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Silva, Augusto — A Ruptura com o Senso

Comum nas Ciências Sociais


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1—O PROBLEMA DA RUPTURA

As diferenças entre ciências sociais e ciências naturais:


– Sociais estudam os comportamentos e representações
sociais
– Naturais utilizam uma linguagem conceptual e processos de
demonstração científicos

A constituição das ciências sociais deu-se a par dos


desenvolvimentos sócio-económicos, políticos e teóricos que,
nos séculos 17, 18 e 19, que impuseram a ideia da existência de
uma ordem social laica e colectiva.

Consolidou-se um saber especializado, assente na reflexão


teórica e observação empírica, que ia assim marcando as suas
diferenças para com a tradição filosófica, as cosmovisões
religiosas e o conhecimento de senso comum.

Coube, na viragem do século, ao sociólogo Émile Durkheim a


principal teorização, nestes termos, sobre a legitimidade da
análise dos factos sociais. A investigação científica deve
começar pela ruptura com as pré-noções típicas do
conhecimento corrente.

Cumpre ao cientista, definindo rigorosamente os seus conceitos,


submetendo as suas hipóteses à comprovação empírica,
contrariar as interpretações vulgares, e mormente, para o nosso
autor, os elementos metafísicas, psicologistas e individualistas
nelas implicados.

As disciplinas sociais são especialmente permeáveis às


interpretações de senso comum. Ao passo que a física ou a

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astronomia romperam já há alguns séculos com o senso comum,
construindo uma linguagem conceptual e processos de
demonstração específicos que as imunizam.

A realidade social surge, aos olhos da maior parte das pessoas,


como mais facilmente explicável do que o universo físico. Para
além disso, todos — incluindo psicólogos, economistas,
sociólogos, etc — estamos integrados em estruturas sociais.

A ilusão da transparência, da familiaridade do social e os


sistemas de atitudes e acções ligados às condições sociais
objectivas representam os mais poderosos obstáculos à análise
científica.

A regra metodológica de Durkheim — explicar o social pelo social


e só pelo social — constitui ainda um princípio-chave para a
superação de tais obstáculos: não há elementos metassociais
que possam dar cientificamente conta dos factos sociais.

O certo é que os factos humanos são sempre factos


interpretados, o que os distingue radicalmente dos eventos
físicos. Importa é dar conta das representações colectivas,
quotidianas, da sociedade - as imagens e as noções construídas
e que configuram o património cognitivo partilhado pelos
membros de um dado grupo.

Existe uma arrogância erudita, herdeira do cientismo positivista,


sem sentido no panorama actual do conhecimento. Mas a
oposição entre ciência e senso comum é uma oposição relativa,
não há entre os dois uma clivagem definitiva.

Três níveis a que podem emergir obstáculos ao


conhecimento científico sobre o social:
– representações imediatas sobre a realidade — senso comum
ou conhecimento prático;
– concepções trabalhadas e enquadradas em formações
ideológico-doutrinárias precisas;
– ramificações de umas e outras no interior de disciplinas
científicas consolidadas.

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Três questões face às quais o conhecimento corrente, as
representações ideológicas e as teorias científicas
continuam a revelar-se inseguras:
– Relações natureza / cultura;
– Relações indivíduo / sociedade;
– Relações ‘Eu’ / ‘Outro’.

Almejamos defender que:


— O senso comum produz interpretações naturalistas,
individualistas e etnocentristas dos factos humanos, procurando
explicá-los por características ligadas à "natureza" da
humanidade ou de certos grupos, por factores (disposições
psíquicas e comportamentos) individuais, e em função dos
valores dominantes na sociedade ou na classe a que pertencem
os interpretadores.

2—NATUREZA & CULTURA

É corrente explicar factos sociais invocando fatores ditos


naturais — inerentes à natureza humana ou grupo humano. Isto
equivale a assumir fatos indiscutíveis e incontroversos que
‘exprimem a própria natureza das coisas e são imunes à
relativização.

