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1.

Breve introdução ao cinema de Rita Azevedo Gomes –


Sérgio Alexandre

Se há uma cinematografia que pode nos ensinar muito neste século, esta é sem dúvida a
cinematografia portuguesa. Pode nos ensinar sobretudo que é possível fazer filmes densos,
carregados de literatura e teatralidade, e ainda assim repletos de cinema. Podem nos ensinar,
contudo, até certo ponto. Não é da formação brasileira essa literalidade e, portanto, quando
ela aparece num filme brasileiro, há o grande risco de ser falso, forçado, ridiculamente
superficial. Justamente algo que nos portugueses é natural. Eles falam poeticamente, nós
falamos pragmaticamente. A formação europeia, nesse caso, faz toda a diferença. Há nos
grandes filmes portugueses uma sincera impostação. Tão sincera que essa sensação de
impostação é uma sensação que nós, brasileiros, sentimos. Eles provavelmente não pensam
assim. Lembro sempre da história do meu grande amigo José Damiano, que, ao esperar pelo
início de uma peça em Portugal, com atraso de apenas 3 minutos, ouviu de um espectador
atrás dele a seguinte frase: “o rigor da hora já se perdeu”. Pois bem, tal frase é natural para os
portugueses. Talvez nem tanto para os mais jovens, mas o certo é que nas ruas portuguesas
ouvimos muito frases assim, cheias de beleza, poesia, literatura. É justamente isso que quero
dizer. Essa formação rica, literária, poética, está impressa nos grandes filmes feitos em terras
lusitanas.

Os filmes de Rita Azevedo Gomes, desde o primeiro plano de seu primeiro e oliveiriano longa –
a câmera se aproxima de uma janela que separa um escritório de um jardim em O Som da
Terra a Tremer – são constituídos por essa riqueza de formação. Deles, por trás das camadas
literárias e teatrais (no que um é decorrência do outro), pode -se reter um realismo que não se
vê todos os dias, ou melhor, raramente se vê. Não se vê, sobretudo, nos neo-neorrealistas do
novíssimo cinema brasileiro, que só nos dão uma parca impressão de realidade. E é irônico
porque realidade parece ser tudo que buscam nossos jovens cineastas. Rita (chamá-la-ei
assim, para não confundirmos os sobrenomes) não parece perseguir a realidade a todo custo.
Pelo contrário: seus filmes são tomados pelo irreal, pela fantasia, pelo efeito. No entanto,
quanta realidade vemos neles. Seja nas meninas que se separam deixando o cachorro imóvel e
sem saber a quem seguir (Frágil Como o Mundo), na conversa filmada entre um crítico e ator e
um cineasta consagrado, e na forma que a direção enquadra ora quem fala, ora quem ouve (A
15ª Pedra), na história trágica de amor adúltero contada por uma duquesa (A Vingança de uma
Mulher), no interesse de um alfarrabista em uma coleção que não existe (A Colecção Invisível),
ou em tantos outros momentos espalhados em seus filmes. O que acontece é que essa força
da realidade torna ainda mais fortes os momentos líricos, mágicos, da mesma forma que uma
canção mais simples prepara o clima e nossos ouvidos para uma mais ambiciosa, ou que um
allegro ou um andante nos deixam mais vulneráveis à incrível beleza de um adágio.

Em Frágil Como o Mundo (2002), o exemplo perfeito. Após um flashback ter introduzido as
cores, o filme vai se tornando cada vez mais colorido, um colorido irreal numa floresta que só
pode ser encantada. Mas a sequência é interrompida pelos jovens amantes num momento
prosaico. Ela lava os pés enquanto ele a observa enternecido. A câmera então faz um
movimento, afastando-se deles e mostrando novamente a floresta, agora muito real, tomada
de mato, de verde, com a escuridão provocada pelas copas das árvores, antes de reencontrá-
los novamente, no fim do movimento, deitados e adormecidos, com os pés descalços. Tudo
muito forte e muito belo, tanto quanto se pode opor um momento a outro, quando na
verdade eles não são opostos, são partes do mesmo mundo, da mesma cadeia espiritual: a
magia nos envolve, está ao redor. Só a criança vê os corpos desfalecidos boiando no rio. Só as
crianças podem enxergar os espíritos. As crianças e nós, que os vemos nas fusões mais belas
desde Murnau ou Mizoguchi. “Terror de te amar num sítio tão frágil como o mundo”, segundo
o poema de Sophia de Mello Breyner Andresen.

A Colecção Invisível (2009) é outro filme que impressiona inicialmente pela simplicidade. Tão
simples que é quase invisível. Vemos um homem interessado em uma coleção que não existe.
Mas o dono da coleção é tão apaixonado por ela, que é como se existisse. Sua verdade é mais
forte que a do outro, preocupado apenas com o palpável, o que se pode enxergar.
Simplicidade audaciosa, quebrada por um branco que nos cega, e que aos poucos dá lugar a
um grande candelabro atrás do qual caminha, na direção da câmera, uma moça misteriosa,
uma aparição misteriosa, fantasmagórica, que destrói a simplicidade e o realismo que antes
reinavam. Um plano leitoso, com a moça a se aproximar cada vez mais da câmera, a nos olhar
diretamente, a investigar nossa consciência. Um plano que ilustra a um só tempo a
espiritualidade no cinema (o brilhante ensaio de Kandinski, “Do Espiritual na Arte”, aliás,
parece cair muito bem à arte de Rita Azevedo Gomes) e a invenção no baixo orçamento. Filme
sem dinheiro, cenário pobre, mambembe. Não é preciso mais do que isso para impressionar o
espectador com olhar. Basta saber filmar. Filmar o que normalmente não se vê. E o que não se
vê nem por isso deixa de existir. Então, a coleção existe, está lá, o homem cego a vê muito
bem.

Esse homem, aliás, é João Bénard da Costa, grande crítico, grande programador, grande ator,
falecido em 2009, a quem Rita dedicou A Vingança de uma Mulher (2012). João Bénard da
Costa, supostamente, tem uma conversa com Manoel de Oliveira em A 15ª Pedra. Mas em sua
humildade, qualidade que só os sábios têm, coloca-se como entrevistador, para que brilhe o
pensamento de Oliveira, então com 97 anos. Um mestre entrevista outro. Isso me faz lembrar
de Louis Lumière, fascinante filme da série didática de Éric Rohmer, em que este se coloca
numa humilde posição de entrevistador fazendo perguntas simples para dois grandes, Henri
Langlois e Jean Renoir. As perguntas de Rohmer soam mesmo ingênuas, mas o que ele faz é
permitir que Langlois e Renoir brilhem em seu filme, dando as respostas que ele sabia que
viriam, mas não exatamente da maneira que ele esperava (porque um sábio pode saber o que
o outro sábio pensa, mas sempre se enriquece ouvindo-o).

Bénard e Oliveira são muito amigos. Bénard atuou, como Duarte de Almeida, em diversos
filmes de Oliveira, incluindo O Passado e o Presente e Espelho Mágico (filmado mais ou menos
na mesma época de A 15ª Pedra). Oliveira diz que ia ver Aurora, de Murnau, todos os dias, por
vezes mais de uma vez por dia, enquanto esteve em cartaz. Chegando em casa após cada
sessão, refazia mentalmente a decupagem do filme, conferindo depois, a cada sessão, se o que
havia feito conferia com o que o filme mostrava. Era o jovem Oliveira aprendendo a filmar com
um dos maiores. Quem faz isso hoje? E como aprendemos com A 15ª Pedra. É um filme
didático e generoso, que nos permite mais do que aprender com dois grandes. Permite -nos
entrar em suas mentes, conhecê-los melhor.

