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Edição 27, volume 1, artigo nº 4, Outubro/Dezembro 2013

D.O.I: 10.6020/1679-9844/2704

BRASIL E IDENTIDADE AFRODESCENDENTE: UMA


QUESTÃO CONTEMPORÂNEA

BRAZIL AND IDENTITY AFRICAN DESCENT: A


MATTER CONTEMPORARY

Shirlena Campos de Souza Amaral1, Marcelo Pereira de Mello2

1
Universidade Federal Fluminense, Departamento de Sociologia, Niterói, RJ, Brasil,
shirlenacsamaral@yahoo.com.br
2
Universidade Federal Fluminense, Departamento de Sociologia, Niterói, RJ, Brasil,
mpmello@unisys.com.br

Resumo – As lutas pelas identidades estão presentes em contextos de


crescentes desigualdades sociais. Nas sociedades contemporâneas, as
reivindicações de movimentos negros por igualdade de participação estão
vinculadas tanto aos aspectos de reconhecimento identitários, quanto aos
redistributivos. Nesse contexto, o presente trabalho se constitui na reflexão
sobre o significado das cotas para negros no contexto atual brasileiro, no
qual partimos da hipótese de estar em processo uma redefinição da
identidade dos afrodescendentes na contemporaneidade. Perpassa por um
dos maiores desafios ao Estado-Nação, no sentido de como gerenciar a
diversidade cultural e seus conflitos dentro de um país em busca de uma
unidade social. Permite pensar a noção de identidade, que vem sendo
observada a partir de distintas concepções atuais nas ciências sociais e
nas ciências da comunicação.
Palavras-chave: Identidade. Modernidade. Reconhecimento. Cotas
“raciais”.

Abstract – The struggles for identities are present in the context of growing
social inequalities. In contemporary societies, the claims of black
movements for equality are linked to both aspects of identity recognition,
and the redistributive. In this context, this work is a reflection on the
meaning of quotas for blacks in Brazilian current context, in which we start
from the assumption of being in the process of redefinition of identity among
the contemporary African descent. This discussion permeates one of the
greatest challenges to the nation-state in the sense of how to manage
cultural diversity and conflicts within a country in search of a social unit. In
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this work we propose to think about the notion of identity, which is being
observed from different conceptions current in the social sciences and
communication sciences.

Keywords: Identity. Modernity. Recognition. “Racial” quotas.

1. Apresentação

Vivenciamos um tempo muito importante de reavaliação das relações entre os


grupos de identidade em nosso país. O crescimento da consciência negra e a
discussão em torno dos temas relacionados a políticas públicas de cotas1 no Brasil
têm causado mudanças marcantes e contendas. A identidade tem se destacado
como uma questão central nas discussões contemporâneas, no contexto das
reconstruções globais das identidades nacionais e étnicas e da emergência dos
“novos movimentos sociais”, os quais estão preocupados com a reafirmação das
identidades pessoais e culturais.
Enquanto categoria de análise sociológica a identidade vem ganhando
espaço, e os debates acerca da construção de identidades negras pautadas em
aspectos positivos têm sido constantemente repensados, ao se colocar em questão
signos tradicionais, de equilíbrio e harmonia. No contexto brasileiro, particularmente,
a busca por uma identidade nacional alçou o mestiço a representante da cultura
brasileira. Segundo Schwarcz (1999), a obra de Gilberto Freyre, Casa Grande e
Senzala, trazia o mestiço como representante nacional, sendo, então, considerado
como a gênese da nacionalidade brasileira, trazendo consigo o mito de "democracia
racial" e de uma convivência pacífica entre as raças. Mas como mito, a democracia
racial se distanciava da realidade nacional. Paralelamente, esse mesmo mito da
cultura mestiça (nacional) retardou o debate nacional sobre políticas de ação
1
Políticas públicas com viés afirmativo existem no Brasil há bastante tempo. Mas, as cotas no ensino
superior ganharam força nitidamente, a partir dos anos 90, com a atuação do agente político
“movimento negro”, conforme demonstra Antônio Sérgio Guimarães: “(...) o movimento negro foi o
primeiro e, até recentemente, o único agente político a propor, com as cotas, medidas concretas que
ampliassem a democratização do ensino superior no Brasil, daí a sua ressonância” (Guimarães,
2010). No entanto, discute-se a adequação dessa política para tornar mais inclusivo e democrático o
acesso a educação superior no Brasil, seja pela adequação às características específicas das
relações raciais na nossa sociedade, seja pelos seus resultados meritórios ou não. Nesse sentido,
Amaral e Mello (2012, 2013) tem contribuído com um diagnóstico sobre os avanços e limites da
política de cotas para negros e carentes enquanto mecanismo de inclusão social.

