você pode conferir por meio de meu
laptop.
– Pensando bem, não precisa, não, obrigado. Não
tem importância que eu saiba já. Em casa, eu confiro.
– Você é quem sabe – disse Gaio. – Estive folheando
o meu. Não sei ao certo, mas acho que o mestre Ji está
enganado quando diz que, para dominar a Técnica
Elementar, bastam conhecimentos básicos de física e
meditação profunda, pois o resto é apenas consequência
e intuição – depreendendo a seriedade do assunto que
Gaio lhe propunha debater, Polaris parou de folhear o
livro a fim de concentrar a atenção. – Lembro-me de
certa ocasião em que meu pai havia chegado à mesma

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conclusão que eu e, então, considerado seriamente


desistir de tudo. A Técnica Elementar, pela sua base em
conceitos exclusivos da física, tem potencial para ir
muito além da intuição de seu praticante. Em outras
palavras, quem melhor conhecer as leis da Natureza será
capaz de tirar o maior proveito da técnica, será
desproporcionalmente mais poderoso do que a média e
isso configurará um grave desequilíbrio social, coisa que
a enraizada idealização da manutenção inabalável da
igualdade concreta entre nós de meu pai abominava. Já
imaginou aonde poderá chegar uma pessoa que, na
muitíssimo improvável mas ainda sim possível condição
de conhecedora da Teoria de Tudo, estiver habilitada a
manipular as outras três forças fundamentais da
Natureza por intermédio do eletromagnetismo.
Atônito, mais pela argúcia da argumentação e pelo
tom discordante do amigo, de um mestre como Chang Ji,
do que o problema que a questão apresentada por ele
em si suscitava, não, Polaris nem de longe havia pensado
a respeito, enrolando-se mentalmente para tecer uma
opinião relevante. Acreditava calejado por suas sacadas,
mas Gaio persistia em se superar a passos largos, difíceis
de ser acompanhados.
– Não faço a menor ideia, Gaio – indeciso, Polaris
se rendeu ao amigo, fechando o livro – Esse detalhe
pode ser preocupante. No entanto, seu pai deve tê-lo

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ponderado satisfatoriamente para prosseguir adiante


com a concepção da técnica, concluindo que, a todos
nós, seus benefícios suplantariam os riscos em algum
grau significante.
– Não tenho tanta certeza, Pô – desabafou Gaio
reflexivo, os olhos vagos e distantes na direção do livro
no colo do amigo. – Meu julgamento inicial concernente
à técnica afina com o de minha mãe. Não cremos tão
entusiasticamente como gostaríamos na sua utilidade
para a nossa sociedade. Pelo contrário, já que, para
começar, a técnica, para vim a ser concebida, nos custou
inestimavelmente a ausência precoce e perpétua de meu
pai. E ainda, depois, caiu nas mãos de um inimigo
totalmente desconhecido. Mas meu pai não teve culpa,
não poderia jamais prever tudo o que aconteceu, muito
menos levar em conta a interferência de alguém,
embora ainda suponhamos, de outro planeta. Conforme
dissera o mestre Ji, ele apenas queria, todo cheio de uma
ambição saudável, ao se antecipar a um fenômeno
humano natural e emergente, adaptá-lo para nos
fortalecer individualmente no sistema social. Só temo
que a técnica termine provocando o avesso do fim para
o qual foi originalmente destinada.
Meneando tacitamente a cabeça em acordo, Polaris
se pegou imaginando se, se discordasse de Gaio, teria
coragem de dizê-lo, se não se portaria como um

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hipócrita ou um covarde. Em outras ocasiões, teria ele


fingindo para o amigo, faltando-lhe com a tão essencial
verdade reclamada num relacionamento de grande
amizade só para agradá-lo, só para se esquivar de algum
desconcerto, mesmo que passageiro, ao deixar de ser
sincero e deixar de emitir uma opinião dissonante mas
condizente consigo e que ainda pudesse orientar ou
servir de alguma maneira ao amigo? Pelo menos, se é
que isso poderia minimizar o problema, ele, Polaris, não
se lembrava de que tivesse se furtado a um confronto
sério de ideias com o amigo. Em todo caso, voltando à
questão de agora, percebeu que esta não seria a vez em
que se veria confrontado com uma opinião divergente.
Compreendia melhor a preocupação de Gaio e, portanto,
podia concordar com ele sem receio de mentir, mesmo
que silenciosamente.
Pois o silêncio que ameaçava se prolongar foi, para
alívio dos dois, quebrado por uma simulação de toques
educados de aldravas saídos de amplificadores discretos
da porta, no momento fechada, de saída do quarto. Gaio
reconheceu a identificação visual da visita mediante uma
pequena tela do lado da fechadura. Trocou um olhar
preocupante com Polaris e este, entendendo o recado
implícito, tratou de devolver logo ao amigo o livro da
Técnica Elementar do seu lado, no pufe. Gaio saiu em
direção à porta para abri-la, mas, antes, guardou o livro