Rita revela o que aprendeu com Oliveira e o traduz para sua forte poética em O Som da Terra a
Tremer (1990), poesia filmada que também me faz lembrar de Trinta Anos Esta Noite e de
Providence. Quando o protagonista Alberto (José Maria Branco) vai à casa de Isabel (Manuela
de Freitas), por exemplo, esta surge com um candelabro, envolta em mistério, por trás de
umas cortinas vermelhas. Surge da escuridão, como as mulheres de Francisca, para adentrar
num cômodo semelhante a outros vistos nos filmes de Oliveira. Seu aparecimento é tão forte
que até assusta Alberto, que perde por alguns segundos sua pose de escritor. Cômodos são
vistos em filmes com frequência, e também nos portugueses, mas raramente filmados dessa
maneira, como grandes tumbas que encerram personagens aprisionados por suas condições (o
escritor em crise, a mulher solitária), e ao mesmo tempo como capsulas que permitem a esses
mesmos personagens, por meio do amor e da imaginação, procurar uma maneira diferente de
viver a vida. E que quadro enigmático é aquele que vemos por trás de Isabel, e que Rita faz
questão de manter enquadrado durante grande parte desse primeiro encontro do
protagonista? Um rosto de mulher com umas garras de gato. Escapa-me o autor e a
procedência, mas não me surpreenderia que esse quadro estivesse ali como um comentário da
situação. Falei em quadro, e é pela excelência do quadro filmado que Rita se mostra, já nesse
sublime filme de estreia, uma legítima herdeira de Manoel de Oliveira (condição da qual ela
saberá sair já no segundo longa). Sua câmera é mais leve, movimenta-se mais pelas locações
(às vezes, movimenta-se bastante e bruscamente, como se procurasse algo – o som da terra a
tremer?). Claro, seu estilo é próprio, sua assinatura é evidente, e a beleza de seus filmes
reverbera a sua consciência do estar no mundo. Mas o rigor de seus enquadramentos tendem
a reforçar a literatura e o teatro presentes em seus filmes, e assim acontece também nos
filmes de Manoel de Oliveira, mesmo nos mais soltos. Para um brasileiro, a semelhança é
maior. Quanto mais se conhece o cinema português é que se pe rcebe a riqueza do estilo de
Rita e sua pessoalidade. E que plano magistral aquele em que um marinheiro segura uma maçã
enquanto ouvimos elucubrações de Alberto a respeito da vida. Vemos apenas a mão do jovem
(o jovem Alberto? Tudo indica que sim), saída da manga de seu uniforme branco e apoiada
numa grade de um navio, enquanto o movimento das águas passa como abstração, como se
não fosse o barco a se movimentar, mas o fundo da imagem. Poesia da mais nobre estirpe,
como raras vezes vimos no cinema contemporâneo. Rita, então com 31 ou 32 anos, já nos
ensinava a filmar o abstrato, a dor da alma, a incerteza da juventude e do envelhecimento.
Pena que não aprendemos com seus filmes. Foram, e ainda são, lamentavelmente pouco ou
nada vistos por aqui. Talvez seu último filme, Correspondências, a que assisti numa exibição
para convidados em Portugal, apareça por aqui por ter sido selecionado para Locarno.
Aguardemos.

E quem filma assim hoje? É sempre incompleto um texto (qualquer texto) sobre um(a) grande
cineasta. Porque tudo o que dissermos é somente uma entre tantas outras coisas, e muitas
dessas coisas nos escapam. Mas o trabalho é justamente esse: tentar aproximações, maneiras
de racionalizar o que resiste a ser racionalizado. E talvez seja necessário voltar ao melhor de
Andrei Tarkovski para encontrar um paralelo possível com o cinema de Rita Azevedo Gomes, e
Tarkovski não é o que se pode chamar de hoje. Porque a arte de Rita é espiritual e terrena ao
mesmo tempo. Como a do cineasta russo, é uma arte que nos mostra as rochas, a umidade, o
corpo humano por vezes dilacerado (o coração na mão da duquesa é uma imagem que ecoa
por muito tempo depois do fim de A Vingança de uma Mulher), a natureza sempre se
transformando. São ambas artes espirituais, ainda que sejam l evadas para lados diferentes: em
Tarkovski, o amor parece impossível, tão distante quanto o oceano que materializa medos e
desejos ou o outro lado da longa piscina para onde vai o homem que segura uma vela
cuidando para que ela não se apague. Nos filmes de Rita, entre muitas outras coisas
intangíveis, o amor move os personagens, é o começo e o fim de tudo. E no meio disso há um
mundo a ser desvendado.

Obrigado, Rita, por permitir que vislumbremos esse mundo.

2. O Som da Terra a Tremer (1990)

"Longinquamente baseado em Gide (Paludes) e em Hawthorne (Wakefield) este é um


filme sobre “um escritor que nunca escreveu nada” e que “sopra ao luar o hálito à geada.”
O poema de Carlos Queiroz não é citado em O SOM DA TERRA A TREMER, mas o
ambiente é esse, entre cartas escritas e jamais recebidas, livros com capas de corvos e
acasos que não acontecem por acaso. Ficção dentro da ficção, histórias dentro de histórias,
como essas caixinhas chinesas em que há sempre um fundo e outro fundo. Ou as duas
margens do mesmo rio, para sempre laterais. Uma das obras mais inclassificáveis do
nosso cinema que só podia suscitar – e suscitou – reações extremas." (Cinemateca
Portuguesa)

"O Som da Terra a Tremer é um filme sobre personagens que se cruzam, se atravessam,
se assistem. Todos procuram isoladamente, unir um certo sentido de sobrevivência do
"eu" no mundo vencido.
É de certo modo a história de um escritor que não escreve. Trata do sentimento de uma
inútil contemplação, da emo- ção que se tem diante das coisas pálidas e cinzentas. É sobre
esse sentimento, esse amor. Decisões sempre adiadas, imaginárias, acabam por levar
Alberto, o escritor, a apartar -se do mundo.
No filme, a história do escritor (a relação com o seu mundo e o círculo dos seus amigos)
e a história que ele escreve ou imagina escrever(a história de um marinheiro que um dia
num porto estrangeiro encontra-desencontra uma rapariga) não se separam. São antes
paralelas. Como duas margens laterais, para sempre laterais de um mesmo rio. É um filme
sobre ligações impossíveis."

3. Frágil Como o Mundo (2000)


Um amor adolescente, sem tempo e sem espaço, foge para a floresta encantada dos contos
de fadas. "Frágil como o Mundo", de Rita Azevedo Gomes, também é assim: singular e
solitário. Mas as suas razões para existir estão expressas em cada plano.

"Frágil como o Mundo" é a segunda longa-metragem de Rita Azevedo Gomes, mais de


dez anos depois de "O Som da Terra a Tremer", uma primeira obra que nunca conheceu
estreia comercial nem conseguiu furar uma reduzidíssima visibilidade. "Frágil como o
Mundo" será, portanto, para a generalidade do público, a descoberta de um universo
próprio e original - pelos caminhos percorridos por Rita Azevedo Gomes neste filme,
talvéz só tenha andado algum João César Monteiro.

"Frágil como o Mundo" traz um universo feito de uma fusão de imaginários, onde se
misturam o romantismo sofisticado e as lendas populares, o cinema e a poesia, a realidade
e o sonho. É um filme que inventa um tempo e um espaço - "o cinema é o sítio certo para
representar a coexistência das pedras e dos fantasmas", diz a realizadora, e essa
coexistência é das impressões mais fortes que o filme deixa.

