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Um ideal de democracia

Yvonne Maggie
O Brasil, como todos nós sabemos, é um país desigual e injusto, onde os mais
desafortunados têm, desgraçadamente, muito menos oportunidades do que os mais
aquinhoados pela riqueza e pela herança educacional.
Sobretudo a partir dos anos 1990, alguns setores do governo brasileiro e grupos
organizados em Ongs, ansiosos por um atalho que conduzisse a maior justiça,
propuseram a criação de leis raciais que nos levassem mais rápido ao fim das
desigualdades. Tal atalho foi construído sobre o argumento de que o racismo é um dos
fatores mais importantes na produção das desigualdades da nossa sociedade.
Quero, nos limites desta comunicação, afirmar que a proposta de instituir leis
raciais não tem o objetivo de combater desigualdades.
Quem pagará a conta de uma política pública de alto risco como esta?
A proposta que se apresenta hoje, a política de cotas raciais, colocará o peso e a
responsabilidade das mudanças nos ombros dos já tão sofridos e tão despossuídos em
nossa sociedade. Tenho observado ao longo dos últimos anos as escolas públicas do Rio
de Janeiro onde estão os mais pobres estudantes do estado. Estas escolas formam a
maior parte da pequena parcela de jovens brasileiros que termina o ensino médio e são,
portanto, candidatos às cotas raciais e estão repletas de crianças e jovens de todas as
cores, majoritariamente pretas e pardas conforme a definição do IBGE.
Nelas existe entre os estudantes um sentimento de igualdade forjado no dia a dia
da vida escolar e um desprezo em definir as pessoas a partir da cor da sua pele. Ao
longo da minha pesquisa nessas escolas do Rio de Janeiro, perguntei aos jovens
estudantes se na escolha de seus namorados ou amigos levavam em conta a cor. A
maioria esmagadora respondeu que isso era irrelevante. A observação de campo ao
longo dos últimos cinco anos do cotidiano dessas escolas mostra, além disso, que os
estudantes, como a maioria dos brasileiros, preferem não levar em consideração a cor na
hora de escolher amigos ou parceiros. São estudantes misturados na cor, fruto do que já
foi detectado ao longo dos últimos censos, o aumento dos casamentos mistos em relação
ao total de casamentos.
Pensando nessas escolas e seus estudantes, pergunto: Qual o sentido de se
escolher uma política que defina “raça” como critério de distribuição de justiça e
definição de cidadania? As leis raciais serão criadas para serem seguidas pela população
jovem e pobre das escolas públicas. No entanto, um olhar atento para estas classes onde

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estudam jovens e crianças de camadas sociais baixas torna evidente que uma política
que proporcionasse maiores oportunidades de acesso ao nível universitário aos pobres,
produziria efeito mais radical no sentido de colorir o cenário claro e rico das salas de
aula das universidades públicas. E com uma grande vantagem: os estudantes não seriam
obrigados a se definir e a serem definidos pela cor da sua pele.
A realidade dos princípios
Em um país onde a maioria do povo se vê misturada, como combater as
desigualdades com base em uma interpretação do Brasil dividido em “negros” e
“brancos”? O primeiro passo já foi dado com a criação da lei que instituiu o ensino da
história da África e da cultura afro-brasileira em todas as escolas públicas e privadas do
ensino básico do País. Quem seria contra ensinar a história dos “negros” no Brasil e a
história da África? Quem se oporia a contar a história da cultura afro-brasileira? A
iniciativa de introduzir esta disciplina é em si importante, porém está envolta em uma
trama maquiavélica. Regulamentada pelas Diretrizes Nacionais Curriculares para a
Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino da História e Cultura Afro-
Brasileira e Africana orienta os professores sobre como ensinar as relações étnico-
raciais e infundir nos estudantes o que é chamado de “orgulho étnico”. Trata-se de
ensinar aos brasileiros que eles não são cidadãos iguais, mas diversos e merecedores de
direitos diferenciados segundo a sua “raça”, que algumas vezes é mencionada
abertamente, outras eufemisticamente com a categoria “etnia”.
Este instrumento legal exarado pelo Ministério da Educação vai contra todo e
qualquer senso de razoabilidade. Conclamo os senhores ministros a se deterem por
alguns minutos na leitura desse chamamento ao “orgulho étnico” e a explícitas ameaças
de revanche pelo passado escravista. Certamente, os ministros ao lerem essas Diretrizes
compreenderão o intuito de ser ensinado aos alunos aquilo que estes nunca deveriam
aprender na escola: que há “raças” humanas e que os brasileiros se dividem em brancos
opressores e “negros” oprimidos. Pretende-se ensiná-los a se definirem a partir da cor
de sua pele e “esclarecer” os estudantes acerca do “equívoco quanto a uma identidade
humana universal”, como está escrito no documento. As Diretrizes são o instrumento
mais eficaz para criar classes divididas em jovens pobres brancos e “negros”, que
deverão sentir-se pertencentes a “comunidades étnicas”. Depois de divididos, poderão
então lutar entre si por cotas, não pelos direitos universais, mas por migalhas que
sobraram do banquete que continuará sendo servido à elite.