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lhe devolvido dentro de uma gaveta da escrivaninha.


– Entre, Marina – disse Gaio ao abrir a porta.
Uma bela garota, talvez mais nova que Gaio, de
cabelos lisos, tamanhos médios, cheios, levemente
cacheados e louros como raios de sol, e olhos de um anil
intenso, adentrou o quarto trazendo um pequeno
recipiente de plástico nas mãos.
– Que escuridão, Gaio! Vim lhe trazer um pedaço do
pavê de chocolate de que você tanto gosta. Fui eu que fiz
– vendo Polaris, Marina o cumprimentou surpresa.
Provavelmente não sabia que Gaio estava com o amigo.
Não lhe agradando o fato, mesmo assim conseguiu
dissimular o sentimento rápido o bastante para supor
que não tivesse sido notado, mesmo tendo Gaio
iluminado o quarto mediante um comando de voz. –
Experimente também, Polaris. Gaio não vai se importar,
vai? – estacada no meio do quarto, brincou ela, cuidando
para não olhar com os olhos e não mostrar o resto das
faces em esforço a fim de não parecer descontentes, de
revelar a falsa gentileza.
– Não, é claro que não vou – disse Gaio com a
mesma descontração e apanhou o recipiente de Marina.
– Vou buscar os talheres.
Quando Gaio se aproximou de Marina, Polaris
achou que podia apostar que ela, ao arfar o peito
discretamente, havia suspirado por ele e ele a ignorado

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por fingimento.
– Irei provar, mas aviso que já me encontrava de
saída – disse Polaris contrariado. Procurou atenta, ou,
mesmo, obsessivamente, uma mudança de expressão na
garota até conseguir identificá-la. Ela parecia, conforme
esperava, exultante com a notícia de que ele a deixaria a
sós com Gaio, denunciada por um riso insistentemente
trêmulo nos cantos dos lábios cerrados.
Da forma que prometera, Polaris foi para a sua casa
logo terminou de comer o seu pedaço de torta, largando,
meio a contragosto, embora não estivesse sendo forçado
a fazê-lo por ninguém, Gaio e Marina sozinhos no
quarto.
Ainda ansiosa – na verdade, cada vez mais por
algum motivo –, percorrendo com os olhos todo o
quarto ao alcance de onde estava, Marina observou
admirada:
– Só em seu quarto é possível encontrar tantos
livros abertos, todos os dias da semana. Nos dos outros,
invariavelmente eles não passam de meros enfeites,
fechados sob uma capa de poeira em estantes.
Gaio estava desinquieto demais para responder
objetivamente, limitando-se a um sorriso em gratidão.
Por intermédio de um cálculo feito em seu iPhone em
conjunto com o mesmo aparelho de sua mãe, verificou
quanto tempo ela ainda levaria para voltar para casa se

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principiasse a retornar do local em que se achava.


– Acho que ela nem vindo está. Se partisse neste
instante, teríamos pelo menos quinze minutos
garantidos – disse Gaio à amiga, ele numa mesma
ansiedade que também lhe crescia no peito, entalando-
lhe o ar dos pulmões e dificultando-lhe o ato espontâneo
da fala.
– Então, não percamos mais tempo – disse Marina,
desejando de tal forma por termo em sua expectativa
crescente que pareceu implorar.
Cronometrando regressivamente o relógio de seu
aparelho para disparar dentro de exatos quinze minutos,
Gaio correu até um canto de seu quarto, onde havia um
baú trancado. Depôs o polegar no leitor digital da tranca
e o destrancou e o abriu.
No baú, havia trajes de gala femininos e masculinos,
como, respectivamente, vestidos suntuosos e ternos e
gravatas, além de uma caixa cheia de produtos de
maquilagem como batons, rímeis, pós, sombras,
delineadores e uma coleção de brincos e perucas.
Junto de Gaio, Marina o ajudou a retirar e a
estender as roupas na cama.
– Gaio, você vá primeiro – ela estendia
particularmente um vestido branco, cheio de rendas. –
Conforme combinamos, use hoje este modelo de noiva
que arrumei da última vez.