A história contada é a de um amor adolescente, um rapaz e uma rapariga que gostam um


do outro mas não podem estar juntos, pelas mais diversas razões. Vêem-se, também eles,
obrigados a "inventar" um tempo e um espaço - uma espécie de fuga para a floresta,
encantada como nos contos de fadas. Mas também isso deixa de ser suficiente, e tudo tem
que passar para um tempo e um espaço já para lá de qualquer realidade física, já para lá
dos corpos: a morte, como território de sonho, como lugar de uma harmonia finalme nte
tornada possível.

Diz Rita: "Este filme já andava a trabalhar comigo há muitos anos. Talvez desde 1993,
através dum recorte de jornal. Uma notícia sobre um casal de miúdos que apareceu morto,
com uma fotografia enorme de uma azinheira no Alentejo - aparentemente não havia
nenhuma razão para eles se matarem, portanto não havia nenhuma resposta, ficava tudo
em suspenso. Não havia sangue nem qualquer sinal de violência. Havia um enigma, um
mistério".

E "a partir daí, claro que tudo vem ter connosco".

Encontros. "Tudo vem ter connosco" - para Rita Azevedo Gomes "Frágil como o Mundo"
é um filme feito de "encontros" ("como na vida, os encontros dão-se ou não se dão").
Encontro com memórias pessoais, encontros com "coisas" que a acompanhavam e a
acompanham desde há muito. Como a poesia: "O poema da Sophia [de Mello Breyner]
que dá nome ao filme também já estava 'escolhido' antes. É do que trata o filme, 'terror
de te amar num sítio frágil como o mundo'. São coisas que nos acompanham a vida toda,
situações que já vivemos antes de elas realmente acontecerem, como a realidade dos
sonhos...".

Sophia dá o mote para o filme, mas a "Menina e Moça" de Bernardim Ribeiro também
ocupa um lugar fundamental: "Tive a sensação estranha de que Bernardim Ribeiro
escreveu isto para mim, para este filme... é um dos tais encontros. Eu sabia o que é que ia
dizer, andava à procura de uma voz, e de repente apercebo-me que já estava escrito, pelo
Bernardim".

Mas ainda há o cinema, e se "Frágil como o Mundo" não é um filme de cinéfilo na acepção
mais redutora do termo, se não há "citações" nem piscadelas de olho à erudição do
espectador, é um filme que parece conservar uma memória, uma lembrança, de muitos
dos filmes de que a realizadora gostou e que a acompanham: um pouco de Werner
Schroeter (foi quando viu "Eika Katappa", nos anos 70, que Rita Azevedo Gomes
percebeu "que o cinema também servia para isto", e mais tarde trabalhou na rodagem de
"O Rei das Rosas"), um pouco de John Ford (a casa dos avós, filmada com aquele sentido
de comunidade simultaneamente austero e caloroso), um pouco de "A Sombra do
Caçador" (e de todos os seus ascendentes, provavelmente até chegar a "Nosferatu"), um
pouco de Elia Kazan ("consigo imaginar- me facilmente a sair do Império, tinha 13 anos,
impressionadíssima com o 'Esplendor na Relva'").

Tudo isto está no filme (e ainda se poderia falar da música e da pintura) como recordações
mais ou menos vagas, trabalhadas como se se passassem a inscrever numa simbolo gia
pessoal e intransmissível - o que quer dizer que nunca se se sente nem o seu peso nem o
peso de uma "caução", mas que tudo se organiza, tudo se torna orgânico e faz parte de
um mesmo corpo, indivisível e irredutível em parcelas. Para se perceber bem o que isto
quer dizer, atente-se por exemplo nos belíssimos planos do corpo da rapariga a boiar rio
abaixo, enquanto a narração em "off" diz um excerto de Bernardim Ribeiro.

Perdas. Ao mesmo tempo, "Frágil como o Mundo" é marcado por uma fortíss ima
impressão de perda. O plano inicial, uma panorâmica (ainda a cores, antes de se mergulhar
no preto e branco) que "varre" o interior de uma casa em ruínas, remete para um passado
longínquo: "Essa panorâmica é uma pergunta: 'onde é que está?'. Não quero acreditar
muito que se perdeu, tem que estar algures no meio das ruínas. Como a frase que se ouve
mais à frente: 'não sei como será o amor daqui a mil anos', mas será. Não acredito que as
coisas se percam, acho que há é um esquecimento, como se estivéssemos esquecidos de
alguma coisa".

Um filme sobre a memória, sobre a necessidade de lembrar para recuperar? "O cinema é
o sítio certo para isso", volta a dizer Rita, e "Frágil como o Mundo" lança-se, a partir
desse plano inicial, numa espécie de tempo suspenso, que ou não é tempo nenhum ou é o
tempo todo; é um tempo de cinema, desordenado e virado do avesso, um tempo que tem
a mesma realidade do tempo dos sonhos e do tempo das memórias. "O que é que é mais
verdade?", pergunta Rita, "a lenda da princesa moura ou a pedra onde se sacrifica va m
carneiros? É importante que o filme seja a preto e branco, como maneira de fazer
coexistir, ou de reunir, essas duas realidades".

Aparentemente, "Frágil como o Mundo" também é um filme onde existe uma relação com
as coisas bastante mais serena do que em "O Som da Terra a Tremer". "Uma relação mais
serena, não sei. Talvez haja maior consciência... Por um lado, será mais sereno, por outro
levanta outra vez um turbilhão de coisas que estava em repouso. Uma maior consciência
do que estava a fazer, das relações entre as coisas que estava a trabalhar. Neste aspecto
há um olhar diferente, tenho mais a noção do que é que estou a ver".

Para a realizadora, os dois filmes são obviamente diferentes, mas mantêm uma relação
estreita: "Têm a ver comigo, têm a ver com a minha evolução por um lado e com a minha
estagnação pelo outro. Não os desligo, nem percebo o que são os dez anos entre os dois.
Havia uma espécie de chaga aberta em relação ao outro, que ficou um bocado apaziguada
por ter feito este. Uma chaga que tinha a ver com o que aconteceu ao filme, mas não só;
também tinha a ver com as questões que estavam nele. Havia coisas que, por um lado,
ganhavam distância, mas por outro não me largavam, como alguém que nos morreu mas
que ainda cá está".

Talvez seja essa "maior consciência" aquilo que permite que "Frágil como o Mundo" ouse
entrar nos terrenos mais delirantes, optar pelas soluções mais arriscadas, sem nunca
perder o pé e sem que nunca se esvaia a sensação de uniformidade e de justeza - como na
formidável série de planos em que, por intermédio das mais elementares e ancestrais
trucagens (fundidos e sobreposições), se inventa um mundo de flores e de fantasmas.

"Eu sei porque é que as coisas lá estão. Há uma razão minha, pode ser completame nte
solitária e não servir para nada, mas há uma razão minha".

Quanto ao filme, também não há dúvida que é completamente solitário, e provavelme nte
vai sofrer por isso. Mas as suas razões para existir estão expressas em cada plano. E há-
de haver gente a quem essas razões sirvam para alguma coisa. Isso, somos capazes de
apostar.

4. A 15ª Pedra (2006)

A 15ª Pedra consiste numa longa conversa entre o realizador Manoel de Oliveira e João
Bénard da Costa: abre-se espaço para uma entrevista livre, que se assemelha a uma
conversa descontraída (ainda que perscrutada pela câmara), na qual Bénard da Costa vai
lançando perguntas. De entre alguns dos temas abordados - todos eles remetem directa
ou indirectamente para o cinema - estão a juventude e a beleza, a educação, o
aparecimento da cor e do som no cinema, bem como histórias pessoais como aquela que
dá nome ao documentário em questão (contada por Oliveira).

