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Flavio Siqueira

O Filho Pródigo – Um ensaio sobre a Culpa, a virtude e o perdão

O Filho Pródigo

Um ensaio sobre a culpa, a

virtude e o perdão

Flavio Siqueira

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Flavio Siqueira

O Filho Pródigo – Um ensaio sobre a Culpa, a virtude e o perdão

O Filho Pródigo, uma breve introdução:

Creio no poder das metáforas, especialmente as que resistem as mudanças do tempo.

A parábola do filho pródigo foi contada no livro bíblico de Lucas, mas não por isso deve se limitar as

interpretações religiosas.

Provavelmente por tratar de ambição, pai, filhos, culpa, questões tão presentes no cotidiano de todos, a

estória do filho que pede a herança antecipada, sai pelo mundo e, depois de perder tudo resolve voltar,

tem sido recontada sob as mais diversas perspectivas.

Nesse ensaio mantenho a estrutura da parábola e, dentro dela, uso licença poética para amplificá-la

reconstruindo cenários, personagens e suas características psicológicas

Você está prestes a entrar no mundo de Lucas e acompanhá-lo em seus arrependimentos e dores.

Conhecerá personagens ambivalentes como Ricardo, irmão de Lucas, completamente aprisionado em suas

próprias virtudes.

O pai aguarda pelo filho que partiu, mas não apenas por ele; sabe que há feridas abertas em sua família

que precisam de cura. Ele aguarda com paciência.

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Uma história sempre desperta outras histórias e, na vida, praticamente não há movimentos isolados. Ao

decidir sair de casa, Lucas modificou a vida do pai, do irmão e dos que cruzaram seu caminho.

É o caso de Wolney e sua família.

Ao receberem Lucas como cuidador de porcos, foram expostos a misteriosa dor do rapaz e obrigados a

revisitarem suas próprias escolhas.

Talvez tenhamos mais em comum com o filho pródigo do que imaginamos.

Especialmente os que, de algum modo, se sentem longe de casa e vivem em busca de respostas para as

questões mais essenciais da vida.

Nossa viagem começa dentro da cabine de um trem. Aconchegue-se e aproveite!

Flavio Siqueira

Março, 2018.

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O FILHO PRÓDIGO

Um ensaio sobre a culpa, a virtude e o perdão

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Nenhuma paisagem é fixa. Seja pelo movimento de quem olha, ou pela folha que mexe, o bicho que
anda, cai, voa, a água que vai e vem. As nuvens formam e desfazem, a iluminação muda o foco, altera

cores, joga luz e recolhe. Um instante nunca é igual ao anterior e cada segundo se impõe sutilmente até

que venha o outro, e o outro, e mais um, cada um soberano, cada qual fadado a plenitude daquele

instante.

Sinfonia de muitos sons, mutações, espetáculos em ciclos que se completam, emendam, sobrepõe com

tamanha harmonia que poucos veem. Lucas não vê. Afundado na poltrona de couro desgastado, olhando

pela janela do trem que corta montanhas imensas, passa por vales, pelo túnel e as trevas que duram

segundos. Lucas não vê.

As folhas das árvores, ensandecidas, iam, vinham, desprendiam-se e voavam como se fugissem da

tempestade. Pássaros em busca de abrigo, animais para todos os lados, a natureza readequando-se ao

iminente temporal que ultrapassou a fronteira do horizonte e se aproxima avidamente.

No vagão, calmaria. Entretidos, sempre entretidos como a maioria de nós. Não vemos. Entre jornais e

celulares, vozes baixas e sorrisos abafados, homens e mulheres ignoram o alvoroço do lado de fora.

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Sorrateiramente uma cortina de água desliza sobre a paisagem, engolindo tudo, deixando-a turva e cinza.

Antes que a primeira gota acerte a janela em movimento, um senhor com aparência cansada sorri

profissionalmente e oferece uma bebida. Lucas não discerne o que é. A gravata torta e desbotada, quase

encoberta pelo saliente papo do atendente de bordo, chamou mais atenção do que a bebida, aqueles

cocktails de nome composto, cheios de misturas doces.

O homem se apoia no banco ocupado por uma senhora de idade, como quem tenta equilibrar-se e superar

o desafio de carregar o próprio peso. A senhora, elegante, impecável se não fosse o excesso de laquê que

fazia seu cabelo com tons de roxo parecer de plástico, recusa displicentemente a oferta com um breve

menear de cabeça.

Ela continua lendo um encarte de ofertas, ele prossegue distribuindo bebidas, arrastando os pés para o

fundo do vagão.

Gotículas se transformam em pingos grossos, atingem a janela e se deslocam pelo vidro criando rastros.

Parece que a movimentação do lado de fora cessou.

Não há pássaros, animais ou presença alguma que enfrente a tempestade. No trem, cada passageiro

ocupa-se de si mesmo, cortinas fechadas, gelo derretendo em copos com dois dedos de bebida, fumaça de

charuto, mistura de cheiros, cabeças afundadas em jornais, vozes baixas, uma risada seca lá no fundo,

distrações, corpos dormem.

O vidro da janela está frio e úmido.

Árvores, matas, estradas, campos que vão, pingos grossos, poças d´água, um homem que corre, rio agitado

entre pedras assimétricas embaixo da ponte que logo termina, montanhas desniveladas, uma casa amarela

com a lâmpada acesa na entrada, um carro coberto com lona suja estacionado na porta, a cerca quebrada,

portão aberto e a placa “bem-vindo” com letras descascadas, uma mulher parada na janela pensando

sabe-se lá em que ou em quem.

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Barulho do trem, uma paisagem substitui a outra rapidamente.

Ruas de lama. Dois meninos jogando uma bola velha, uma torre, túnel escuro, reflexos nos vidro, a senhora

de laquê rabisca o encarte com lápis colorido, vozes baixas, sombras, tosse, clarões, chuva, barulho do raio,

folhas que dançam, vento, um galpão abandonado serve de abrigo para dois homens que se encolhem

debaixo do que sobrou do teto, eles somem, outro raio, o vidro molhado, uma cena sobrepõe-se a outra,

retratos de muitos momentos, fragmentos de um mesmo cenário capturados pelos olhos que agora se

fecham.

Cessam as imagens, a mente divaga e mistura cenas antigas e atuais. Culpa-se, prepara-se para o pior,

apesar de não conseguir imaginar como vai se sentir quando tiver que encarar o pai nos olhos e explicar o

que houve, humilhar-se diante do irmão, aceitar a justa punição, independente de qual seja, sabia-se

merecedor. Indigno.

Agora abre os olhos aliviado porque ninguém o observa. Mexe-se devagar. O braço parado muito tempo na

mesma posição lateja como tem sido no último ano, na verdade parece que o corpo inteiro dói. Depois de

massageá-lo com certa intensidade, desliza a mão calejada até o bolso interno do largo paletó que ganhou.

É no bolso que carrega um envelope com tudo o que restou: documento, foto antiga e um resto do pouco

dinheiro que Wolney deu: duas notas de baixo valor e algumas moedas.

Segura os pertences e olha para fora. A chuva diminuiu, aberturas de nuvens liberam luz na paisagem

ainda molhada.

A densa e úmida cortina dissipou, o horizonte reapareceu.

Duas senhoras com roupas surradas ficam para trás com seus guarda chuvas abertos, pés encharcados,

desviando com certa dificuldade das poças na estradinha que retoma sua rotina.

Os olhos de Lucas se perdem em um ponto qualquer do céu, fixam-se por longos segundos, até que

retornam como um pássaro que plana e pousa no alvo, um bilhete em folha de papel rasgada, letras firmes

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e objetivas de seu amigo e ajudador desejando-lhe boa sorte, um número de telefone, os votos de quem,

como pode, lhe acolheu quando tudo parecia perdido.

Wolney de Oliveira Batista Nunes. Nome enorme para um homem de baixa estatura. Apesar da pele

envelhecida e marcas no rosto, não era velho. Vivia com esposa e três filhos, dois crescidos, uma ainda

menina. Lara arriscava precoce independência, se é que se pode considerar independente uma menininha

de nove anos apenas pelo espírito autoritário e inquisidor, mas era assim que todos diziam.

Wolney divertia-se com o jeito da filha querer manter as coisas sob controle, como mandava nos irmãos,

tomava iniciativas, o jeito que esticava as frases quando irritada, ou batia os pezinhos ao sentir-se

contrariada. “Esse pedacinho de gente”, ele dizia sorrindo.

Stella, sua esposa, preocupava-se com o temperamento da caçula e achava que deveriam ser mais

veementes, que ela estava ficando mimada, que poderiam perder o controle, mas sua delicadeza era

insuficiente para dobrar o espírito rude do marido que sentia prazer em dar de ombros e, sem disfarçar o

orgulho, dizer que não lutaria contra a personalidade de Lara por reproduzir o que ele chamava de “a

incurável rabugice dos Nunes”, e depois repetia as histórias do pai, avô, tios e uma sequência de Nunes,

rabugentos ou “encrenqueiros”, como pensava a esposa em silêncio.

Stella e Wolney andavam em compassos assimétricos, pensavam de formas opostas na maioria das coisas,

tinham espíritos de naturezas diferentes, mas Wolney não percebia, pelo menos conscientemente.

Não havia conflitos, seja por raramente conversarem, seja por Stella ter aprendido desde cedo a guardar

seus pensamentos para si mesmo, como sempre dizia sua velha mãe com aquela voz fraquinha e submissa

de sempre, os olhinhos baixos e calmos, o sorriso sem jeito depois de qualquer uma entre tantas desfeitas

do marido “Mais sábio é calar, minha filha. A gente guarda os pensamentos e depois eles simplesmente

somem. ” Foi assim com a mãe, é assim com a filha.

Casaram-se muito cedo, amavam-se acima das diferenças e viviam bem, ainda que fosse cada um por suas
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próprias razões.

Os outros dois filhos, Pedro e Valter, dezessete e dezoito anos respectivamente, assemelhavam-se a mãe

na personalidade mais serena, no apreço ao silêncio e na latente timidez, vida pacata, poucos amigos, risos

escassos.

Aparentemente nenhum deles nutria grandes complexos – a não ser implicâncias que adolescentes

costumam ter com o tamanho do nariz, cabelos, espinhas ou coisas assim – à medida que cresciam

pareciam se soltar, tornando-se mais sociáveis e abertos a vida.

Pedro, o mais novo, amava os livros, rabiscava poesias, exalava naturalmente um tipo de intelectualidade

inocente, quase poética. Valter, apesar da semelhança de personalidade e da pouca diferença de idade,

não era muito de ler. Parecia Stella na quietude, evitava conflitos, raramente opinava sobre alguma coisa.

Calava-se como protesto, continha-se quando feliz. Tanto um quanto outro ajudavam o pai e não se

queixavam do trabalho que muitas vezes só terminava tarde da noite.

Wolney veio de família poderosa.

Seu pai foi dono de terras imensas, mas confesso desconhecer a razão pela qual perdeu quase tudo. Uns

dizem que apostava em jogos, outros que se perdeu depois que a esposa o abandonou para casar-se com

outro. Talvez tenham sido as duas coisas. O fato é que de todo o patrimônio restou o menor dos terrenos,

que os filhos venderam e dividiram entre disputas e discussões como geralmente acontece na partilha de

heranças. Depois de um período desgastante, irmãos praticamente se digladiando, Wolney, o único a

tentar apaziguar os ânimos, ficou com uma das quatro partes.

Construiu uma casa simples no próprio terreno e tentou alugar. Nunca conseguiu. Não era longe da cidade,

facilidade de acesso, preço convidativo, mas às vezes essas coisas acontecem. Ninguém se interessou

apesar de dois ou três que foram conversar. O remédio foi deixar a casa que alugava com a família na

cidade e mudar-se para a terra herdada.

Mas nem sempre uma desgraça traz outra desgraça a reboque, como se diz por essas terras. Quando os
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negócios enfraqueciam Wolney recebeu uma proposta um tanto quanto inesperada, mas que poderia

salvá-los por um tempo, até que as circunstâncias melhorassem. A ideia, acredite, era criar porcos.

Criar porcos nunca foi, digamos, uma vocação, mas como recusar uma oportunidade quando todo o resto é

necessidade? Não cabe agora entrarmos em pormenores, nem descrever os detalhes de quando um amigo

propôs a construção de chiqueiros para alugar a um empresário que tinha lá suas estranhas, porém,

justificadas razões.

Coloque-se no lugar de Wolney para entender as dúvidas que qualquer um teria. Foi o baixo custo do

investimento e a remuneração bastante razoável que ajudaram a encarar o desafio.

Pulemos os trâmites da negociação que levaram a algum bate boca sem maiores consequências e vamos

até o dia que acertaram definitivamente o negócio.