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Ao tomar o vestido da mão da amiga, Gaio disparou


para o banheiro do quarto. Alguns minutos depois, saiu
trocado, uma peruca ruiva na cabeça.
– Uau, minha princesa! Está cada vez mais esperta
para se trocar, pegando realmente o jeito da coisa! –
chacoteou Marina. Em resposta, Gaio fingiu-se cheio de
vaidade, corrupiando para fazer a barra da saia do
vestido mal colocado sair do chão. – Venha aqui
depressa, quero ter tempo para maquiá-lo, meu bem.
Estando Gaio acomodado numa cadeira, Marina
começou a acarminar os lábios dele com um batom. De
propósito, ela se demorava nessa parte, desejando
discretamente a boca do amigo como o lobo faminto
diante da suculenta carne do cordeiro. Gaio ignorava,
mas podia perceber de esguelha que ela mexia a boca
cheia de saliva levemente crepitada pela língua
irrequieta, que contornava a sua, parecendo que o
beijava longamente de longe, em pensamentos.
Também ela insistia em mostrar-lhe os seios nascentes
debaixo do colante, intencionalmente não sustentados
por sutiã – se é que seios imaturos como os dela podiam
ser sustentados – para realçar o desenho dos bicos
túmidos no tecido da blusa, ao trazer-lhe o decote a uma
distância provocante do rosto.

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– Chega, Marina – disse Gaio quando a amiga


pretendia lhe dependurar brincos nas orelhas. – Agora vá
você, senão não teremos tempo.
Sem se sentir contrariada, mas mantendo o clima de
divertimento na brincadeira sensual, Marina deu nós no
cabelo até fazer um coque. Pegou um casaco esporte de
flanela azul-marinho em cima da cama de Gaio e correu
para se trocar.
Quando voltou, mais rápida do que o amigo, pois,
diferentemente dele, não chegou a tirar sua roupa,
apenas vestiu a outra por cima, eles foram a um espelho
de tamanho inteiro, pendurado na parede, para
olharem-se enquanto um casal de papéis trocados.
E por meio do espelho, Marina, ao pegar na mão de
Gaio, quando ia propor para que eles tirassem uma de
suas costumeiras selfies com um de seus iPhones para
realmente postá-la nas redes sociais, notou que ele não
estava se divertindo tanto como em outras vezes,
estando longe do riso fácil mesmo que temperado. Pior,
ela continuou a notar, ele tinha se acabrunhado
repentinamente. Foi aí que a lembrança do pai dele lhe
veio à mente e sua excitação arrefeceu-se num intervalo
de tempo menor do que um segundo.
– Desculpe-me – pediu Gaio. Sentia que a vergonha
advinda do arrependimento tinha lhe despejado um
balde de água gelada na libido. – Lembrei-me das selfies

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“acadêmicas” que tirava com meu pai no enorme


escritório dele, na Universidade. Eram invariavelmente
montanhas de livros ao nosso redor... Por isso, não estou
mais no clima para continuar.
– A culpa foi minha também. Fui tola, ou, mesmo,
egoísta, em não perceber que ainda é cedo para insistir a
voltarmos a fazer isso – eles saíram da frente do espelho.
– Não foi, de modo algum – disse Gaio. – Na
verdade, não somos culpados de nada. Meu luto tem
que passar em algum momento. E de repente, nós dois,
juntos, nos deixamos ser dominados por nossos
imperiosos hormônios juvenis, nada mais natural,
arrebatador e delicioso... O iPhone de Gaio disparou e o
fez correr ao banheiro para se trocar e lavar a boca.
Marina tirou sua fantasia ali mesmo, desfez o coque e no
baú atirou de qualquer jeito e mal dobrados os trajes
sobre a cama. Alguns minutos transcorridos, Gaio
retornou de lábios limpos, o vestido e a peruca nas
mãos. Ele e Marina, trocando um olhar e um riso de
entendimento implícito, se deram conta de que agiam
com afobação em vão: o celular dele disparara apenas
para lhes informar o esgotamento dos quinze minutos
programados; não significava que a mãe de Gaio se
encontrava de partida para casa conforme ele verificou
mediante um novo comunicado com o celular dela a fim
de obter sua distância em unidades de tempo.