O aspecto mais singular deste documentário radica no rigor formal e estruturalizante em


que assenta: é sobre o discurso e as flutuações deste que recaem todas as atenções,
havendo como que uma organicidade na forma como o documentário é filmado e
montado, quase matemática, e que depõe uma crença ilimitada no conteúdo do plano e na
gestão da atenção dentro do mesmo. Para melhor ilustrar estes traços optamos desde já
por enunciar as sequências que compõem o documentário: este abre com um plano que
enquadra Oliveira e Bénard, num plano americano, sentados lado a lado - o primeiro à
direita, o segundo à esquerda. Sem cortar, a câmara faz zoom in e reenquadra Oliveira,
redefinindo o enquadramento (rosto de Oliveira no centro da imagem, ¾ de frente) e sem
se interromper a conversa. Passado momentos a câmara faz uma panorâmica esqueda-
direita, para Bénard da Costa, que está de perfil, e o plano mantém-se nele. Sem nunca
cortar (reforçamos), há um zoom out e novo reenquadrame nto que dá origem ao primeiro
plano do documentário.

O corte com esta primeira sequência - e podemos entendê-la como primeira sequência,
ou segmento de um conjunto mais vasto, precisamente pelo assumir de uma separação na
linearidade e eixo de continuidade promovido até então - dá-se com a introdução de
frames a negro que, quando desaparecem, dão lugar ao ressurgimento do primeiro
enquadramento do documentário. Nesta segunda sequência o sistema altera-se: são feitos
cortes na imagem, orientados pela conversa (fins e inícios de temas), que centram a
atenção ora num ora no outro interveniente.

Vai novamente a negro e reabre para uma terceira sequência: desta vez com uma lige ira
mudança de ângulo, fechando mais sobre os dois (two shot), plano esse que é mantido até
cortar para o plano aproximado de rosto de Oliveira; momentos depois é feita uma
panorâmica esquerda-direita para Bénard e, posteriormente, um zoom out enquadra
novamente os dois. Esta opção de montagem e de realização cria três sequências distint as
entre si, sendo que a terceira congrega, em termos puramente formais, as duas sequências
que a antecedem. Não obstante esses jogos de adição e de subtracção, gera-se igualme nte
um trabalho sobre o off, na medida em que ao fechar o plano sobre um interveniente se
perdem acções e reacções.

Depois dessas três sequências dá-se um último e inesperado zoom out: nesse momento
entram em campo elementos da equipa técnica para retirar os microfones dos
intervenientes; começam a ouvir-se passos e vozes da equipa (parte dela nem sequer se
torna visível), e os intervenientes saem de campo, evidenciando-se assim parte da -
máquina do cinema.
Manoel de Oliveira, 98, é quem conta a história: em Kyoto, num templo zen-budista, um
monge explica que existem 15 pedras, mas apenas 14 delas visíveis. O visitante logo
descobre que, na verdade, todas as pedras são visíveis, mas nunca ao mesmo tempo:
conforme o ângulo, vemos uma ou outra, mas sempre uma permanece invisível. "Essa
pedra só pode ser vista com o coração", explica Oliveira a seu interlocutor, o crítico e
hoje diretor da Cinemateca Portuguesa, João Bénard da Costa.

Vem daí o título "A 15ª Pedra". São duas horas de prosa inteligente e um pouco
constrangida registrada por Rita Azevedo Gomes num plano quase único. E constrangida
por quê? Vimos há poucos anos um outro diálogo da mesma natureza, envolvendo
Oliveira e a escritora Agustina Bessa-Luís. A vantagem desse é que ali prevalecia a
amizade que os liga, o que deixava Agustina à vontade para contradizer, não sem humor
por vezes, o que dizia Oliveira.

Bénard da Costa não se mostra à vontade para tanto nessa conversa. Sente-se ali o crítico
que, antes de tudo, procura compreender e interpretar o outro. Não que isso torne a
interlocução aborrecida, mas existe de parte a parte a necessidade de se mostrar à altura
da conversa e, com isso, pouca ou nenhuma distensão.

Isso não é um defeito, mas é preciso admitir que, se fosse dividido em duas partes de uma
hora, facilitaria a recepção. Dito isso, convém destacar apenas algumas questões
suscitadas ao longo dessa rica conversação.

À frente de todas, duas que mais concernem a um realizador e a um crítico: a necessidade


de pensar como representar a vida e a necessidade de "ensinar a ver". Mais: a arte como
atividade mundana ("Fazer um filme é cometer um crime"; "[Arte é] vaidade, não possui
a virtude da santidade", diz Oliveira); a liberdade ("É um dever", afirma Oliveira); a
recusa do público em compreender o cinema ("[Existe] uma espécie de gala do
analfabetismo", avalia Bénard). Um diálogo estimulante, para dizer o mínimo.

5. A Vingança de uma Mulher, de Rita Azevedo Gomes


(Portugal, 2012)
Da extrema necessidade das aparências ou a adjacência como forma
por Victor Guimarães
“Casos, opiniões, natura e uso
Fazem que nos pareça desta vida
Que não há nela mais que o que parece”


Luís de Camões, citado em A Vingança de uma Mulher


“Para se conseguir a verdade é preciso compor. O artifício é obrigatório.”

Alberto em O Som da Terra a Tremer (Rita Azevedo Gomes, 1990)




“Não é mais do fantasma das coisas que o cineasta deve tirar 
sua matéria, e sim das mais
vivas e chocantes aparências. 
O cineasta deve compor com o que há de mais concreto

nas aparências, de maior gravidade.”

Jacques Rivette, A era dos metteurs en scène


Um homem vestido com trajes vitorianos caminha solenemente por uma praça, enquanto sua
voz over comenta as últimas peripécias secretas das mulheres da vizinhança. Sob os vestidos
coloridos e a etiqueta irretocável da vida pública, escondem-se as paixões e os pecados
cotidianos. Na encenação, nada se dissimula: dos figurinos de época ao cenário pintado ao
fundo, tudo tende ao artifício absoluto. Não há dúvidas de que se trata de um estúdio, espaço
insular apartado do mundo, reino pleno da simulação. A instalação do espectador no filme não
se dá pela via da ilusão cinematográfica habitual, mas por um mergulho fundo na materialidade
das aparências. Os passarinhos nas árvores são de plástico e cantam. Tudo é falso e, no
entanto, há algo que vibra.
Logo nas primeiras sequências de A Vingança de uma Mulher, um território cinematográfico se
descortina. Rita Azevedo Gomes é herdeira legítima de uma redescoberta moderna da
teatralidade no cinema que remonta a Rivette e Oliveira. Sua obra – como a desses veteranos
– não quer nem se desvencilhar do teatro nem emulá-lo, mas encontrar nele um ponto de
tensão criadora. Por um lado, a crença na força de evocação dos objetos, dos figurinos e dos
cenários faz valer a potência da pura convenção teatral (basta acrescentar um adereço para
que um personagem contemporâneo de A Conquista de Faro, de 2005, se torne Dom Afonso
III).
Por outro, há uma intensidade naturalista nas atuações, cujo vigor emocional contrasta com a
artificialidade declarada do décor. Nos planos longos, quase sempre constituídos pela
frontalidade da encenação e pela profundidade de campo, há um virtuoso jogo entre a câmera,
os objetos e a presença dos corpos, que faz com que a cena seja um espaço não de
contemplação distanciada, mas de metamorfose constante em seu interior. No cinema de Rita
Azevedo Gomes, não há reverência à homogeneidade do ponto de vista ou à unidade perdida
do espaço cênico: o reconhecimento da cena como princípio comum do teatro e do cinema
convive com ângulos incisivos e movimentos de câmera fluidos e extremamente precisos, que
frequentemente alteram o ponto de vista e transformam inteiramente as coordenadas do plano
em seu decorrer (como nos inúmeros momentos em que um personagem sai de quadro e a
ação passa a se desenvolver dentro de um espelho). Os extraordinários travellings de Frágil
Como o Mundo (2002) já bastariam para atestar a força desse estilo que se aproxima do teatro
para contorcê-lo e expandi-lo com as forças próprias do cinema, mas é em A Vingança de uma
Mulher que a realizadora parece atingir o ápice dessa arte da cena tão singular.