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Estas Diretrizes são, sem qualquer sombra de dúvida, a estrela-guia de um
pequeno grupo de organizações não governamentais encastelado no poder, querendo
impor ao Brasil políticas já experimentadas em outras partes do mundo e que trouxeram
mais dor do que alívio. As Diretrizes vão nos tirar do rumo que fez o Brasil ser um dos
raros países a não escolher o caminho de legislar por meio da “raça”. Não serão mais os
princípios da Declaração Universal dos Direitos Humanos servir de guia para os mais
jovens.
Os ministros do Supremo Tribunal Federal ao analisarem a constitucionalidade
das leis raciais e das cotas na UnB terão de decidir agora o caminho a seguir. Há apenas
dois: ou seguem os princípios expressos pelas Diretrizes acima citadas e decidem que o
Brasil deve trilhar o caminho da separação dos cidadãos e dos jovens, legalmente, em
“raças”, ou, ao contrário, seguem os princípios expressos na Declaração Universal dos
Direitos Humanos e na Constituição Brasileira que afirma a igualdade dos cidadãos.
O princípio de realidade
Infelizmente os proponentes das leis raciais querem o caminho traçado pelas
Diretrizes mencionadas acima, embora este não seja o caminho demandado pelo povo
brasileiro. E tem mais. Este mal, este ovo da serpente da separação dos estudantes em
“raças”, se fará por tão pouco. Bastaria oferecer cotas para estudantes pobres porque
eles são majoritariamente pretos e pardos, com a vantagem de não carimbar em suas
testas a marca da cor e o estigma que certamente lhes será imposto. Dados elaborados a
partir da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicilio (Pnad) indicam que se fizermos
esta escolha o número de pretos e pardos beneficiados será muito maior do que se
escolhermos o caminho de separar os estudantes em brancos e “negros” legalmente. Se
o foco da política for sobre os estudantes pobres, os mais beneficiados serão os
“negros”, pois estes representam 56,1% do universo de estudantes pobres, o que supera
sua participação percentual na população, em torno de 48%.
Fica evidente que o movimento pró-cotas raciais não está interessado em
promover a justiça social e muito menos em diminuir as desigualdades. Seu objetivo é
produzir identidades raciais bem delimitadas fazendo os brasileiros optarem pelo
mesmo sistema dos países que adotaram leis raciais como os EUA, Ruanda e África do
Sul. E não se iludam os que pensam que as leis raciais serão temporárias. Elas virão
para ficar e irão se espalhar, como erva daninha, em todas as instituições, na mente e no
coração dos brasileiros transformados em cidadãos diversos e legalmente definidos pela
cor de sua pele.