Estavam na cidade, Wolney, o amigo que propôs o aluguel e naturalmente levaria a merecida comissão e o

empresário que enviaria os porcos. A conversa não durou vinte minutos, combinaram os procedimentos,

como fariam os pagamentos, transporte dos animais e tudo o que envolvia o acerto. Despediram-se e

seguiram seus caminhos atrás das devidas incumbências, preocupados que tudo funcionasse sem perda de

dinheiro, quanto mais em tempo de dificuldade.

Naquele ano o país vivia uma profunda crise financeira. Trabalhadores desempregados, empresários

falidos, o governo, como todos os governos quando obrigados a lidar com crises, inventavam novas

fórmulas, ávidos para arrecadar mais impostos, estes sim, sempre batendo recordes em volume de

arrecadação. A combinação de medidas atrapalhadas e o aumento de impostos criava uma espiral de

pobreza, aparentemente afastando do horizonte qualquer expectativa imediata de que as coisas

melhorassem.

Nos últimos anos, antes que a crise instalasse o caos, o país viveu uma onda de aparente prosperidade.

Todos os números indicavam que os pobres estavam menos pobres enquanto milhares de pessoas eram

introduzidas ao maravilhoso mundo do consumo. Crédito era distribuído em abundância, lojas de roupas,

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eletrodomésticos e até supermercados viravam verdadeiros bancos que vendiam produtos financiados

pelo dobro ou triplo do preço que valiam. Carnês e carnês com pequenas prestações se acumulavam sobre

a mesa dos trabalhadores maravilhados com as bugigangas sem perceber a armadilha que inebriava e

depois endividava. A imprensa elogiava os novos ares enquanto os partidos políticos substituíam ideologias

por pragmatismo eleitoreiro. Não havia vozes dissonantes, tudo parecia perfeito.

Quando o fluxo foi interrompido, ninguém esperava a força do impacto.

Foi como uma bolha de sabão que cresceu e explodiu em um sopro, uma bolha gigantesca, provocando

estragos e obrigando a maioria das pessoas a se virarem e aceitarem qualquer trabalho conscientes que, o

que quer que aparecesse, seria um grande privilegio.

Os olhos apertados de Wolney rastreavam prédios conhecidos, casas, lojas, gente apressada como estava

desacostumado a ver, numa espécie de tentativa de resgaste de um tempo bom, querendo acreditar que

nada tinha mudado. Fazia quase um ano que não ia à cidade, na última vez o cenário e a motivação eram

completamente diferentes. Trabalhava como representante de vendas de uma empresa de peças para

máquinas agrícolas, os negócios iam bem, mantinha uma sala apertada com pequeno banheiro no centro,

perto do parque Redentor. O espaço era suficiente para duas mesinhas e algumas cadeiras, obviamente

nada luxuoso, mas prático e plenamente adequado para trabalhar com um ajudante que fazia

atendimentos.

Para alivio de Wolney, pelo menos naquele lugar, não havia grandes contrastes entre os cenários de ontem

e o atual. O trânsito intenso, motoristas indo e vindo em seus carros como se nada estivesse acontecendo,

como se os bons ventos de prosperidade continuassem a soprar e tirar as pessoas de casa, seja para

produzir, consumir, integrar-se à máquina da pujança econômica de outrora.

Som de buzinas, motores e vozes para todos os lados, uma ambulância desvia dos carros, gente apressada,

tudo como sempre, talvez porque as pessoas resistam a encarar que a vida mudou, talvez porque insistam

em não deixar que ela mude, talvez porque o único jeito de lidar com as mudanças fosse não permitir que

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ela os engula. Cada um tem suas próprias razões que não nos cabe questionar, seja como for, o ritmo que

não mudou, deixou Wolney feliz como quem visita um antigo amigo esperando encontrá-lo moribundo e

deparando-se com a mesma cara, contando as piadas de sempre, disposto como um verdadeiro

moribundo provavelmente nunca estaria.

Com exceção de uma ou outra loja que fechou, um banco no lugar da padaria, algumas mudanças de

placas e um restaurante que diminuiu o salão, o comercio local parecia não ter sido gravemente afetado

pela crise. Convenhamos, as pessoas realmente não tinham dinheiro sobrando, mas restou criatividade

entre os lojistas que incluíam produtos novos na vitrine, apostavam na mentalidade consumista que não

muda de uma hora para outra, ainda mais se deparando com promoções ou facilidades de pagamento,

como se a melhor maneira para negar a crise fosse comprando, exatamente como os políticos ensinam.

No fim das contas, tudo parecia um jogo de readequação de peças onde a sobrevivência falaria mais alto.

Talvez fosse exagero, intrigas de quem lucra com o medo, um leve e passageiro mal-estar. Ilusão ou não,

era assim que a maioria preferia acreditar, até que as fontes que viraram gotas, diminuíssem,

escasseassem e secassem.

“Wolney! ”- A voz conhecida interrompe os pensamentos e se aproxima. “Rapaz, quanto tempo, que bom

te ver por aqui! ”. Nano, o ajudante que falamos há pouco, aquele que fazia atendimento na pequena sala.

“Continua morando naquela beleza de terrinha no campo? ”. O amigo parecia genuinamente feliz em vê-

lo.

Falaram amenidades, perguntaram sobre as famílias, Nano contou que estava voltando para a cidade

natal, Wolney fez qualquer menção sobre a crise política, Nano disse que já esperava por isso, que

ninguém lhe dava ouvidos, que arrumou inimizades por acharem que ele estava torcendo contra: “As

pessoas não querem enxergar até que o muro caia sobre elas”, disse Wolney que emendou a conversa com

suas impressões sobre o centro, ainda movimentado, cheio de gente. Nano concordou e mudou de

assunto dizendo que estava voltando para sua cidade. Era o efeito crise mudando a vida das pessoas e

mandando-as para perto de familiares em busca de segurança, deixando negócios falidos e muitas dívidas
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para trás.

Em tempos de prosperidade é mais fácil acreditar nos sonhos, promover mudanças de cidade em nome de

uma vida melhor. Depois as coisas mudam e cada um corre para onde houver respaldo, isso obviamente se

tiver a sorte de poder contar com algum.

Era o caso de Nano que depois emendou a conversa com uma daquelas histórias de dificuldades que

superabundam em tempos difíceis. “Antes de viajar, passei por aqui a pedido de meu filho mais velho que

está muito preocupado com um amigo, um menino bom, inteligente, mas que está passando por enormes

dificuldades. ” A pequena pausa e o semblante que cai dá mais gravidade ao assunto. “Perdeu tudo e agora

tem prazo de uma semana para deixar o quartinho que vive apesar de não ter trabalho e nem para onde ir.

” Nano e seu coração gigante, sempre tentando ajudar. “Vim ver a situação do rapaz, fazer alguns

contatos, ver se arrumo alguma coisa para o pobre coitado. ” Depois de falar, Nano aperta os olhos e traga

o cigarro que parece nunca largar.

Hoje, quando recorda desse dia, Wolney se impressiona com a velocidade com que respondeu, como um

estalo irresistível se antecipasse com a solução elaborada sob medida para um completo desconhecido,

depois, quando pensa como a história terminou, sente que tem coisas que não se explicam na hora, mas

depois parecem tão evidentes.

“Nano, acabei de fechar um negócio novo. Vou receber um valor razoável para construir uns chiqueiros na

parte de cima da terra, aquela onde está o matagal, e criar porcos para o dono de um sítio próximo que

não tem onde criá-los. Agora mesmo pensava que precisarei de alguém para me ajudar a construir os

chiqueiros e criar os porcos. ”

Nano ouvia com aparente expectativa.

“Meus meninos têm me ajudado lá nas terras, mas agora vejo que cada um tem seguido seu caminho e

quero deixá-los livres, quero que estudem, progridam, tenham um futuro que não sei se terão se obrigá-los

a me ajudar a criar porcos. Entende? ”

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Nano assente com a cabeça e com o cigarro na boca.

“Esse rapaz, se você me disser que quer trabalhar, poderia ficar na casinha dos fundos e me ajudar. Não

posso pagar agora, mas garantiria casa e alguma ajuda. ”

“Wolney, meu amigo, pode ser a solução que vim procurar. Se importa de irmos falar com ele agora? É ali

naquele predinho branco, aquele atrás do mercado. ”

Isso aconteceu faz alguns meses. Depois das apresentações e de uma breve conversa, Lucas aceitou cuidar

de porcos e mudou-se para a casinha dos fundos na propriedade de Wolney.

Os chiqueiros foram construídos com muros baixos de cimento, separando pequenos espaços de cinco

metros por três, sob um teto com tijolos. A adaptação, apesar de difícil para quem não estava acostumado

ao trabalho pesado, foi progressiva e aceitável. Pior quando os porcos chegaram e Lucas, rapaz instruído e

educado, teve que meter a mão na massa e assumir a função pela qual de fato aceitou trabalhar.

Quem o conheceu no passado, especialmente quando vivia com o pai e o irmão, sem responsabilidades,

preocupado apenas com a próxima noite, de maneira alguma reconheceria o rapaz triste, magro, barbudo,

que aceitava as condições sem reclamar, dedicando-se para corresponder às exigências do ofício como

quem se agarra a uma taboa de salvação.

Acordava cedo, ajudava a capinar de manhã e depois alimentava os porcos. Vivia em um cubículo,

banheiro fora da casa, goteiras por todos os lados, alimentava-se mal. Dizem que aqueles que se entregam

sem restrições ao cuidado de animais terminam se assemelhando aos bichos. Não sei se é verdade, mas

Lucas andava tão imundo que parecia se esforçar para confirmar tal crença.

Wolney enxergava o esforço do rapaz e gostaria de poder ajudar melhor, porém os dias eram difíceis para

todos. Percebia sua inabilidade com as tarefas, ensinava-o com paciência, nunca impôs pressão de

nenhuma natureza, pelo contrário, ajudava com os porcos e tentava entender o que levou um rapaz

inteligente e visivelmente bem-educado àquela situação.

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Lucas não tocava no assunto, Wolney não perguntava. Se havia algo a saber, um dia, quando chegasse a

hora, saberia sem a necessidade de fazer perguntas ou intrometer-se na vida alheia. Apreciava a discrição

do garoto e respeitava seu silêncio. Estava feliz por ajudá-lo de alguma maneira, apesar das condições e,

disposto a continuar enquanto possível.

“Então dê o que é meu hoje. Tenho direito a minha parte e não quero esperar até não sei quanto tempo

para viver minha vida! ”. O ódio que saia das palavras cortava o velho como uma faca afiada. Seus olhos

firmes e iluminados vacilaram por instantes, as pálpebras semicerraram, a voz sempre assertiva calou-se

por um tempo. Estava em pé, mas uma das mãos discretamente apoiou-se na cadeira como se as pernas

fossem vacilar a qualquer instante. Não sei como não vacilaram.

“Dê o dinheiro a que tenho direito! ” Como assim? Pensou o velho sem dizer nada. Um filme passou como

um flash pela mente, o menininho correndo, gordinho e lhe tocando, a sensação da pele tenra, os choros

noturnos, as birras de criança, a mãozinha segurando a mãozona, brincadeiras, cuidados no meio da noite,

o corpinho dormindo, as dificuldades de quando a esposa morreu e teve de virar pai e mãe, as compressas

na madrugada que temeu perder o caçula, tudo o que fez deve ter feito absurdamente mal. Errou! Não

identificava em que ponto, mas errou e essa cena, que não aconteceria se tivesse acertado, não deixava

dúvidas que deveria ter feito melhor.

Tinha consciência das próprias intenções, do que abriu mão, do esforço que fez para que os filhos se

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tornassem homens de bem. Talvez tivesse exagerado nos cuidados, provavelmente o excesso de zelo, a

tentativa de compensar a morte prematura da mãe, a inexperiência em lidar com necessidades de crianças

e depois adolescentes, talvez, sim, é possível que seja a causa de ouvir o que jamais esperava. O filho

caçula, um jovem homem, perante ele com firmeza pedindo sua parte de uma herança que sequer existia,

pois, o velho era vivo, para ir embora, fazer sua vida, experimentar o que chamou de “liberdade” e

“independência”.

“Tem certeza do que está fazendo? ” Perguntou o pai assim que, entre falta de ares, recuperou o velho

tom assertivo. Não queria que o filho percebesse a dimensão de seu sofrimento, não vacilaria naquela

hora. O menino tinha de crescer. Se errou nos anos anteriores, não erraria de novo na tentativa de evitar o

que estava decidido a viver. Um homem deve lidar com as consequências de suas escolhas, sejam elas

quais forem, e quem se joga na frente do trem para poupar aquele que resolveu ficar nos trilhos, morrerá

e não salvará ninguém. Que Lucas colhesse o que estava semeando, que um dia, talvez bem mais velho,

percebesse que tipo de caminhos suas escolhas construíram e decidisse voltar para casa, mais forte,

experiente, maduro. Quem sabe? “Não sei se ainda estarei aqui, mas talvez seja a maior e mais forte lição

que hoje tenho a chance de proporcionar ao meu filho”. Pensou o velho pai instantes antes que Lucas

respondesse com frieza. “Não há volta, pai. Não sonegue o que é meu, nem tente me prender a sua vida.