Se a narrativa de O Som da Terra a Tremer (1990) é enigmática e fragmentada, a de A


Vingança de uma Mulher assombra por sua imensa economia. Baseada num conto homônimo
de um obscuro escritor francês do século XIX – Barbey d’Aurevilly –, a história narra o encontro
entre Roberto (Fernando Rodrigues), um galante cavalheiro português, e uma prostituta local
(Rita Durão). No decorrer do filme, descobriremos que essa mulher é a duquesa de Sierra
Leone, esposa do mais rico dos duques da Espanha, e que traz consigo uma enorme tragédia.
Inflamada pelo ultraje do assassinato de seu amante Estêvão – o único homem que amou na
vida – e sedenta de vingança, a duquesa decidiu tornar-se prostituta e embarcar em uma
jornada progressiva de degradação, com o único intuito de proporcionar o máximo de desonra
possível ao marido. Não basta matá-lo e atirar seu coração aos cães, como ele fizera com
Estêvão; é preciso arruinar para sempre sua reputação, desferir um golpe mortal em seu nome,
apagar os sinais de sua opulência.
A duquesa precisa do mundo – esse putrefato mundo de aparências e disfarces – para levar a
cabo sua vingança implacável. Roberto (“um daqueles homens para quem a simulação se
tornou a maior arte”) é o interlocutor ideal, e esse encontro ocupará o centro magnético do
filme. Ao contrário de O Som da Terra a Tremer e Frágil como o Mundo (filmes em que a
natureza ocupa um papel central), A Vingança de uma Mulher é um drama de alcova, de
máxima concentração espacial. Boa parte do filme se passa entre quatro paredes, na noite em
que Roberto encontra a duquesa e ouve sua história.

E não é preciso muito mais que um quarto, algumas roupas e uma grande atriz a falar para que
uma das joias mais preciosas do cinema recente aconteça em sua plenitude na tela. Cinema
da palavra, que reconhece na fonte literária não uma referência a ser transposta em imagens
ilustrativas, mas uma matéria verbal construída a partir de uma colcha de citações e trabalhada
à exaustão, em toda a sua potência de evocação do invisível e de ressonância poética e
musical. Cinema do corpo, que faz do trabalho dos atores um verdadeiro tour de force e
desperta no espectador uma atenção profunda a cada inflexão da voz (ora acentuada pelo
silêncio sepulcral, ora complementada pela música) e a cada mínima variação do olhar. No
longo monólogo da duquesa, esses dois aspectos se encontram e explodem: a narração evoca
uma tragédia que não se vê, mas se experimenta como um filme de horror, tamanha a
densidade da performance de Rita Durão. Sua voz preenche cada centímetro do veludo
vermelho-sangue do quarto, e é como se uma das divas de Werner Schroeter (com quem a
diretora trabalhou em O Rei das Rosas, de 1986) ressurgisse ainda mais imponente, falando
um português dilacerado pela vida. A mise en scène instala o olhar em uma cena tão intensa
que cada corte chega a doer.
O diálogo com o teatro se torna ainda mais complexo quando o filme enseja não apenas uma
encenação que aposta na artificialidade assumida, mas encampa um jogo com a própria
enunciação. Desde o início, a figura de um narrador se interpõe entre a diegese e o espectador
e passa a integrar a economia narrativa do filme. São muitos os momentos em que essa figura
irrompe na cena para comentá-la de dentro, em um movimento que caminha lado a lado com a
revelação de espaços adjacentes aos cenários das ações principais, como coxias ou vestiários.
Embora as estratégias sejam semelhantes, estamos longe dos efeitos de reflexividade
tipicamente modernos: as provas de figurino e as leituras de texto não promovem ruptura, mas
contaminam o relato principal e passam a integrar uma mesma aposta inveterada na ficção e
na materialidade das aparências, traços que aproximam A Vingança de uma Mulher de um
realizador contemporâneo como Pierre Léon. O ápice desse gesto de contaminação está nas
constantes alternâncias entre o monólogo da duquesa no quarto e as cenas rememorativas do
passado, que revelam a tragédia da protagonista. Do mesmo modo em que a transição entre
as inserções “extra-diegéticas” (como a leitura preparatória do texto por Rita Durão) e o drama
principal se dá por uma simples mudança de iluminação (num apagar e acender de luzes,
passamos do comentário à crônica), basta uma leve transformação da paisagem sonora para
se realizar a passagem entre o presente e o passado da intriga. A duquesa apenas atravessa
uma porta e já está no passado e na Espanha, graças a uma simples alteração de luz e de
som. Basta cruzar a porta que separa cômodos vizinhos, basta um ruído de passarinho a mais,
basta apagar uma lâmpada para que o reino do artifício se transforme em verdade do cinema.

Essa iminente adjacência entre o relato e o comentário, entre o passado e o presente, entre o
bastidor e o palco, é o que distingue a máquina fabulatória de A Vingança de uma Mulher. O
mesmo gesto que impele Rita Azevedo Gomes a colocar lado a lado Camões e uma poeta
recente como Cristina Campo é o que a faz apostar na vizinhança entre mundos
qualitativamente distintos, mas sempre prestes a se contaminar novamente. A densidade
realista do monólogo trágico está sempre a um passo da artificialidade das reminiscências (a
flecha atravessando o pescoço do amante, o sangue e o coração de plástico atirado aos cães),
como se a supressão de uma parte do poema encarnasse essa adjacência febril entre a paixão
(“Ficou para trás, quente, a vida”) e a repulsa (“torno a ti que gelas/na minha leve túnica de
fogo”). Ao final, quando a porta do estúdio for aberta e revelar a luz dura da rua e o ruído sem
graça dos carros lá fora, haverá ainda um menino a tilintar seus guizos de outro século uma
vez mais.

6. A Portuguesa (2018)

“No fundo, estou a fazer um quadro com luz”

Olhamos para A Portuguesa (2018) e somos arrebatados pela sua beleza visual, pela
precisão da mise en scène numa série de tableaux vivants cuja sumptuosidade
percorrida por uma luz esbranquiçada de Vermeer (chapeau outra vez, Acácio de
Almeida) dá-nos aquele que é, para já, um dos filmes mais belos deste ano. Baseado
num conto de Robert Musil e adaptado por Agustina Bessa-Luís, o filme decorre no
Norte de Itália, no século XVI, com a protagonista lusitana (Clara Riedenstein) a
aguardar o retorno do marido (Marcello Urgeghe), von Ketten, da guerra em torno do
domínio do Principado Episcopal de Trento. É desses períodos de espera, com a
portuguesa no bosque ou no castelo, a esculpir em barro ou a receber a neve do céu,
que a realizadora Rita Azevedo Gomes tenta compreendê-la, e a sua relação com o
amor, o poder e a guerra. O texto abaixo transcrito é uma versão editada da conversa
com a realizadora no Espaço Nimas aquando uma sessão do filme, onde predominou a
sua boa disposição, gentileza e generosidade para com os entrevistadores e audiência.

