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Organização de: Mariza de Carval~o Soares


e dorge Ferreira
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Vinte filmes brasileiros


comentados por historiadores

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OP-BrÍsil. Catalogação-na-fontê ,
Sindicato lJacionafitos Editores de Livros, RJ.
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Soares, Mariza de Carvalho.•
S655h ·: ~-· História vai ao cin_ema / Mariza de Carvalho Soares, Jorge
3• ed.
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Fcl-f~fra/, - 3• ed. - Rio d!! Janeiro: Record, 2008.

1. Cinema-tiiirtória. 2. Filmes históricos - Brasil. 3. Cinema -


Brasil - História. I. Ferreira, Jorge. II. Título.

CDD - 791 .430981


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Copyright e 2001 by Mariza de Carvalho Soares e Jorge Ferreira

Design: Tita Nigri


Editoração: Cristiano Terto
Fotos dos artigos: "Dona Flor e seus dois maridos", "Memórias do cárcere" e
"De razões e sentimentos", de produções Cinematográficas L. C. Barreto LTOA;
"Aleluia Gretchen", de Sérgio Sade, do acervo CEDOC/FUNARTE;
"Carlota: caricatura da História", de Elimar Produções Artísticas;
"Imagens de Canudos", de Morena Filmes LTDA;
"As trés faces de Xica", de Rio vermelho Filmes;
"Central do Brasil•, de Vídeo Filmes.
As imagens dos demais artigos pertencer1 ao acervo CEDOC/ FUNARTE.

Direitos exclusivos desta edição reservados pela:


EDITORA RECORO LTDA.
Rua Argenti na, 171 - Rio de Janeiro, RJ - 20921-380 - Tel.: 2585-2000

Impresso no Brasil

ISBN 978-85-01 -05872-0

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JacQueline Hermann
Imagens de Canud: s

Dentre os inúmeros eventos que, em 1997, marcaram o centenário da destruição do


arraial de Canudos, provavelnente o mais divulgado pela grande mídia foi o filme Guerra de
Canudos, dirigido por Sergio Rezende. Épico grandioso, o 7lme sobre a saga sertaneja de
Antônio Conselheiro e seu ·rnpressionante séquito foi, até então, o filme mais caro do cinema
brasileiro, contou com artistas consagrados e conhecidos do grande público, teve esmerada
produção e até mesmo a "importação" de técnico em efeitos especiais. Por tudo isso, seu
lançamento, programado para o dia 3 de outubro, dois dias antes dos cem anos da vitória das
forças do Exército sobre os sertanejos, foi cercado de grande expectativa. Grande produção em
tempos de franca retomada do fôlego do cinema nacional, Guerra de Canuaos parecia ser, tam-
bém, uma respeitosa horienagern às vítimas daquela que foi a mais impressionante guerra fra-
tricida que o Brasil já conheceu.
O projeto de fazer um filme sobre a guerra de Canudos traz, já na concepção, uma
saudável dose de ousadia, pois se propõe a tratar de tema delicado e complexo, apesar de j á
bastante estudado e discutido, tanto no meio acadêmico como fora de.e. Falar de Canudos
pode nos levar a refletir, dependendo do enfoque escolhido, sobre um período importante de
nossa história, no qual se fundou a República brasileira; sobre as relações entre um Brasil que
se quer avançado e aquele que sobrevive mergulhado na mais absoluta niséria; sobre as carac-
terísticas de nossa fo rmação social; sobre o caráter religioso do povo brasileiro e até mesmo
sobre a construção de urna identidade nacional da qual somos, ainda hoje, herdeiros.
Na verdade, mesmo que para efeitos puramente metodológicos, e até didáticos, sepa-
remos esses aspectos, Canudos encerra e permite aprofundar essas e várias outras questões

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A. H1;té'ia vai ao cinema

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sobre o mais fundo e tortuoso percurso das entranhas de nossa
história. Ao expor a crueza das diferenças sociais, econômicas,
políticas e culturais que separavam o litoral do sertão, o Sul
do Norte, o "progresso" e o "atraso 11 de dois países que não se
conreciam mas falavam a mesma língua e habitavam um ter-
ritório comum, a guerra de Canudos desnudou o país para si
mesmo e obrigou o Brasil "moderno" a olhar para trás da
cortina de desprezo que construíra para esquecer as "sobras