Homem Elementar: Através da mente, sobrevivendo aos carrascos


Afogado em Sangue

Trancado o baú com os apetrechos da brincadeira


lúbrica, Gaio deparou-se surpreso com Marina
brandindo um lenço de papel em uma das mãos.
– Cri que tivesse limpo direito...
– É sempre assim. Vocês, homens, brincam com
esse cosmético tipicamente nosso e depois são
enganados pelo espelho na hora de removê-lo sem
deixar vestígios denunciantes – mentiu Marina. Não
havia sinal algum de batom na boca do amigo. Sua
intenção real, com o pretexto, era tocar-lhe os lábios, se
possível com a ponta dos dedos resvalados entre as
dobras do lenço.
A noite calorenta tinha equiparado a escuridão do
lado do ocaso com a do do nascente. De quando em vez,
a aragem entrava pela porta-janela do quarto, indo roçar
os rostos dos amigos, deslocando levemente no sopro as
mechas sedosas e douradas das laterais das faces de
Marina. Cogitando contar sobre a Técnica Elementar
à amiga, Gaio procurou motivos que justificassem, sem
macular-lhe demasiadamente a moral, sua quebra da
promessa de sigilo feita ao mestre Ji. Queria muito que
Marina soubesse do segredo, confiava nela e achava
que, se a contasse tudo, poderia, talvez, lhe ser útil
numa eventual situação adversa no hodierno ambiente
pós Técnica Elementar. E decidindo, Gaio contou tudo à
Marina a respeito de tal técnica, inclusive lhe mostrando

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Afogado em Sangue

o livro que havia recebido hoje do mestre Ji.


Sentindo-se bastante especial para o amigo, para
algum desespero deste, Marina prometeu não comentar
o assunto com quem quer que fosse e, mais, ganhou
coragem para também lhe expor o mais íntimo de seus
segredos.
– Não ligarei se estiver parecendo ridícula, entenda
– ruborizando-se e tendo a respiração acelerada
novamente, Marina se esforçava para permanecer
encarando o amigo, ele igualmente sentindo as faces
queimar. – Só lhe peço, ou, mesmo, lhe imploro de
antemão que, pelo fato de meu mais abissal segredo se
referir diretamente a você, quando finalmente eu lhe
revelá-lo, jamais passe a se comportar de modo
constrangido ou não espontâneo quando estivermos
juntos e a sós. Que nossa relação, continuando de pura
amizade, não perca esta intimidade que toca tão
perigosamente a chama carnal, a qual construímos ao
longo dos nossos inesquecíveis anos de convivência.
Marina suava um pouco.
– Gaio, estamos iniciando a fase das paqueras em
nossas tenras vidas e, sinto que não está, mas eu, sim,
estou apaixonada por você – a revelação, embora havia
muito já conhecida do íntimo de Gaio, ao ser
verbalizada, ao ser-lhe imperdoavelmente despida do
manto denunciantemente avolumado pelo próprio pejo

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Afogado em Sangue

que silencia e pela ignorância fingidamente manutenida,


foi como um choque de alta tensão que ela nele
descarregou. – Acho que não quer namorar comigo, não
já – Gaio, não resistindo, desviou o olhar de Marina por
um instante, tentando tomar fôlego para suportar
tamanha encabulação. – Mas gostaria muito de obter
algo de você: este é o meu mais ardoroso desejo
atualmente... desejo tal que torço, toda noite, após me
deitar, para concretizá-lo, ou experimentá-lo, pelo
menos, em meus sonhos..., que é o de ser a primeira
mulher a beijar a sua boca e, consequentemente, tê-lo
como o primeiro homem a beijar a minha. A menos que,
é claro, você ainda não esteja no clima, porque se assim
o for, eu o entenderei perfeitamente.
– Ah... Não sei, Marina... Não estou certo se agora
seria o momento ideal para fazermos isso. Sabe, por
enquanto não estou, apaixonado, mas, conforme você
mesmo disse, poderei está-lo, por você, no futuro – Gaio
dizia o que não queria, estava em contradição consigo
próprio, pois, no fundo, começava a desejar a amiga
como nunca antes. Mas reconhecia, com certa incômoda
vergonha, que seu desejo, puramente carnal, era pelo
corpo da amiga, o qual, percebia drogado, suado
recendia o mais irresistível dos perfumes, o de mulher. –
Quer de verdade que lhe dê um beijo desprovido de
paixão?!