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afirmativa, bem como a discussão sobre o multiculturalismo no sistema educacional
brasileiro.
É no cenário das reivindicações minoritárias, nos anos de 1980 e 1990, que o
debate sobre a causa da população negra ressurgiu com uma nova roupagem, como
parte dos movimentos sociais que se fortaleceram a partir da década de 70, quanto
à demanda da identidade negra e da cidadania, seja pela politização em torno de
uma consciência negra ou de uma cultura negra como meio de marcar uma
cidadania diferenciada. Temos, de fato, como resultado de experiências a oposição
entre a identidade étnico-racial negra e a identidade mestiça, identidade esta
unificadora proposta pela ideologia dominante, que além de buscar a unidade
nacional visa à legitimação da chamada democracia racial brasileira e a
conservação do status quo.
Bem sabemos que a diversidade cultural e a justiça social constituem
questões relevantes no Brasil, país em que segmentos e grupos integram específica
configuração social. Não por acaso, percebemo-nos ante a emergência de novas
identidades fundamentais à noção de ser cidadão e na garantia dos direitos.
Pelo exposto, sem pretensão de exaustão, é imperioso apresentar algumas
reflexões sobre a noção de identidade, que vem sendo observada a partir de
distintas concepções nas ciências sociais e nas ciências da comunicação, à luz de
autores2 que são referências obrigatórias para a compreensão do conceito nesse
tempo presente – tempo em que as narrativas modernas passam por um panorama
de crise e em que existe uma busca por identificações e legitimação dos processos
sociais – visando dimensionar, mesmo que brevemente, o significado do contexto
atual brasileiro, no qual partimos da hipótese de estar em processo uma redefinição
da identidade dos afro-descendentes. Tal abordagem é, a nosso ver, bem
interessante, tendo em vista a especificidade de nossa experiência cultural, a qual
demanda a construção de um quadro interpretativo próprio.

2
Recorreremos, especialmente, às abordagens teóricas sobre identidade elaboradas por Zygmunt
Bauman, Stuart Hall, Manuel Castells e Néstor García Canclini.

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2. Modernidade e Identidade: lançando mão de algumas
concepções

Muitos são os autores nas ciências sociais e nas ciências da comunicação que
discutem a questão da identidade como pauta imperiosa para compreensão das
temáticas sociológicas do final do século XX. Conforme Zygmunt Bauman (2005, p.
23) o que se tinha anteriormente era a identidade como um assunto secundário de
discussão, “permanecendo unicamente um objeto de meditação filosófica”. Em
”Cartografias dos estudos culturais – uma versão latino-americana”, especificamente
no capítulo intitulado “Identidades culturais: uma discussão em andamento”,
Escosteguy (2001) considera que o debate tornou-se um problema teórico a partir da
modernidade, momento em que a identidade passou a ser compreendida como algo
sujeito a mudanças e inovações, tema esse relacionado à sua inserção no mundo,
sobre os indivíduos e suas identidades pessoais.
A análise de Anthony Giddens sobre a modernidade oferece-nos a
possibilidade de compreender o mundo em que vivemos – como inseguranças,
incertezas e as transformações no espaço da intimidade. Hodiernamente, nos fala
Giddens (1997, p.73): “nas ciências sociais, assim como no próprio mundo social,
estamos diante de uma nova agenda. Vivemos, como todos sabem, em uma época
de finalizações”. Nesse sentido, ao ser mais específico, prossegue nos dizendo que
refere-se a “uma finalização, sob o disfarce sob a emergência de uma sociedade
pós-tradicional”.
Compreendendo a modernidade3 nas condições da globalização, Giddens
nos desperta para a compreensão da natureza dinâmica da modernidade – como a
separação tempo-espaço, desencaixe e ordenação – e o alcance global das
transformações:
A experiência global da modernidade está interligada – e influencia, sendo
por ela influenciada – à penetração das instituições modernas nos
acontecimentos da vida cotidiana. Não apenas a comunidade local, mas as
características íntimas da vida pessoal e do eu tornam-se interligadas a
relações de indefinida extensão no tempo e no espaço. Estamos todos
presos às experiências do cotidiano, cujos resultados, em um sentido

3
Giddens (1991, p.11) concebe a modernidade como “estilo, costume de vida ou organização social
que emergiram na Europa a partir do século XVII e que ulteriormente se tornaram mais ou menos
mundiais em sua influência” Nesse sentido, a modernidade é para Anthony Giddens “inerentemente
globalizante”.

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genérico, são tão abertos quanto aqueles que afetam a humanidade como
um todo. As experiências do cotidiano refletem o papel da tradição – em
constante mutação – e, como também ocorre no plano global, devem ser
consideradas no contexto do deslocamento e da reapropriação de
especialidades, sob o impacto da invasão dos sistemas abstratos. A
tecnologia, no significado geral da “técnica”, desempenha aqui o papel
principal, tanto na forma de tecnologia material da especializada expertise
social (GIDDENS, 1991, p. 77).
De forma clarificada, observamos a partir dessa leitura uma das primeiras
conseqüências da modernidade: a mudança radical das concepções espaço e
tempo. Nas sociedades pré-modernas, espaço e tempo estavam plenamente
relacionados, sempre vinculados no agir cotidiano. Com o advento da modernidade,
com a possibilidade de se deslocar por longos espaços em tempo reduzido, o tempo
e o espaço se desconectaram, e tiveram a dependência de um em relação ao outro
reduzida. Assim, com o espaço flexibilizado, as ações humanas, passaram a
repercutir fora dos contextos locais, alcançando o global.
Conforme nos mostra Giddens (2002) as dinâmicas não extinguiram a vida
em comunidade, pois as comunidades locais existem. No entanto, a modernidade
gera mudanças na forma de se viver no mundo, uma vez que a vida local passa a
ser influenciada pelos fenômenos globais. Entretanto, esse novo mundo que se
apresenta proporciona ao indivíduo um sentimento de impotência – não controle
sobre as influências que dão forma à vida – e de insegurança. Para Giddens, o
mundo tornou-se um lugar inseguro, insegurança essa que é experimentada pelo
indivíduo em sua mais remota comunidade; já não há mais certezas, os riscos estão
à “mira” e o futuro já se demonstra impossível enquanto construção histórica. De
forma singular, Giddens nos expressa essa conseqüência da modernidade, em sua
fase tardia ou radicalizada:
A modernidade, pode-se dizer, rompe o referencial protetor da pequena
comunidade e da tradição, substituindo-se por organizações muito maiores
e impessoais. O indivíduo se sente privado e só num mundo em que lhe
falta o apoio psicológico e o sentido de segurança oferecido em ambiente
mais tradicionais (GIDDENS, 2002, p. 38).
Sobre a questão da identidade ou, mais especificamente, das auto-
identidades num contexto de globalização, temos em Anthony Giddens o conceito
Política-vida, cujo conceito refere-se à “política de realização do eu, no contexto da
dialética do local e do global e do surgimento dos sistemas internamente referidos
da modernidade” (GIDDENS, 2002, p. 222). Temos, ainda, em Giddens (1991) não
mais o elemento interativo e coletivo como componente central das sociedades na
modernidade tardia, à medida que passa a ser a figura do self integrado ao processo

