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MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL

PROCURADORIA DA REPÚBLICA EM SERGIPE


1º Ofício da Tutela Coletiva
_________________________________________________________________________________________

EXCELENTÍSSIMO SENHOR JUIZ FEDERAL DA __ VARA DA


SEÇÃO JUDICIÁRIA DE SERGIPE.

O MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL, por intermédio da

Procuradora da República infra-assinada, vem, à honrada presença de Vossa

Excelência, com fundamento na Constituição da República, na Lei Complementar

nº 75/93 e na Lei nº 7.347/85, propor a presente

AÇÃO CIVIL PÚBLICA

em face do

UNIÃO, estabelecida na Avenida Beira Mar, 53, Bairro

Treze de Julho, Aracaju/SE, CEP 49020-010,

FUNDAÇÃO NACIONAL DO ÍNDIO – FUNAI -, pessoa

jurídica de direito privado, com sede no SEPS Quadra

PÁGINA 1 DE 83
MPF – Procuradoria da República em Sergipe
Av. Beira Mar, 1064, Praia Treze de Julho, Aracaju-SE, 49020-010
PABX: (0xx79)3301-3700 - FAX: (0xx79)3301-3830
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1º Ofício da Tutela Coletiva

702/902 Projeção A, Ed. Lex, CEP 70.390-025,

Brasília/DF, representada judicialmente pela Procuradora

Federal no Estado de Sergipe1

pelos fatos e fundamentos jurídicos a seguir explanados.

1 – DOS FATOS

O Inquérito Civil Público nº. 1.35.000.000089/2007-18 foi

instaurado a partir de reunião ocorrida na sede desta Procuradoria da

República, oportunidade em que integrantes da etnia Fulkaxó relataram a

impossibilidade de convivência com as lideranças da etnia Kariri-Xocó,

estabelecida em terra indígena situada em Porto Real do Colégio/AL, local em

que os Fulcaxós residem. Segundo o relato dos Fulkaxós:

“Com base nos acontecimentos ocorridos aos longos anos nessa aldeia

indígena Kariri-Xocó, o qual temos vergonha de relatarmos (sic),

estamos perdendo nossa dignidade de sermos índios de livre arbítrio

para darmos continuidade a nossa descendência, nossos costumes,

tradições, idioma e o mais importante, RITUAL, INDÍGENA

RELIGIOSO E OCULTO.

Pelo presente, recorremos as autoridades competentes em caráter de

emergência, condições de sobrevivência para os componentes da nova

tribo com abaixo assinado anexo.

Justificamos também, com meias palavras, a nossa saída do centro

1 Conforme a Portaria n. 877, de 27 de Julho de 2007, do Advogado-Geral da União.

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indígena Kariri-Xocó, devido a grande mistura de índios com brancos

não identificados nessa comunidade, que se tornou bastante perigosa e

as autoridades maiores que consideramos (Paje e Cacique) até agora

não tomaram nenhuma providência.

Muitos índios em contato frequente com brancos, assimilam e

praticam mau conduta com uso de drogas, que se tornam perigosos

para a comunidade.

Somos descendentes de Kariris, Xocós, e Fulniô, mas temos índios de

outras tribos que se foragiram de sua aldeia.

Desde que nascemos temos o conhecimento da junção de duas etnias,

porém está (sic) havendo conflitos entre as mesmas (Kariri e Xocós),

pelo poder de liderança, por este motivo está dificultando a limpeza

total da mesma.

Outrossim, todos estes problemas, traz descaso, desrespeito,

vitimando os índios, não queremos tomar partido nessa disputa, por

esse motivo é que queremos formar essa nova TRIBO, em local onde

poderemos viver com dignidade e liberdade, para darmos continuidade

o que de berço nos pertence”.

Às fls. 11-28, constam documentos relativos à morte de

um índio, supostamente decorrente da ação de 2 índios da etnia Fulkaxó, e que

teria sido o mote inicial do dissenso entre as etnias.

Em 07/03/2007, os índios Fulkaxós protocolaram na

FUNAI requerimento para que a autarquia promovesse a aquisição de terras

para destinação à mencionada comunidade. Por meio do referido documento, os

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índios relataram que são discriminados e desrespeitados pelos índios da etnia

Kariri-Xocó, inclusive com ameaças de morte. Nos termos do relatado:

“Vossa senhoria é sabedor que somos índios natos, reconhecidos e

registrados desta etnia e não pretendemos jamais mudar, pois somos

raízes desde que nascemos e crescemos dentro da mesma, na Rua São

Vicente, conhecida como dos Caboclos, até o dia em que lutamos

juntamente com toda comunidade por essas terras em que hoje

vivemos, o nosso maior objetivo, por elas, era a preservação dos

nossos costumes e tradições culturais e o mais principal (ritual

indígena religioso e oculto)..

Hoje o que se preserva é a ambição, discriminação, ameaças de morte,

e não queremos derramar o nosso próprio sangue, somos irmãos de

raça.

Os membros pertencentes, hoje nessa comunidade e que não lutaram

por essas terras são os maiores incentivadores da desgraça existente

em nossa aldeia.

Esperamos a vossa colaboração, no sentido de dar andamento o mais

rápido possível a esta solicitação de todos os problemas existentes em

nossa comunidade, ao longo dos anos, ressaltando Vossa Senhoria tem

conhecimento”.

Na f. 50, a FUNAI informou que sobre aspectos da

tramitação do PA nº. 08768.000112/2007-DV, em 18/07/2007, e mencionaou

que adotaria todas as providências para encaminhar o procedimento à

Diretoria de Assuntos Fundiário, com vistas à adoção de procedimentos para a

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compra das terras pretendidas.

Consta, na f. 52, que os índios da etnia Fulkaxó instituíram

um Conselho Distrital de saúde indígena.

Em reunião realizada no dia 01/12/2008, os índios

Fulkaxós informaram as razões de seu pleito para aquisição de nova terra. De

acordo com o sr. Ademir Cruz, pajé da etnia:

“que por uma série de problemas na comunidade, e também porque sua

origem remonta a três etnias (Kariri, Xocó, e Funiô), passou a se

reconhecer como Fulkaxó. Que vem tentando junto à FUNAI seu

reconhecimento e aquisição de terras, podendo dizer que a

Administração Regional da FUNAI deveria realizar um levantamento

para subsidiar o reconhecimento da etnia e a consequente aquisição de

terras. Além disso, informa que um filho seu encontra-se preso a uns

dois anos, por ser suspeito de matar um membro dos Kariri Xocós,

sendo que estará indo para Brasília para tratar desse assunto, quanto

da aquisição de terras para a etnia”.

A FUNAI apresentou resposta à solicitação feita pelos

índios, asseverando que (fls. 65/66):

“No que concerne à questão fundiária, cumpre-nos informar que o

processo se encontra aguardando análise e parecer da Coordenação-

Geral de Identificação e Delimitação. Entretanto, convém destacar

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que a aquisição de terras para ocupação por índios somente será

realizada após se ter comprovada a existência de fatos de

extraordinária gravidade, tais como: calamidade pública, greve

perturbação da ordem pública, conflito irreversível entre grupos e/ou

núcleos familiares indígenas habitantes de uma mesma terra e etc.

Oportuno salientar que na hipótese de existência de conflitos entre

grupos e/ou núcleos familiares, faz-se necessário – segundo

recomenda a Procuradoria Regional da República no Paraná quando da

análise de caso similar ao presente – que esgotem as tentativas para o

retorno e permanência do grupo desaldeado em outra terra indígenas,

caso haja concordância das comunidades.

Ressalve-se que, comprovada a extrema necessidade de aquisição de

terras, dever atendido o que recomenta do Tribunal de Contas da

União por meio do Acórdão nº. 1.785, de 24 de junho de 2008, que,

observando a economicidade para a Administração Pública com gastos

necessários para a aquisição de imóveis para estabelecimento de

reservas indígenas, nos termos do art. 27 da Lei nº. 6.001/73, dispõe:

“(...) quando da eleição de áreas a serem destinadas a comunidades

indígenas, consulte os governos estaduais e municípios bem como a

União, por intermédio da Secretaria do Patrimônio da União – SPU, e

outros órgãos públicos e demais a respeito da disponibilidade de

terras para eventual doação”.

Ainda por meio do referido documento, a FUNAI

informou que os limites da Terra Indígena Kariri-Xocó estão sendo ampliados

em sete vezes o território atual, com a finalidade de possibilitar a todos os

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índios que lá habitam as condições suficientes para a sobrevivência física e

cultural de acordo com seus usos, costumes e tradições (fls. 65/66).