Exemplos:
– Existem aptidões "naturais" ou dons artísticos (ou seja,
condicionalismos económicos, educacionais ou familiares
contam menos do que predisposições psicológicas??)
– As diferenças entre géneros conduzem a diferentes
comportamentos e aptitudes — i.e. fatores biológicos são
causa de fatos culturais (biologismo e fisicalismo são
reducionismos)

Por detrás destas formulações está uma questão central do


conhecimento — a relação entre natureza e a diversidade dos
contextos sociais criados pelo humano.

A ação humana depressa transforma atributos biológicos em

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factos sociais: no nosso contexto, o sexo, a morte, a idade, a
reprodução, a doença mental ... são sobretudo propriedades,
instituições ou processos sociais — são determinados pelas
estruturas e práticas colectivas.

Quais as razões por detrás destes biologismos?


1. O paradigma positivista ainda forte nas ciências sociais
sugere que a cientifização dos estudos sobre os
agrupamentos humanos faz-se importando modelos das
disciplinas naturais.
2. Tradição da antropologia e da sociologia estabelece
dualidade absoluta entre natureza e cultura, recusando-se a
admitir qualquer influência daquela sobre esta.
3. Ressuscitação do darwinismo social — deduzir da diversidade
dos seres vivos a inevitabilidade das desigualdades de
aptidões e oportunidades e a inutilidade das estratégias
sociais igualitárias.

A persistência e a eficácia das interpretações de senso


comum não podem ser atribuídas à "ignorância" popular dos
conhecimentos científicos. A raiz é mais profunda e tem a ver
com a imagem coerente que os actores tendem a produzir
acerca do mundo social em que vivem, com as representações
simbólico-ideológicas que constantemente criam e a que
constantemente estão sujeitos, e que constituem o principal
cimento da ordem social.

As ciências sociais estão numa situação peculiar:


– ou evitam a ruptura, decerto incómoda, e ficam condenadas
à reprodução mais ou menos sofisticada e esotérica dos
operadores ideológicos e de senso comum;
– ou a assumem até ao fim, e têm então de assumir
integralmente a postura critica em que se colocam.

Invoca-se muitas vezes também a natureza psíquica, moral,


política, etc., da humanidade — comportamentos supostamente
universais, independentes de tempo, espaço e contexto, porque
devidos a qualidades absolutas e perenes da nossa espécie ou
de fracções dela. Dizem estar para lá das determinações sociais,

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não podendo ser objecto de análise científico-social.

3—INDIVÍDUO & SOCIEDADE

A crítica da naturalização dos factos sociais mostrou como as


concepções de senso comum só podem ser analisadas por
referência às práticas, interesses e representações ideológicas
dos grupos sociais.

Do ponto de vista das ciências sociais, é possível encarar a


dialéctica entre acção individual e determinismos sociais, e
ultrapassar os preconceitos ideológicos a esse propósito.

Formas de individualismo extremo conduzem à contestação da


própria existência de ciências sociais. Se só os indivíduos são
"reais", a sociedade é apenas um conjunto de pessoas
individualizadas, singulares, agindo e interagindo segundo
fatores que lhes são 'imanentes' e tomando 'decisões'
resultantes do seu livre arbítrio.
— desta forma, a análise em termos de determinismos sociais
não faz sentido logicamente e eticamente.

As ciências sociais não podem aceitar, do ponto de vista dos


seus postulados teóricos, submeter-se a lógicas de registo
diverso, não-científico, a imposições directamente ideológicas
ou doutrinárias.

A análise social (histórica, antropológica, geográfica, psicológica,


económica, linguística, sociológica, estética) não é pura análise
dos "factos colectivos". Indivíduos e sociedade não são
realidades separáveis — não se aborda o indivíduo
independentemente do supra-individual nem a sociedade
omitindo a acção intencional dos sujeitos.

A dualidade actor/sistema é ultrapassável por análises que


possam dar conta combinadamente dos dois pólos.

Anthony Giddens — A sociologia estuda as formas de produção e


reprodução da sociedade, é outrossim o resultado complexo da

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acção activa dos seus membros.