Duarte Mata (DM) – A primeira questão que acho que se deve colocar, e que creio que
está a percorrer a cabeça de todos os membros da audiência, é: aquela queda que o
marido dá perto do final foi ensaiada ou espontânea?

[Risos] É metade-metade. Preguei-lhe uma rasteira, pus sabão no chão quando ele
estava húmido, sem o Marcello saber. Obviamente, ele não estava à espera de cair.
Até há uma certa reacção da Clara como quem diz, “Ai meu Deus, vão cortar”. E ele
não se desmanchou, o que é extraordinário, salvou o take.

DM – A Rita embora use a palavra como matéria-prima, ao mesmo tempo cria imagens
de uma sumptuosidade que são quase um equivalente visual da beleza da palavra
escrita. Há um grande rigor e importância que a Rita dá à mise en scène no seu
cinema, sejam os movimentos, gestos ou na colocação de cada figura no espaço do
plano. Perguntava-lhe qual é, para si, a importância da mise en scène?
Quando estou a fazer um enquadramento tudo o que se desenha dentro dele tem de
ser um bocadinho apurado. Nunca é tão apurado como se desejava, mas é bastante
trabalhado. Podemos imaginar muita coisa, mas só quando estamos perante os
actores, os cenários que se conseguiram, etc., é que finalmente podemos intervir em
directo. Portanto, há partes que já foram pensadas, logicamente: os cenários com esta
cor ou aquela, os fatos assim-assado, mesmo com os actores já houve um trabalho em
seco, sem ser perante o décor e com o texto o mais possível. E depois junta-se isto
tudo e, naquela altura, define-se também muita coisa, como as luzes e outros
aspectos. No fundo, estamos a fazer um quadro. Não consigo aceitar muito bem a
ideia de filmar o que está. Tem de haver uma composição qualquer. Não estou a pintar
nem com óleo nem com guaches, mas no fundo estou a fazer um quadro com luz.

São coisas tão trabalhadas quanto possível nas condições que se têm, sempre com
pouco tempo, sempre a ter que improvisar “à última da hora”, mas sim, tenho essa
preocupação de olhar para tudo o que se passa dentro do plano, e de me perguntar o
“porquê” e o “como”: “Porque é que estou a gostar daquilo e não daquilo?”, “Como é
que eu consigo dar a ideia disto?”. Isso leva-me às vezes a dizer, “Aquilo está muito
bonito, gosto imenso, mas não está aqui a fazer nada, tira.” A única coisa que eu faço é
estar com atenção a tudo, e essa atenção, às vezes, exige retirar coisas de que
gostavas muito. Não posso ir atrás de toda a borboleta que me passa à frente, se
convém ao plano ou ao filme, mantenho, caso contrário tenho de retirar, por muito
que me custe.

DM – Portanto, cada elemento de cada um dos enquadramentos deste filme está lá


por uma razão?

Eu acho que sim, às vezes não sei é qual é ela. Por vezes acontece isto, parece que está
tudo bem, mas falta algo. E tu não percebes logo o que é, depois agarras em algo azul,
atiras para ali e fica.

DM – Funciona também por instinto?

Completamente, envolve muita intuição, sim.

Bernardo Vaz de Castro (BVC) – Não sei. Eu percebo obviamente essa parte da
intuição, até porque é um bom caminho para os artistas escusarem de falar. Mas, para
mim, há um interesse pela palavra como pela imagem. Da mesma forma que eu não
consigo pensar que haja uma palavra mal dita nos seus filmes [basta pensar em A
Vingança de uma Mulher (2012), que eu sei que foi a própria Rita a fazer a tradução do
texto original porque não havia na época, e é uma tradução absolutamente
extraordinária], também não consigo pensar que haja algo acessório no seu cinema.
Acho que tudo é pensado dentro de uma determinada lógica e economia. E isto tem a
ver, acima de tudo, com um cinema que dá tempo ao espectador, ou seja, que não é
de entretenimento. Eu acho que, quanto menos o cinema é de entretenimento, menos
tem uma lógica de desperdício, ou seja, tudo entra numa espécie de organicidade
muito própria ao filme.

Acho este filme muito curioso porque é talvez o seu filme com menos texto, até
porque é baseado num conto do Musil, o qual está publicado pela Dom Quixote [A
Portuguesa e Outras Novelas]. Tem 20 páginas, e precisamente por não haver tanto
texto, acho que há uma atenção ainda mais redobrada à imagem, tudo aquilo que
acho que entra no filme é uma espécie de decantação absoluta. Ou seja, nós não só
damos tempo ao cinema e para as imagens se construírem, como também ao próprio
silêncio que, neste filme, faz muito parte da sua dinâmica, porque são dois universos: o
feminino e o masculino, e que à época não pareciam ter muito contacto. Ou
transformaríamos este texto numa espécie de Shakespeare, e então haveria uma
espécie de linguagem para todos os seus personagens, ou então haveria um outro tipo
de retrato que exigiria um silêncio onde não haveria esse tal ponto de
comunicabilidade tão óbvia como hoje em dia vemos. Hoje em dia as pessoas falam
muito no contemporâneo, mas têm muito pouca coisa a dizer. Aqui, se calhar, ainda
tinham menos a dizer. E, portanto, este filme vive muito desta bela adaptação da
Agustina Bessa-Luís, mas também muito dos seus silêncios e daquilo que consta no
não-dito.

Neste caso eu tinha essa dificuldade, porque o conto é pequeníssimo, e a adaptação da


Agustina ainda mais. Recebi um argumento de cerca de 7 páginas, o que não dá para
um filme, nem sequer para uma curta. No entanto, acrescenta um enigma em cima do
enigma que já é o conto do Musil, porque a Agustina tem aquela escrita que não hesita
e que percebe muito as pessoas. Esta mulher que a gente não sabe quem é, nem se
existiu ou se não, é realmente muito enigmática. Acho que ela não é infiel, ela vai além
da infidelidade, e depois há aquilo em que ele não entra, que é o mundo onde ela
viveu antes de o conhecer. E a Agustina apanha isso muito bem nos diálogos que faz,
mas depois a minha dificuldade é tentar (foi o que eu fiz, bem ou mal não sei) estar do
lado dela, daí que depois também eu acrescente coisas que não estão nem no Musil
nem na Agustina, que inventei e que se calhar é um bocadinho o filme. Ela não vai
estar a fazer bordados 11 anos nem a tomar conta das crianças, esta mulher tem
qualquer coisa…

BVC – Pois, a visita daquela prima não existe no conto, pois não?
Não tenho a certeza. E o facto de ela ser francesa era porque eu queria trabalhar com
a Luna Picoli-Truffaut. O que não tem mal nenhum, quer dizer, se o von Ketten casou
com uma portuguesa, o irmão podia ter casado com uma francesa. O que eu acho é
que uma grande parte do filme, onde ninguém diz nada, está-nos a contar coisas da
vida desta portuguesa. E foi assim que eu entendi, é um bocadinho estranho uma
mulher que anda sozinha na floresta, que nada no rio, que cria um lobo, que faz
esculturas malucas…. Há qualquer coisa fora do sítio nela. Fora do sítio ou no sítio, se
calhar está no sítio. Tentei perceber um bocadinho o que era. Como aconteceu com o
texto d’ A Vingança…, e nisso tem muita razão, porque se eu gostar de um texto, será
ele o grande director do filme. E aqui há os silêncios. E continua a ser o texto o director
do filme. Primeiro, uma palavra é extraordinária, pode-se fazer dela mil coisas. Uma
vez estive com o Peter Brook em Londres num workshop. Durante dois dias, ele fez
uma coisa que nunca mais me esqueço. Já não era uma palavra, era um gesto: ele pôs
o auditório todo em pé a fazer um gesto com a mão que era simplesmente isto
[levanta-se, abre a mão direita com a palma para cima e chega-a ligeiramente à
frente.] E pediu-nos, connosco todos em pé, que ao fazer isto trouxéssemos uma ideia:
“Estou a ver se chove.”, “Dá cá uma moeda”… Portanto, o que podemos pôr numa
mão é absolutamente inacreditável, e com uma palavra ainda traz mais ecos. Há
muitas maneiras de ler um texto, tal como há muitas interpretações de uma música, e
o texto, quando é algo como eu tinha, condiciona muitas coisas no filme. E ajuda muito
a tomarmos decisões.