Em declarações prestadas pelo sr. Ademir Cruz (f. 73),

este informou que os índios fulkaxós se interessaram por uma fazenda, em

Pacatuba/SE, cujo valor é de aproximadamente R$ 5.000.000,00 (cinco

milhões de reais).

Em nova assentada, os índios relataram que desde 2006 a

convivência na aldeia é impossível pelas razões expostas na ata de reunião,

cujos trechos ora se transcreve:

“Foi relatado pelos índios a impossibilidade de sobrevivência, desde o

ano de 2006, nas terras em que nasceram e viveram, ou seja a TI

Kariri – Xocó, tendo em vista o crescimento da etnia com muita

mistura com brancos. Que é comum, a ocorrência de delitos, sem que

haja punição por parte de lideranças Kariri-Xocó. Que o alegado

crescimento geográfico da terra indígena Kariri-Xocó só ocorreu no

papel, pois as terras até hoje não foram entregues aos índios. Que não

podem exercer plenamente sua cultura, pois apenas a área de

cerimônia é de todos, mas as danças estão se perdendo, bem como o

uso das ervas medicinais e isso está doendo muito. Que a TI Kariri

Xocó é próxima à cidade, fica a 20 minutos a pé, o que leva a uma

grande discriminação, os novos passam a ter vergonha de se dizerem

índios e de agir como índios. Que os índios ao invés de se prepararem

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para o Toré, estão saindo para a sociedade branca. Que as índias não

se preocupam em aprender a fazer potes e cantar. Que as lideranças

Kariri-Xocó nada fazem diante disso. Que as 72 famílias que se

reconhecem como Fulkaxó tem grande apego às tradições indígenas.

Que as lideranças Kariri-Xocó são Júlio Queiroz Suira (Kariri) e

Cícero Santiago (Xocó) dividem o poder na TI Kariri-Xocó. Que já

houve reunião com eles sobre os problemas que hoje estão sendo

discutidos, mas eles são omissos, não exercem a disciplina, não

incentivam o povo a trabalhar e os jovens ficam soltos, buscando o

álcool e outras coisas ruins para os índios. Que é grande a

discriminação que sofrem, pois não tem liberdade de exercerem sua

cultura livremente. Que só porque o índio Orlando Cruz, Fulkaxó,

passou em um concurso de motorista para a FUNASA, as lideranças

queriam impedi-lo de assumir o cargo, mediante ingerências

administrativas. Que os Fulkaxós foram claros com a administração da

FUNASA e disseram que se o índio não fosse convocado na forma da

lei, buscariam o poder judiciário. Que as lideranças dos Kariri-Xocós

tentam impedir o trabalho da índia Josete, que é Fulkaxó e trabalha

na FUNASA como auxiliar de enfermagem, dentro da terra indígena.

Que existe entre as lideranças dos Xocós e dos Kariri uma grande

disputa de poder, apesar de viverem na mesma terra indígena. Que o

cacique Fulkaxó tenta levar trabalho para todos, bem como projetos

para serem desenvolvidos na aldeia como a farmácia natural, projetos

para casas, que foi impedido, projetos culturais, etc, contudo nada é

desenvolvido pelas lideranças. Que as lideranças só aceitam projetos

desde que ganhem alguma coisa com isso e possam tirar proveito do

poder. Que os Fulkaxós nasceram e se criaram na Terra indígena

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Kariri-Xocó. (…). Desejam obter suas terras sem ter que chegar ao

ponto em que a FUNAI exige, ou seja, de conflito irreversível de

calamidade ou lutas; Que querem obter suas terras sem terem que

chegar à lutas internas, pois isso seria derramar o próprio sangue , já

que todos são parentes entre si. Que a administração da FUNAI nunca

procurou trabalhar para solucionar os conflitos existentes. Que

gostariam de saber a data em que o antropólogo do MPF irá visitar a

comunidade”.

A Procuradoria da República em Sergipe solicitou o apoio

da 6ª Câmara de Coordenação e Revisão do MPF, na designação de analista

pericial em antropologia para realizar visita e informação técnica sobre a

situação alegada pelos Fulcaxós.

O parecer pericial foi juntado nas fls. 105-125. O laudo

pericial apontou as origens do conflito entre as mencionadas etnias,

ressaltando que a insuficiência de terra e a discriminação dos índios Kariri-

Xocó na distribuição dos respectivos lotes seria sua principal causa. Destacou,

ainda, que os Fulkaxós atribuem a demora na análise de seus pleitos pela

FUNAI, ao administrador regional da entidade que é filho do Cacique Kariri-

Xocó. Demais disso, o perito informa que a ampliação da Terra Indígena que a

Funai afirmou ter realizado, encontra-se sobrestada na Justiça Federal.

O perito foi enfático ao afirmar que as terras indígenas

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que hoje se encontram à disposição dos Kariri-Xocós são insuficientes para

proporcionar uma vida diga às famílias que compõem a aldeia, existindo núcleos

familiares que não possuem nenhum pedaço de terra para plantar. Segundo o

laudo:

“Os Kariri-Xocó, não obstante as adversidades, lograram

diversamente de outros povos da região, permanecer organizados

enquanto coletividade etnicamente diferenciadas principalmente em

razão do ritual do Ouricuri. Em 199, cinco anos após a criação do Posto

Indígena em Porto Real do Colégio, os Kariri-Xocó têm reconhecido

outros cinquenta hectares de seu território tradicional, conhecido

como Colônia. Em 1978, os Kariri-Xocó retomam a área onde havia sido

implantada uma fazenda modelo, pela Companhia de Desenvolvimento

do Vale do São Francisco, e, em 1993, o governo federal homologa a

demarcação de 699,35 hectares da área indígena Kariri-Xocó.

Essa área é, contudo, insuficiente para a população indígena que

mantém constante mobilização pela revisão da terra indígena, inclusive

com a retomada de áreas consideradas de ocupação tradicional do

grupo. Destarte, em 2006 é publicada a Portaria 2.358 – MJ

declarando uma área de 4.419 hectares como de posse do povo

indígena Kariri-Xocó. No entanto, fazendeiros e políticos da regi]ap

articularam-se para impedir a continuidade do processo de

regularização fundiária da Terra Indígena Kariri-xocó e obtiveram, na

Justiça Federal, a suspensão desse processo sob o argumento de não

existirem mais índios naquela região.

Desse modo, a população Kariri-Xocó que atualmente é de

aproximadamente de 2.246 pessoas (1.739 na antiga Fazenda Modelo e

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507 desaldeados) segundo a FUNASA/SIASI ou cerca de 3.500

pessoas de acordo com as lideranças indígenas, dispõe de uma área

reduzida para atender suas necessidades de habitação e trabalho.

Muitas famílias não dispõem de qualquer pedaço de terra para plantar

e mesmo aqueles que ocupam pequenas porções dizem não ser

suficiente para o sustento de suas famílias.

Essa carência de terras tem sido o motivo de constantes tensões

dentro da comunidade, seja em razão de discordâncias acerca dos

critérios que foram utilizados para a divisão das terras da antiga

Fazenda Modelo, seja por conta das constantes denúncias de

arrendamento de terras e da criação de animais soltos que comem as

roças daqueles que plantam.

(…)

Essa situação fundiária e a ausência de políticas públicas que

promovam o desenvolvimento econômico da comunidade faz com que

grande parte das famílias dependa de algum tipo de auxílio assistencial

do governo para sobreviver. Para os jovens, em geral, há poucas

perspectivas para o futuro o que pode estar influenciando o acréscimo

do uso de bebidas alcoólicas e de substâncias psicoativas proibidas.

Nesse quadro, uma das alternativas econômicas que tem se mostrado

importante para a obtenção de alguma renda é a venda do artesanato

indígena, as apresentações do toré em eventos públicos e o

atendimento médico-espiritual. Essa forma de comodificação da

cultura indígena Kariri-Xocó, no entanto, tem sido motivo de

divergência entre determinadas lideranças que veem na difusão do

conhecimento indígena uma ameaça ao grupo e aqueles que acreditam

que essa é uma forma legítima de se obter recursos para sua

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subsistência. Essa divergência, como veremos adiante, pode estar

também entre os fatores que impulsionaram a reivindicação identitária

dos Fulkaxós”.

Além de contextualizar o conflito fundiário, o perito fez

breve digressão acerca das origens das etnias Kariri, Xocó e Fulkaxó, bem

assim elencou as características da ruptura política dos Fulkaxós com as

lideranças Kariri-Xocó. O perito ressaltou ainda que a manipulação de

identidade promovida pelas famílias que hoje se reconhecem como Fulkaxós

não está atrelada a fingimento ou falsidade.