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Afogado em Sangue

– Se for para eu permanecer com meu receio, ou,


mesmo, pavor, de não ser a primeira de quem provará o
gosto de mulher na boca, sim, quero demais.
Sentados nos pufes, defronte de um do outro, Gaio
desviou o olhar outra vez de Marina, criando mais
coragem para decidir o que pretendia. O consolava, pelo
menos, que a amiga, tal qual ele, respirava
ruidosamente, ambos capazes de se ouvirem e de se
notarem os peitos se encherem e se esvaziarem de ar.
– Bom... – inseguro, Gaio não fazia a menor ideia
em como proceder. Ao que parecia, a melhor, ou única
de fato, opção seria passar a iniciativa à amiga. – E de
que jeito fazemos, então?
Marina quase pulou de júbilo quando ouviu o que
queria.
– Vem – chamou a garota ao pegar, decidida, na
mão de Gaio, levantando-o. – Vamos até a soleira da
porta-janela. Quando estivermos nos beijando, iremos
nos girar lentamente de tal forma que, estando eu de
costas para o vento, ele jogará o perfume de meu corpo
contra você e, estando você de costas, ele jogará o
perfume de seu corpo contra mim. E, se quiser, torne a
apagar as luzes.
As luzes apagadas, de perfil contra o recorte
retangular da abertura da porta-janela, tendo ao fundo o
escuro pontilhado de estrelas e o desfile de uma ou

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Afogado em Sangue

outra massa nebulosa embebida de luar, o casal de


adolescentes ficou de frente de um para o outro.
Tocaram-se os ventres e Marina, enlaçando os finos
braços desnudos pelo pescoço de Gaio, anediou-lhe com
uma das mãos os cabelos, da testa à nuca, enquanto
sorvia-lhe absorta a beleza do semblante aluarado.
Excitadíssimos, Gaio anulou mentalmente toda e
qualquer reminiscência negativa inoportuna para curtir
aquele momento que jamais lhe seria obliterado da
memória enquanto persistisse vivo. Passou os braços
pela cintura da amiga, cingindo-a, e, admirado com a
própria ousadia, apertou o corpo dela contra o seu.
Depois, novamente por um meio engasgado comando de
voz, ligou uma música new age sensual – Flowers
Become Screens, de Delerium – no volume suave de
fundo.
Fitaram-se dentro dos olhos a cintilar misteriosos na
semiescuridão, como que hipnotizados pelas essências
que emanavam das janelas de suas almas, as pontas de
seus narizes prestes a se tocar e seus corpos, suados de
prazer, unidos arfavam em cadência. Os braços da amiga
tão próximos, Gaio, não resistindo à sua queda por
membros femininos nus, percorreu as ventas e os lábios
roçando lentamente por todo o braço esquerdo dela,
aspirando profundamente o seu cheiro, até o ombro,
quando o osculou de modo levemente molhado,

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Afogado em Sangue

passando para o pescoço, abaixo da orelha e onde as


mechas loiras e perfumadas derramavam-se-lhe na
cabeça.
Gaio chupou o pescoço de Marina com ímpeto, ela
gemeu e retribuiu o impulso carnal arranhando-lhe
suavemente as costas e puxando-lhe os cabelos.
– Gaio... Não aguento mais... Beije-me finalmente,
por favor! – sussurrou Marina, o corpo ardendo feito
brasa açoitada por ventania.
Atendendo ao desejo incontrolável da amiga, Gaio,
partindo do pescoço, deslizou os lábios acetinados ao
longo do igualmente sedoso queixo dela; abrindo
gradualmente a boca, subiu-os e, de encontro com o
beiço superior dela, fechou-o entre os seus.
Cerrados os olhos de ambos, suas almas imersas em
puro deleite, eles principiaram desvirginando suas bocas
de maneira descompassada, tropeçando-se
deliciosamente os lábios ao passo que giravam os corpos
lentamente como numa dança lenta e envolvente.
Inclinando suas cabeças para a direita em variados graus,
eles experimentavam beijos que seguiram para os cantos
de suas bocas. Roçando-as de volta ao centro,
conseguiram cadenciá-las num ritmo de tirar seus
fôlegos. Tendo o beiço inferior do amigo entre os seus,
Marina parecia que lhe tomava a boca por um cálice
cheio do mais puro licor do amor, o qual entornava