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da inexorável c;vilizaçãon.
Já pela atualidade das questões acima enu nciadas
pode-se ter clareza da atualidade de Canudos. Além disso, a
história da formação de ur, arraial em uma fazenda abandonada, cravada em uma das mais
áridas regiões do sertão baiano e tendo por líder um beato que havia duas décadas vagava
pelo Nordeste construindo igrejas e cemitérios, possui ing redientes suficientemente estimu-
lantes para que, até hoje, o misté'io sobre as causas da composição daquele grupo manten-
ha o desafio de "explicar" Canudos. Pois, se as razões da repressão aos conselheiristas pelo
Exército republicano são, quase que de forma consensual, atribuídas ao perigo representado
pela resistência nonarquista que tinha os "homens do Conselheiro" um forte braço armado,
as causas do cortejo sertanejo atrás do beato Antônio Mendes Maciel deram margem a
inúmeras, e por vezes contraditórias, interpre:ações.
No calor dos acontecimentos, os seguidores do Conselheiro foram considerados
fanáticos, irracionais, ignorantes, quase a1imalescos, por ilustres letrados da época, a exem-
plo do médico Raimundo Nina Rodrigues, que explicou "cientificamente" a "loucura epidêmi-
ca de Canudos" através do contágio de grave moléstia que acometia seu líder. Depois da
invasão da Fazenda Belo Monte pelas tropas co Exército, os conselhei ristas foram pau lati na-
mente transformados em vítimas de uma guerra inacreditável e vazia, pois nem uma única
prova foi encontrada sobre as relações do Conselheiro com uma arquitetada conspiração de
restauração da fl,onarquia. A designação negativa e ameaçadora de "fanáticos" foi cedendo
lugar a uma visão mais condescendente e compreensiva, embora não necessariamente menos
hierarquizante, que fez dos sertanejos de Canudos um espelho de nosso atraso, despreparo e
abandono. Dessa reflexão contrita surgiu a interpretação que fez do sertanejo um forte, imor-
talizada no lancinante Os Sertões2, de Euclides da Cunha.

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l ll'agens de Canudos

Mas a essa leitura ainda um tanto passiva do séquito conselheirista seguir-se-ia uma
outra, que retomaria o ímpeto político outrora atribuído aos sertanejos, dando-Lhe uma
roupagem positivada e nais em dia com as discussões que acreditavam ser a reforma agrária
a saída para o atraso e a superação das desigualdades sociais do Brasil. A partir das décadas
de 1950-60, Canudos foi recuperado pela esquerda brasi.eira como uma espécie de bandeira
da luta pela terra e como símbolo do ancestral embate entre dominantes e dominados que
marcou nossa formação histórica e social. A essa leitura revol cionária da saga conselheirista
somar-se-iam ainda análises que passaram a cruzar politica e religião na busca do "sentido"
da formação do arraial de Belo Monte.
Resumidamente, portanto, podem-se apontar pelo menos duas correntes bem mar-
cadas na literatura que procurou "explicar" Canudos: "a euclioiana", baseada no clássico que
pretendeu desnudar o sertão brasileiro para a parte "civilizada" do país, e que predominou
até os anos de 1950, e a "progressista", que fez de Canudos um baluarte da luta pela terra e
conferiu aos sertanejos do Conselheiro uma consciência razoável do sentido e da grandeza de
seus projetos. Mas vale dizer que, se a vertente "euclidiana" deixou de ser hegemônica a par-
tir, sobretudo, dos anos 1960-70, ela runca deixou de estar embutida nas análises que res-
gataram a força e a bravura sertaneja, apesar da distância, cronológica e analítica, que sepa-
rou esses dois momentos da construção da bistória de Canudos. O poder adquirido por esse
cruzamento interpretativo, e que pode ser observado em diversas outras elaborações intelec-
tuais e populares3, aparece, no entanto, apenas de forma tênue no filme de Sergio Rezende.
O épico cinematográfico opta claramente pela já antiga versão "euclidiana" para a guerra ser-
taneja, deixando de lado o muito que já se escreveu sobre Canudos depois de Euclides. Ao
fazê-lo, por pouco não reproduz a imagem negativa que Euclides da Cunha construiu para o
beato, que, se foi compreensível para a época, hoje poderia ser bastante discutida.
Numa das primeiras cenas do filme, o Conselheiro aparece em sua vida errante pelo
sertão, já seguido por alguns adeptos e já em desacordo com as autoridades religiosas e
políticas do Nordeste, antes mesmo da proclamação da República e sem que fique claro por
• que o beato incomodava as autoridades. Passaao esse rápido primeiro momento, o filme entra
• logo no período que antecedeu a formação do arraial, cruzando as andanças do Conselheiro
• com a vida da família sertaneja que será o fio condutor para a narrativa da guerra. A criação

II
desse "personagem de cinco cabeças - pai, mãe e três filhos - é a melhor expressão de como
pode ser produtiva e rica a intervenção da ficção na elaboração de um produto ficcional.