No que tange ao aspecto da religiosidade, as culturas dos

Kariri-Xocós e dos Fulkaxós tem em comum o ritual do Ouricuri. Durante a

celebração desse ritual as diversas etnias se reconhecem como um só povo

indígena. Contudo, fora desse ritual, inúmeras desavenças surgem em

decorrência de questões relacionadas a direitos políticos e a problemas

familiares. Os conflitos que os índios relataram com mais frequência estão

ligados ao falecimento dos índios Clenilson Nunes Cruz e Edilson dos Santos.

Os Fulkaxós também se queixaram da discriminação que sofrem por parte dos

Kariri-Xocó. Nos termos do laudo pericial:

“As queixas quanto a discriminação sofrida pelas famílias que se

identificaram como Fulkaxó referem-se, em geral, a sua exclusão dos

espaços de decisão política da comunidade e da partilha de recursos

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ou benefícios adquiridos para toda a aldeia como fica claro na fala de

Ademir Cruz:

(…) a gente toda a bida é discriminado pelas lideranças daqui, pelas …

por quem trabalha; não é discriminado tanto por Funai, mas

discriminação daqui, das próprias lideranças do povo, porque a gene

não acompanha um pouco do … do modo de administrarem essas coisas.

(…)

(…) mas quando tem uma coisa boa pra vir, nós não somos comunicados,

a gente é esquecido deles. Aquele que é do laço dele é chamado pra

eles resolverem, de fazer como eles querem. Não tem consideração

aos trabalhos do meu povo, que sempre e pra continuar nossa cultura...

não tem. Se eu falo, aponto uma coisa que é de bom para todos nós a

minha palavra não vale, a palavra não vale, a palavra da gente não vale,

porque eles só aceitam aquilo que eles pensam e quer fazer.

Os conflitos e as queixas de discriminação revela a percepção da

existência de divisões no interior da comunidade Kariri-Xocó, ainda

que essas divisões não fossem pensadas até recentemente como

fronteiras étnicas.

Após essas considerações acerca do conflito e da etnia

Fulkaxó, o antropólogo respondeu aos quesitos formulados pelo MPF (fls. 115-

118). O laudo ainda trouxe fotos da aldeia Kariri-Xocó e da Fazenda Cadoz

indicada pelos índios Fulkaxós (fls. 119-125).

Em despacho exarado, na f. 131, foi requerido que o

INCRA realizasse perícia no imóvel da “Fazenda Cadoz, a fim de se verificar a

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viabilidade da destinação do referido imóvel às famílias Fulkaxós.

Por meio do ofício de f. 134, o INCRA informou que havia

efetuado visita técnica na Fazenda Cadoz, no dia 29/08/2011 da qual decorreu

a elaboração de um relatório agronômico, juntado nas fls. 135-142. O referido

relatório conclui que a Fazenda Cadoz é capaz de oferecer sustentabilidade

econômica à parte das famílias da etnia Fulkaxó. Recomendou-se, portanto, a

busca por imóveis próximos a essa Fazenda, a fim de que as demandas dos

índios sejam integralmente atendidas, assegurando-se a distribuição do grupo

em várias aldeias integradas.

Por fim, relatório técnico foi juntado aos autos,

noticiando a existência de diversos procedimentos em que a FUNAI adquiriu

terras para índios que, pelos mais variados motivos, estavam impedidos de

ocupar as terras tradicionalmente ocupadas (fls. 145-290).

2 - DO DIREITO:

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2.1 - DA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA FEDERAL

Pela natureza do feito, percebe-se a inegável competência

da Justiça Federal para processá-lo e julgá-lo. Primeiro, pela presença do

Ministério Público Federal no polo ativo da demanda e da União no polo passivo;

segundo, por ser a FUNAI, autarquia federal, ré e responsável pela execução

da política de proteção ao índio no Brasil (Lei 5.371/67). Como se nota esses

fatos são suficientes para atrair a referida competência, no toar do artigo

109, inciso I, da Constituição Federal:

Art. 109. Aos juízes federais compete processar e julgar:

I - as causas em que a União, entidade autárquica ou empresa pública

federal forem interessadas na condição de autoras, rés, assistentes

ou oponentes, exceto as de falência, as de acidentes de trabalho e as

sujeitas à Justiça Eleitoral e à Justiça do Trabalho.(grifou-se)

Assim, com a harmonização das normas mencionadas, é

indubitável que cabe ao Ministério Público Federal propor a presente ação civil

pública e compete à Justiça Federal processá-la e julgá-la.

2.2 - DA LEGITIMIDADE ATIVA DO MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL

Antes de adentrar no mérito da causa, é mister confirmar

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a legitimidade do Ministério Público Federal para figurar no polo ativo da

demanda em estampa.

A Constituição Federal incumbiu ao Ministério Público a

defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e

individuais indisponíveis, alçando-lhe à condição de instituição permanente,

essencial à função jurisdicional do Estado (art. 127). Estabelecida esta

premissa, dispõe em seguida:

Art. 129. São funções institucionais do Ministério Público:

(...)

V – defender judicialmente os direitos e interesses das populações

indígenas. (grifou-se)

Assim, do comando constitucional antes transcrito,

percebe-se que o constituinte originário incumbiu especificamente ao

Ministério Público a relevante tarefa de defender os direitos e interesses dos

índios, missão essa que será exercida judicialmente através de ação civil

pública.

Infra-constitucionalmente, diversas normas asseguram a

legitimidade do Ministério Público para a defesa de interesses das populações

indígenas.

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A Lei de Ação Civil Pública, Lei n° 7.347/85, assim dispõe:

Art. 1º - Regem-se pelas disposições desta Lei, sem prejuízo da ação

popular, as ações de responsabilidade por danos morais e patrimoniais

causados:

IV - a qualquer outro interesse difuso ou coletivo.

(...)

Art.5º - Têm legitimidade pra propor a ação principal e a ação

cautelar:

I – O Ministério Público; (grifou-se)

De outro lado, a Lei Complementar nº 75/93 - Lei

Orgânica do Ministério Público da União - preceitua:

Art. 5º São funções institucionais do Ministério Público da União:

(...)

III - a defesa dos seguintes bens e interesses:

e) os direitos e interesses coletivos, especialmente das comunidades

indígenas, da família, da criança, do adolescente e do idoso;

Art. 6º- Compete ao Ministério Público da União:

(...)

VII - Promover o inquérito civil e a ação civil pública para:

(...)

c) a proteção dos interesses individuais indisponíveis, difusos e

coletivos, relativos às comunidades indígenas, à família, à criança, ao

adolescente, ao idoso, às minorias étnicas e ao consumidor;

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(…)

XI - defender judicialmente os direitos e interesses das populações

indígenas, incluídos os relativos às terras por elas tradicionalmente

habitadas, propondo as ações cabíveis;

Na casuística em tela, inexiste dúvida de que a presente

ação civil pública tem por escopo fundamental garantir a índios que estão

sofrendo discriminação a possibilidade de reunir-se em território comum,

onde terão mais espaço para cultivar a terra, poderão ser melhor assistidos

pelo Poder Público e conservar suas tradições e modo de viver.

Do exposto, resta evidenciada a legitimidade ativa deste

Parquet Federal para a presente demanda, que possui como finalidade

precisamente a proteção de interesses de população indígena, a saber, a

aquisição de território, através da ação civil pública de que ora se lança mão.

2.3 - DA LEGITIMIDADE PASSIVA DA UNIÃO FEDERAL

Pela presente demanda busca-se assegurar aos índios

Fulkaxós a concessão de área em que possam ser alojados, garantindo-se a

manutenção da etnia, de sua cultura e de seu modo de viver.

As comunidades indígenas gozam de ampla proteção

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constitucional prevista a partir do art. 231, in verbis:

Art. 231. São reconhecidos aos índios sua organização social,

costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre

as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União

demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.

O dispositivo constitucional citado é claro ao fixar a

responsabilidade da União para proteger e fazer respeitar todos os bens das

comunidades indígenas. Essa proteção é ou deveria ser precipuamente

realizada pela FUNAI, autarquia federal criada para essa finalidade

específica.

A existência da FUNAI, contudo, não afasta a

responsabilidade da União por essa proteção. Nesse sentido é o ensinamento

abaixo:

“Através do art. 231 CF, é atribuída à União a obrigação de proteger e

fazer respeitar todos os bens dos índios. Essa norma não teve

precedentes na história constitucional brasileira.