Se é meu direito, por favor, não me negue. ”

É verdade que antes que esse diálogo acontecesse houve sinais. Enquanto crescia, Lucas afastava-se do pai

e do irmão mais velho, este, sempre solidário com as causas do pai, sempre presente quando solicitado.

Era Ricardo quem tentava apaziguar os ânimos, quem conversava com Lucas quando se enfiava no próprio

mundo, ficando distante das pessoas, que ajudava a cuidar dos negócios da família, intermediando

conflitos, dedicando-se, esforçando-se par ser o que deveria ser, corresponder a expectativa, andar na

linha, fazer a coisa certa.

Ricardo não entendeu quando soube. Revoltou-se no primeiro momento, achou que o pai não deveria ter

aceitado a proposta ao entregar parte da herança, ainda vivo, nas mãos ingratas de Lucas. Revoltou-se com
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a atitude egoísta do irmão, inconsequente como era de se esperar, que sumiu sem deixar notícias, apenas

sofrimento e preocupação para o pai que abrigou todo o sofrimento do mundo no coração.

Conhecia os devaneios do caçula, sabia de sua adesão aos sonhos impossíveis, àquela mania de grandeza

não poderia acabar bem! Utopias que ninguém acreditava e o fazia engajar em projetos fadados ao

fracasso. Na verdade, estava claro há muito tempo que a grande vocação do irmão era o desperdício de

dinheiro com mulheres novas a cada semana, com viagens, passeios, roupas, enquanto Ricardo,

responsável, dedicava-se a ajudar ao pai.

A relação entre os três configurou-se com o tempo; pai dedicado, filho mais velho responsável, caçula

inconsequente. Cada um assumiu seu papel.

Existiam os atritos, especialmente entre irmãos. O pai sofria calado e irritava o mais velho pela falta de

atitude imediata, por não estancar com veemência, de modo definitivo, a sangria emocional e financeira

que o caçula, sem pudor, sem remorso, como se exercendo um direito adquirido, impunha a todos.

Não foram poucas vezes que se sentiu injustiçado por não se permitir as próprias loucuras, por tentar

poupar o pai quando em determinado momento sentiu que morar sozinho faria bem a si mesmo, quando

achou que poderia ser hora de viver sua vida, mudar-se de cidade, de ares, deixar que o pai cuidasse

sozinho dos negócios e assumisse de fato a incumbência de colocar o mais novo nos eixos. Tinha direito!

Era bom filho, sempre fez o que parecia justo, de fato merecia um mínimo reconhecimento de que estava

lá, na linha, correto, sensível, dedicado, do lado do pai.

A ideia de partir com responsabilidade, mantendo-se ativo nos negócios do pai, ajudando-o, porém,

mudando-se para a própria casa, quem sabe casando-se e vivendo a própria vida sem a necessidade de

compensar a loucura do irmão, foi por água abaixo na noite que chegou em casa e encontrou um velho

desolado, ombros encurvados equilibrando todo o peso da culpa, da saudade e do remorso de quem se

julgou e condenou por não ter feito o suficiente.

“Seu irmão partiu”. Foi o que o pai praticamente sussurrou com um fio de voz.

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Ricardo permaneceu quieto, um misto de raiva e preocupação, triste por ver o estado do pai, magoado

pelo golpe de misericórdia do irmão.

O silêncio durou quase um minuto até que o velho resolveu falar.

“Eu e Lucas nos desentendemos. Ele queria ficar um tempo longe de casa, sair por aí com aqueles amigos e

pediu para que eu lhe desse dinheiro. Discutimos, falei que não daria, que ele arrumasse condições, que

tivesse meios próprios e arcasse com suas aventuras. ”

“Fez bem, pai. ” A voz de Ricardo se preencheu de amargura.

“Lucas precisa crescer, não posso ficar respaldando suas loucuras a vida inteira, não sei aonde isso pode

parar. ” O velho fala em tom de justificativa, como se quisesse absolver-se da culpa que lhe consumia a

mente, a alma e os ossos.

“Talvez pela primeira vez tive clareza do que fazer. Estava na hora de dar-lhe a oportunidade de

experimentar as consequências das próprias escolhas, entrega-lo a si mesmo, permitir que confronte o que

tem escolhido ser.”

“O que quer dizer? ”

“Seu irmão pediu que lhe desse a parte que lhe cabe da herança. Agiu como quem não aguentava mais

esperar minha morte, impaciente com minha longevidade, ávido por desfrutar os recursos que um dia lhe

deixarei. ” Uma pausa, um suspiro, voz fraca. “Aceitei suas condições, dei minha benção e o liberei para

viver a própria vida, fazer o que bem entender. ”

Silêncio sepulcral, ninguém falou mais nada. O pai levantou-se com pesar e fechou a porta do quarto.

Ricardo sentiu-se atingido, amargurado pela atitude do irmão que, por mais que sempre tenha agido

inconsequentemente, nunca pensou que chegaria tão longe. Fez o que nunca poderia ter feito, pisou no

coração do pai, abandonou a todos em nome de uma vida de loucuras, de miragens de menino.

Certamente colheria os frutos que naquela tarde plantou.

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O Filho Pródigo – Um ensaio sobre a Culpa, a virtude e o perdão

Quanto aos recentes planos, melhor adiá-los mais uma entre tantas vezes. O pai não resistiria se, por mais

justo que fosse, explicasse que iria se mudar. Não agora. Melhor esperar a poeira abaixar, cuidar das

feridas como sempre fez, deixar que o tempo ajeitasse as coisas, amenizasse as dores e apontasse o

momento certo de, quem sabe um dia, viver a própria vida.

Sempre que uma gota caia, outra camada de consciência era perfurada. O som ritmado, persistentemente

invasivo, intermediava a realidade com o mundo dos sonhos, confundindo-se com as imagens que

atormentaram Lucas nas últimas noites.

Viu seu corpo como se estivesse do lado de fora no meio da noite, correndo em um deserto

completamente vazio. O deserto, como todos os desertos, só observava. Não havia nada, nem vozes, nem

sombras, nem céu ou estrelas, nem lampejos de civilização, insetos, animais, nada, só escuridão. Escuridão

e silêncio.

Corria sem saber se fugia de algo ou ia para algum lugar, mas tinha pressa e medo.

Em certo momento da corrida avista uma casa, o primeiro sinal de civilização, mas se recusa a pedir ajuda.

Percebe que dentro dela há movimento, luz acesa, sombras se deslocando. Pensa em bater na porta, mas

um misto de orgulho e medo o impede de desviar e então aumenta o passo, corre mais, se embrenha na

escuridão e vira parte dela, deixa de distinguir seu corpo e as trevas daquele lugar, até que a chuva começa

e estranhamente não lhe atinge. Ela é fraca e ritmada, como a goteira que lhe desperta.

Um grito para dentro, o gemido para fora, descolar das pálpebras de forma assustada, apesar do mesmo

sonho, o mesmo deserto, a escuridão, a sensação de não saber onde estava ou do que corria, a resistência

em pedir ajuda na casinha, tudo igual há pelo menos três noites, mas para uma mente culpada nada

parece mistério porque a própria culpa se apressa em interpretar as coisas. Estava claro o que o sonho

queria dizer.

Lucas nunca foi atento aos gritos da alma, nunca prestou atenção em sonhos, mas aquele parecia
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Flavio Siqueira

O Filho Pródigo – Um ensaio sobre a Culpa, a virtude e o perdão

conectado com sua vida nos últimos tempos. Sua fuga, resistência, decisões que inegavelmente pareciam

encurralá-lo em um deserto, pelo menos é assim que se sentia interiormente; deserto, vazio, fugindo sem

saber do que.

Senta-se nas almofadas que transformavam o chão em cama, se desloca para mais perto da parede de

tijolos sem pintura e desvia de mais uma gota que despenca do teto. Só então percebe que dormia em

uma poça de água escura como o chão sujo com terra e restos de ração de porcos que desprendeu da

bota. Na mesma velocidade que solta um palavrão, coloca-se em pé avaliando tudo o que tinha que secar.

O barulho da chuva torrencial tende a deixar os espíritos mais saudosistas, parece que a sensação de

solidão aumenta, um sentimento de abandono latente vaza de um fio de pensamento que o rapaz - que

ainda não se secou - tenta fixar, mas logo se descola. Era como se quisesse evitar escutar o clamor da

própria alma que se expressa, inclusive naquele maldito sonho, mas não só nele; saudades repentinas,

valores que até então sequer pensava, reminiscências da mente que resgatava algo do passado e lhe

esfregava na cara, jogando-lhe culpa, chamando de ingrato, de louco ou coisas piores.

Retirou a toalha úmida, presa em um prego enferrujado ao lado da porta. Esfrega a perna molhada e passa

pelo resto do corpo ainda que o tronco e a cabeça estivessem secos. Um raio clareia o quartinho escuro,

como se tentasse despertar o pensamento que beira a autocomiseração para algo mais prático,

especificamente a necessidade de esticar a lona que protege os porcos da chuva.

O relógio marca 4h47 da manhã. Lucas veste uma capa de chuva com pressa, coloca as botas e corre sobre

o mato molhado, desviando na medida do possível de lama e poças d´água, passa pela casa da família de

Wolney e espia que as luzes estão apagadas, quase escorrega, equilibra-se, passa a mão no rosto para tirar

o excesso d´água e acelera o passo. Por um instante a sensação do sonho lhe toca como uma assombração

que insiste em dizer “estou aqui”, como se voltasse para o sonho, ou pesadelo de agora há pouco,

correndo no escuro, mas a lembrança se dissipa quando pensa que agora não corre em direção ao nada.

Pelo menos dessa vez tinha destino certo: os porcos.

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Flavio Siqueira

O Filho Pródigo – Um ensaio sobre a Culpa, a virtude e o perdão

Os bichos não parecem compartilhar da mesma preocupação do cuidador.

Apesar do chiqueiro vazado pelos lados, completamente exposto à chuva naquela intensidade, acomodam-

se uns sobre os outros, corpos pesados e cheios de lama que não entendem, sequer percebem a pressa do

rapaz que sobe a cerca de madeira para puxar a lona como se disso dependesse a própria vida. Faz com

tanto afinco e por longo tempo que só nota que Wolney apareceu com uma capa grossa e guarda-chuva

quando ajudou-lhe fixar a proteção.

A chuva ainda estava forte, havia muito barulho lá fora. Wolney dá um toque no ombro de Lucas e chama

para que o acompanhe até a casa. Provavelmente a família estava em sono profundo.

Talvez aqui caiba dizer que, apesar da ótima relação entre patrão e funcionário, havia uma separação clara

que o distanciava da família e colocava cada um em seus devidos lugares, sem muita conversa ou

intimidade. Tratavam-se com respeito e educação, porém sem aproximação, provavelmente por isso Lucas

não ficou à vontade quando Wolney, percebendo o estado que estava, disse para que tomasse um banho

na casa e colocasse roupas limpas e secas, esperando que a chuva pelo menos diminuísse.

Ele sabia do problema de goteira no quarto do funcionário, autorizou o conserto, mas Lucas não parecia

preocupado, dizia que raramente chovia, o problema não era tão grave e protelava como quem acreditava

que o sofrimento era um merecimento. Punia-se de um jeito ou de outro.

Wolney notou que o rapaz recusava qualquer tentativa de ajuda, se esquivava ao menor sinal de que

alguém se aproximava, isolava-se, escondia-se, fechava-se no próprio calabouço da mente, a pior de todas

as prisões, ao mesmo tempo em que o resto de brilho que havia em seus olhos apagava, desfazendo traços

do que um dia pareceu saúde, jovialidade e alegria. Era como perceber uma alma definhando sem poder

fazer muita coisa.

Como lidar com um coração culpado? Jovens não deveriam sentir-se assim. A voz de Stella, à noite na

cama, em uma dessas conversas de casal que se arruma para dormir, voltou à mente. No dia anterior, Lara,

a caçula da família, disse ter visto Lucas sentado debaixo de uma árvore aos prantos como uma criança,

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deixando vazar as torrentes que represava na alma, solitário como ninguém deveria se sentir, e contou

sem entender direito o que viu, pensando que o pai deu uma bronca no rapaz, curiosa em saber a razão de

um adulto chorar daquele jeito.

Agora, marido e mulher deitados na cama, falavam em voz baixa sobre a história que Lara contou,

especulavam, pensavam se havia algo que de fato poderiam fazer.

“O que esse menino sente é culpa, e a culpa corrói a pessoa aos poucos, todos os dias destrói um pedaço

da alma até que chegue um dia em que não sobra mais nada. ” Dizia Stella muito mais perceptiva que o

marido.

“Se quiser ajudá-lo, tente se aproximar sem que ele perceba sua intenção. Seja amigo do menino e quando

sentir que ele confia em você converse com ele, dê espaço para se abrir e talvez ele conte a razão desse

vazio. ”

“Stella, sempre querendo resolver os problemas de todos” Pensou Wolney, mas não disse nada.