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de formação da auto-identidade. Por esse prisma, a auto-identidade constitui o
processo no qual, segundo Giddens:
o self é entendido reflexivamente pela própria pessoa nos termos de sua
biografia. A identidade, nesse caso, assume continuidade ao longo do
tempo e do espaço: mas a auto-identidade é essa identidade interpretada
reflexivamente pelo agente (GIDDENS, 1991, p. 53).
Desse modo, Anthony Giddens se atém as questões da identidade ao
procurar decifrar as experiências do cotidiano na modernidade globalizada,
envolvendo tanto a percepção do “eu” e do “outro” e as múltiplas mudanças e
adaptações na vida cotidiana. Em sua concepção a modernidade solapa a confiança
fundada nos valores tradicionais e pressupõe um novo ambiente em que possa se
desenvolver a segurança ontológica - o “ser no mundo”. Resumidamente, nos fala
que a segurança ontológica, refere-se “à crença que a maioria das pessoas têm na
continuidade de sua auto-identidade e na constância dos ambientes de ação social e
material circundantes” (GIDDENS, 1991, p. 95)
Ante o assinalado, interessa-nos aqui, propriamente, perceber que Giddens
(2002, p. 37) utiliza para a discussão do termo identidade da concepção da
identidade pessoal, do nível psíquico das identidades e das subjetividades
modernas, “uma reflexidade da modernidade que se estende ao núcleo do eu”. Ao
tratar do tema da identidade inspira-se em Charles Taylor (1997) 4, que analisa a
modernidade por meio da construção da identidade.
Manuel Castells, em “O Poder da Identidade”, traz a reflexão sobre a
identidade como “fonte de significado e experiência de um povo” e sobre o caráter
múltiplo e fragmentário da identidade, identificando empiricamente que uma
identidade – seja individual, seja coletiva – pode sustentar múltiplas identidades
(CASTELLS, 1999, p. 22). Apesar de concordar com a caracterização teórica de
Anthony Giddens, no que tange à construção da identidade no período da
“modernidade tardia”, Castells (1999) defende, a partir de análises, que “o
surgimento da sociedade em rede traz à tona os processos de construção de
identidade durante aquele período, induzindo assim novas formas de transformação
social”. E, por conseguinte, justifica: “isso acontece porque a sociedade em rede
está fundamentada na disjunção sistêmica entre o local e o global para a maioria

4
Taylor (1997, p. 9) refere-se ao termo como “conjunto de compreensões (sobremodo desarticuladas)
do que é um agente humano: os sentidos de interioridade, liberdade, individualidade e de estar
mergulhado na natureza, tão familiares ao Ocidente moderno”.

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dos indivíduos e grupos sociais” (CASTELLS, 1999, p. 27). É na construção de uma
teoria elucidativa para o entendimento de tais relações identitárias na atual
configuração mundial da sociedade em rede que Castells (1999), propõe três
categorizações de processos de construção de identidades, na perspectiva de
multiplicidade, a partir de relações de poder5, nos termos que se seguem: i)
identidade legitimadora, de caráter essencialista, instituída pelas instituições sociais
dominantes, fortalecendo uma atitude de submissão dos sujeitos; ii) identidade de
resistência, configurada em atores em condição social desfavorecida, que mostram
resistências ao projeto dominador, no entanto ainda não propõem formas positivas
de construção identitárias, por outras palavras, seriam as entidades de certa forma
essencializadas, que representam os grupos contra-hegemônicos; e iii) identidade
de projeto, é propriamente a perspectiva construtivista das identidades, em que os
atores embasados nos materiais culturais disponíveis constroem novas identidades,
sendo esta capaz de redefinir a sua posição na sociedade e buscar mudanças na
estrutura social.
Assim, Manuel Castells concorda com uma perspectiva construtivista, tão
somente, no sentido generalizado:
Não é difícil concordar com o fato de que, do ponto de vista sociológico,
toda e qualquer identidade é construída. A principal questão, na verdade,
diz respeito a como, a partir de quê, por quem e para quê isso acontece. A
construção de identidades vale-se da matéria-prima fornecida pela história,
geografia, biologia, instituições produtivas e reprodutivas, pela memória
coletiva e por fantasias e por fantasias pessoais, pelos aparatos de poder
e revelações de cunho religioso. Porém, todos esses materiais são
processados pelos indivíduos, grupos sociais e sociedades, que
reorganizam seu significado em função de tendências sociais e projetos
culturais enraizados em sua estrutura social (CASTELLS, 1999, p. 23).
Por uma perspectiva diversa de discussão de Anthony Giddens – identidade
da concepção pessoal –, tratando-se da idéia de uma identidade coletiva conectada
a sistemas culturais específicos, afirma-se Stuart Hall (2005, p. 68), compreendendo
a identidade como culturalmente formada e, por sua vez, interligada a discussão das
identidades coletivas, como as identidades regionais e nacionais, bem como outras

5
Ressalta Castells (1999) que a construção social da identidade sempre ocorre em um cenário
marcado por relações de poder. Também assevera que a identidade coletiva é construída por meio
da contrastividade, e o conteúdo simbólico e seus significados são determinantes para aqueles que
com ela se aproximam ou se excluem. Isso nos leva a refletir que a identidade é mais atribuída do
que construída. E podemos nos indagar: quem se identifica ou se exclui no processo? Bem sabemos
que reconhecer o outro é fundamental, mas a questão é onde o outro é alocado.