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A ;•stória vai ao cin:!ma

O processo de empobrecimento da família de Zé Lucena pretende representar a situação


de penúria, desalento e abandono do sertanejo diante da instauração de uma nova ordem
político-institucional, totalmente estrc.nha e incompreensível aos olhos de pobres miseráveis
que acreditam vir a República lhes tirar o pouco que sempre tiveram. Seguir o Conselheiro
aparece, então, como uma das poucas alternativas para um crescente número de deserdados
do Império. Afascinação que o Conselheiro exerce sobre Zé Lucena é imediata e acaba gerando
u a divisão familiar que Leva a filha rrais velha a vagar pelo sertão à procura de um salvador
menos assus ador do que Lhe pareceu o beato. O Bom Jesus Conselheiro tem um ar grave e
severo, sua presença é alth·a, quase arogante, e seu discurso conclama os ouvintes a segui-
Lo. Diz-se apóstolo de Deus e escolhido para uma missão salvadora. Faz proselitismo de seus
poderes e de seu papel de intermediário entre o Pai e os homens. Profetiza a perseguição dos
poderosos pelos justos que seguirem o Bom Jesus. O caráter guerreiro e messiânico das pre-
gações do Conselheiro dá margem a, pe.o menos, duas interpretações: ou faz crer que Canudos
• se pre esteve comprometido com uma Luta política contra uma opressão generalizada dos
• ricos contra os pobres, o que afastaria o filme da base euclidiana que o sustenta, ou pode
• ajudar a reforçar o aspecto de puro fanatismo que durante tanto tempo caracterizou, negati-

• vamente, o séquito conselhe·rista .


De todo modo, em qualquer dessas duas hipóteses, o filme acaba aumentando a dis-
tância que ainda nos separa da forma como aquele grupo entendeL o mundo que o cercava,
reforçando estereótipos que foram c01struídos em momentos específicos da construção da
própria história de Canudos. P::>is, se a versão euclidiana foi composta em meio ao turbilhão que
fez de Canudos uma questão de Estado, fortemente baseada na convicção de que se tratava de
uma conspiração monárquica, quiçá com patrocínio internacional, a interpretação "progressista"
fez dos sertanejos de Canudos um grupode sem-terra avant la lettre. Politicamente corretos cem
anos antes, os sertanejos de Belo Monte eram estranhamente guiados por um profeta que acre-
ditava na consumação de um paraíso terreal à beira de um rio seco chamado Vaza-Barris.
Mesmo que não entremos em discussões sobre "a verdadeira" história e a compreen-
sível e saudável Liberdade ficcional de uma obra não-acadêmica, não é possível desprezar o
conjunto um tanto contraditório de aspectos da personalidade do Conselheiro retratada pelo
filme. Profetiza os "quatro =ogos", referindo-se às quatro expedições, prediz mas não pode
mudar o uturo, e jamais é qJestionado por isso. OConselheiro tem, ainda, importante atuação