DM – Há uma frase do Tarkovsky, “Um livro lido por 1000 pessoas diferentes resulta
em 1000 livros diferentes”. De alguma maneira relaciona-se com o que diz.

E às vezes pela mesma pessoa. Estou a ler um livro da Agustina pela nona vez, e estou
sempre a achar que nunca li certas coisas. Quando o li em 1977, pela primeira vez, não
era o mesmo livro que eu estou a ler agora.

DM – Há uma forte presença animal neste seu filme (temos cavalos, galinhas, gansos,
coelhos, cães, lobos, gatos, cabras e grifos) e que parece acarretar um significado mais
metafórico que se liga às personagens. Por exemplo, quando o marido está enfermo e
quer mostrar a sua virilidade e poder, manda matar aquele que é talvez o grande
concorrente do amor da portuguesa, o lobo. Outro exemplo: a seguir àquela cena de
sedução no final cortamos para um plano com coelhos, animal conhecido pela sua
fertilidade. Foi sua intenção criar alguma ligação entre a presença animal e a humana
neste seu filme?
Eu não sei porquê, exactamente. Mas agora dou-me conta de que tenho sempre
animais nos meus filmes, o que complica as filmagens porque não conseguimos
controlá-los. Mas depois eu acho que é muito interessante neste filme, ou pelo menos
dei-me conta, de que esse estado livre que eles têm de não perceberem sequer o que
estamos a fazer… no fundo é o irracional. É o irracional no mundo dos racionais,
porque o cão atravessa o plano e, de repente, é uma coisa devida. Há um olhar do
irracional para o racional. E por isso fiz aquele plano do olho do cavalo. Se alguma vez
olhaste para um olho de um cavalo, sabes que é muito estranho, porque é muito
perturbante: eles olham, vêem-nos, e parece que perguntam algo.

DM – Então interessa-lhe explorar este balanço entre o irracional pelos animais e o


racional pelos humanos?

Não é algo que tenha pré-fabricado. Lá está, é algo intuitivo. Eu não funciono muito a
pensar “vou fazer porque…”, não funciono a racionalizar muito as coisas de forma a
segui-las, mas a verdade é que, depois de feito o gesto, questiono-me: “Porque é que
fiz aquilo?”

DM – Há também a presença da Ingrid Caven.

Também é um animal selvagem. [Risos da audiência] Não, a Ingrid Caven também é


um rasgão.

DM – Parece que funciona como uma espécie de coro, comentando em canções (de
José Mário Branco) a efemeridade da vida e a relação das personagens com a guerra
ou com o amor. Como vê a importância desta personagem, que não é bem uma
personagem, neste seu filme?

Eu acho que tinha vontade de sair do filme de época. Não é um filme com pretensões a
fazer uma reprodução da época. Há quem faça isso muito melhor do que eu, de
certeza, porque não é o meu apetite fazer uma reconstituição de uma época tão
longínqua que não vivi nem sei como seria o dia-a-dia. E tinha uma vontade louca de
trabalhar com a Ingrid, que é uma pessoa que eu acho extraordinária em todo o
percurso que faz no cinema. E ela tem um bocadinho isso, o não pertencer a lado
nenhum. Não é o estereótipo nem da cantora nem da actriz, é um animal, tem uma
liberdade enorme. E depois é uma senhora que aos 80 anos continua a querer brincar
como os miúdos, isto é, o brincar, o prazer do jogo e da sedução. Ela tem tudo isso. E
propus-lhe fazer esta intervenção no filme. Foi complicado, falávamos ao telefone (ela
mora em Paris), “Mas qual é o meu papel?”, e eu dizia-lhe, “Ó Ingrid, não é bem um
papel.”, e ela, “Mas então não sei o que queres de mim.” Imagina que eu sou uma
pintora e que estou a fazer um quadro. Há uma dada altura em que eu digo, “Está
feito, acabou.” E depois passa-me algo pela cabeça, vou lá e dou uma facada. Por outro
lado, a Ingrid também me ajudava a fazer uma coisa que tinha vontade, que é trazer o
filme para o presente. E ela é uma personagem que tanto olha para o que se passa
dentro do filme, como olha para nós e traz-nos da história da época em que o filme se
passa para os nossos dias. E ainda vai mais para trás, porque também canta umas
coisas mais arcaicas.

BVC – É isso que também me interessa no seu trabalho. Já tinha feito essa observação
no seu anterior filme, o Correspondências (2016). Quando fiz a apresentação do filme,
tinha dito para não olharem para o filme e pensarem apenas sobre o Portugal fascista,
do qual o Jorge de Sena tinha fugido e que a Sophia estava a viver. E relembrei que as
filmagens do filme coincidiram com uma época bastante negra em Portugal, a da
austeridade. Eu acho que no cinema da Rita é sempre importante uma certa noção de
actualidade, ou seja, este filme passado no séc. XVI não é só passado no séc. XVI, há
sempre qualquer coisa que se actualiza no presente, seja (como foi no
Correspondências) uma situação económica, política e social de um outro tipo de
restrição e de outro tipo de ditadura que nós vivemos mais recentemente, que foi a da
crise. E este, através da presença da Ingrid, abre o filme para essa possível leitura, ou
seja, o filme não fica estanque. Até a própria actualização que a Ingrid dá, a meu ver,
traz outro aspecto muito positivo, porque também dá outro tempo ao filme. Há dois
tempos neste filme, porque o tempo em que essas personagens estão a viver é um
tempo diferente das brincadeiras da Ingrid.

A Ingrid tem isso, uma coisa muito antiga, de completamente actual e de ruptura. Mas
ela pediu-me para se basear em alguma coisa e não ser apenas ela a ir para ali cantar.
E então surgiu nas nossas conversas aquele desenho do Paul Klee, Angelus Novus, que
o Walter Benjamin comprou, algo que virou depois um ícone de progresso e da
esquerda. O texto dele é fabuloso e muito bonito. Basicamente é um anjinho a olhar
para o passado, que quer pegar no mundo para recompor as ruínas, reconstituir os
destroços, recolher as ruínas…

BVC – O Walter Benjamin chamou-lhe “o anjo da História”.

Exactamente, ele tenta recompor o mundo, mas o vento leva-o pelos ares, e lá vai ele
a voar. Esta ventania, no fundo, é a representação do progresso. A Ingrid agarrou-se a
isto com unhas e dentes. Não é que ela estivesse a fazer o anjo da história, mas já
dizem tanta coisa dela. Até já disseram que é o Robert Musil a entrar no filme. Eu
disse, “Se quiserem…” [Risos da audiência] Mas é bom haver qualquer coisa em que
cada um faça o que quer.

DM – O que é aquela palavra que ela vai repetindo, “tandaraday”?

É o “tralaralá”. Não quer dizer nada.

DM – Damos então agora espaço para perguntas da audiência.

Membro da audiência – Onde foi filmado?