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que formam quadros de referência e sentidos estáveis, contínuos e imutáveis por
sob as divisões cambiantes e as vicissitudes de nossa história real. Como
seguidores desse entendimento temos, por exemplo, Zygmunt Bauman e Néstor
García Canclini, à medida que ambos compreendem o caráter de representação
coletiva e da identidade como um conjunto de significados partilhados.
Stuart Hall (2005), um dos fundadores da designada Escola de Estudos
Culturais, ao analisar a questão da identidade cultural na pós-modernidade, crê que
o final do século XX introduziu uma discussão acerca de uma possível crise de
identidade do sujeito em face de uma mudança estrutural que fragmenta e desloca
as identidades culturais de classe, sexualidade, etnia, raça e nacionalidade. Na
tratativa do tema, Hall mostra como determinados processos sociais influenciam
significativamente a mobilidade dos processos de significação e pertencimento,
criando jogos de identidade entre indivíduos e sociedades, onde o tempo e o espaço
aparecem como determinantes. No mundo globalizado e midiatizado, os meios de
comunicação de massa desempenham papel importante na (re)definição de
identidades, a partir da diversidade e amplitude de seus conteúdos. Em suas
proposições, Hall (2005, p. 7) acredita que "as velhas identidades, que por tanto
tempo estabilizaram o mundo social, estão em declínio, fazendo surgir novas
identidades e fragmentando o indivíduo moderno, até aqui visto como um sujeito
unificado", partindo do pressuposto que as identidades estão sendo descentradas,
deslocadas e fragmentadas gerando identidades híbridas 6. Tal fato configuraria uma
das conseqüências da globalização sobre a representação social que os sujeitos
fazem de si e dos outros, individual e coletivamente. Assim, para Hall a globalização,
ao lado de pôr em questão as identidades nacionais, “tem um efeito pluralizante
sobre as identidades, produzindo uma variedade de possibilidades e novas posições
de identificação, e tornando as identidades mais posicionais, mais políticas, mais
plurais e diversas; menos fixas, unificadas ou trans-históricas.” (2005, p. 87).
Isso nos permite considerar, nas condições atuais de globalização, que o
conceito de hibridação tem um apelo inegável ao conhecimento, sobretudo, por
pensar as tensões das diferenças que o pluralismo cultural tende a omitir. Ora,
nenhum outro conceito é tão nosso velho conhecido como a mestiçagem. Com ele,
6
Conforme Stuart Hall (2005) na modernidade tardia a identidade é pluralizada, quer dizer, não se
trata de uma única identidade definindo o indivíduo, mas de múltiplas, redefinindo-o ao longo dos
discursos, práticas e a cada posição que ele assume.

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as ciências sociais latinas podem falar da norte-americanização de seus países, mas
também da latinização dos Estados Unidos.
Canclini (2006), nesse sentido, defende que há de se empreender esforços
em prol das políticas de hibridação, daí que as hibridações multinacionais derivadas
de migrações em massa devam ser reconhecidas em uma concepção mais aberta
de cidadania, capaz de abranger as múltiplas pertenças. Também neste ponto,
somos, os latino-americanos, experientes na “diáspora”7 – não por gosto próprio –
aquela que Edward Said (apud. CANCLINI, 2006) descreve como a experiência que
faz o ser humano olhar o mundo inteiro como uma terra estrangeira, tanto o novo
ambiente como aquele que fora, no passado, o seu lar. Será que duvidamos que a
viagem e os esforços da tradução são, sentimentos, crenças e atos, como lembra o
poeta brasileiro Ferreira Gullar (apud. CANCLINI, 2006), de vida e de morte, de
multidão e de solidão, de vertigem e de linguagem?
Reconhecendo entre negros brasileiros a presença de uma vivência
“diaspórica”, podemos nos perguntar, ainda, a título de reflexão, de que modo a
diáspora africana no Brasil se apropria ou não de elementos presentes no processo
de transformação da modernidade tardia, para usar um termo colocado por Stuart
Hall? Ou mesmo, de que modo a diáspora passa a imaginar-se, no sentido
analisado por Benedict Anderson, e (re)afirmar-se enquanto comunidade sem
território?8
Anderson (2008, p. 25) argumenta ser a nação não coordenadas
geográficas, mas um conceito abstrato, definido como uma “comunidade

7
Em termos gerais, “a diáspora foi outrora um conceito relacionado quase exclusivamente à
experiência judaica, evocando o seu traumático exílio de uma pátria histórica e a sua dispersão por
vários países” (Cashmore, 2000, p.169). Nesse sentido, no Brasil a expressão é forte para
caracterizar a história das relações raciais no país.
8
Lembramos que o Brasil permanece como a segunda maior população negra do mundo, perdendo
no ranking para a Nigéria. Os afro-brasileiros, porém, descendem de povos de várias regiões da
África e, embora formem a maioria da população, têm constituído, ao longo dos séculos, o
contingente majoritário de excluídos da sociedade. Segundo Roberto Borges Martins (2001), a
constituição brasileira da diáspora africana tem início no século XVI, com o tráfico transatlântico de
africanos de diferentes origens étnicas e geográficas sob o regime de escravidão para a então colônia
portuguesa. Tal movimentação transatlântica de africanos para o Brasil encerrou-se sob o peso da
Lei Eusébio de Queirós, no ano de 1850. Mas, de todo modo, manteve-se em vigor na
clandestinidade, ao longo dos anos subseqüentes, quando se intensifica o tráfico interno.