Permaneceu em silêncio durante um tempo, olhando para o teto escuro e prestando atenção na voz suave

da esposa no meio da noite sem notar que aos poucos se enchia de uma estranha compaixão em relação

ao desconhecido que dormia no quarto dos fundos.

“Tente descobrir se ele tem família, talvez tenha pai e mãe em algum lugar preocupados sem saber por

onde anda o filho, quem sabe o que esconde a história desse rapaz. ” Continuava Stella, pensando alto.

Wolney dividia a atenção entre o que a esposa falava e seus próprios pensamentos, agora voltados para

todas as possíveis causas, especulando até que ponto o segredo do funcionário poderia ser algo perigoso,

que colocasse a família em risco, afinal, estavam todos no mesmo espaço de terra, convivendo

diariamente, expostos uns aos outros, confiantes que estavam protegidos.

E se a razão daquela aparente culpa estivesse ligada a algum crime bárbaro? Quem sabe o rapaz estivesse

se refugiando, tentando se esconder de algo sério que cometeu no passado e por isso quase nunca abria a

boca? No começo confiou na aparência discreta, no jeito de menino, na fragilidade do físico, na referência
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Flavio Siqueira

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que o ex-colega que o apresentou lhe deu, dizendo que Lucas e seu filho mais velho eram amigos, mas até

que ponto ia essa amizade? Será que de fato conheciam a história do rapaz?

“Não acho que ele veio parar aqui por acaso. Se alguém pode fazer alguma coisa para ajudá-lo, esse é você,

querido, de coração, acho que não custa tentar. ” A voz de Stella embalava a mente do marido que

entrecortava os pensamentos com o que a esposa dizia, ora prestando atenção no que ela falava, ora

distraindo-se com as possibilidades que agora lhe visitavam na noite que se tornava mais escura e

acolhedora. A voz da esposa foi sumindo, os pensamentos desconectavam-se, envolvendo-o num sono

pesado até que não pensava mais e finalmente dormiu.

Acordou com o barulho de um raio, presente dos céus no meio do temporal da madrugada e olhou para o

despertador ao lado da cama marcando 5h08. Virou-se para o lado e subitamente pensou na última frase

que ouviu da esposa. “Se alguém pode fazer alguma coisa para ajudá-lo, esse é você. ” Por que essa

preocupação repentina? Wolney era um bom homem, gostava de ajudar quando sentia que tinha

condições, mas, entre fazer alguma coisa pela esposa ou pelos filhos e acordar na madrugada angustiado

com a situação de um desconhecido que cuidava de seus porcos, havia um abismo gigantesco.

Talvez estivesse influenciado pela esposa, ela sim, coração mole, sempre querendo fazer tudo por todos.

Ou então tenha ficado impressionado em como Lara relatou comovida a cena de Lucas debaixo da árvore,

culpado, chorando. Quem sabe estivesse ficando velho e sentimental, daquele tipo que, admitamos, nunca

lhe agradou.

Sempre acreditou na capacidade de cada um resolver seus próprios problemas, como se qualquer tentativa

de extrair de alguém aquilo que não diz, ainda que seja uma tentativa de aproximação e ajuda, como Stella

tinha sugerido, pareceria um movimento brusco de aproximação interesseira, mesmo que o argumento

fosse fazer o bem, mas na realidade, pensava ele, não passava de uma tentativa mascarada de sentir-se

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superior, impondo-se em relação ao outro como ajudador voluntário, mas não chamado, entregue às

causas de alguém que sequer solicitou, que talvez preferisse ficar quieto e resolver seus próprios

problemas sozinho.

Mas será que isso não era uma desculpa de quem não quer enxergar a dor do outro e simplesmente

elabora um argumento qualquer que o isente da responsabilidade e, pior, da culpa? Culpa por não ajudar?

Argumento que o isente da responsabilidade? Que tipo de pensamentos eram esses que agora lhe

invadiam a mente a essa hora da madrugada?

Wolney afasta o cobertor e se levanta. Um pulo até a cozinha, um copo d´água gelado, talvez molhe um

pouco o rosto e desperte da influência da conversa daquela noite, das reminiscências da voz suave e

persuasiva da esposa incutindo um tipo de pensamento demasiadamente piedoso, fraco, suscitando

preocupações que até então nunca sentiu.

Tateou pelo quarto escuro até a porta entre aberta. Seguiu pelo corredor e passou pelo quarto dos

meninos que dormiam, depois espiou Lara no quarto ao lado e arrumou o cobertor que estava metade

caído no chão. Desliga o abajur que a menina, com medo de escuro, mantinha ligado a noite inteira,

observa por alguns instantes e prossegue para cozinha.

Outro raio, talvez mais barulhento do que aquele que o despertou faz poucos minutos. Enquanto pega o

copo no armário ao lado da janela, olha para fora e vê movimento no chiqueiro.

Aproxima-se do vidro molhado e embaçado, passa a mão para enxergar melhor e discerne o vulto de

Lucas, subindo a cerca, tentando desajeitadamente puxar a lona que protegeria os indiferentes porcos no

meio do temporal.

Observa alguns instantes enquanto enche o copo de água, até que resolve ajudá-lo. Impaciente, resmunga

qualquer coisa e pega a capa de chuva saindo rapidamente pela terra molhada. Lucas, preocupado em

puxar as lonas de proteção, não percebe a chegada de Wolney.

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Na casa cheia de móveis desorganizados uma chama dança sobre o que sobrou da vela e aromatiza o ar

frio de uma noite qualquer. Lá fora o céu estrelado cuida do mundo e observa pela fresta da cortina

entreaberta na sala aquecida, com sombras tremulando pelas paredes cheias de quadro, um pai e dois

filhos sentados no tapete, juntos, divertindo-se em uma conversa.

O pai se levanta com certa dificuldade, caminha até um castiçal, risca o fósforo e acende a chama em uma

das velas pela segunda ou terceira vez. De costas para os filhos ouve as vozes de homens crescidos,

divertidas, as histórias e percepções daqueles que ontem dependiam dos seus cuidados, mas, como o

tempo voa! Cresceram e se tornaram o que são.

O velho se detém por um tempo diante do castiçal e sobrepõe à cena um pensamento antigo, algo que já

foi muito dolorido, mas de alguma forma, anos depois, lhe faz sentir mais forte, como quem superou um

desafio quase instransponível e chegou até aqui.

Pergunta-se como seria a vida se a esposa ainda vivesse. Essa é uma questão recorrente. Como teria se

saído como pai? O que teria feito de si mesmo, dos filhos e do futuro? O que seria diferente hoje? No

fundo da sala, as vozes dos rapazes entretidos em um assunto qualquer.

“Todos seriamos diferentes, a vida não seria essa e quem pode dizer o que seria melhor e o que seria pior?

” Arrisca-se o velho a pensar, mas logo em seguida, como quem espanta uma indesejável mosca, dispersa o

próprio pensamento que vez ou outra pousa na mente cansada.

Amava a mulher, mas não soube lidar com o próprio amor. Cuidava de todos, do seu jeito, de um jeito

distante, desatento, desleixado, preocupado em encher-lhes a boca, relapso em suprir-lhes a alma.

Amava os filhos, mas não lhes ouvia, pouco os tocava, não sentia que era preciso mais do que pagar a

escola, o médico ou a comida. Mantinha com eles uma relação distante, sem abraços e beijos, poucas

conversas, não por que evitava, mas simplesmente se acomodou assim.

Foi depois que a esposa morreu de um mal súbito, sem preparação ou tempo para despedidas, sem

nenhuma recomendação da parte dela em como ser pai, mãe, amigo e tudo o que aquelas crianças, que
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sofreram demais, a partir de agora precisariam, foi nessa hora que a realidade direta, implacável, lhe

confrontou com a necessidade de reconstruir prioridades e, sobretudo, a relação com os filhos que mais do

que nunca precisavam de um pai.

Não pense que foi fácil para ninguém, especialmente para os meninos que reagiram de maneiras

diferentes.

Ricardo assumiu rapidamente a condição de primogênito e inicialmente dedicou-se a tornar a vida mais

fácil para o pai, se antecipando em descongelar uma relação bastante fria entre eles, agora que o elo, a

mãe, deixou de existir. Ajudava nas coisas da casa, evitando levantar polêmicas ou qualquer tipo de

questionamentos em relação à perda tão precoce. Guardava para si, como se não fosse permitido expor as

próprias dores, o choro abafado pelo travesseiro, às dúvidas que naturalmente um menino de onze anos

teria diante de tamanho vazio, o sentimento de orfandade quando a ficha caiu e viu que agora eram

somente os três.

As poucas pessoas que acompanharam a história de perto se admiravam com a maturidade do menino,

mas seria diferente se pudessem ver o que se passava em seu interior, especialmente o medo de que, não

fazendo como fez, poderia perder o pai também. Era um medo infundado.

Na verdade, tudo o que Ricardo estava fazendo era encontrar um jeito de ser aceito, de que o pai, sempre

distante e com outras preocupações enquanto a mãe vivia, não tivesse suficiente percepção de que o filho

mais velho era apenas um menino que, mais do que nunca, precisava do seu amor, que estava fazendo

tudo para ser aceito e acolhido, mesmo que para tal, escondesse os sentimentos, engolisse

questionamentos e com o tempo aprendesse a desenvolver a imagem de forte, maduro e perfeito.

Ninguém percebia que a aparente maturidade lhe fazia mal, incutia-lhe uma precoce gravidade, algo que

lhe pesava a alma, transformando o menino em refém de uma imagem esculpida sob a sutil supervisão da

culpa e do medo de não ser aceito, roubando-lhe a percepção do significado de estar realmente perto do

pai ao invés de criar mecanismos que supostamente lhe desse acesso ao amor, que na verdade não

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precisava de artifícios para existir.

Ricardo não percebeu como os elogios foram lhe modificando. Como cresceu dependente de sua aparência

virtuosa e, pior, como tudo suscitou de maneira tão sutil, como a noite que encobre o dia, como um

predador se aproxima da presa, certo orgulho carregado de um sentimento de superioridade benevolente,

piedoso, altruísta, superlativo aos olhos dos outros, mas que adoecia a alma e lhe afastava do irmão.

Os gestos de superioridade para o lado de fora correspondiam à sombra que aumentava para o lado de

dentro, encobrindo a genuinidade do que, aos olhos de todos, aparentava grandeza de caráter,

maturidade precoce, inspiração, exemplo que deveria ser seguido pelo irmão mais novo, pelos filhos das

redondezas, pelos rapazes do mundo; o filho ideal, a referência das reputações, o símbolo da virtude.

Enquanto o mais velho parecia se distanciar em qualidades, o caçula acolhia os olhares de comparação que

naturalmente, diante da magnificência do irmão, lhe achatavam pela mediocridade de espírito, por em

nada se assemelhar com aquele que recebia os louvores de todos. Aceitou o rótulo de menino rebelde e

transferiu para os amigos a necessidade de aceitação que julgava não ser merecedor por parte do pai,

ainda que este sempre estivesse aberto igualmente para os dois filhos, tratando-os conforme o que de fato

eram, não o que aparentavam.

Mas como competir quando o irmão é a própria personificação de todas as virtudes? Quando, de um jeito

ou outro se sabe julgado por gente que espera de um as mesmas virtudes do outro, ainda que essas

virtudes, como já vimos, não passassem de casca, frágil e dependente da aprovação de terceiros.

Como acreditar que o pai seria capaz de amá-lo assim, tão menor, tão egoísta, tão distante do que deveria

ser?

Sua personalidade e a dificuldade em lidar com a dor da perda, a baixa estima alimentada pela sensação de

que não era digno de amor, as contradições interiores que lhe distanciava do ideal refletido no irmão,

projetaram Lucas para outro polo, distante é verdade, mas correspondente ao que crescia no seu interior,

fixando-se como oposto do irmão, como quem fizesse questão de se libertar em definitivo das

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comparações que tanto lhes feriam. “Se não posso ser igual meu irmão, serei seu oposto. ”

Lucas se afastava de todos, especialmente do pai.

Aos poucos o velho entendeu que era preciso deixar que o caçula experimentasse as consequências de ser

quem estava tentando ser. Qualquer intervenção mais direta, pelo menos naquele momento, surtiria

efeito contrário, afinal há certas lições onde a dor tem mais eloquência.

Talvez não tenha sido proposital, mas a distância entre pai e o caçula aumentou quando Ricardo, sem que

ninguém pedisse, se colocou na condição de mediador entre pai e filho, interferindo na relação de um e

outro com opiniões maliciosas, usando as falhas do irmão para valorizar-se, aproveitando a liberdade que o

pai lhe dava, na tentativa de agigantar-se sobre o irmão.

Eram dois irmãos em direções opostas, mas se assemelhavam quando submetiam-se as imagens

projetadas pelos olhos dos outros e acolhiam, cada um para si, as formas, encaixes, proporções e

arremates da média das opiniões, aceitando ser o que todos esperavam que fossem; um deles virtuoso e

digno de referências, outro, ingrato e perdido.