O conceito de bens a serem respeitados do caput do art. 231 CF

abrange não apenas os bens materiais, econômicos, mensuráveis, como

também os bens imateriais. Paralelamente aos direitos à terra

analisados a organização social das comunidades, dos usos, das línguas,

crenças e tradições, existe, portanto, especialmente para a vida, a

saúde, a integridade física, a liberdade e a honra, uma obrigação

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especial de proteção da União perante os índios.

Com respeito ao tipo e à abrangência da obrigação de proteção, vale o

exposto sobre a proteção da terra como obrigação da União. A

proteção é exclusivamente atribuída à União. Em razão da permanente

ameaça aos bens indígenas e da dependência dos índios de auxílio

governamental, trata-se, no caput, do art. 231, de uma obrigação a

uma proteção ampla e efetiva dos bens indígenas”2.

É, portanto, da União a competência para demarcar as

terras indígenas, bem assim para adotar outros procedimentos necessários à

preservação da cultura e dos demais bens indígenas. A própria Advocacia-

Geral da União comunga desse entendimento (Despacho do Consultor-Geral da

União, - nº. 90/2006 – f. 156/157 anexo ao relatório técnico nº. 65/2011 – f.

145-290):

7. Uma vez reconhecido o direito dos índios e a responsabilidade da

União, cabe ao chefe do Poder Executivo declarar o interesse social

do imóvel para desapropriação e ordenar as providências

correspondentes dentre as quais atribuir à própria FUNAI, ou ao

INCRA por convênio com aquela, as medidas judiciais

correspondentes;

8. Por oportuno, penso conveniente assinalar ainda que essa

modalidade de providência administrativa pode ser imediatamente

adotada pelas autoridades competentes, não só na hipótese versada

nos autos mas também em outras em que se verifique idêntica


2 KAYSER, Hartmut-Emanuel. Os direitos dos povos indígenas no Brasil: desenvolvimento histórico e
estágio atual. Tradução Maria da Glória Lacerda Rurack, Klaus-Peter Rurack. Porto Alegre: Serfio
Antonio Fabris Ed., 2010, p.p. 266-267.

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necessidade da aquisição de terras para a ocupação indígena. Assim,

quando não se podem mais assentar os índios em seus territórios

tradicionais, ou quando venham a se autorreconhecer ulteriormente

como comunidades indígenas, ou tenham sido expulsos de seus

territórios ocupados tradicionalmente por qualquer motivo

irreversivelmente e voltem a reunir-se em comunidade, ou ainda

quando tenham sido removidos por razão de estado, de saúde ou de

soberania (aqui com o referendo do Congresso Nacional), tem a União

a obrigação constitucional nos limites e com os fundamentos do dito

art. 231 da CF de promover-lhes a disponibilização de terras públicas

ou a aquisição de terras particulares par a finalidade em questão.

No caso em tela, a presença da União no polo passivo da

demanda justifica-se pela circunstância de que é necessária a disponibilização

ou aquisição de terras para que os Fulkaxós possam ser assentados em uma

nova terra indígena, livrando-se da discriminação alegada, e tendo a

possibilidade de ser reproduzirem física e culturalmente. A aquisição de

terras, caso seja essa a medida mais recomendável, neste feito, deverá ser

realizada com orçamento federal, bem assim integrará o patrimônio da União.

É esse o entendimento adotado na ementa abaixo transcrita:

DIREITO CONSTITUCIONAL. DIREITO ADMINISTRATIVO.

DIREITO PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO ORDINÁRIA.

RESPONSABILIDADE CIVIL. UNIÃO E FUNAI. LEGITIMIDADE

PASSIVA. INVASÃO DE INDÍGENAS. PREJUÍZOS AO

PROPRIETÁRIO DO IMÓVEL RURAL COMPROVADOS. DANOS

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MATERIAIS. LUCROS CESSANTES. INDENIZAÇÃO DEVIDA.

SENTENÇA REFORMADA EM PARTE. 1. A União Federal é parte

legítima para figurar no pólo passivo da demanda, pois, a

Constituição da República, além de reconhecer os direitos

originários sobre as terras tradicionalmente ocupadas pelos

indígenas, determina ser de sua competência demarcá-las, além de

proteger e fazer respeitar todos os bens dos silvícolas (art. 231),

tendo ainda estipulado, no artigo 67, do ADCT, prazo de cinco anos,

contados de sua promulgação, para que restassem concluídos os

trabalhos de demarcação das terras indígenas, prazo esse que há

muito tempo se esgotou. 2. Ademais, no caso dos autos, o objetivo dos

indígenas, com a invasão de quatorze propriedades, era o de

protestar, com a finalidade de acelerar o processo de regularização

fundiária na região, que consideram ser integrada de terras

tradicionalmente ocupadas pelos seus antepassados. 3. A FUNAI é

parte legítima para figurar no polo passivo da ação de indenização, por

danos decorrentes da invasão da propriedade do autor pelos indígenas

referidos, conquanto responsável pelo exercício da tutela dos índios e

das comunidades indígenas ainda não integradas à comunidade nacional.

(Omissis) (APELREE 200460050012506, JUIZ CONVOCADO

VALDECI DOS SANTOS, TRF3 - TERCEIRA TURMA, DJF3 CJ1

DATA:04/08/2009 PÁGINA: 108.)

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2.4 – DO DIREITO INDÍGENA A AUTO-IDENTIFICAÇÃO E A

ESPECIAL PROTEÇÃO:

A Constituição da República de 1988 reconheceu

importantes direitos aos povos indígenas, conforme ora se transcreve:

Art. 231. São reconhecidos aos índios sua organização social,

costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários

sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União

demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.

§ 1º - São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles

habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades

produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais

necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física

e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições.

§ 2º - As terras tradicionalmente ocupadas pelos índios destinam-se a

sua posse permanente, cabendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezas

do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes.

(omissis)

Para disciplinar e conferir plena efetividade às regras

constitucionais de proteção às populações indígenas, foi aprovada a Lei

6.001/73 que instituiu o Estatuto do Índio.

Inicialmente cumpre destacar os conceitos de índio, de

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comunidade indígena, para fins de definir quem encontra-se amparado pela

especial proteção prevista constitucionalmente. O Estatuto do Índio, em seu

art. 3º, define:

Art. 3º Para os efeitos de lei, ficam estabelecidas as definições a

seguir discriminadas:

I - Índio ou Silvícola - É todo indivíduo de origem e ascendência pré-

colombiana que se identifica e é identificado como pertencente a um

grupo étnico cujas características culturais o distinguem da sociedade

nacional;

II - comunidade Indígena ou Grupo Tribal - É um conjunto de

famílias ou comunidades índias, quer vivendo em estado de completo

isolamento em relação aos outros setores da comunhão nacional, quer

em contatos intermitentes ou permanentes, sem contudo estarem

neles integrados.

No que tange ao conceito de índio, observa-se que

existem dois requisitos para que um indivíduo seja assim definido. O primeiro

requisito, de ordem objetiva, refere-se à descendência pré-colombiana. Ou

seja, os antepassados do indivíduo devem ter existido antes da “descoberta”

da América pelos europeus. O segundo requisito, de ordem subjetiva, diz

respeito à forma como esse indivíduo se identifica e é identificado pela sua

comunidade.

Nesse sentido ensina Hartmut-Emanuel Kayser:

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“Para a classificação como índio no sentido do artigo 3 EdI, é

objetivamente necessária, portanto, em primeiro lugar, a existência de

uma ascendência pré-colombiana da pessoa em questão. Isso significa

uma ascendência de antepassados que tenham bidido no Brasil, já

antes da “descoberta” européia. A segunda característica objetiva pe

a existência de um grupo étnico, que se diferencie da sociedade

nacional, ou seja, da sociedade brasileira por suas características

culurais. A estas duas características objetivas devem ser

acrescentadas duas características subjetivas de classificação pelo

próprio indivíduo e por outros, como pertencente a este grupo étnico

especial3.

Essa definição de índios também é encontrada na

Convenção 169 da OIT, in verbis:

1. A presente convenção aplica-se:

a) (omissis);

b) aos povos em países independentes, considerados indígenas pelo

fato de descenderem de populações que habitavam o país ou uma

região geográfica pertencente ao país na época da conquista ou da

colonização ou do estabelecimento das atuais fronteiras estatais e

que, seja qual for sua situação jurídica, conservam todas as suas

próprias instituições sociais, econômicas, culturais e políticas, ou

parte delas.

2. A consciência de sua identidade indígena ou tribal deverá ser

3 KAYSER, Hartmut-Emanuel. Os direitos dos povos indígenas no Brasil: desenvolvimento histórico e


estágio atual. Tradução Maria da Glória Lacerda Rurack, Klaus-Peter Rurack. Porto Alegre: Serfio
Antonio Fabris Ed., 2010, p.p. 36/37.