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imaginada”9. Para que esta exista, faz-se necessário que um número significativo de
pessoas de uma dada comunidade se sinta parte de uma nação, que apresentem
identificações entre si, que se “considerem”, ou mesmo, se “imaginem” integrantes
dessa nação – na mente dos membros da comunidade há uma imagem de
comunhão. Para haver essa “consciência” de nação, esse sentimento de pertencer a
um mesmo grupo, a uma mesma cultura nacional e tornar possível uma identificação
nacional, alguns dispositivos são acionados para representar a nação e produzir
significados. Nesse sentido, Benedict Anderson estabelece a importância da língua,
da raça e da história enquanto narrativas homogeneizadoras essenciais para a
constituição das identidades nacionais e das culturas nacionais10, bem como para a
formação de uma consciência nacional, ou melhor, narrativas que possibilitam a
idéia de pertencimento nacional, de nacionalidade. Não por acaso, como destaca
Bauman (2001, p. 199), os Estados-nação “não se lançaram à tarefa no escuro, seu
esforço tinha o poderoso apoio da imposição legal da língua oficial, de currículos
escolares e de um sistema legal unificado (...)”.
Se as “diásporas” pós-coloniais permanecem com papel importante no
processo de (re)construção pelo qual passam as identidades culturais no mundo
contemporâneo, à medida que com elas acelerou-se o transporte de culturas de um
lugar para outro, e a tradução dessas culturas e da identidade dessas pessoas no
novo local/lugar para o qual se deu a migração, possibilitando a transformação da
cultura local e, conseqüentemente, a produção de identidades culturais híbridas, ou
seja, este tipo identitário característico da modernidade tardia, podemos dizer que
também com a integração econômica e com a difusão da informação possibilitadas
pela globalização e mesmo pelo avanço tecnológico, a cultura e as identidades
culturais estão em trânsito constante.
As transformações pelas quais passam a sociedade não fogem à análise de
Harvey (1999), que descreve a sociedade atual como dominada pela efemeridade

9
Anderson (2008, p. 27) entende comunidade, por ser “concebida como uma agremiação horizontal e
profunda”; e imaginada, por habitar a fantasia dos que pensam conhecer sua nação por completo, por
tornarem real em suas mentes hábitos e culturas.
10
Benedict Anderson (2008) e Eric Hobsbawm (1997), quando tratam da reflexão de questões
referentes à identidade nacional ou cultura nacional, consideram que somente a partir da análise de
nação como artefato cultural, isto é, como representação torna-se possível conceituar a identidade
nacional e justificar sua relevância nas sociedades contemporâneas, sobretudo nos domínios cultural,
social e político.

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mediante o incremento tecnológico na comunicação e nos transportes que permitem
o “encolhimento do mundo” possibilitando uma apoteose de consumo 11. A
flexibilização do trabalho é decorrente do aumento da velocidade de giro do capital
realizando movimentações no campo cognitivo que simulam percepções envoltas
em um pretenso ar de cosmopolitismo, como os locais de consumo temáticos aos
quais operam uma artificial aproximação com realidades situadas em pontos
distantes do globo. Todavia a pós-modernidade, como é classificado o tema
presente pelo autor, é fundada em formas de interação e socialização alicerçadas
sob cópias, nunca sobre os originais (sociabilidades e artefatos genuínos), algo que
alcunha de “disneyficação” do mundo.
Boaventura de Sousa Santos (2006) de maneira similar, verificando o
aumento de intensidade dos influxos comunicativos, diagnostica o surgimento da
uma “redópolis”, ou, o aumento de interações tendo por medium a Internet que faz
com que não se restrinja mais a circulação de informação sequer a limites
continentais. Ambos autores identificam o surgimento de “cidades globais” atuando
24 horas por dia onde concentram-se os centros gerenciais que comandam
fortemente postos de trabalho espalhados pelo mundo com seus executivos
fisicamente distanciados.
É a vivência desse tempo pós-moderno, como postulado por Harvey (1999),
ou a liquidez da modernidade tardia, como enunciada por Bauman (2005), que
confere aos sujeitos uma posição agonística de mal-estar, que dificulta a
compreensão de uma identidade cultural fragmentada que estabeleça uma posição
dialógica de abertura e constante transformação. Para Bauman há certa
ambigüidade nesta concepção identitária, à medida que, similarmente à outra
concepção, qual seja, a experiência essencialista vivenciada pela exacerbação das
identidades nacionais não figuram como postura negativa, conforme podemos
observar por suas palavras:
O anseio por identidade vem do desejo de segurança, ele próprio um
sentimento ambíguo. Embora possa parecer estimulante no curto prazo,
cheio de promessas e premonições vagas de uma experiência ainda não

11
Em sua obra “Consumidores e Cidadãos, Canclini (2001) aponta o consumo como um fator de
diferenciação simbólica que comunica padrões de identidade e diferenciação para os que partilham
dos mesmos referencias. Conforme Canclini (2001, p. 131), atualmente, a identidade é “poliglota,
multiétnica, migrante, feita com elementos mesclados de várias culturas”.