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Afogado em Sangue

sedenta, embriagando-se de paixão. E quando, alguns


imperceptíveis minutos depois, suas línguas se cruzaram
voluptuosamente, Gaio, achando que era hora de parar,
num esforço descomunal, interrompeu de chofre o
primeiro beijo.
– É melhor pararmos por aqui, Marina – disse ele
cauteloso e algo sério, soltando-se dela.
– É, eu sei... Já tive o que tanto queria... Quem sabe,
um dia, a gente possa passar à seguinte e derradeira
etapa... – ela tinha uma esquisita mistura de máximo
êxtase com leves traços de desapontamento no rosto.
Gaio a ouviu de costas e assim permaneceu. Ela se dirigiu
à porta de saída.
– Até manhã, Gaio – despediu-se sem esperar
resposta e atravessou a porta e a fechou. Queria curtir
aquele momento inesquecível sozinha, deixando o amigo
pensar bastante sobre a impressão que tivera dela. Esta
noite, ela tinha certeza, não pegaria no sono cedo.
Tão logo teve confirmada a partida da amiga, por
um aviso emitido de uma porta externa a um centro de
controle geral de acessos e saídas de seu tríplex, Gaio, se
dando conta de que se encontrava sozinho, se despiu
sofregamente e atirou as roupas a um canto. Trancou a
porta e, nu, foi até a cômoda e destrancou uma gaveta
específica mediante a leitura da impressão digital do
polegar. Abriu-a e, entre várias ilustrações hentais, tirou

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Afogado em Sangue

uma vagina de silicone dotada de correias, feita por uma


impressora 3D. Atrelou-a numa almofada chata que
depositou sobre a cama onde, ao puxar um lençol do
guarda-roupa e um travesseiro, pulou inflamado de
desejo. Enrolou-se no lençol, abraçou o travesseiro e,
aspirando o cheiro do braço, tocando-o com a boca
repetidamente, reprisou mentalmente tudo o que
acabara de fazer com Marina. Mas imaginou-a nua e
penetrando-a enquanto se masturbava com a vagina de
silicone. E assim foi até ejacular.
Aliviado de expulsar toda aquela tensão sexual, Gaio
sentiu-se invadido por uma culpa repentina. Desejou
intensamente o corpo da melhor amiga, mas sabia que
não queria desenvolver um relacionamento sexual com
ela. Queria apenas que ela continuasse sendo a sua
melhor amiga. Gostava tanto dela... Por isso, não podia
deixar que ela se apaixonasse por ele, nem que ele se
apaixonasse por ela. Isso se tornaria uma forte,
avassaladora, dependência que ele seria obrigado a
romper em algum momento, o que poderia fazê-los
sofrer, principalmente a ela. Não, isso não podia
acontecer, de forma alguma. Aquilo que acabara de se
passar entre os dois não podia se repetir de novo.
Precisava evitar esse tipo de acontecimento a todo
custo. Não podia mais ter essa intimidade com ela, se
não a coisa degringolaria...

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Afogado em Sangue

Ainda estirado sobre a cama, Gaio, reflexivo,


começou a se sentir incomodado com o lençol sujo em
volta de seu corpo. Então, levantou-se de um salto.
Catou o lençol, enfiou-o num cesto de roupas sujas e
correu para o banheiro para se lavar, percebendo como
poderiam ser imperiosos os seus instintos primitivos.
Afinal, ele era um animal, que se sabia animal, não?

Mais tarde, dentro de um roupão de banho, Gaio


deu um beijo de boa noite em sua mãe e seguiu para o
seu quarto. Lá, enquanto ouvia Chill Out, fechou sobre a
mesa da escrivaninha um livro em formato de brochura
marcado e intitulado Libertação Animal, do autor Peter
Singer, e o depositou em cima de outros seis livros, dos
autores Sean Gifford, Jerry Vlasak, John Gray, Gail Eisnitz,
Anne Frank e Frans de Waal. Em seguida, acomodou
esses livros especialmente ao lado de outros de autores
como Santo Atanásio, Averróis, Santo Tomás de Aquino,
Graciliano Ramos, Reinaldo Azevedo, David Bodanis,
Stephen Hawking, David Deutsch, Marcelo Gleiser,
Michio Kaku, Brian Greene, Martin Reeves, Edward O.
Wilson, Roger Penrose, Kip Thorne, Sérgio D. Pena,
Stephen Jay Gould, Hélio Schwartzman, Steven Pinker, A.
J. Hoge, Daniel Ferretto e Diogo Mainardi. Consultando o
relógio de pulso, os ponteiros prestes a marcar 23 horas,
notou que, hoje, à semelhança de todos os outros dias,