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considerada como critério fundamental para determinar os grupos aos

que se aplicam as disposições da presente Convenção.

Já no que diz respeito à comunidade Indígena, a definição

apresentada pelo Estatuto do Índio revela que não é preciso que o conjunto de

famílias indígenas estejam vivendo de forma isolada. É suficiente, portanto,

que tais famílias possuam ascendência pré-colombiana e se reconheçam

como índios para que formem uma comunidade.

Outro conceito que se revela importante para a

caracterização dos direitos discutidos na presente demanda é o de população

indígena. Isso porque embora tal conceito não encontre explícita previsão

legal, é a expressão utilizada pela Lei Maior nos arts. 129 e 231. Ainda segundo

Hartmut-Emanuel Kayser:

“O conceito de populações indígenas não recebeu, até agora, uma

definição legal no sistema jurídico brasileiro. Do contexto sistemático

das normas dos artigos 129 CF e 231 CF, deduz-se, no entanto, que o

conceito de “populações” não abrange apenas uma multiplicidade de

indígenas, isto é, grandes associações, mas também pequenas unidades,

e até mesmo, índios isolados, não sendo relevantes determinadas

formas de organização ou determinadas dimensões demográficas. Por

isso, o conceito de “população indígenas” pode ser definido como um

“índio isolado ou uma quantidade maior de indígenas”.4

4 Op cit. p. 38

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No caso em tela, a qualidade de indígenas dos integrantes

da etnia Fulkaxó é fato que não se discute. O laudo antropológico juntado nas

fls. 105-125 não deixa dúvidas acerca de tal condição:

“para entender quem são os Fulkaxós é preciso antes examinar como é

pensada a relação deste grupo com os Kariri-Xocó, etnônimo sob o qual

se reconheciam até meados da década passada. Todas as pessoas que

entrevistei durante o trabalho de campo reconhecem que as famílias

que se auto-identificam como Fulkaxó são indígenas e fazem parte da

comunidade Kariri-Xocó. Os próprios Fulkaxó assumem esse

pertencimento à comunidade Kariri-Xocó, de modo especial, os laços

religiosos que os unem.

É comum ouvir daqueles que se identificam como Fulkaxó referirem-se

às lideranças Kariri-Xocó como 'nossas lideranças', à comunidade da

terra indígena Kariri-Xocó como 'nossa comunidade', ou

demonstrarem de outros modos o pertencimento a essa comunidade:

“Temos dentro da tribo Kariri-Xocó 4.000 pessoas que hoje não se

tem com que se viver. E as nossas autoridades realimente eles não tem

é … autonomia de lutar pelos … esse povo jovens e esqueceu que nossa

tribo cresceu, não acompanhou o que crescimento para um

desenvolvimento. O desenvolvimento que nós temos hoje é algo

realmente não era e nem é pra nós que é o álcool e outras medicinas

que hoje tá entrando que não é necessário para nós, que nunca foi,

Então a minha preocupação da minha família do meu povo, nos tá com

72 famílias lutando por essa terra aqui, no Estado de Sergipe. Foi o

local que nós encontramos em que realmente nós podemos manter

nossas tradição como eu encontrei quando nasci. (Humberto Cruz,

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Txhidjo, cacique Fulkaxó).

(…) e sempre lutei por essa tribo [Kariri-Xocó], cantando toré pelo

meio do mundo, mais Nhó Francisquinho, mais Cícero de Arauana; em

todo canto em andava representando essa tribo. Hoje ela tem um

reconhecimento muito grande, Kariri-Xocó, não é só aqui, até no

exterior tem. Que ela é uma tribo há trezentos e tantos anos e nunca

perdeu a tradição, toda a vida segurou. Só perdeu só a língua, o macro

jê, a linguagem foi que perdeu, mas outras coisas nunca perdemos

dana de nossa tradição. (Ademir Cruz, pajé Fulkaxó).

Membros das famílias Cruz e Pires estacam sua participação na

retomada de parte das terras dos Kariri-Xocó que se encontrava em

poder de não-índios, episódio em que Gideon Cruz, irmão do cacique e

do pajé Fulkaxó, foi baleado. Expressam assim que o pertencimento a

essa comunidade não se limitava à ascendência indígena desas famílias,

mas também ao envolvimento na luta em defesa de sua terra, critério

fundamental nos processos de mobilização étnia dos povos indígenas

do Nordeste brasileiro.

Esse reconhecimento dos laços identitários com os Kariri-Xocó , no

entanto, não é percebido como uma contradição à reivindicação da

identidade Fulkaxó. Ao contrário, essa relação é apresentada como

uma prova da autenticidade indígena do grupo e portanto da

legitimidade de sua atua reivindicação territorial”.

Destaque-se que não se pode vislumbrar qualquer fraude

na auto-designação dos índios como Fulkaxós. Isso porque, a comunidade

Kariri-Xocó além dessa etnia, abriga outras linhagens de índios, que sempre se

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reconheceram como um só povo, ligados por diversos fatores, marcadamente

pela luta pelo território. Segundo o antropólogo:

“com efeito, a necessidade dos Fulkaxó de se identificarem de modo

diverso dos Kariri-Xocó tem muito mais relação com o modo como o

Estado reconhece os direitos indígenas do que com as formas próprias

desse povo de se organizarem. Assim, em certo sentido, os Fulkaxó

são os mesmos que antes se subsumiam na Comunidade Kariri-Xocó,

porém para terem sua autonomia reconhecida precisaram de um novo

etnônimo, de seus próprios cacique e pajé e por fim ativar ou criar

fronteiras étnicas.

Essa manipulação de identidades, inclusive de etnônimos, não deve ser

percebida negativamente, como a indicar algo falso ou ilegitimo. Como

afirma Cristhian Silva, “a noção de manipulação deve nos fazer

lembrar aqui que os indígenas na qualidade de seres políticos planejam

suas ações, segundo interpretações próprias das expectativas

impostas sobre e para eles a partir de critérios arbitrários de

indianidade e autenticidade”. Afinal, é o Estado que precisa encapsular

esses povos em categorias legais para reconhecer-lhes direitos.

Ao lidar com o fenômeno da etnicidade, a antropologia tem buscado

desnaturalizar ou desessencializar as identidades étnicas enfatizando

seu caráter contrastivo e a dimensão organizativa dos grupos étnicos.

Portanto, o partilhamento de interesses e objetivos é característico

dos processos de mobilização étnica. A participação da luta pela terra,

tem sido, entre vários povos indígenas do Nordeste brasileiro, um

critério fundamental para o reconhecimento da identidade indígena (f.

115).

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Desse modo, os Fulkaxós, na condição de indígenas

encontram-se sob o manto protetor da Lei Maior e das disposições da

Convenção 169, OIT. Tal proteção, no entanto, somente será plenamente

eficaz na medida em que lhes forem garantido um dos principais direitos

fundamentais assegurados às populações indígenas, qual seja o direito ao

território.

2.5 - DO DIREITO AO TERRITÓRIO

Acerca, especificamente, da questão da proteção

territorial, tanto a Constituição como o Estatuto do Índio previram regras

próprias. O § 1º do art. 231, CF/88 e o Título III do referido diploma legal

trazem regras sobre a proteção, a demarcação e o uso de terras indígenas.

A especial proteção das terras indígenas garantida

constitucionalmente se justifica ante a importância da terra para os povos

tradicionais de um modo geral. Tal direito encontra previsão inclusive em

normas internacionais que visam à proteção desses povos, em especial a

Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho, que dispõe:

ARTIGO 13

1. Na aplicação das disposições desta Parte da Convenção, os

governos respeitarão a importância especial para as culturas e

valores espirituais dos povos interessados, sua relação com as

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terras ou territórios, ou ambos, conforme o caso, que ocupam ou

usam para outros fins e, particularmente, os aspectos coletivos

dessa relação.

2. O uso do termo terras nos artigos 15 e 16 incluirá o conceito de

territórios, que abrange todo o ambiente das áreas que esses povos

ocupam ou usam para outros fins.

ARTIGO 14

1. Os direitos de propriedade e posse de terras tradicionalmente

ocupadas pelos povos interessados deverão ser reconhecidos. 29 Além

disso, quando justificado, medidas deverão ser tomadas para

salvaguardar o direito dos povos interessados de usar terras não

exclusivamente ocupadas por eles às quais tenham tido acesso

tradicionalmente para desenvolver atividades tradicionais e de

subsistência. Nesse contexto, a situação de povos nômades e

agricultores itinerantes deverá ser objeto de uma atenção particular.