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vivenciada, flutuar sem apoio num espaço pouco definido, num lugar
teimosamente, perturbadoramente nem o um, nem o outro, torna-se a longo
prazo uma condição enervante e produtora de ansiedade. Por outro lado,
uma posição fixa dentro de uma infinidade de possibilidades também não é
uma perspectiva atraente. Em nossa época líquido-moderna, em que o
indivíduo livremente flutuante, desimpedido, é o herói popular, estar fixo ser
identificado de modo inflexível e sem alternativa é algo cada vez mais
malvisto (Bauman, 2005, p. 35).

3. Brasil e identidade afrodescendente: breves considerações

Rememorando brevemente um passado não muito distante, nas primeiras décadas


do século XX “o pensamento majoritário nas ciências sociais era racista. Mas até ele
reconhecia que o Brasil era fruto da miscigenação” (KAMEL, 2006, p. 18), de fato
ainda que por fundamentos negativos. Vale lembrar o pensamento de Oliveira
Vianna, um dos principais defensores da tese do “branqueamento” 12, como a saída
para o “progresso” do Brasil.
De acordo com Silva (1989), Oliveira Vianna13 proporcionou uma ruptura com
as teorias racistas14 no que tange à degenerescência dos mestiços. É o “mestiço” o
homem brasileiro que nasce da mistura das três raças. Em sua obra “Evolução do
povo brasileiro”, de 1923, em que a mestiçagem devia ser estimulada como caminho
necessário para estender a purificação, tem-se no “typo aryano” o principal elemento
civilizador. Negros e índios seriam agentes de civilização somente quando se
misturassem com os brancos, pois produziriam tipos “mestiços superiores”. De tal
modo, o núcleo deste racialismo era a idéia de que “o sangue branco purificava,

12
Sabe-se que a ideologia do branqueamento creditava ao branco europeu o papel de ingrediente
fundamental na construção do povo e da raça brasileira. Sobre a sistematização dessa tese no Brasil,
sugere-se a leitura dos trabalhos de Seyferth (1989) e Silva (1989).
13
Seyferth (1989) revela a identificação dos trabalhos de Oliveira Vianna com teorias racistas
deterministas, contribuindo para reverenciar o racismo.
14
O positivismo, o darwinismo, a antropologia de inspiração racista balizaram por não pouco tempo o
discurso dos intelectuais, as políticas de Estado – tal qual a política do “branqueamento”. O discurso
racista do século XIX tomava a mistura racial como um processo que levava ao enfraquecimento de
civilizações e à degeneração das futuras gerações. Para detalhes sobre as abordagens formuladas e
difundidas por intelectuais e cientistas brasileiros de fins do século XIX e início do século XX em torno
da questão racial, interessante observar, por exemplo, o estudo de Schwarcz (1999; 2001) e a
coletânea de artigos organizada por Maio e Santos (1996), em que tratam com originalidade sobre o
debate da cultura brasileira e da identidade nacional.

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diluía e exterminava o negro, abrindo, assim, a possibilidade para que os mestiços
se elevassem ao estágio civilizado” (GUIMARÃES, 1999, p. 50).
Mas foi na década de 3015, com a primeira edição de “Casa Grande e
Senzala” de Gilberto Freyre, que se teve o redirecionamento das concepções da
formação racial brasileira operando a caracterização das “raças formadoras” do povo
brasileiro sob uma ótica distinta, qual seja: a da imagem positiva 16 da mestiçagem
brasileira. Nesta obra de 1933, que ocupa um lugar ímpar na tradição das ciências
sociais, Freyre fez a composição do nosso “mito das três raças”, situando o negro
como “principal colaborador do português na construção da sociedade brasileira,
seja como trabalhador da lavoura de cana-de-açúcar, seja como trabalhador nas
minas ou ocupado com as tarefas domésticas no interior das casas grandes”
(SILVA, 1989, p. 165).
Esclarece Silva (IBID.: 165) que foi a partir da relação antagônica senhor -
escravo – marca da sociedade patriarcal brasileira – que Freyre desenvolveu boa
parte de seu estudo. A identidade nacional trazia a característica fundamental de
“rígida hierarquização”, cujos pólos antagônicos de uma formação social autoritária –
senhor e escravo, branco e negro, dominante e dominado – permaneceriam nos
seus devidos lugares17. Mas, garantindo o desenvolvimento e a harmonia da nossa
organização social, construímos elementos mediadores que trazem em si
características de ambos os pólos.
Ao resgatar o importante papel do negro na construção da identidade
nacional, da nossa cultura, a linguagem ambígua de Freyre permitiu a recepção de
sua obra como postulando que a escravidão no Brasil teria se realizado de forma
15
Silva (1989) atenta que as idéias de Gilberto Freyre já se faziam presente no pensamento racial
brasileiro do século XIX, mas a força das teorias raciais e o baixo nível de desenvolvimento
econômico do país, o situavam em posição inferior no cenário internacional.
16
Vilhena (1997, p.133) recorda a descrição clássica de Antonio Cândido acerca também do “impacto
libertador” do livro de Freyre sob sua geração que “conseguia enfim ver seu país a partir de outros
olhos, livre da apreensão trazida pelos teóricos racistas”. Não apenas aquele que foi recepcionado
mais tarde como o formulador da tese da “democracia racial” – que apontava que os “males
brasileiros” não advinham das características inatas de um povo mestiço –, mas ao reconhecer a
presença do negro como um distintivo de nossa mistura racial, ainda que presente já no branco-
português, de modo que a mestiçagem do brasileiro já teria sua origem no elemento “europeu”.
17
Nesse momento, Silva (1989) faz referência à obra de Da Matta – “Relativizando: uma introdução à
antropologia social” – reforçando a análise da fábula ou mito das três raças, que segundo o autor
constitui na mais poderosa força cultural do Brasil, para legitimar a especificidade hierarquizada do
sistema social brasileiro.