Cá em Portugal. Eu queria Trento, mas depois descartei a ideia. Primeiro, por razões
económicas, claro. Depois, pensei que lá não me sabia mexer, quando precisasse de
comprar chita, pioneses… preciso de ter acesso a essas coisas todas. Aqui eu sei onde
está a drogaria. Deve ser muito difícil lá, de repente, querer ir comprar (porque eu
estou sempre a improvisar um bocado) a tinta assim-assado. E imaginem o que seria
arranjar cavalos, falcões, coelhos… Não sabia. Aqui foi trabalhoso, mas possível.
Filmámos numa quinta de Sintra, em Arcos de Valvedez, em Salvaterra do Extremo, em
Viana do Castelo, Bragança… Portanto, ainda andámos um bocado, mas conseguiram-
se pedaços de uma casa aqui, pedaços de uma casa ali, e fingir que é tudo no mesmo
sítio, apesar de não o ser. Estamos num sítio que é em Sintra, depois subimos a escada
e já estamos em Arcos. Não sei como é que aquilo colou. Fiz desenhos e desenhos e
desenhos, e achava que ninguém ia acreditar. Depois tirava fotografias e pensava,
“Não, isto vai colar.” E ninguém acreditava que colasse, mas colou.

DM – Maravilhas da montagem?

Não. É o cinema.

Importa nos determos sobre esta frase: “E quando se aguarda durante muito, muito
tempo, também pode acontecer aquilo que só raramente acontece”. Transcrevo tal
como Agustina Bessa-Luís assim o fez para este guião, a partir do conto A Portuguesa
de Robert Musil, título do mais recente filme de Rita Azevedo Gomes. A citação que
acabo de evocar pode em muito extrapolar o sentido que esta frase encontra no filme,
porque é igualmente capaz de conter a chave tanto do fazer cinema em Portugal,
como da própria obra da realizadora. Desde tempos imemoriais que debatemos as
condições precárias em que o cinema e os cineastas neste país vivem, mas no entanto
a realização por parte de Oliveira de uma obra além de Francisca (1984) ou onde José
Álvaro Morais tenha conseguido filmar O Bobo (1987), mesmo passados dez anos, de
certo modo tranquiliza a consciência de todos os agentes culturais porque, por portas
travessas, as coisas vão continuando a ser feitas.

Não importa se sangramos uma geração, se tornamos permanentemente precária a


condição de fazer cinema neste país, não importa sequer que se debata os
financiamentos à produção ou os critérios das instituições responsáveis pela atribuição
dos subsídios, porque a resiliência é tal que os filmes continuam a ser feitos e no
momento em que algum ganha um prémio, há sempre vários que aparecem para
colher os louros e saudar a saúde da pungente máquina de produção lusitana.
Infelizmente a máquina é oleada a menos de um por cento. Mas isso pouco interessa
pensar, não fosse o nosso orgulho pela nomeação contrastar tão profundamente com
a nossa atitude perante o cinema português, assim como para com toda a nossa
cultura no geral, que teríamos motivos para rejubilar com as elogiosas manifestações
de procura e não perante o eterno escárnio ao qual a cultura se encontra eternamente
exposta.

Mas quando nem mesmo a crítica é capaz de se debruçar para o cumprimento de duas
elogiosas linhas, preferindo a tática tão em voga desde Oliveira do bota abaixo, é
natural que uma obra como a de Rita Azevedo Gomes atraia poucas atenções e exista
subjugada à efemeridade da exibição e da circunspeção dos espaços. E esta é a única
relação que deve ser estabelecida entre ambos, porque o percurso de Rita Azevedo
Gomes é suficientemente sólido e autónomo para que se sustente por si só.

Por norma só os idiotas tolhidos de vaidade se julgam originais, enquanto de câmara


em riste apregoam ser homens sem referências. Pelo contrário, se Rita Azevedo
Gomes povoou o seu horizonte com Oliveira, assim como Jean-Marie Straub e Danièle
Huillet ou mesmo Werner Schroeter, é resultado da sua imensa cultura e não de uma
façanha de “copista” ou “discípula” porque só a iliteracia visual que grassa em Portugal
é incapaz de distinguir o apontamento do decalque. Como se não bastasse os doze
anos que separam O Som da Terra a Tremer (1990) de Frágil Como o Mundo (2002),
gap que revela a dificuldade de criar em Portugal, ainda existe o posterior vitupério de
determinados agentes que condenam as obras logo à sua nascença.
Não é meu intento canonizar a obra de Rita Azevedo Gomes ou mesmo ignorar alguns
aspectos menos positivos, mas posso asseverar que esta é indubitavelmente uma das
mais importantes cineastas da nossa cinematografia. Se é certo que A Portuguesa não
representa em pleno o lugar que a ela reservo, bastaria A Vingança de uma Mulher
(2011) para assegurar a solidez das bases do pedestal por mim erigido. Contudo, é A
Portuguesa de que agora falamos e portanto, é fundamental abandonar as ademais
quezílias e ruído circundante para nos centrarmos sobre o filme.

O primeiro e mais importante aspecto deste título, assim como de toda a obra de Rita
Azevedo Gomes, é a noção de contemporâneo. Tal como em Correspondências (2016),
o texto é actualizado sobre o tempo em que é inscrito. As cartas entre Sophia e Sena
não se prendem somente a um Portugal fascista, estas reflectem igualmente a
presente circunstância vivida em Portugal durante a última crise financeira e seus
constrangimentos. O mesmo acontece com o texto de Musil, este não é uma recriação
estanque sem que possamos transportar para a actualidade o âmago das suas
questões. “As questões de poder, de religião, as relações humanas, de homem-
mulher”, como relembra a realizadora em entrevista ao Jornal I, são matéria
permanente do mundo.

No entanto, a mesma actualidade do mundo coloca sobre os filmes de Rita Azevedo


Gomes a capa do feminismo, aspecto a que ela se desmarca. É certo que a figura
feminina no cinema de Rita Azevedo Gomes é central, mas fazer dessa figura o símbolo
de algo, é extrapolar o próprio sentido do filme. Tal como em A Vingança de uma
Mulher, a figura de Clara não pressupõe outro engajamento se não o filão de mulheres
que desde Antígona reclamam um sentido de justiça e o inabalável escopo da
perseverança. É na própria mulher que os tempos confluem, porque a presença de
Ingrid Caven actualiza a matéria de Clara. Enquanto fantasma, a presença de Ingrid
vagueia sobre os espaços não enquanto passado, mas como projecção futura e
imemorial do ser feminino.

O próprio filme não se constitui através da banal oposição entre feminino e masculino,
porque o tempo dissolve o antagonismo dos universos e os espaços à convergência das
existências e à similitude das afecções. Se a guerra pertence aos homens, às mulheres
cabe a guerra à solidão; se a paz conduz de novo os homens ao lar, às mulheres cabe a
manutenção do lugar na esfera privada. Esta passagem entre domínios só é possível
quando se dispõe do tempo necessário a essa plasticidade. Através da soberba
fotografia de Acácio de Almeida, a existência de Clara é composta por quadros que
confundem os anos. Se o tempo passa, esse só o compreendemos entre as breves
estadias do marido e o crescimento das crianças e animais.
O tempo do cinema de Rita Azevedo Gomes é o tempo da sua história, ao contrário do
tempo presente. Não há nada acessório em A Portuguesa, porque cada plano é a
decantação de um momento que requereu ele mesmo tempo para se constituir.
Relembramos Oliveira quando este afirmou que o “cinema nada tem a ver com
distracção”, e é também esse o legado, a encontrar e inculcar, no cinema de Rita
Azevedo Gomes.

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