Foi assim que os abismos aumentaram e o tempo cimentou o que lá na frente rebentaria como uma

profunda dor de separação, com o mais novo pedindo a parte que lhe cabe da herança e fugindo sem dar

notícias, criando uma enorme ferida no coração do pai, produzindo rancor no irmão que se tornava cada

vez mais amargurado.

No meio da madrugada, onde o silêncio só é tocado pelo canto dos grilos, o velho abre os olhos e suspira

por tão doce lembrança, quase palpável; os dois filhos na sala, a alegria, agora distante, fazendo as honras

da casa, um tempo passado que volta em um lapso de memória gerando pontadas de saudade. Onde

estaria Lucas essa noite? O que se passava com o caçula que sumiu sem dar notícias, embrenhando-se pelo

mundo, fazendo sabe-se lá o que?

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Ajeita-se na cama com certa dificuldade. Os cabelos brancos, despenteados, o rosto amassado pelas rugas

e pelo travesseiro, o corpo franzino buscando o conforto do sono.

Antes de dormir pensa nos filhos com esperança, aprendeu a não se consumir em preocupações, nem

conjecturar sobre o que não lhe cabe por não ter as respostas. Chegará o tempo em que a noite vai clarear,

as perguntas serão respondidas e, quem sabe, em um último pensamento antes de adormecer, o filho,

arrependido e amadurecido, tornará a casa do pai.

___________________________________________________________________________

A fumaça que sai do bule passeia por todo ambiente, toca os móveis, escorrega sobre a mesa de madeira

rústica e sobe fazendo graça para então deslizar e alojar-se nas narinas, misturando o aroma de café fresco

com o cheiro da porção de manteiga e do pão assado que Wolney colocou sobre a mesa.

“Cara, por que correu até o chiqueiro tão cedo? ” Perguntou Wolney sem interesse na resposta, tentando

criar uma oportunidade para entender melhor a cabeça daquele jovem, calado, entristecido, amargurado.

Era a primeira vez que sentavam a mesma mesa e tinham uma oportunidade de conversa.

“Foi a chuva. ” Um gole lento no café quente. “Tinha uma goteira, perdi o sono, me lembrei que os animais

estavam desprotegidos. ” Lucas responde com voz baixa, quase emburrado, articula pouco sem vontade de

falar. Wolney não parece se importar. Uma pequena pausa e depois a resposta em tom casual enquanto

oferecia uma toalha para o amigo que enxugava o excesso d´água no cabelo e no corpo.

“Vamos tomar um café para esquentar o corpo antes do banho. Quanto aos porcos, não se preocupe, eles

estão protegidos. Sobre a goteira, já te falei para arrumar. ”


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Lucas não responde, passa a toalha nos braços, mexe um pouco a cabeça e mantém os olhos fixos na xícara

enquanto inala o aroma que sai do café ainda quente. A fala de Wolney precede um silêncio de alguns

segundos. O barulho da chuva é intenso lá fora, a família ainda dorme, luzes apagadas pela casa com

exceção da lâmpada sobre a mesa onde os dois, um calado, outro tentando aproximação, bebem café.

Outro raio de trovão rompe a quietude com certo estardalhaço e lhes desperta dos próprios pensamentos.

“Você é amigo do filho do Nuno, certo? ” Wolney conheceu o filho de Nuno quando este ainda era uma

criança de seis ou sete anos. Soube pelo pai, nas conversas que tinham quando o escritório estava com

menos movimento, sobre as dificuldades do menino que se envolveu em algumas brigas, deu trabalho por

uns tempos, tinha amigos que incomodavam Nuno.

Quando se encontraram na rua e Nuno indicou Lucas explicando que era amigo do seu filho, uma luz

amarela de alerta acendeu para Wolney, mas apagou rapidamente diante da oportunidade de ajudar e ser

ajudado, além do mais, precisava de alguém com energia e disposto a trabalhar praticamente em troca de

moradia e, convenhamos, uma moradia extremamente precária. Não é qualquer um que aceitaria tais

condições.

O negócio de criar porcos era uma grande novidade que resolveu encarar justamente por conta dos

tempos bastante difíceis, o país entrando em uma crise que ninguém sabia de fato aonde iria parar, o

governo, como costuma ser, prometendo, discursando, planejando, mas na prática apenas aumento de

impostos, propaganda e nada mais. Era preciso alguém que pudesse assumir riscos e se dedicar em troca,

não de benefícios imediatos, porque isso inviabilizaria qualquer começo de negócio, mas de uma

perspectiva, sem promessas, começando do zero, uma tentativa esperançosa de que, dando certo o

trabalho, a vida quem sabe, melhoraria.

Pareceu pertinente considerar que nem todos os amigos de alguém que não seja confiável

necessariamente corresponda aos desvios do outro, afinal, quem nunca se desajustou em algum momento

da vida? Por outro lado, até que ponto estava influenciado apenas pela versão do amigo, pai preocupado,

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talvez preocupado demais, sem nunca ter escutado o que o filho realmente teria a dizer? Certamente essa

não seria a primeira vez na história da humanidade que o mesmo assunto tivesse versões completamente

diferentes quando olhadas em perspectivas diferentes, no caso, uma do pai, outra do filho.

Não cometeria a precipitação de taxá-lo como cúmplice das confusões que o filho de Nuno se meteu, não

conhecia detalhes das histórias, não sabia até que ponto o amigo era imparcial na narrativa dos

acontecimentos ou apenas destilava as lamurias de um pai contrariado. Nada de pré-julgamentos e

condenações, todos merecem ao menos uma chance.

“É. Andamos juntos por um tempo. ” Limitou-se Lucas a responder como quem fala uma coisa, mas pensa

em outra.

“Conheci aquele menino quando nem sabia ler ainda. Como o tempo passa...” O tom paternal e saudosista

usado por Wolney causou um estranho incômodo e Lucas disfarçou.

“Ele é um cara legal, mas faz tempo que não falamos. ” Resposta contida, mal-humorada, mas com

educação. Um pouco mais de café.

Os trovões diminuíram, mas chuva continua na mesma intensidade, um vento forte, intermitência na

energia, a lâmpada pisca duas ou três vezes e depois firma de novo, o velho teto de madeira range como

acontece em tempos de ventania, o sopro que entra pela fresta de uma janela da cozinha assobia como se

fosse um fantasma depois se cala, as gotas fortes marcam território lá fora enquanto as pausas de silêncio

dos homens quase ensurdecem.

Dois goles no café que esfriou um pouco, uma tosse rápida como quem pretende despertar o amigo que

aparenta estar ali apenas com o corpo, mas no espírito e na mente viajou para outros tempos.

“Lucas, não sei se estou errado, mas tenho a impressão de que você foi bem instruído, veio de uma família

bem-educada, já viveu dias melhores do que os atuais. ” Outra pausa, dessa vez mais breve, o rapaz gira

lentamente a xicara sobre a mesa com a ponta dos dedos sem demonstrar nenhum tipo de emoção e

permanece escutando.
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“Ás vezes fico intrigado, pensando em como veio parar nessa situação. Sei que é reservado e admiro seu

jeito discreto, não quero me meter em sua vida, mas sou homem experiente, pai de filhos que tem quase a

tua idade e com o tempo tenho aprendido que falar pode ser muito útil. A gente coloca coisas ruins para

fora e dá ao outro a oportunidade de nos ajudar, nem que seja apenas ouvindo, quem sabe...”.

Lucas continua com os olhos fixados na xicara sobre a mesa e permite que um breve lapso projete sua

mente e vislumbre fragmentos de imagens da família que há tempos não faz contato.

Vê o pai, cabelos brancos, desalinhados, deitado de lado sobre a cama naquele mesmo quarto antigo de

sempre. Os livros irregulares sobre a escrivaninha de madeira, o espelho com a mancha de mofo enorme

no canto superior, a janela escancarada deixando a luz da lua invadir o ambiente, iluminando o chão,

clareando o teto e os pensamentos do velho que se mantém entre o mundo dos sonhos e da consciência,

olhos fechados, à espreita enquanto o filho não volta para casa.

Entre sonhos e esperanças, às vezes desperta, abrindo os olhos rapidamente, com a impressão de que

ouviu um barulho e o filho chegou. Dessa vez era Ricardo que passa pelo corredor e fala qualquer coisa

para o velho que responde com voz fraca, suspira, vira-se para o outro lado e fecha os olhos devagar.

Ainda no mesmo flash de visão que dura na prática meio segundo, mas na mente uma eternidade, Lucas

enxerga o irmão encostando a porta do quarto do pai com cuidado, mas não consegue discernir o que vê

na face, se é contrariedade, decepção, irritação ou tudo ao mesmo tempo. Um suspiro rápido seguido de

passos resignados em direção ao quarto que dormiam quando eram menores, o mesmo no fim do

corredor que depois ficou para o primogênito.

Ricardo sofre porque o pai se recusa a deixar de esperar pelo caçula. Durante dias, logo quando Lucas

partiu, tentou suprir a falta do irmão ficando mais tempo em casa, ajudando nos trabalhos, argumentando

que se alguém se desliga da família, e escolhe assim por pura deliberação, não merece que ninguém

espere e nem que sofra por isso.

Mas o que mais amargurava Ricardo foi o fato de ter aberto mão de seus planos de se mudar, ir para um

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apartamento próprio, arrumar um trabalho, quem sabe constituir família.

Esse era um pensamento antigo, um desejo nunca consumado por medo de que o pai não aprovasse e

interpretasse sua intenção como desfeita, como abandono, como ingratidão de quem tudo sempre

recebeu.

Protelou, protelou, protelou até que finalmente achou que era hora. Planejou o discurso, afiou

argumentos, como responderia se o pai questionasse isso ou aquilo, tomou coragem, escolheu um imóvel

pequeno, mas que lhe serviria perfeitamente, tomou a decisão a custo de noites sem sono, culpas

acusatórias, tentando convencer-se de que não estava cometendo mal algum ao pai, nem a ninguém,

afinal merecia!

A intenção dissolveu-se quando soube que o caçula lhe antecipou de forma desastrada, desrespeitosa e

precipitada. Restou a frustação por não ter ido antes, por ter perdido de novo.

“.... Quem sabe até podendo fazer alguma coisa para tornar as coisas mais fáceis. Você sabe que tenho

alguns contatos e geralmente quando as coisas apertam é útil ter amigos que possam nos ajudar. Não

pense que quero me meter em sua vida...”

A voz geralmente grave de Wolney soa cautelosa, tom mais leve, como quem pisa em terra desconhecida e

não quer se surpreender colocando os pés onde não deve. Ele não percebe que Lucas ouve parcialmente,

dividindo a atenção entre as palavras do chefe e as memórias que não sabia que ainda existiam e, pior,

latejavam com força diante da mínima e involuntária concessão.

Por pouco consegue ouvir a voz do irmão na última conversa que tiveram antes que tomou a decisão de

partir.

Era um dia quente como há muito não fazia.

Depois do almoço algumas formações de nuvens ao Leste indicavam a possibilidade de chuva mais tarde e

traziam um pouco de umidade, diga-se de passagem, extremamente bem-vinda.

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Flavio Siqueira

O Filho Pródigo – Um ensaio sobre a Culpa, a virtude e o perdão

Lucas estava no jardim dos fundos com um violão no colo e observado os funcionários que trabalhavam no

pomar e na plantação, regando, plantando, capinando como se nunca cansassem.

De vez em quando um dos homens pegava uma jarra de plástico vermelho cheia de água e dividia com os

companheiros, primeiro as poucas mulheres, depois todos bebiam, uns molhavam o rosto, outros

alongavam os braços e pernas, esticavam-se para aliviar os movimentos continuados e cansativos e logo

retomavam o trabalho.

Crianças, filhos dos trabalhadores, distraiam-se com brinquedos de plástico, os menores, e os mais

crescidos corriam de um lado para outro, os meninos com suas bolas, as meninas em pequenas rodinhas

observavam as mães que trabalhavam vinte metros adiante.

Pouco a frente um dos homens, nem mais novo, nem mais velho que a média, baixo, forte, queimado de

sol, começa a cantar alto uma música, os outros continuam sem notar, com exceção de dois ou três

companheiros que acompanham o primeiro com batuques e assoviadas.

Lucas olha as pessoas que serviam a família de sol a sol e nem sabia o nome, tampouco as histórias, de

onde vinham, se tinham mais filhos além dos que via, pais, mães, irmãos, esposas, enfim, entretido com o

movimento, absorto em pensamentos que não eram necessariamente de apreço, mas de pura curiosidade.

Mal percebeu quando o pai aparece e caminha entre os funcionários, brincando com aquele que cantava,

depois falando com dois meninos que chutavam uma bola, transitando com naturalidade, como igual,

como amigo.

Agora presta atenção no velho, no jeito que conversa com um e outro, faz um comentário com uma

menina que põe a mão na boca e cochicha alguma coisa, cumprimenta os trabalhadores que lhe retribuem

o sorriso em seguida entra na sala de ferramentas.