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“branda”18, em comparação a outros contextos (como Estados Unidos ou Caribe), no
que é arduamente criticado com a revisão do tema do racismo brasileiro 19. Roger
Bastide, por exemplo, ao descrever “os sofrimentos que os meninos brancos
infligiam aos pretinhos sujeitos a seus caprichos, os ciúmes das mulheres brancas
contra as amantes negras” explicita a brutalidade e o sadismo contido nas relações
íntimas apontadas por Freyre (VILHENA, 1997, p. 155).
A noção de povo mestiço brasileiro convivendo sob um ideal de harmonia
racial foi facilitada pelo momento de transição para a modernidade, industrialização
e construção da nação que foram os anos de 193020. O passado escravista teria de
ser superado em nome de um ideal de harmonia e de “democracia racial”. A
identidade nacional brasileira construída a partir das narrativas não-raciais se firmou
com Gilberto Freyre, à luz da idéia-força da mestiçagem. Assim, recorrendo a
algumas das concepções apresentadas anteriormente sobre identidade, pudemos
perceber, por exemplo, uma adequação a perspectiva de Benedict Anderson (2008,
p.10), à medida que, enquanto processo sócio-histórico, a identidade pode ter a
dimensão de “comunidades imaginadas”, quando se constituem em verdade e senso
comum e “fazem sentido para a „alma‟ e constituem objetos de desejos e projeções”.
Anderson (2008) justifica, como vimos, a caracterização da nação como
comunidade “imaginada” pelo fato de que se estabelece dentro dela uma comunhão
entre os indivíduos sem qualquer tipo de contato uns com os outros. Essa comunhão
se estabelece pelo reconhecimento de um “nós” coletivo imaginado, que permite que

18
“Tomando-se a literatura referente à situação racial brasileira, produzida por estudiosos ou simples
observadores brasileiros e norte-americanos, nota-se que os primeiros, influenciados pela ideologia
de relações raciais característica do Brasil, tendem a negar e a subestimar o preconceito, aqui
existente, enquanto os últimos afeitos ao preconceito, tal como este se apresenta em seu país, não o
conseguem ver`, na modalidade que aqui se encontra. Dir-se-ia que o preconceito, tal como existe no
Brasil, cai abaixo do limiar de percepção de quem formou sua personalidade na atmosfera cultural
dos Estados Unidos” (Cf. Nogueira, 1985, p. 77).
19
Guimarães (1999) lembra que o Brasil, durante muito tempo, foi visto interna e externamente como
um paraíso em termos raciais, fonte de orgulho nacional. Essa idéia tem suas raízes no próprio
período escravista, sendo retomada no século XX. Nesse sentido, vale lembrar os trabalhos de
Oliveira Viana, Carolina Nabuco, Artur Ramos, Donald Pierson e, principalmente, Harry Johnston,
Frank Tannebaum e Stanley Elkins.
20
A antropóloga Yvonne Maggie já alertara que o pensamento de Freyre coincidiu com o ideal de
nação expresso pelo movimento modernista. Decerto, isso não significa que Freyre tenha sido o autor
do conceito de “democracia racial”, termo hoje tão discutido. Aliás, sabe-se que o que Freyre via
como realidade antes de tudo era a defesa da mestiçagem e não o convívio sem conflito entre raças
estanques (Cf. Silva, 1989; Kamel, 2006).

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o sentimento de pertença ao coletivo se sobreponha à idéia de individualidade. A
língua, a raça e a história são apontadas como narrativas homogeneizadoras que
possibilitam a idéia de pertencimento nacional, a identificação de nacionalidade, e
são as grandes propagadoras do imaginário desse nós coletivo. Mas, interessante
que a própria idéia de nação, de pertencimento a nossa cultura, a imagem que
temos desse coletivo pode ser contestada, ou seja, o que nos é dado como cultural
e nacional pode ser a todo instante relativizado.
Ainda que não seja nosso intento retornar a história, recair em mitificações
que depois foram postas abaixo na década de 1950 quando, por exemplo, em
pesquisa financiada pela UNESCO, as equipes de pesquisa em São Paulo, Rio de
Janeiro e Bahia, sob liderança de Florestan Fernandes, Costa Pinto e Thales de
Azevedo negaram a efetividade de uma democracia racial no Brasil e sinalizaram
para nossas abissais desigualdades sociais que se reportavam a um passado
escravagista e à ausência de políticas públicas de integração do negro na chamada
sociedade de mercado (MAIO, 1997), em nosso cotidiano a discriminação racial é
mantida, similarmente a outros sentimentos angustiantes, como o racismo, mas nem
sempre é perceptível. Lembramos, aqui, do processo de “silenciamento silencioso”,
que segundo Thomas Mathiesen (apud. BAUMAN, 2008, p. 13) “é estrutural; é parte
da nossa vida diária; é ilimitado e, portanto, está gravado em nós: é silencioso e
assim passa despercebido; e é dinâmico no sentido de que, em nossa sociedade,
ele se difunde e se torna continuamente mais abrangente”. Isso nos remete à
desumanização do negro. Não podemos nos esquecer que o processo de
construção do racismo adveio da relação entre dois grupos – dominantes e
dominados – e mesmo dos representantes destes. No entanto, esse processo cedeu
espaço ao mito que o nega. De todo modo, parece não ser por acaso que os
aspectos étnicos de matrizes africanas ainda têm servido de referência negativa.
Nos últimos anos, nosso país, o debate em torno da incorporação da
discussão acerca do multiculturalismo21 em nosso panorama cultural tem se
ampliado e recuperado em muito esse passado. Sobretudo, a partir dos movimentos
ligados às demandas formuladas por afrodescendentes, em legítima manifestação

21
O multiculturalismo como realidade a pôr em xeque ideais republicanos estão mais presentes na
Europa do que nos países de modernidade periférica, provocando comportamentos nacionalistas e
mesmo xenófobos que revelam as fragilidades mesmas das instituições.