2. Os governos tomarão as medidas necessárias para identificar

terras tradicionalmente ocupadas pelos povos interessados e garantir

a efetiva proteção de seus direitos de propriedade e posse.

3. Procedimentos adequados deverão ser estabelecidos no âmbito

do sistema jurídico nacional para solucionar controvérsias

decorrentes de reivindicações por terras apresentadas pelos povos

interessados.

A proteção às terras indígenas é verdadeiro direito

fundamental que merece proteção diferenciada, uma vez que não pode ser

entendido como mero direito de propriedade.

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“O interesse de analisar as terras indígenas neste parecer sobre o

direito agrário é que o seu conceito é paradigmático para outras

situações de povos, gentes, grupos ou comunidades que pouco tem a

ver com um direito voltado ao mercado. Já vimos que a própria

reforma agrária voltada para o mercado é inócua, porque apenas

reproduz a injustiça do uso da terra. A terra, para o mercado, é um

bem de produção, não um fundamento da vida, como o é para os

indígenas e outras comunidades. Pois bem, dentro do sistema jurídico

brasileiro, a terra indígena deve ser usada segundo os usos, os

costumes e as tradições do povo que a habita, devendo servir ao seu

desenvolvimento enquanto ações coletiva: por isso, a Constituição

considera terra indígena aquela:

Por eles habitada em caráter permanente, aquelas utiliza-


das para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à
preservação dos recursos ambientais necessários ao seu
bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cul-
tural, segundo os seus usos, costumes e tradições.
Essa definição, paradigmaticamente, cabe para qualquer grupo

humano, pois aquela que não tiver um lugar para morar, produzir para

seu bem estar e garantir a reprodução de sua cultura em um ambiente

sadio, não pode realizar a essência de seus direitos humanos”5.

Na mesma linha de entendimento:

“A constituição de 1988 reconfigura, em larga medida, a noção de

indivíduo, ao recuperar, para o direito, os espaços de pertencimento. É

constitutivo do ser humano viver em horizontes qualificados , dentro

5 MARES, Carlos e MARÉS, Theo. Direito Agrário e Igualdade Étnico-Racial. In Ordem Jurídica e
Igualdade Étnico-Racial. Coord. Flávia Piovesan, Secretaria Especial de Políticas de Promoção da
Igualdade Racial da Presidência da República – SEPPIR, 2006, p.p. 172/173.

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dos quais ele se torna capaz de tomar posições, de se orientar acerca

do que é bom ou ruim, do que vale ou não a pena fazer. A identidade do

indivíduo é definida pelos compromissos e identificações que

estabelece no seio dessa comunidade, porque ali são vividas as

relações definitórias mais importantes (Taylor, 1997).

Os territórios indígenas, no tratamento que lhes foi dado pelo novo

texto constitucional, são concebidos como espaços indispensáveis ao

exercício de direitos identitários desses grupos étnicos. A noção de

etnia/cultura/território são, em larga medida, indissociáveis.

Resulta inequívoca a diferença substancial entre a propriedade

privada – espaço excludente e marcado pela nota da individualidade – e

o território indígena – espaço de acolhimento, em que o indivíduo

encontra-se referido aos que o cercam”.6

O sentido de território indígena, portanto, é essencial ao

desenvolvimento de qualquer comunidade, bem como à manutenção de seus

costumes e tradições. Ou seja, imprescindível para a própria sobrevivência dos

povos tradicionais. A ausência dessa proteção acarreta prejuízos irreparáveis

das mais diversas ordens que conjuntamente podem implicar na extinção da

etnia. Veja-se o ensinamento de Ana Valéria Araujo:

“O direito a terra está, sem sombra de dúvidas, na essência dos

direitos indígenas. Da sua garantia dependem todos os demais direitos

e a própria continuidade e reprodução cultural desses povos, Por isso

mesmo é que é em torno da aplicação desse direito que ocorrem os

6 DUPRAT, Deborah. Terras indígena e o judiciário. In http://ccr6.pgr.mpf.gov.br/documentos-e-


publicacoes/docs_artigos/terras_indigenas_e_o_judiciario.pdf

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maiores conflitos e onde se opera toda uma usina de fabricação de

preconceitos que procuram deslegitimá-lo”.7

Apesar de os ordenamentos jurídicos internacional e

pátrio serem ricos em regras sobre a proteção dos territórios

tradicionalmente ocupados pelas populações indígenas, tal diversidade

normativa não se vislumbra quanto às regras que versam sobre a aquisição de

terras para aquelas populações que por diversos fatores porventura estejam

desaldeadas, ou cuja convivência nas aldeias originárias seja de alguma

forma impossível.

A possibilidade de destinação de terras à ocupação e

posse pelos índios, encontra tímida previsão no caput e PU do art. 26 da Lei

6.001/73, in verbis:

art. 26. A União poderá estabelecer, em qualquer parte do território

nacional, áreas destinadas à posse e ocupação pelos índios, onde

possam viver e obter meios de subsistência, com direito ao usufruto e

utilização das riquezas naturais dos bens nela existentes, respeitadas

as restrições legais.

Parágrafo Único: As áreas reservadas na forma deste artigo não

se confundem com as de posse imemorial das tribos indígenas,

podendo organizar-se sob uma das seguintes modalidades:

7 ARAÚJO, Ana Valéria. Povos Indígenas e Igualdade Étnico-Racial. In Ordem Jurídica e Igualdade
Étnico-Racial. Coord. Flávia Piovesan, Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial
da Presidência da República – SEPPIR, 2006, p.p. 225.

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a) reserva indígena;

b) parque indígena;

c) colônia agrícola indígena;

d) território federal indígena;

Tais áreas, que podem ser de propriedade da União, ou

por ela adquirida, não se confundem com aquelas cuja posse os índios exercem

de forma imemorial. Ou seja, são destinadas especificadamente para as

comunidades indígenas que de alguma forma foram privadas das terras que

tradicionalmente ocupavam.

“(…) Outra forma de terra indígena é a terra que tenha sido colocada

à disposição dos indígenas pelo Estado, em uma parte qualquer do

território federal brasileiro, com direito ao uso e ao usufruto legal de

todas as riquezas naturais (área reservada), artigos 26 e seguintes

EdI. Essas áreas reservadas normalmente tem a finalidade de

resolver problemas que resultem da perda da terra tradicionalmente

ocupada”.8

A aquisição de terras paras os indígenas que sofrem

discriminação impedirá a desagregação desses índios em busca de melhores

condições de vida e é medida que se impõe ao governo federal, que através da

FUNAI tem obrigação proteger as comunidades indígenas.

“O governo Federal, a quem compete a gestão da política indígena no

Brasil, não consegue traçar programas de assistência aos índios nessa

8 KAYSER, Hartmut-Emanuel. op. Cit. p.p. 42/43.

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situação, visto que todo o desenho de suas atividades está voltado ao

atendimento dos índios que vivam em aldeias, mormente os que

habitam as regiões mais afastadas dos grandes centros. Além disso, os

índios vivendo em cidades encontram-se em uma espécie de limbo

jurídico, tendo dificuldades para fazer valer qualquer direito na

medida em que também a legislação está construída para proteger os

índios que vivem em seus territórios tradicionais ou afastados do

convívio com o chamado mundo dos brancos”9.

Também a FUNAI vem reiteradamente adotando a prática

de adquirir terras e destiná-las a indígenas que se encontram em situação de

vulnerabilidade por não se encontrarem agrupados ou por vivenciarem

conflitos interétnicos. Em um desses procedimentos para aquisição de terras

para índios, a União, por meio da AGU adotou o seguinte entendimento (fls.

156/165 - Despacho do Consultor-Geral da União, - nº. 90/2006):

“1.Estou de acordo com as proposições expostas no Parecer AGU/MS

01/2006 pelo quela se sustenta a viabilidade técnico jurídica de

obtenção de imóveis para ocupação indígena, além daquelas que há lhes

garante o art. 231, e §§ da Constituição.

2. Com efeito, ademais das áreas de ocupação tradicional pelos índios

(art. 231, e § 1º da CF, isto é, ocupação de modo tradicional, e

histórica na forma do art. 25 da Lei nº. 6.001, de 19.12.1973 “...

atendendo à situação atual e ao consenso historio sobre a antiguidade

da ocupação...”), a Constituição de 88 garante aos índios, a contrário


9 ARAÚJO, Ana Valéria. Povos Indígenas e Igualdade Étnico-Racial. In Ordem Jurídica e Igualdade
Étnico-Racial. Coord. Flávia Piovesan, Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial
da Presidência da República – SEPPIR, 2006, p.p. 242.