Ricardo aparece logo atrás, mas não toma conhecimento das pessoas, segue com o rosto fechado e

apressa o passo, como um escudeiro do pai, mantendo-se distante, calado, e também entra na sala.

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Flavio Siqueira

O Filho Pródigo – Um ensaio sobre a Culpa, a virtude e o perdão

“.... Mas quero lembrar que pode contar comigo e, não sei exatamente o que, mas se eu puder fazer

alguma coisa ficarei feliz...” Wolney ainda estava na mesma linha de raciocínio, falando a mesma frase,

oferecendo ajuda, tentando entender a história do novo amigo que se perdeu na percepção do tempo e

encaixava na mente uma história em breves segundos, que agora avança até o momento em que o pai e o

irmão saem da sala onde provavelmente foram procurar alguma ferramenta.

Lucas vê quando Ricardo se irrita em esperar o termino da conversa entre o pai e um funcionário, percebe

o caçula a distância observando, caminha sem pressa em sua direção e senta-se ao lado resmungando

sobre o calor, espantando os mosquitos, suado, impaciente.

Permaneceram calados por algum tempo, um distraído com o vai e vem, as cantorias, brincadeiras das

crianças, trabalho dos adultos, uma espécie de bagunça organizada onde cada um cumpria seu papel,

confortáveis em seus lugares.

O outro, presente em corpo, distante na mente, sentindo-se de alguma forma afetado por não se incluir,

auto exilado em si mesmo e cobrando a vida pela falta de gosto, de reconhecimento, de aplausos

minguados apesar de tantas virtudes, tantos motivos, tantas razões para que notassem.

“Não sei o que o pai vê nessa gente”. Diz Ricardo usando o frequente tom entre desdém e acusação. O

caçula não se mexe, apenas ouve. “Não me incomodaria se o pai fosse bom com eles, se fizesse um desses

agrados que às vezes gosta de fazer com presentinhos para os filhos no Natal, umas bonificações aqui,

outras ali, isso até incentiva o rendimento no trabalho, essas coisas eu concordo...” Uma pequena pausa

para adequar a fala aos pensamentos que tendem atropela-la, avançando em indignação disfarçada,

contida e besuntada em ares piedosos. “..., mas me preocupa o pai dar tanta liberdade para essa gente.

Sim me preocupo mesmo. Queira ou não ele é velho, ingênuo demais para perceber que esse tipo de

confiança pode virar contra si mesmo, essa liberdade toda não é compreendida por esse pessoal que acaba

ficando relaxado demais, achando que tudo é festa, que não é preciso responsabilidades, muito menos

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Flavio Siqueira

O Filho Pródigo – Um ensaio sobre a Culpa, a virtude e o perdão

respeito, é isso que o pai não percebe, apesar de tantos avisos que dou. ”

Lucas ouve em silêncio. Já se acostumou a deixar que o irmão fale sem alimentar polêmicas, evitando que

o assunto se prolongue até virar discussão.

Ricardo nunca nota a indiferença do irmão, na verdade quase não nota o que não estiver ligado a si

mesmo, suas necessidades, carências, vontade de ser incensado nas próprias virtudes, como filho correto,

como naturalmente superior porque sempre faz as melhores escolhas, por cumprir as ordens do pai

melhor do que ninguém.

Ele fala e não precisa que o irmão responda, especialmente por que fala para si mesmo, como se estivesse

tentando convencer-se da injustiça de quem se sente diminuído por achar que ele deveria ser o canal das

benfeitorias do pai.

“Ao invés de se expor desse jeito, correndo o risco de perder o respeito dessa gente, bastava que o pai me

enviasse e eu iria, falaria, presentearia, faria essas coisas que ele acha tão importante e preservaria sua

autoridade”. Um suspiro inconformado precede o lamento. “Mas parece que ele não entende. ”

Com olhos fixos na conversa entre o pai e uma roda de quatro ou cinco trabalhadores, encosta na cadeira,

passa a mão encardida na boca como se fosse um guardanapo, aperta os olhos e dá um sorrisinho irônico.

“Abrir mão do salário ninguém quer, mas perder tempo com essas batucadas, essas brincadeiras sem

sentido, eles perdem e, pior, com o pai lá no meio. ”

“Porque não deixa de se preocupar com isso e vai cuidar da própria vida? ” A pergunta de Lucas fluiu

naturalmente, sem nenhum tipo de irritação ou vontade de provocar o irmão, foi apenas uma constatação

óbvia.

Parecia natural que Ricardo pelo menos considerasse que seu incômodo era desproporcional. Mas, como

era de se esperar, não foi assim que reagiu.

Ouviu o irmão como quem estivesse despertando de um transe, ou talvez saindo de um para entrar em

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outro pior, encarou-o em breve silêncio, mediu a reação, afiou o pensamento, focou o alvo, suspirou com

raiva nos olhos, mas manteve o timbre de voz tranquilo, como fazia sempre.

“Não pensei que entenderia mesmo. Não espero que se preocupe com o pai. Cuidar da própria vida...”.

Uma pausa indignada, um sorriso nervoso “... é só isso mesmo que você pensa em fazer e faz mal. Cuida da

sua própria vida e se esquece de cuidar do próprio pai, cuida da própria vida e não vê como as pessoas se

aproveitam da gente, cuida da sua própria vida e nem percebe como pai acaba correndo riscos, fazendo

bobagens e..... Você nem percebe... cometendo injustiças, até! Cuida da própria vida e causa preocupações

desnecessárias, faz a gente sofrer, não se importa, não dá satisfações, não cumpre regras, não respeita

autoridade do pai, do irmão mais velho, não respeita ninguém, mas isso não é um problema, não tem a ver

com você, afinal, tudo o que tem a fazer é cuidar da própria vida. ”.

“Não foi isso que eu disse, não quis te ofender...” Lucas interrompeu a frase quando voltou os olhos para o

irmão pela primeira vez naquela conversa e se assustou diante da imagem que viu. Ele parecia

transtornado, pele avermelhada, suado, gordo, mãos trêmulas, mas o que mais lhe chamou atenção foi o

olhar de profunda mágoa, vazando o rancor que se expressava em palavras duras contrastando com a voz

suave.

“Meu irmão, temo pelo seu futuro. Talvez ninguém perceba o quanto me preocupo com essa família, o

quanto me esforço para cuidar, ensinar, mostrar o caminho a você, inconsequente como se estivesse

permanentemente bêbado, sem medo das consequências dos seus atos. O pai, com seu coração mole,

quer agradar a todos, fazer a vontade de gente que não merece, que se aproveita de sua ingenuidade que

nunca pede nada em troca e depois, uma hora ou outra, vai acabar se dando mal. ”

Ricardo recupera o tom de superioridade, desvia o assunto emprestando um ar virtuoso, distorce o que ele

mesmo, no íntimo, sabe não ser verdade.

“Me perdoe, irmão, se fui agressivo no que disse. Não quis te ofender nem estou chateado pelo pai dar

tanta confiança aos funcionários...” Funcionários é melhor que “essa gente”, pensou Lucas, mas não disse

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nada e continuou ouvindo.

“.... Eu mesmo sempre cumprimento a todos e os quero muito bem, inclusive já parei algum tempo para

dar atenção as crianças ou conversar com um ou outro dos homens, só me preocupa o pai se expor dessa

maneira sem permitir que eu me coloque nessa relação patrão, empregados, ajustando as coisas nos eixos,

evitando que amanhã dissabores vindos dessa, digamos, permissividade, aconteçam. ”

Lucas não respondeu. Olhou para baixo e concordou sem convicção balançando duas vezes a cabeça,

sabendo que não justificaria dizer qualquer coisa, argumentar que não havia razão para tais temores, pois

o pai sabia o que estava fazendo, que tinha consciência de que não era bom filho e concordava com o as

acusações do irmão, de ser egoísta, de preocupar-se mais consigo mesmo do que com as outras pessoas,

de sua inegável insubmissão.

Sentia-se mal por ser assim, mas do que valeria dizer ao irmão? Concordar, ainda que em parte, seria

fornecer munição para futuras cobranças.

Adiantaria alguma coisa se dissesse que seu jeito controlador e ciumento disfarçado de preocupação

piedosa só afastava as pessoas, inclusive o próprio irmão? Que provavelmente o pai sofria, não só com a

rebeldia do caçula, mas também com a dureza do primogênito?

Será que Ricardo sequer pararia para pensar se Lucas tentasse mostrar quão evidente está para os olhos

de todos as profundas mudanças de personalidade que o mais velho tem demonstrado nos últimos anos,

desde que eram meninos?

Perderam a mãe e o irmão tomou a dianteira tentando cuidar de tudo e de todos, até que aceitou a

armadilha dos elogios, acreditou nas virtudes que lhe atribuíam com recorrência e firmou-se nelas,

querendo mais, trocando a genuinidade do que sentia pela aprovação, ou mais do que isso, pela reverência

que, sutilmente, acreditava merecer.

Ele nunca reconheceria que sua bondade perdeu a essência, tornou-se um fim em si mesmo, uma

oportunidade de alimentar a tão almejada reputação que crescia aos olhos da comunidade e de todos os
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que o apontavam como referência de sobriedade, justiça e sabedoria.

Não há, entre as lembranças de Lucas, clareza de como a conversa terminou.

Lembra-se vagamente do pai se despedindo do funcionário e Ricardo indo ao seu encontro. Sabe que o

importante para resgatar a memória terminou, caso contrário, provavelmente iria além.

Estranho como podemos condensar um diálogo, um dia, ás vezes uma vida inteira em um flash de

pensamento que, mesmo não mostrando detalhes, nem devolvendo as nuances ou tudo o que cada

palavra nos remeteu, é capaz de permitir que revivamos em poucos segundos uma história inteira.

Revisitou algo que estava guardado, quieto, ruminando em algum compartimento da mente e de repente

acordou, submergiu e não precisou de mais do que um breve instante para gritar “Estou aqui! ”.

Provavelmente por ter percebido a distância de Lucas, a mente suspensa em algum lugar, o olhar perdido

que durou o tempo que falava na tentativa de aproximação, Wolney deixou que o silêncio do funcionário o

trouxesse de volta e colocasse fim naquela conversa.

Pararia de falar até que Lucas despertasse, fazendo um comentário qualquer sobre o dia que começou a

clarear.

Lá fora um galo canta.

Da chuva que cessou, só pode-se ouvir as gotas que despencam aos poucos do telhado molhado, passando

pela calha e juntando-se as poças ainda cheias. O ar está úmido e as nuvens começam a dissipar.

Wolney abre uma das janelas. “E seu banho, cara? Vou pegar roupas secas. ”

“Não se preocupe. Tomo no banheiro lá de fora, a chuva passou, quero ver se meu canto está muito

molhado. ” Respondeu Lucas já se encaminhando para a porta sentindo-se estranho pelas intensas e

súbitas lembranças.

Ele ainda agradeceu a Wolney pelo café, pegou o casaco molhado pendurado na entrada e saiu enquanto

os porcos o acompanhavam com os olhos, curiosos por um instante, depois, como quem tem coisas mais
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importantes a fazer, voltaram para a lama e suas vidas no chiqueiro.

“Atenção senhores passageiros, chegaremos ao nosso destino em quinze minutos. ” – A voz grave do

maquinista resgata os pensamentos de Lucas.

O corpo afundado na poltrona, a mente, sem limites de tempo, de espaço, viajava entre os tantos mundos

onde esteve. Mundos de alegrias e prosperidade, mundos escuros, cheios de dúvidas, de medos, de

atitudes impulsivas que o levaram para muito longe do que chamava de lar. Fazia muito tempo que Lucas

não sabia o que era um lar, mesmo enquanto se mantinha na casa do pai.

Através da janela do trem a paisagem parecia cada vez mais familiar. Estava chegando, mas aonde mesmo

queria chegar?

O maquinista falava sobre destino. “Em quinze minutos, o destino. ”. Qual destino? Voltar para casa e pedir

emprego para o pai, realmente parecia um destino?

Se pensasse em cada mínimo movimento, via nele um destino. Sair de casa parecia um destino, aproveitar

a vida, o destino ideal. Então a vida mudou.

A pobreza, os porcos, o sofrimento como destino inevitável até que o desespero mais profundo depois de

uma noite fria e chuvosa, vivendo em um chiqueiro, alimentou a perspectiva de outro destino.

Talvez não houvesse um destino. Cada vez mais a vida parecia a somatória de destinos, muitos destinos,

cada destino contido em uma experiência. Cada experiência alterando o caminho e criando novos destinos.

Sentiu-se bem ao pensar que, provavelmente, não esteja indo para um destino específico. Todas as

experiências, das menores as maiores, cada situação corriqueira que viveu, contribuiu para que estivesse

naquele momento sentado em uma poltrona do trem, voltando para casa, e, seja lá o que acontecesse na

volta, tudo bem, seria apenas mais uma peça dos outros destinos que ainda viveria.
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Pensou na última conversa com Wolney.