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Afogado em Sangue

iria se recolher pontualmente. Apagou a luz principal e


foi até a porta-janela, por onde a claridade tênue da Lua
crescente derramava-se da varanda e invadia um
retângulo definido no chão do quarto, o qual refletia-se
ainda mais fracamente pelas paredes semiescuras do
aposento. Estava decidindo se fechava a porta-janela
agora ou se a programava para tal mais tarde, caso a
temperatura do relento, ou do quarto, abaixasse a uma
temperatura pré-determinada ou chovesse para dentro.
Diante de um painel da soleira, ameaçou apertar um
botão que acionava a cobertura da abertura com uma
tela fina, quando lhe sobreveio a ideia excitante de tirar
o roupão e ficar nova e completamente nu, de modo a
poder sentir melhor o frescor da noite silenciosa.
E Gaio tirando outra vez a roupa, repentinamente
uma soprada de vento roçou-lhe todo o corpo desnudo,
despertando-lhe o desejo. Inspirou profundamente de
olhos fechados e acabou trazendo a imagem, o cheiro e
o sabor da amiga, Marina, à cabeça. Queria dormir com
ela em pensamentos, pois, afinal, ela lhe dera o primeiro
beijo de toda a sua vida, mas, por outro lado, sabia que
precisava evitar isso, se não a garota acabaria ocupando
todos os seus pensamentos, e de uma maneira errada.
Gaio se atirou na cama nu e procurou esvaziar a sua
mente, lançando-a ao nada. Os leds de seu quarto foram
se apagando, até que ele pegou levemente no sono.

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Afogado em Sangue

GRAVATÁ METÁLICO
Gaio dormiu, e profundamente. As horas passaram,
até que chegou um momento em que ele começou a

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remexer-se frenética e incomodamente na cama, com o


lençol enrolado-lhe do ventre para baixo. Estava
sonhando, e sombriamente.
Gaio se encontrava atravessando um longo,
aparentemente interminável, corredor lôbrego, ladeado
por gaiolas que se empilhavam a uma altura de perder
de vista, de rivalizar com o gigantismo dos edifícios de
Aerópolis. Gaiolas infindáveis, umas sucessivamente
sobre as outras. Concentrando a vista no intuito de
enxergar além do véu denso da penumbra, Gaio reparou
inúmeros pares de olhos amedrontados e suplicantes
reluzindo em sua direção. Torturantemente apertados
nos engradados metálicos, distinguiu vultos do que
pareciam ser os mais diversos animais, aves e
mamíferos, quadrúpedes e bípedes. Suas agitações
provocaram em Gaio uma sensação de choque,
parecendo fazê-lo se recuperar num instante de uma
surdez total. Foi aí que percebeu o desespero contido
naquela mistura ensurdecedora de batidas de metais,
gaiola com gaiola, e ganidos, miados, bramidos,
chilreados, grunhidos e guinchados tão agudos quão
melancólicos.
Gaio queria desesperadamente ajudá-los, libertá-
los, mas, quando estacou, não pôde se mexer, sair do
lugar por conta própria, pois uma esteira sob os pés
começou inexoravelmente a transportá-lo. Inteiramente

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Afogado em Sangue

impotente, não demorou a notar, gelado, que estava


sendo levado ao encontro de alguém assomado à
distância tão sombrio quanto alto, que tinha apenas a
silhueta robusta, contra uma claridade ofuscante além, e
as viseiras cetrinas distintas.
– VEJA POR VOCÊ MESMO! – disse numa voz gutural
retumbante o desconhecido que se avizinhava cheio de
terror. – A PREDAÇÃO ESTÁ EM TODA PARTE QUE PULSA,
PERMEIA TODA FORMA DE VIDA, SUSTENTANDO-A CONSIGO
MESMA, MESMA!
As palavras ecoantes do aterrador estranho
entraram nos ouvidos de Gaio como que a marretadas,
deixando-o aturdido.
– VEJA POR SI PRÓPRIO, PRÓPRIO! POR QUE NÃO LHES DÁ
MISERICÓRDIA, CÓRDIA, ARRANJANDO LOGO UM JEITO DE
ACABAR COM TUDO DE UMA VEZ, VEZ! TUDOOO! – vociferou
muito agressivo o aterrorizante desconhecido
novamente.
Gaio notou que o autor dos brados repentinamente
se transformara em algo que lembrava um gravatá
metálico. Ampliando-se progressivamente de tamanho,
ele estendeu indefinidamente suas folhas à semelhança
de lâminas amoladas e pontiagudas, abarcando tudo
quanto era lado.