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sensu, terras suficientes para a ampliação do exercício de sua

organização social, costumes, crenças e tradições, assim como as

necessárias para o incremento de suas atividades produtivas e as

imprescindíveis à preservação do seu bem estar e à sua reprodução

fpisica e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições, onde

possam usufruir as riquezas do solo, dos rios e lagos nele existentes. É

que a Constituição quando garante aos índios a ocupação histórica ou

tradicional, em cujo espaço desenvolvem-se física e culturalmente,

também garante, de modo lógico e necessário, a expansão territorial

correspondente. Em outros termos, é corolário lógico constitucional

da proteção a ocupação territorial e cultural a expansão e

desenvolvimento cultural e territorial, para o que é essencial a

disponibilização de mais território para esse fim.

3. Não é por outra razão que a Lei nº. 6.001/73, recebida pela

Constituição, nesse aspecto, prevê a existência de terras indígenas

reservadas (art. 26 e seguintes) e as de domínio dos índios ou

comunidades como objeto de sua propriedade por aquisição (art. 32)

ou usucapião (art. 33), ambas destinadas ao crescimento das

comunidades tal como também prevê o abandono delas em favor da

União (art. 21).

4. No caso de terras reservadas (art. 26), a União, quando verificadas

as peculiaridades do art. 231, caput, CF, poderá estabelecer áreas

destinadas à posse e ocupação indígena onde possam viver nas

condições garantidas por ela e pela lei.

5. Ora, tal situação é análoga à do caso em exame e uma vez

demonstrado o pressuposto constitucional referido, cabe à União as

providências suficientes para prover os índios e/ou suas comunidades

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de espaço territorial para tanto necessário.

6. Como corretamente indica o Parecer referido, nessa linha de

compreensão cabe então à União, por provocação da FUNAI (a quem

compete definir os recursos financeiros, identificar as condições

constitucionais e as necessidades territoriais com a respectiva

localização e dimensão devidamente justificadas), promover a

aquisição das terras imprescindíveis por compra ou desapropriação por

interesse social (art. 2º, III da Lei 4.132, 10.09.1962), visando fixar

comunidades e aldeamentos indígenas.

7. Uma vez reconhecido o direito dos índios e a responsabilidade da

União, cabe ao chefe do Poder Executivo declarar o interesse social

do imóvel para desapropriação e ordenar as providências

correspondentes dentre as quais atribuir à própria FUNAI, ou ao

INCRA por convênio com aquela, as medidas judiciais

correspondentes;

8. Por oportuno, penso conveniente assinalar ainda que essa

modalidade de providência administrativa pode ser imediatamente

adotada pelas autoridades competentes, não só na hipótese versada

nos autos mas também em outras em que se verifique idêntica

necessidade da aquisição de terras para a ocupação indígena. Assim,

quando não se podem mais assentar os índios em seus territórios

tradicionais, ou quando venham a se autorreconhecer ulteriormente

como comunidades indígenas, ou tenham sido expulsos de seus

territórios ocupados tradicionalmente por qualquer motivo

irreversivelmente e voltem a reunir-se em comunidade, ou ainda

quando tenham sido removidos por razão de estado, de saúde ou de

soberania (aqui com o referendo do Congresso Nacional), tem a União

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a obrigação constitucional nos limites e com os fundamentos do dito

art. 231 da CF de promover-lhes a disponibilização de terras públicas

ou a aquisição de terras particulares par a finalidade em questão.

Para esse tipo de aquisição deve restar comprovada a

existência de um conflito inconciliável no âmbito da comunidade indígena, ou a

impossibilidade de retorno às terras tradicionalmente ocupadas, a inexistência

de terras da União, Estado ou do Município aptas a receberem essa

comunidade. No caso em tela, a FUNAI se manifestou no seguinte sentido:

“O assunto em pauta trata-se de uma reivindicação a qual encontra-se

cadastrada no Sistema de Terras Indígenas desta FUNAI. Contudo,

convém destacar que a aquisição de terras para ocupação por índios

somente será realizada após se ter comprovada a existência de fatos

de extraordinária gravidade, tais como: calamidade pública, greve

perturbação da ordem pública, conflito irreversível entre grupos e/ou

núcleos familiares indígenas habitantes de uma mesma terra e etc.

Oportuno salientar que na hipótese de existência de conflitos entre

grupos e/ou núcleos familiares, faz-se necessário – segundo

recomenta da Procuradoria Regional da República no Paraná que nao da

análise de caso similar ao presente – que esgotem as tentativas para o

retorno e permanência do gupro desaldeado em outra terra indígenas,

caso haja concordência das comunidades.

Ressalve-se que, comprovada a extrema necessidade de aquisição de

terras, dever atendido o que recomenta do Tribunal de Contas da

União por meio do Acórdão nº. 1.785, de 24 de junho de 2008, que,

observando a economicidade para a Administração Pública com gastos

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necessários para a aquisição de imóveis para estabelecimento de

reservas indígenas, nos termos do art. 27 da Lei nº. 6.001/73, dispõe:

“(...) quando da eleição de áreas a serem destinadas a comunidades

indígenas, consulte os governos estaduais e municípios bem como a

União, por intermédio da Secretaria do Patrimônio da União – SPU, e

outros órgãos públicos e demais a respeito da disponibilidade de

terras para eventual doação”.

Frise-se que a aquisição de uma ter para estabelecimento de reservas

indígenas, implica, necessariamente, na vinculação da futura reserva ao

modo de vida do grupo interessado, através de laudos técnicos

consistentes abordando aspectos antropológicos, agronômicos,

ambientais, entre outros.

Por oportuno, esclareço que esta Diretoria de Proteção Territorial

tem priorizado os estudos de terras indígenas que apresentem uma

situação de risco para a segurança alimentar das comunidades

indígenas, bem como terras que de alguma forma estiverem com

procedimento administrativo iniciado e não concluído, tendo em vista

uma grande demanda de processos nestas circunstâncias.

Não obstante os esforços enviados por esta Funai aos Órgãos Públicos

Federais e Estaduais para adquirir áreas disponíveis e em condição de

assentar as 31 famílias indígenas, as respostas apresentadas foram

negativas.

Diante do exposto, informamos que o referido processo, encontra-se

em análise pela Coordenação Geral de Identificação e Delimitação

desta Diretoria que avaliará quais os encaminhamentos pertinentes à

presente situação.

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As provas colhidas ao longo da tramitação do ICP

1.35.000.000089/2007-18 comprovam a existência de conflito insolúvel entre

os integrantes da tribo Kariri-Xocós e os índios Fulkaxós. Como já se disse, tal

conflito resultou principalmente do alijamento dos índios Fulkaxós da

distribuição de terra e da participação nas decisões políticas da comunidade.

Essa discriminação tem tornado insustentável a convivência pacífica com os

Kariri-Xocós. Relatam os indígenas:

“Com base nos acontecimentos ocorridos aos longos anos nessa aldeia

indígena Kariri-Xocó, o qual temos vergonha de relatarmos (sic),

estamos perdendo nossa dignidade de sermos índios de livre arbítrio

para darmos continuidade a nossa descendência, nossos costumes,

tradições, idioma e o mais importante, RITUAL, INDÍGENA

RELIGIOSO E OCULTO.

Pelo presente, recorremos as autoridades competentes em caráter de

emergência, condições de sobrevivência para os componentes da nova

tribo com abaixo assinado anexo.

Justificamos também, com meias palavras, a nossa saída do centro

indígena Kariri-Xocó, devido a grande mistura de índios com brancos

não identificados nessa comunidade, que se tornou bastante perigosa e

as autoridades maiores que consideramos (Paje e Cacique) até agora

não tomaram nenhuma providência.

Muitos índios em contato frequente com brancos, assimilam e

praticam mau conduta com uso de drogas, que se tornam perigosos

para a comunidade.

Somos descendentes de Kariris, Xocós, e Fulniô, mas temos índios de

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outras tribos que se foragiram de sua aldeia.

Desde que nascemos temos o conhecimento da junção de duas etnias,

porém está (sic) havendo conflitos entre as mesmas (Kariri e Xocós),

pelo poder de liderança, por este motivo está dificultando a limpeza

total da mesma.