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de descontentamento pela situação de exclusão social em que se encontra até os
dias de hoje parcela significativa deste grupo.
Estudos mais recentes, como o de Pastore e do Valle Silva (2000), nos
possibilita notar que a mobilidade social ascendente para a população
negra/afrodescendente permanece limitada e o maior obstáculo é a discriminação
racial que é real em nossa sociedade. Sabemos, ainda, que as condições
desfavoráveis de vida dos grupos afro-descendentes nas Américas e Caribe têm
guardado um nível de semelhança em todos os países, ainda que se possam
visualizar melhoras recentes, principalmente nos Estados Unidos.
Revendo as origens históricas da identidade afro-americana e buscando
compreender a transformação da identidade africana desde a década de 60,
Castells (1999, p. 74) mostra que nos Estados Unidos, a implantação de políticas de
ação afirmativa produziu notáveis melhorias no status econômico-financeiro de um
importante contingente de descendentes de africanos, transformando a primeira
vista o cenário cultural – os princípios fundamentais da cultura negra: invisibilidade e
anonimidade. No entanto, uma parte importante deste grupo permanece à margem e
a segregação racial não foi de modo algum banida em nenhuma parte do mundo. É
exatamente na análise traçada da situação de afrodescendentes que alcançaram a
classificação social como classe média que emergem indagações referentes à “nova
identidade”.
Referindo-se às relações raciais nos Estados Unidos, conforme Castells
(1999)
Os negros de classe média são precisamente os que se sentem mais
frustrados com a desilusão com o „Sonho Americano‟, sentindo-se
completamente discriminados pela permanência do racismo, enquanto a
maioria dos brancos acredita que os negros estão sendo favorecidos
demais pelas políticas de ação afirmativa, reclamando de discriminação
invertida (,,,). Não só a hostilidade racial entre os brancos continua sendo
uma constante, como as conquistas dos negros do sexo masculino de
classe média ainda os colocam em uma posição bem inferior à dos brancos
em termos de educação, profissão e nível de renda (...) (Castells, 1999, p.
75).
Fica claro, para nós, a influência da herança escravocrata no país por meio do
racismo, motivo pelo qual os afrodescendentes se empenham para aquisição de
certos símbolos – como a obtenção de um diploma universitário22 – visando a

22
Miglievich Ribeiro e Amaral (2012) assinalam que a adoção das cotas raciais para aperfeiçoar o ingresso da chamada
população afrodescendente nos cursos de graduação nas universidades públicas trouxe para o centro do debate não apenas
temas tabus em nossa sociedade como o racismo, mas também o entendimento ou não da universidade pública como sendo
mais um agente da justiça social: “a etnicidade da universidade pública brasileira, qualquer que seja ela, é, sim, a invenção

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garantia de sua distinção aos afrodescendentes de camadas populares. Também,
para os afrodescendentes de classe média superar os estereótipos associados ã cor
é um problema que nos permite vincular a uma redefinição da própria identidade
negra. A partir de então, nos perguntamos: como é possível assumir-se membro de
uma minoria e lutar pelos seus direitos, se mais parece que dificilmente o
afrodescendente, no Brasil, consegue se perceber como pertencente a esse grupo?
Ante ao que foi exposto, em um processo incipiente de composição de idéias,
compreendemos a identidade não como uma superestrutura dada, uma entidade
atemporal, a-histórica e imutável que flutua por sobre as coletividades, mas, por
resultar de um processo de construção social, que se desenha no contexto de
negociação por escolhas políticas de grupos, é cambiante e complexa. Nessa
contextualização, a identidade não existe por si, mas é parte da interação entre os
diversos grupos que compõem a sociedade, sendo seu processo constitutivo tão
implexo quanto o de interação entre os grupos. Dessa forma, são partes de sua
constituição as construções, as desconstruções, as elaborações, as reelaborações,
tudo como estratégias para a manutenção dos grupos sociais: cada transformação
social a faz se reformular de maneira diferente, exigindo-nos a atenção para o lugar
de fala dos sujeitos contemporâneos.

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Sobre os autores

Shirlena Campos de Souza Amaral - Doutora em Sociologia e Direito pela


Universidade Federal Fluminense – UFF/Niterói, Rio de Janeiro, Brasil. Integrante
dos grupos cadastrados no CNPq “Teorias Sociais, polêmicas e sínteses” e
“Sociologia, Direito e Justiça”.

Marcelo Pereira de Mello - Doutor em Ciência Política pelo Instituto Universitário de


Pesquisas do Rio de Janeiro (IUPERJ). Professor Associado III de Sociologia da
Universidade Federal Fluminense (UFF) e Professor do Programa de Pós-
Graduação em Sociologia e Direito (PPGSD) da UFF/Niterói, Rio de Janeiro, Brasil.

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