A reprodução de práticas garante a estruturação das estruturas;


só que, se as estruturas se constituem através da acção, esta só
se constitui nas condições fixadas por aquelas. Quer dizer, as
estruturas surgem como consequência e condição da produção
da interacção.
— Estamos já longe da interpretação em termos de simples
comportamentos individuais ou inter-individuais. E longe da
tentação sociologista de evacuar o sujeito e a acção
intencional do objecto de análise.

É ilusão pensar que as ciências sociais ultrapassaram os


pressupostos e preconceitos ideológicos e de senso comum —
ruptura não é um processo feito de uma vez por todas, é uma
atitude e um trabalho de vigilância crítica e construção
conceptual permanente.

De um lado, os que sustentam que as ciências sociais devem


partir das regularidades verificáveis pelo estudo dos processos
intra e inter-individuais, e se estribam assim numa pretensa
soberania do indivíduo; do outro, os que defendem que tais
regularidades só podem ser apercebidas pela análise dos factos
e instituições sociais, porque nestes se concentram as causas
determinantes das condutas pessoais.

4—NÓS E OS OUTROS

Etnocentrismo designa:
– Sobreavalorização do grupo e da cultura — local, regional,
nacional ou transnacional — a que pertencem os sujeitos
– A universalização dos valores próprios do grupo e da cultura
de pertença constituintes das normas de referência para
avaliação de estruturas e práticas sociais diversas.

— é uma forma de entender a relação decisiva a todos níveis de


ação e interação entre o ‘eu’ — o ‘nós’ definidor da identidade de
um certo grupo, classe, etnia, nação, área — e o ‘outro’, os
demais grupos, classes, etnias, etc.

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A atividade etnocentrista é a afirmação legitimado do domínio e
das relações de poder. O seu núcleo reside na subtileza do que é
cognoscível (= que se pode conhecer), no pressuposto de que o
que vale a pena conhecer e o que serve de padrão único para o
conhecimento dos outros, são os factos e as ideias interiores à
nossa própria área cultural, ao "nós" que é o nosso.

A história dá exemplos da crueza inadmissível de formas


extremas de etnocentrismo — racismo, fanatismo religioso,
genocídio colonial. Mas os obstáculos mais persistentes
encontram-se com frequência nas formas não elaboradas e
inconscientes de etnocentrismo — pois surgem de forma
implícita, ao contrário de racismo e fanatismo que se apresentam
explicitamente como atitudes ideológicas.

A propensão para o etnocentrismo constitui, ao nível do senso


comum, um factor de identificação do grupo, do "nós", um
vector de legitimação da dominação, um instrumento decisivo da
luta simbólica entre os grupos. A forma etnocentrista de pensar
por preconceitos — ideias-feitas tomadas absolutas e
inavaliáveis pela análise científica — de toda a espécie, de raça,
de sexo, de classe, de profissão, de religião, de civilização,
representa um obstáculo no qual constantemente tropeçam os
cientistas sociais.

O que é o "naturalismo" corrente senão a tentativa de


absolutizar os valores constitutivos da identidade de certos
grupos, de os impor como a "natureza humana" - e
correlativamente postular a fatalidade dos valores "negativos"
dos grupos que dominamos? E o que é o "individualismo" senão
a imposição, como único quadro possível de referência, da
ideologia que o Ocidente industrializado consagrou?

A antropologia e história foram das disciplinas sociais mais


permeáveis ao etnocentrismo.

– Os historiadores preocupam-se especificamente com o


anacronismo — acontece quando postulam uma natureza

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humana universal cujas propriedades seriam as normas e os
usos da civilização em que vivemos. Cair em anacronismos
significa ignorar a relatividade dos contextos sociais e querer
explicar uns pela projecção de conceitos só validados para
outros.

– A antropologia balançou entre o olhar romântico sobre o


"selvagem" exótico e os serviços prestados às
administrações coloniais. Durante décadas foi assim o estudo
dos "primitivos" — aqueles que o evolucionismo colocava no
estádio mais elementar e bárbaro do processo civilizacional
que teria culminado na cultura europeia e norte-americana.

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