Na manhã seguinte ao temporal o dia amanheceu limpo, quase sem nuvens e com a temperatura muito

agradável. Depois do café na casa do patrão, Lucas voltou ao chiqueiro onde ficava seu quarto, tomou

banho e tratou de secar o colchão, as roupas, de verificar se a ventania destruiu alguma cerca.

Trabalhou intensamente durante toda manhã, sem pensar em nada, apenas concentrado em fazer o que

tinha de fazer, o que não era pouca coisa. Alimentou os porcos enquanto verificava se todos estavam bem.

Cabia ao funcionário a inspeção cotidiana, checando se havia feridas, limpando as orelhas para que

nenhuma infecção vitimasse um animal. Se percebesse algo diferente chamaria o veterinário.

Foi no almoço que os pensamentos represados durante a manhã resolveram aparecer. Talvez não fossem

apenas os pensamentos da manhã, mas de uma vida inteira.

Vieram de repente, como se uma luz, subitamente, tenha sido acendida e revelasse um cenário assustador.

Sentado entre os porcos, comendo um resto da comida do dia anterior, percebeu-se indigno.

Não foi dolorido, nem tinha a ver com algum sentimento de humilhação, mas, naturalmente, percebeu-se

indigno da pena que sentia de si mesmo, das autossabotagens impostas depois que a mãe morreu, do pai

que sofreu tanto com sua rebeldia, do irmão, que do seu jeito, tentava ser o melhor que sabia ser.

Sentiu-se indigno do gesto do patrão na noite anterior, tentando ajudá-lo sem que lhe concedesse

nenhuma abertura, indigno daquela manhã iluminada e fresca, indigno de se meter no meio dos porcos

que viviam suas vidas, vidas de porcos, muito mais dignas do que a vida que tentou levar até aqui.

Pensou no esforço para aproveitar a vida fugindo de casa, construindo castelos de areia que

desmoronariam com as mínimas rajadas de vento escondidas nas esquinas do caminho.

Quanta angústia na busca por felicidade. Quanta dor até entender que provavelmente a tal felicidade não

existe como destino final, mas como experiência cotidiana, assim como os destinos, contida em cada

mínima experiência.

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Pensou na casa do pai, na alegria dos funcionários, em como todos viviam em harmonia e como aquilo era

mais importante do que tudo. Lucas sentiu que chegava em mais um destino. Todas as últimas

experiências, incluindo a difícil noite que viveu há algumas horas, completavam gota a gota um copo que

agora transbordava.

A água que caia pelas bordas representava clareza de entendimento e isso bastava para que novos

cenários se constituíssem. “Melhor voltar para casa do pai e encarar os fantasmas que ainda me

assombram. Melhor pedir para ser empregado, viver entre os que trabalham na casa, do que permanecer

aqui me colocando entre os porcos, como se eu fosse mais um animal vivendo no chiqueiro. Não faz mais

sentido ficar aqui. Não faz mais sentido fugir. Se voltar é meu próximo destino, é para lá que eu vou.” – O

pensamento moveu Lucas do chiqueiro e o colocou na porta da casa de Wolney. Quase não percebeu que

no instante seguinte batia na porta e anunciava sua partida para o patrão.

A busca por ser digno diminuiu Lucas, exatamente como fazia com Ricardo.

Estranhamente aprendeu com os porcos e com as dores a ser pequeno, indigno, talvez.

A indignidade trouxe liberdade e a liberdade, contraditoriamente, o expandiu. Deparou-se com uma lógica

inversa: A incansável busca por ser maior lhe tornava refém, dependente de aprovações, ávido por um

destino que existia como utopia, mas jamais chegaria a se concretizar.

Reconhecendo-se indigno diminuíam as expectativas e, consequentemente, as frustrações. Agora não

corria atrás de uma autoimagem previamente construída, mas simplesmente caminhava atento ao que o

momento lhe reservava.

Ser indigno não representava ser menor. Nem pior.

Nesse caso, ser indigno representava um esvaziamento de pretensões, como se nele não houvesse

nenhuma “dignidade” reclamando reconhecimento. Não precisava disso e pensar assim era bom.

Sentia-se leve ao assumir a indignidade dos porcos, dos animais, das crianças que não se colocam como

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merecedoras de nada e, por isso mesmo, também não se percebem como piores. São o que são e vivem o

presente. Não precisam provar nada, nem a si mesmos, nem a ninguém.

Wolney não demonstrou surpresa quando Lucas anunciou a partida. Explicou o estranho despertar dessa

manhã que parecia lhe indicar um único caminho: voltar para casa do pai.

Conversaram o suficiente para que Lucas explicasse de onde veio e como foi parar naquele trabalho. Fez

bem compartilhar sua dor. Disse que esteve fugindo de si mesmo pensando que era do pai ou do irmão.

Que durante os últimos anos tinha sido assombrado pela própria culpa que carregou para onde foi e,

sempre que sentia que ela se aproximava, fugia.

“Hoje ficou claro que culpava meu pai e meu irmão pela morte precoce de minha mãe, por mais que eles

não tivessem culpa alguma. Quis puni-los porque meu sofrimento era tanto que precisava de um rosto, de

um culpado, de uma justificativa. Sentia que eu também era responsável de alguma maneira e então me

impus o exílio e as dores pareciam mais do que justas. Sofrer me expurgava, me punia. ”- O tom de voz de

Lucas era suave. O profundo sofrimento da noite anterior parecia ter se transformado em clareza e

serenidade.

“Fiz o que tinha que fazer, vivi o que tinha de viver e não me arrependo. Precisei desse salto no abismo

para depois retornar mais consciente. É nesse ponto onde estou agora, Wolney. Minha próxima viagem

será de ida para casa, precisarei partir, vim lhe avisar e agradecer por tudo. ”

Nessa hora Stella, a esposa de Wolney, apareceu. Ela estava na sala com Pedro, um dos filhos, e ouviu a

conversa. O menino ficou atrás da estante e a mãe se adiantou:

“Meu filho, faz tempo que eu e meu marido percebemos sua dor. Chegamos a conversar sobre isso, mas

sempre respeitamos seu direito de não contar. Em determinados momentos chegamos a nos preocupar,

com medo que estivesse fugindo da justiça e que pudesse trazer algum problema para gente. ” – Stella

olha para o marido que permanece quieto. Ela continua: “Como mãe que sou, intuía que um dia esse peso

que você guardou no fundo do oceano de culpas viria à tona e, de um jeito ou outro, teria que lidar com

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isso. ”

“Eu não tinha ideias que seria assim tão de repente. ” – Interrompeu Lucas.

“Hoje sai do café com o Wolney muito cedo, não dormi nada e segui a rotina da manhã sem pensar. Foi

mais ou menos como se um muro antigo ruísse de uma hora para outra e a passagem da luz do sol tivesse

revelado outro cenário. ”

“Não foi de repente, meu filho. ” – Stella fala com doçura na voz e no olhar. “Cada dor, cada pensamento,

cada sensação que teve até aqui serviu para fragilizar esse muro. Como gotas que, uma a uma, caindo

sobre determinada estrutura, tem o poder de enfraquece-la. Foi o que houve essa manhã. Com a queda do

muro você poderia ter se assustado e fugido para outro canto, ainda mais escondido. Mas por alguma

razão hoje não foi assim. Você ficou lá e deixou que o sol revelasse a podridão que o muro escondia. ”

“Não sei se é por isso, mas tenho me sentido indigno. ” – Lucas pensa alto.

“Não diga isso! Todos são dignos! ” – Stella parece angustiada com a frase, mas Lucas continua:

“Quando eu falo sobre ser indigno, entenda, não me refiro a ser menor, pior do que os outros. A sensação

de ser indigno me bateu como algo muito valioso, como se eu não precisasse mais provar nada, nem a

mim, nem a ninguém, como se a dignidade só fosse possível enquanto não busco por ela. ” – Ele para, olha

para Stella e Wolney que permanecem quietos.

“Veja quanta gente vive e morre em busca da tal dignidade, mas o que é ser digno? Aprendi com os porcos

que dignidade se parece com aceitar-se e jamais com a imposição de uma condição, seja ela qual for, que

me manteria na eterna busca de alguma coisa que provavelmente só exista na aceitação. Então abro mão

de minha dignidade, aceito-me indigno, para perceber que, ser digno ou indigno, tanto faz, sou quem

posso ser enquanto me percebo e aceito o que a vida tem me transformado. ”

“O que houve contigo, Lucas? Fala como outro homem. ” – Wolney parece curioso.

“Acho que de repente percebi que o peso da vida, em grande parte, tinha a ver com as sobrecargas que eu

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mesmo fazia questão de carregar. Aqueles porcos, vivendo no mesmo chiqueiro que eu, não carregam os

sentimentos que eu carregava, não se sentiam merecedores de nada, apenas estavam lá. E por isso não

sofriam. Talvez esteja falando como o homem que sempre fui, mas o muro da culpa escondia. Preciso

encarar meu passado e saber o que ficou lá atrás. ”

Na porta da antiga casa os três conversaram mais um pouco.

Stella abraçou Lucas e propôs que Wolney lhe ajudasse com algum dinheiro. O marido saiu por um instante

e retornou com um velho terno para que Lucas voltasse para casa melhor vestido e um pouco de dinheiro.

Depois rabiscou um bilhete com votos de boa sorte e o número de telefone, caso precisasse de alguma

coisa.

Combinaram que o empregado partiria na manhã seguinte. Wolney e Stella o levariam até a estação e

todos se abraçariam timidamente antes que Lucas embarcasse no trem.

Parado na porta de casa, o filho acompanhava de longe os vultos dos pais e do estranho funcionário que

partia.

Os quinze minutos se passaram rapidamente e o trem parou na plataforma.

Lucas não se levantou. A senhora com laquê no cabelo pede ajuda para retirar a mala pesada no bagageiro

sobre os bancos, e o atendente gordo, com gravata torta, se apressa em auxiliá-la. As vozes baixas

recomeçam, pessoas se espreguiçando, crianças animadas com parentes que aguardam na plataforma,

felizes pelo reencontro.

Depois que todos desceram Lucas levantou e seguiu sem pressa. Ninguém o aguardava.
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Caminhou despreocupadamente, nem bagagem carregava, e prosseguiu pelos caminhos conhecidos,

mesmos cenários onde, anos atrás, partiu, sem pensar que um dia regressaria.

A ferrovia ficava perto da casa do pai.

Enquanto caminhava percebeu que poucas coisas mudaram. Era tudo praticamente o mesmo, a não ser

pelo modo como via. É claro que estava apreensivo. Não tinha ideia como seria recebido, se o pai ainda

estaria vivo ou como o irmão encararia esse retorno, no entanto, mesmo apreensivo, estava leve.

Deixou a culpa no chiqueiro e resolveu prosseguir sem carregar as mágoas que antes lhe pesavam cada

passo. Prestava atenção. Via os meninos do bairro jogando bola, os velhos conversando na porta do bar, as

senhoras no banco da praça, tudo como sempre, mas com uma beleza inédita. Algo que emprestava brilho

ao cotidiano agora renovado em seu olhar.

Se deteve quando virou a esquina da rua onde morava.

Adiante estava a casa e, no quintal, uma cabeça branca. Um velho parado na porta parecia esperar sua

chegada. O pai, com olhos perdidos, de repente o reconheceu.

Lucas parou em dúvidas sobre o que fazer.

Viu de longe o velho com movimentos cansados, mas renovando-se enquanto caminhava rapidamente na

direção do filho. O pai estava feliz. Visivelmente emocionado e feliz.

Abraçaram-se como nunca.

O abraço selava reconciliação, perdão, alegria. Não eram necessárias palavras, mas Lucas falou:

“Pai. Me perdoe por tudo. Sei que sou indigno de lhe pedir qualquer coisa. Fui ingrato, precipitado, mas

não fiz por mal”. – Agora Lucas chorava também.

“Eu só precisava saber o que era o mundo longe dessas cercas onde éramos protegidos. Vivi vários

mundos, tive alegrias e sofri demais, até entender que era a mim mesmo que procurava. Eu fugia de todos,

eu fugia de mim. Eu transferia a culpa que sentia sem cogitar que me punia o tempo inteiro. Pai, ontem o
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muro que eu sedimentava com minhas culpas ruiu. Voltei para que me perdoe e que me inclua entre seus

empregados. Viverei feliz servindo sua terra e a do meu irmão. Não quero mais fugir. Quero que me ensine

o valor da gratidão. ”

Enquanto falavam, alguns empregados da casa, percebendo o movimento, se aproximaram e

reconheceram o filho pródigo.

Com voz embargada o pai virou-se para eles: “ Amigos, este aqui é Lucas, meu amado filho que julgavam

morto, mas agora reviveu. Corram e tragam as melhores roupas. Preparem o jantar com tudo o que temos

de melhor, ajeitem a mesa e comam conosco. Chamem toda vizinhança! O Lucas voltou, amigos, meu filho

está de volta! O Lucas voltou! ”.