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Afogado em Sangue

A um coro de gritos agudos capazes de lancinar os


tímpanos, sucedeu um asfixiante odor hemático. De
garganta excessivamente seca, Gaio ficou esperançoso
em poder matar a sede ao tomar uma chuva que
precipitou de relance e que só se fazia engrossar.
Infelizmente, para sua aflição completa, logo viu que o
que caía sobre ele não era água, mas sangue. Em
seguida, enxurradas do mesmo líquido viscoso e
vermelho correram em sua direção com força assaz para
derrubá-lo. No chão, como alguém que luta
desesperadamente contra o afogamento na água
impetuosa, Gaio debateu-se debalde na esperança de
que as braçadas e o esperneio na torrente o botassem
de pé. Mas o jorro de sangue inundou depressa aquele
local obumbrado, engolfando o efebo.
Empapado de suor, Gaio acordou muito assustado.
Relembrou o ser sinistro que habitava o seu pesadelo e
percebeu que a imagem inicial dele batia com as
descrições do mestre Ji a respeito do assassino de seu
pai, o suposto alienígena. A ligação dos episódios
injetou-lhe nas veias uma dose cavalar de medo.
Afundou-se na cama, o corpo endurecido que nem pau,
incapaz da menor das coragens para olhar para os lados
e constatar se enxergava algo no escuro do quarto.
Paranoico, imaginou que o assassino de seu pai podia
estar ali presente, que teria manipulado seus sonhos por

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meio de alguma tecnologia avançada, invadindo-os a fim


de lhe passar propositadamente uma informação
enigmática ou simplesmente aterrorizá-lo.
Superalerta, os ouvidos mais apurados do que
nunca, Gaio reparou nos ruídos abafados que
conseguiam de fora chegar ao seu quarto; antes comuns,
eles agora o deixaram ainda mais apavorado, se é que
isso era possível, ao se tornarem todos suspeitos. O
ramalhar das árvores da varanda-jardim do apartamento
entrou pela porta-janela aberta do quarto acompanhada
de trovoadas distantes e rajadas de ventos que,
prenunciando chuva, lembraram Gaio de que se
esquecera de programar a tal porta-janela para se
fechar.
Sentindo-se um grande covarde, Gaio não conseguia
cavar coragem alguma dentro do peito para pelo menos
fechar a porta-janela. O pavor o dominara tanto que não
se importaria que o quarto molhasse todo, contanto que
não precisasse se levantar da cama por nada deste
mundo.
À medida que o tempo passava, Gaio considerava
mais racionalmente sua hipótese de ter se interagido
com um suposto alienígena, duvidando de si próprio. Se
o assassino de seu pai estivesse de fato em seu quarto e
pretendesse lhe fazer algum mal, já o teria feito. Todavia
queria se certificar de que não havia mais ninguém além

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dele, Gaio, ali. Assim sendo, aventou com a ideia de


proferir um comando vocal a fim de que as luzes do local
acendessem num instante.
Entalada, sua voz, porém, não passou de um
engrolado que não produziu efeito algum.
Reconhecendo que não conseguiria falar distintamente,
Gaio criou coragem para se sentar na cama e esticar a
mão até seu iPhone, ao lado da cabeceira.
E sentado na cama, Gaio, antes de pressionar
qualquer botão no aparelho de seu celular para controlar
o que queria em seu quarto, cismou aterrado com uma
luz tênue que resvalava por entre os vãos da porta
fechada de saída de seu aposento. A parte do
apartamento além do quarto ligou seu pensamento à
sua mãe na hora, injetando-lhe, agora, uma dose cavalar
de bravura que neutralizou todo o seu medo e o fez, ao
se enrolar da cintura para baixo no lençol, disparar até o
quarto dela a fim de checá-la se se encontrava em
perigo.
Natura estava tão segura quão o filho paranoico.

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