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liragens de Canudos

como estrategista militar, o que ficaria patente na escolha da fazenda abandonada para a
instalação da resistência às forças da República, embora no calor da guerra jamais seja con-
sultado. Sua ,~são estratégica aparece ainda qua ndo estimula
a vinda do comércio para o arraial, prevendo os maus ven-
tos que virão. Mas, apesar dessa liderança inicial, o Conse-
lheiro assume, no desenrolar da guerra, seu papel pura-
mente espiritual e mesmo um tanto isolado da peleja que
o teria como centro e, agora sim , mais de acordo com a
historiografia já disponível sobre o assunto.
A presença do comércio em Canudos, matéria
longamente debatida pela historiografia e que há muito
derrubou a interpretação que tomava o arraial como · • ,
exemplo de "comu nismo primitivo", é, infelizmente, 19:1Wv"'11J, D W:&11W""1) ............
11
pouco explorada no filme. Afinal, se só havia despossuídos a seguir o " C ,&DP"'1JJ.. I
Conselheiro, à exceção do comerciante Vilanova, se a região era árida e o sertão passara por
uma de suas mais terríveis secas, como explicar a circulação de moeda no arraial? Por que
alguns comerciantes, e Vilanova não foi o único, teriam interesse em se i nstalar na fazenda
abandonada? Ofato de não abordar as relações pessoais e comerciais entre os habitantes de
Canudos com os municípios vizinhos nos deixa sem compreender como o reduto se sustentou
durante pelo menos os três anos (1893-1896) que antecederam o primeiro embate armado, e
a partir de que momento as relações entre os canudenses e as regiões vizinhas começaram a
se tornar tensas e hostis, inclusive com a Igreja.
Observações semelhantes podem ser feitas sobre, pelo menos, dois outros momentos
importantes do filme de Sergio Rezende. O primeiro deles diz respeito à forma provavelmente
inverossímil como o afamado comandante da terceira expedição é retratado. O célebre coro-
nel Moreira César notabilizou-se como um t ruculento expoente do Exército brasileiro, depois
de, em 1893, desbaratar os federalistas no sul do Brasil, sendo chamado pela alcunha de
• "Corta-Cabeças". Depois de duas inexplicáveis derrotas diante dos conselheiristas, a indicação
• de Moreira César era a certeza de que o problema de Canudos seria 'resolvido" sem mais delon-
• gas e humilhações para as tropas legais. O coronel que vemos no filme é uma figura frágil e
■ fragilizada, despreparada para a importante tarefa que recebeu, e cuja imagem apóia-se tão-

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A História vai ao cinema

somente na descrição desabonadora feita por Euclides da Cunha. O autor de


Os Sertões procurou explicar o fracasso da expedição liderada por Moreira
César, que foi morto no sertão pelos conselheiristas, pelos "defeitos" físicos
que o faziam "organicamente inapto para a carreira que abraçara", interpre- ,.,
tação que contrariava a nada desprezível folha de serviços prestados ao
Exército até aquele momento. A crítica à atuação militar não poderia faltar,
mas talvez fosse mais contundente se usasse não o sarcasmo e sim a pura
verdade: Canudos jamais pôs em risco a estabilidade da República.
Mas se na construção de alguns personagens históricos o filme
cometeu alguns deslizes, na criação ficcional a opção foi bastante fe liz. Ao
desfiar a narrativa a partir da desavença da família de Zé Lucena, o filme
conseguiu problematizar a questão da ::é no Conselheiro, expor consequên-
cias duras e ainda pouco conhecidas sobre o destino de mulheres e crianças
que sobreviveram ao massacre, a presentar a tênue lin ha que separa moti-
vações pessoais de ideais politicamente estruturados. Quando Luísa, a filha
desgarrada da família Lucena, destila seu ódio pelo Conselheiro, o tenente

• carioca que a escuta acredita estar diante de "uma verdadeira republicana" .


Luísa, como provavelmente todos os conselheiristas, não sabia o que era a República. Para os
• habitantes de Belo Monte era a "mundiça", corruptela de imundície, que queria o fim da
• religião e da ordem divi na do mundo. Para a filha perdida dos Lucena só a República podia
• salvar sua família das garras do Conselheiro. Discursos truncados, sentidos diversos para os
• dois lados do combate .
Em outro bom momento, a mãe que perde a filha "na vida" e o filho na guerra ques-
tiona o poder do Conselheiro e expressa uma outra face da luta dos canudenses. Diz que Deus
nunca lhe tirou nada, que não acredita em milagre, e luta co ntra a República porque acredi-
ta ser ela a fonte de sua miséria. Seu apego à vida e à casa de taipa que lhe restou vão trans-
formando essa mulher em mais uma feroz combatente da "mundiça", amaldiçoada até na hora
em que é degolada pelos homens do Exército, o que era raro no caso de mulheres e crianças.
Na elaboração dessa personagem o filme assimila claramente a ambigüidade de Os
Sertões. Se o sertanejo pôde ser, apesar da nefasta mestiçagem que lhe deu origem, um forte,
a mulher do sertão mereceu poucas mas péssimas palavras de Euclides da Cunha. Ela reunia