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Uma história retirada dos anais do esporte talvez sirva para explicar a mudança
pretendida por estes grupos que lutam ferozmente pelas leis raciais e também o seu
sentido.
Em 1959 o clube de futebol Portuguesa Santista excursionava pela África e iria
se apresentar na África do Sul. No dia do jogo, quando o escrete santista estava pronto
para entrar em campo, o dirigente do time adversário da África do Sul apareceu
inesperadamente. Não era uma visita de cortesia, pois vinha informar que os jogadores
“negros” não poderiam participar da partida porque assim determinavam as leis do país.
Os membros do time brasileiro, em uníssono, disseram que ou jogavam todos ou
nenhum, se recusando a participar do certame. Nesta hora o cônsul do Brasil interveio
anunciando oficialmente a posição do Governo brasileiro que não admitia nem o
racismo e nem o regime do apartheid. O presidente Juscelino Kubitscheck enviou
telegrama ao Governo sul-africano manifestando-se contra o regime vigente naquele
país. O time saiu do estádio e não houve jogo. Com esta atitude oficial o Brasil se
tornou o primeiro país fora da África a protestar contra o regime do apartheid. Alguns
dos jogadores entrevistados, recentemente, disseram com emoção que os brasileiros não
aceitavam racismo nem no esporte nem fora dele e menos ainda a divisão dos cidadãos
em “raças”.
Outra história do esporte, desta vez ocorrida na África do Sul com a vitória de
Mandela nas eleições presidenciais, mostra a diferença entre aqueles jogadores santistas
de 1959 e os sul-africanos após o fim do regime do apartheid. A famosa história do
rugby contada em recente filme de Clint Eastwood, Invictus, mostra bem esta diferença!
Nelson Mandela, sabiamente, usou a simbologia do esporte para unir os sul-africanos
em torno do time de rugby que levava as cores da África do Sul sob o regime do
apartheid. Aquele esporte e seus jogadores eram odiados pelos “negros” que foram as
vítimas do regime que fez da África do Sul a escória do mundo. Que força representou a
entrada de Nelson Mandela no estádio vestido com o uniforme e o boné verde e dourado
do tradicional time de rugby transformado agora em escrete da África do Sul?
Conclamando os jogadores e o povo a lutar pela África do Sul, nação arco-íris, e não
mais viver a dor de uma nação dividida, naquela memorável Copa do Mundo do
esporte, em Johanesburgo em 1995, o presidente fez muito contra as divisões étnicas no
seu país, até hoje sangrando em consequência delas.
Os dois estadistas mencionados acima buscaram a união de cidadãos e
combateram o afastamento deles em nome de identidades étnicas ou raciais. No entanto,

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como nenhuma política é perfeita, a África do Sul ainda sofre as consequências do
regime criador de identidades étnicas e “raças” e o Brasil, nunca tendo apartado
legalmente cidadãos em nome de identidades étnicas ou raciais, tem muito a fazer para
aperfeiçoar o nosso ideal de não racismo. Porém o governo brasileiro, infelizmente, não
está cumprindo sua obrigação e tenta impor uma lei que separa os cidadãos uns dos
outros em nome da “raça”. O que hoje está sendo proposto é o caminho inverso feito
pela África do Sul de Nelson Mandela. Nelson Mandela, depois de 27 anos na prisão,
buscou a trilha da igualdade pela destruição de identidades raciais e étnicas forjadas
legalmente ao longo de anos de dominação do regime do apartheid.
O Brasil, que conseguiu a façanha de não criar essas terríveis identidades étnicas
insuperáveis não é o mesmo que quer agora criá-las para combater desigualdades. A
justiça que os brasileiros desejam não se baseia na separação entre afrodescendentes e
eurodescendentes. Os brasileiros não querem abandonar o ideal de uma nação arco-íris,
que se expressa há tantos anos a ponto de sermos um país de 43% de autodeclarados
pardos, ou seja, misturados, nem brancos e nem pretos, um gradiente de cor que
aproxima em vez de separar.
Será mesmo sábio fazer o caminho inverso da África do Sul e criar primeiro um
regime de separação legal para depois tentar reunificar os cidadãos? Não seria mais
prudente reforçar nossa noção de igualdade e nosso ideal de democracia tão bem
representados na tocante história dos jogadores do time da Portuguesa Santista na
África do Sul?
Disse, nos limites desta minha comunicação, e reafirmo nas minhas palavras
finais: os que hoje propõem um Brasil dividido em “raças” ou querem criar dois Brasis,
estão no caminho errado. Estão errados porque propugnam, justamente, criar etnias
onde havia uma nação de brasileiros e onde todos se pensavam como uma única raça
humana, no dizer dos incontáveis pais que anualmente respondem ao censo escolar que
os obriga a definir seus filhos segundo uma “raça”.

Rio de Janeiro, 24 de fevereiro de 2010

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