Ricardo, o irmão mais velho, voltava das compras naquele momento e não entendeu o que estava

acontecendo. Perguntou para um dos funcionários que sorrindo e avisou: “Seu irmão voltou! Seu pai pediu

para que fizéssemos uma festa, nos convidou a todos, orientou as cozinheiras para prepararem o melhor

jantar que já fizeram. Hoje é dia de muita festa! ”

As palavras “festa” e “irmão” não eram conciliáveis para Ricardo.

Não era possível! Depois de uma vida de lealdade ao pai, de renúncias e entrega total, depois de

permanecer esses anos todos tentando tapar os buracos deixados pelo irmão mais novo e notar, dia após

dia, a chama do pai diminuir com os ventos da interminável tristeza, sem mais nem menos, o irmão resolve

aparecer e agora uma festa?

Definitivamente não compactuaria com isso.

Se quisessem festejar o retorno de Lucas que o fizessem, mas, depois que ele sumisse de novo, depois que

levasse mais dinheiro do pai, que não recorressem a sua lealdade. Já fez demais.

Estava cansado, especialmente por notar que uma vida inteira de entregas não valia o reconhecimento

escandaloso proporcionado ao pródigo, que sumiu, gastou dinheiro suado de maneira irresponsável, que

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só pensou em si próprio.

O velho sentiu falta do primogênito e foi buscá-lo.

“O que houve, Ricardo? Teu irmão voltou, venha, somos uma família de novo. Venha meu filho...”

“Como quer que eu festeje? ” – Ricardo falava com indignação inédita, tanto que o pai se assustou.

“Durante esses anos todos, desde que a mamãe morreu, fui fiel a tudo o que pediu. Jamais desrespeitei

qualquer uma de suas vontades e dediquei minha vida a cuidar de você, de nossa casa, de nosso

patrimônio. Abri mão de uma vida própria para que o senhor não ficasse sozinho. Ocupei os muitos

espaços deixados por Lucas e me preocupei enquanto tudo o que ele queria era aproveitar a vida gastando

dinheiro de maneira mais irresponsável possível. ” – O tom de voz de Ricardo, sempre manso, se elevava

ao ponto de chamar atenção dos funcionários e de Lucas, que, no canto da sala, ouvia com cabeça baixa.

“Eu me anulei, pai. E o senhor vivia com olhos perdidos, parado na porta de casa esperando o milagre da

volta do filho. E agora, sem mais nem menos, como se nada tivesse acontecido, ele aparece. ” – O irmão

percebe a presença do caçula, respira fundo e continua a falar sem elevar tanto a voz, mas com incontida

amargura.

“O senhor jamais percebeu que eu tinha minhas próprias necessidades. Nunca me ofereceu a

oportunidade de sair e experimentar a vida como Lucas fez. Não casei, não tive amigos, não fiz família, não

comprei nada de valor. Eu sempre estive aqui, pai. Eu sempre estive aqui...” – As palavras que jorravam

desesperadamente cessaram. Há silêncio na casa e o pai se aproxima do mais velho com lágrimas nos

olhos.

“Meu filho querido. Perdoe se fui negligente com tua dor. Se permiti que esses anos passassem sem

prestar atenção em tuas necessidades, sem reconhecer a contento teu cuidado. Sim, meu querido, você

sempre esteve aqui e tudo o que tenho é teu. Tudo o que sou é teu e tudo o que vê é para você. Mas

pense, talvez a entrega desses anos todos não tenha sido necessariamente um ato de amor por mim, mas

um jeito que encontrou para que superasse a dura perda de sua mãe.
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Flavio Siqueira

O Filho Pródigo – Um ensaio sobre a Culpa, a virtude e o perdão

Você não viu quantas vezes abri frestas para que a luz penetrasse e revelasse o que estava escondido em

sua alma, atrás de suas atitudes virtuosas. Quantas noites me inquietei ao perceber que você se

amargurava, sufocado pela necessidade de que suas virtudes fossem reconhecidas. Eu não quis que

dependesse delas.

Sou velho, meu filho, e aprendi com o tempo que só podemos ser inteiros em uma relação quando ela não

se constrói sobre a expectativa de méritos. Méritos sempre são relativos. Estou falando especialmente da

relação que mantemos com nós mesmos.

Posso ter sido desatento em muitos momentos, mas me permiti a desatenção como forma de te resgatar.

” – Os dois filhos ouviam atentos e cabisbaixos, o pai continuava com doçura:

“Não foi apenas Lucas que partiu. Quem estava aqui não era você. Esse que ficou foi sua resposta a culpa.

Você também não estava aqui. Lucas foi embora de maneira dolorida e traumática. Você ficou de maneira

amargurada e ferida.

Lucas pediu sua parte na herança e foi em busca de si mesmo. Você se manteve e pensou que a parte que

lhe faltava não estava na herança, mas nas virtudes e no reconhecimento de que elas te consagrariam

melhor, merecedor de algo que teu irmão abriu mão.

Hoje, meu filho, você sofre porque faço festa na volta de Lucas, mas a festa não é só por ele. Comemoro

que, ao colocar para fora suas angustias, ao revelar as dores que nutriu no escuro durante tanto tempo,

assim como aconteceu com seu irmão, o muro sedimentado por tuas culpas caiu também e agora você

pode se enxergar.

Não quero suas virtudes, nem espero que seja perfeito. Não acredito em perfeição. Assim como não quero

que Lucas seja um devoto de minhas causas ou iniba o espírito livre que sempre teve.

O que eu quero é que vocês decidam os próprios caminhos, que você seja livre para seguir adiante e

construir sua própria família, se assim o quiser. Que Lucas experimente a liberdade que lhe é tão cara, sem

nutrir por isso nenhum tipo de culpa que gerou tantas autossabotagens.
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Flavio Siqueira

O Filho Pródigo – Um ensaio sobre a Culpa, a virtude e o perdão

Hoje comemoro a volta dos meus dois filhos. Os dois que voltaram! Não os que sofreram nos últimos anos,

mas os que, antes que a mãe morresse, eram livres. Agora vejo os dois de volta, aqui na minha sala, e

quero comemorar por isso! ”

Muitas coisas aconteceram após a volta de Lucas.

Foi difícil a reconciliação, havia muita mágoa entre os irmãos, mas todos reconhecem a necessidade de que

passassem pelo que passaram para perceberem que ambos eram prisioneiros.

Um se machucava com escolhas erradas por se sentir culpado.

Outro, pelo mesmo sentimento, tentava diminuir o peso da culpa a partir do brilho das virtudes.

O encontro com o pai na volta de Lucas revelou o que ambos escondiam em seus gestos aparentemente

antagônicos, mas tão próximos nas raízes que os nutriam.

Perceber os aproximou.

Depois que o pai morreu, poucos meses após a festa, aproximaram-se, reconhecendo-se indignos em

relação ao outro. Estava claro que não havia méritos naquela relação. Fizeram o que sabiam fazer e

lidaram com a culpa conforme as percepções que eram capazes de elaborar. Perdoaram-se.

Não era o caso de projetar sobre os outros as responsabilidades das próprias escolhas, mas de reconhecer

que era necessário livrarem-se dos autoenganos que culpava o outro, a vida, o mundo, e, por isso mesmo,

impedia que reconhecessem a responsabilidade de cada um.

A vida é um mistério inexplicável.

A ciência, a filosofia, a religião, tentam apontar caminhos que vez ou outra nos parecem mais razoáveis,

mas nenhum apontamento será capaz de nos apaziguar por completo. Enquanto vivemos haverá lacunas,

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O Filho Pródigo – Um ensaio sobre a Culpa, a virtude e o perdão

dores que jamais se encaixarão em explicações definitivas.

Nossos caminhos são tentativas de diminuir as contradições, de nos reposicionar diante dos absurdos da

existência, como a morte precoce da mãe amorosa deixando filhos e pai a própria sorte.

Perdidos, saímos em direções opostas, as que nos parecem mais oportunas em relação as respostas que

precisamos, mas, quantas vezes, perceberemos adiante que se tratava de fuga.

Um dia vem o cansaço.

Cansaço da busca, da fuga, das brigas, um dia, quem sabe, a gente perceberá que nossos movimentos

apenas construíam muros que impediam a passagem do sol.

O sol sempre esteve lá.

Mesmo nas madrugadas, era somente questão de aquietar-se e esperar que ele surgisse como sempre, no

horizonte.

Ricardo permaneceu na propriedade por pouco tempo após a morte do pai. Pacificou-se, construiu a

própria família como sempre sonhou. Deixou de ser o modelo ideal da virtude e conformou-se em ser

apenas humano, pai, marido, homem. Tornou-se leve e feliz.

Lucas manteve os negócios do pai e propôs aos funcionários uma espécie de cooperativa. Dividiu a terra

com os trabalhadores e até hoje viaja pelo mundo palestrando sobre a importância de uns cooperarem

com os outros.

Certo dia, depois de uma palestra, reconheceu Wolney e Stella na plateia. Eles estavam acompanhados dos

filhos, já crescidos, e foi um momento de beleza e reencontro.

Passaram a noite juntos e não puderam deixar de relembrar os tempos que se conheceram e a conversa

que antecedeu a decisão de voltar para casa.

Lucas falou sobre a importância do casal em sua vida e de como cada experiência, incluindo a noite

chuvosa em que Wolney lhe chamou para um café em casa, foram fundamentais para chegar naquele
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Flavio Siqueira

O Filho Pródigo – Um ensaio sobre a Culpa, a virtude e o perdão

ponto.

“Quando olhamos de forma isolada, cada acontecimento parece inútil. A vida perde o sentido quando

deixamos de percebê-la como a somatória de cada pequeno movimento, cada pequeno encontro, cada

dor, cada alívio, um conectado ao outro, todos nos encaminhando para novos destinos. ” Lucas para, olha

para a família e conclui sorrindo: “Quando, no melhor dos meus sonhos, pude imaginar um destino como

esse que estamos compartilhando agora? ”.

“Você ainda se sente indigno? ” – Perguntou Wolney, com ar desconfiado.

Lucas pensou um instante usando a mesma expressão que o pai fazia quando questionado com seriedade.

“Talvez a palavra não seja exatamente essa. ” Depois emendou: “Quando olho para os caminhos que

percorri, as dores que impus a mim, meu irmão e meu pai, não tenho como crer que sou digno das alegrias

que tenho experimentado. Mas talvez a vida seja assim mesmo e, em última análise, ninguém seja digno

de nada. Isso empresta leveza ao caminho. Depois que o muro da culpa caiu, parei de tentar discernir se

mereço ou não mereço e isso vale para meu irmão ou qualquer um. ” – Ele faz uma pausa, pensa algo e

retoma:

“Quer saber se me sinto indigno? Como posso responder com clareza se nem sei responder porque um dia

eu nasci. Foi preciso que meu castelo ruísse e em determinado momento transformasse minha dignidade

em indignidade. Para ser sincero hoje não penso mais nisso.

Dou importância a cada dia e tudo o que faço é viver para emprestar significado a cada momento. ”

Aquele foi o último encontro pessoal entre Lucas, Wolney e Stella.

Seguiram seus caminhos, os pequenos destinos de cada dia, gratos pela experiência de um dia terem se

encontrado.

Wolney ainda manteve contato com Lucas por algum tempo, mas depois a vida naturalmente os afastou,

apensar de nunca ter apagado o carinho e a gratidão que nutriam pelo outro.

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O Filho Pródigo – Um ensaio sobre a Culpa, a virtude e o perdão

Anos depois que meu pai morreu. Fiz questão de levar adiante a história que ele compartilhou comigo,

meus irmãos e todos os que se aproximavam.

Contava para todos sobre o jovem que se ofereceu para cuidar de porcos lá em casa e foi capaz de

promover tantas reviravoltas na própria vida depois de uma madrugada de dores e tempestades.

Wolney, meu pai, nunca mais foi o mesmo depois que se despediram na ferrovia.

Minha mãe faleceu no fim do ano passado.

Sempre que se referia a Lucas, o fazia como quem fala sobre um filho querido. Ela reconhecia como a força

daquela história foi capaz de sensibilizar meu pai para a vida, e como tudo foi importante para a família

que nos transformamos.

Sou homem formado, tenho filhos quase crescidos e estou muito distante daquele menino que fui, quando

meus pais ainda tomavam conta de porcos.

Tudo passou rapidamente e a vida ofereceu caminhos que sequer imaginei.

Hoje escrevo livros e sou reconhecido pelo meu trabalho, mas nunca deixei de ser aquele menino parado

na porta de casa, acompanhando os vultos do meu pai, mãe e Lucas indo embora.

A história do filho pródigo promoveu novos destinos nos caminhos de Lucas, Ricardo, seus pais e os meus

também.

Em certa medida éramos todos perdidos, indignos, quem sabe, até que a volta do caçula para o lar, nos

trouxe, todos, de volta para casa também.

E daqui para novos destinos.

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