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Imagens de Canudos

todos os defeitos recriminados no sexo feminino: vivia em desalinho, não cuidava dos filhos,
muitas andavam na "gandaíce", e mesmo as beatas foram descritas como mulheres horripilantes,
protótipos de bruxas medievais. A mãe da fam 'lia Lucena encarna uma das poucas mulheres
descritas por Euclides: ''[ ...] mulher desenvolta, enérgica, irritadiça [ ... ] gesticulação incor-
reta, desabrida e Livre [... ] . Não merecia o be11-querer aos triuntadores. Ao sair da barraca,
um alferes e algumas praças seg raram-na. Aquela m1..1lher, aquele demônio de anáguas, aque-
11
la bruxa agourentando a vitória próxima - foi degolada. • A reprodução seca da cena nos leva
a entender que essa foi a imagem que também o filme adotou para as sertanejas que viveram
em Canudos.
Zé Lucena representa aquele crente mais puro, e com dois outros sertanejos e uma
criança protagoniza aquela famosa cena descrita por Euclides: "Canudos não se rendeu.
Exemplo único em toda a história, resistiu até ao esgotamento completo."~ Sua rápida e
definitiva "conversão" ao Conselheiro se dá logo no primeiro contato, e nos diálogos que
manteve com Luísa se desvela o aprofundamento da crença no beato e a transformação do
simples criador de animais em soldado convicto do Bom Jesus. Esse foi, provavelmente, o
caminho seguido por muitos que acabaram esmagados pelas tropas do Exército brasileiro.
Por tudo isso, e por ter trazido de volta à discussão um tema que, ainda hoje, é fre-
qüentemente tratado com paixão e comprometimento político, por tudo que nos leva a refle-
tir sobre o Brasil, a produção de Guerra de Canudos deve ser saudada como um marco impor-
tante sobre os cem anos do extermínio do arraial conselheirista. Mas, apesar de o diretor
Sergio Rezende ter declarado "para mim aquilo tudo ainda é um mistério", ele opta clara-
mente por uma versão consagrada - a euclidiana - para contar "a história de Canudos".
Texto publicado no início do século XX, guarda, naturalmente, a marca de seu tempo, e é
capaz de inspira r, pela riqueza das cenas descritas, uma na rrativa cinematográfica extrema-
mente rica e densa. Assim sendo, Guerra de Canudos, o filme, ancora-se no núcleo dramáti-
co de Os Sertões, documento imprescindível para que se compreendam algumas das princi-
pais discussões intelectuais daqueles tempos, mas que certamente não esgota o que acon-

teceu em Canudos, pois encerra tão somente uma das interpretações possíveis. Nenhum

problema haveria, portanto, em dar ao filme o nome do clássico de Euclides da Cunha, home-
nagem tanto ao autor como à obra que até hoje, como se pode ver, tem cumprido o impor- •
tantissimo papel ae 111anter viva a saga conselheirista, dentro e fora do Brasil - na •
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A Históra vai a> cirema

Alemanha, por exemplo, a tradução de Os Sertões na década de 1990 obteve um imenso


sucesso de público e crítica.
Mas não há dúvida de que se trata de bom cinema, produção que contou com avança-
da tecno agia embora tenha repetiao as calhas de sempre: roupas muito limpas e passadas,
uma familia muito pouco corivincerte no papel de sertanejos famintos e miseráveis, Antônio
Conselheiro sempre com sua túnica limpa e jamais nos fazendo lembrar que se tratava de um
homem curtido pelo sol e magríssimo, que mal se alimentava havia mais de duas décadas. De
t odo modo, deve-se louvar e estimular a produção de filmes históricos no Brasil. Em país tão
carente de conhecimento e respeito ao seu passado, reconstruir as imagens de nossa história
e trazer de volta a discussão respeitosa de idéias e versões, de que tanto carecemos nos dias
que correm.

r- ~~~~~.1 0n
'A última versão deste artigo se bereficiou êas c:íticas feitas i:elo diretor do fine, a quem agradeço as observações.

' A primeira ooição de Os SértõeJ foi putlicada no :Uo d2 Janeiro, pe;a Laemert & Cia .. em 1902.

' Um exe:nplo importmt:e de cruz.amentc dessas duas □atrizes explicativas de Canudos pode ser observado no samba de enredo
da Escola de Samba Im Cima da Ho:a, de 1976, e qi.:e. apesar de se chamar Os Sertões, mistura o sertanejo forte com o proje-
to de superação da O?ressã:> dos latifundiários.

'Op. cit, cf. 2ª edição do Circule do Livro, São Paulo 1975, p . 4l3.

'Op. cit, cf. 2ª ed:ção do Círculo do L:vro, São Paulo, 1975, p . 476.

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