Outrossim, todos estes problemas, traz descaso, desrespeito,

vitimando os índios, não queremos tomar partido nessa disputa, por

esse motivo é que queremos formar essa nova TRIBO, em local onde

poderemos viver com dignidade e liberdade, para darmos continuidade

o que de berço nos pertence” (f. 04)

“Vossa senhoria é sabedor que somos índios natos, reconhecidos e

registrados desta etnia e não pretendemos jamais mudar, pois somos

raízes desde que nascemos e crescemos dentro da mesma, na Rua São

Vicente, conhecida como dos Caboclos, até o dia em que lutamos

juntamente com toda comunidade por essas terras em que hoje

vivemos, o nosso maior objetivo, por elas, era a preservação dos

nossos costumes e tradições culturais e o mais principal (ritual

indígena religioso e oculto)..

Hoje o que se preserva é a ambição, discriminação, ameaças de morte,

e não queremos derramar o nosso próprio sangue, somos irmãos de

raça.

Os membros pertencentes, hoje nessa comunidade e que não lutaram

por essas terras são os maiores incentivadores da desgraça existente

em nossa aldeia”. (f. 30)

“Foi relatado pelos índios a impossibilidade de sobrevivência, desde o

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ano de 2006, nas terras em que nasceram e viveram, ou seja a TI

Kariri – Xocó, tendo em vista o crescimento da etnia com muita

mistura com brancos. Que é comum, a ocorrência de delitos, sem que

haja punição por parte de lideranças Kariri-Xocó. Que o alegado

crescimento geográfico da terra indígena Kariri-Xocó só ocorreu no

papel, pois as terras até hoje não foram entregues aos índios. Que não

podem exercer plenamente sua cultura, pois apenas a área de

cerimônia é de todos, mas as danças estão se perdendo, bem como o

uso das ervas medicinais e isso está doendo muito. Que a TI Kariri

Xocó é próxima à cidade, fica a 20 minutos a pé, o que leva a uma

grande discriminação, os novos passam a ter vergonha de se dizerem

índios e de agir como índios. Que os índios ao invés de se prepararem

para o Toré, estão saindo para a sociedade branca. Que as índias não

se preocupam em aprender a fazer potes e cantar. Que as lideranças

Kariri-Xocó nada fazem diante disso. Que as 72 famílias que se

reconhecem como Fulkaxó tem grande apego às tradições indígenas.

Que as lideranças Kariri-Xocó são Júlio Queiroz Suira (Kariri) e

Cícero Santiago (Xocó) dividem o poder na TI Kariri-Xocó. Que há

houve reunião com eles sobre os problemas que hoje estão sendo

discutidos, mas eles são omissos, não exercem a disciplina, não

incentivam o povo a trabalhar e os jovens ficam soltos, buscando o

álcool e outras coisas ruins para os índios. Que é grande a

discriminação que sofrem, pois não tem liberdade de exercerem sua

cultura livremente. Que só porque o índio Orlando Cruz, Fulkaxó,

passou em um concurso de motorista para a FUNASA, as lideranças

queriam impedi-lo de assumir o cargo, mediante ingerências

administrativas. Que os Fulkaxós foram claros com a administração da

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FUNASA e disseram que se o índio não fosse convocado na forma da

lei, buscariam o poder judiciário. Que as lideranças dos Kariri-Xocós

tentam impedir o trabalho da índia Josete, que é Fulkaxó e trabalha

na FUNASA como auxiliar de enfermagem, dentro da terra indígena.

Que existe entre as lideranças dos Xocós e dos Kariri uma grande

disputa de poder, apesar de viverem na mesma terra indígena. Que o

cacique Fulkaxó tenta levar trabalho para todos, bem como projetos

para serem desenvolvidos na aldeia como a farmácia natural, projetos

para casas, que foi impedido, projetos culturais, etc, contudo nada é

desenvolvido pelas lideranças. Que as lideranças só aceitam projetos

desde que ganhem alguma coisa com isso e possam tirar proveito do

poder. Que os Fulkaxós nasceram e se criaram na Terra indígena

Kariri-Xocó. (…). Desejam obter suas terras sem ter que chegar ao

ponto em que a FUNAI exige, ou seja, de conflito irreversível de

calamidade ou lutas; Que querem obter suas terras sem terem que

chegar à lutas internas, pois isso seria derramar o próprio sangue , já

que todos são parentes entre si. Que a administração da FUNAI nunca

procurou trabalhar para solucionar os conflitos existentes. Que

gostariam de saber a data em que o antropólogo do MPF irá visitar a

comunidade” (f. 105-114).

Como se vê, desde 2006 os índios Fulkaxós relatam a

prática de discriminação pelas lideranças da Comunidade Kariri-Xocó sem que

tenha havido qualquer sinal de que tal impasse alcance solução. Pelo contrário,

a discriminação sofrida por esses índios tem chegado ao ponto de os mesmos

serem impedidos de usufruir políticas públicas destinadas à comunidade.

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O perito antropólogo, em seu laudo, reafirma a existência

de um conflito interétnico:

c) na convivência com os Kariri-Xocó, os Fulkaxó estão submetidos a

algum processo discriminatório que gere conflito irreversível entre

essas suas etnias e que possa recomendar a separação dos grupos, com

aquisição de erras indígenas para os Fulkaxó?

O mote central da mobilização étnica fulkaxó é a convergência de

interesses entre pessoas qe se sentem discriminadas e que se veem

como parentes. Esse sentimento de discriminação, como vimos, está

principalmente relacionado ao acesso a recursos escassos – a terra,

em primeiro lugar – dada a percepção de que outros estão sendo, de

algum modo, mais beneficiados.

Como evidenciado anteriormente, as famílias que vieram a reivindicar a

identidade fulkaxó não se sentem representadas pelas lideranças

políticas Kariri-Xocó. Sentem-se excluídas dos processos descisórios

e discriminados da distribuição dos parcos recursos assistenciais que

chegam à comunidade. A divergência política tem se acirrado nos

pultimos anos, principalmente em decorrência do forte alinhamento

das representações locais e regionais da FUNAI com as lideranças

tradicionais da comunidade e o consequente alijamento daqueles que

tentam contorná-las e relacionarem-se autonomamente com os atores

externos. Surgem também desconfianças e acusações de malversação

de recursos, tráfico de influência no órgão indigenista, clientelismo,

etc., o que vem a agravar ainda mais o conflito entre esses grupos.

Embora os casos de violência ou ameaça de violência que envolveram

pessoas identificadas como Fulkaxó não estejam diretamente

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relacionados ao faccionalismo político, são interpretados a partir

dessa perspectiva. Assim, a morte do jovem Clenilson Nunes da Cruz é

apresentado como um caso de omissão das lideranças políticas da

comunidade, bem como revelariam a discriminação às família Cruz e

Pires.

No outro caso, em que um dos filhos de Ademir Cruz é acusado da

morte de outro índio, os Fulkaxó queixam-se também de discriminação,

pois dizem que houve perseguição política ao acusado. Por outro lado,

afirmam que as lideranças Kariri-Xocó são omissas em relação às

ameaças de vingança que familiares do jovem morto em dirigido aos

membros de sua família.

Esse último caso de violência é apresentado pelos Fulkaxó como a

principal justificativa para a urgência da saída do grupo da terra

indígena Kariri-Xocó, pois consideram que, caso isso não ocorra,

haverá novas mortes. Ainda que durante minha breve estada na área

não tenha presenciado nenhum ato de violência, pareceu-me muito

sincero o temor dos membros do grupo Fulkaxó acerca da iminência de

grave conflito (f. 116).

Por outro lado, a FUNAI afirma que é necessário tentar

incluir os indígenas em outra comunidade. Ocorre que, sendo a proteção aos

índios a finalidade precípua da mencionada Autarquia, a ela compete, tentar,

por meio de todas as ações possíveis resolver a situação dos índios Fulkaxó.

Apesar disso, como o perito identificou, a FUNAI se comporta como parte no

conflito e não como mediadora:

d) a FUNAI já atuou ou tem atuado junto a estas etnias visando

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solucionar os problemas de convivência acaso existente?

O atual coordenador local da FUNAI, Welton Mendonça, índigena

Kariri-Xocó parece ter boa disposição para ouvir e dar

encaminhamento às queixas e reivindicações apresentados pelo grupo

Fulkaxó. Com efeito, em atenção a pedido desse grupo, fez constar

dos cadastros do órgão a identidade Fulkaxó daqueles que assim se

apresentam.

Não obstante sua atuação formalmente neutra quanto à reivindicação

identitária Fulkaxó, ele é identificado como alinhado às lideranças

tradicionais Kariri-Xocó e, dessa forma, tem seu papel de mediador na

disputa faccional limitado. O fato de uma das lideranças Fulkaxó

também ser servidor da FUNAI sob a chefia daquele, parece criar

atritos que limitam sua possibilidade de atuar na solução dos conflitos.

A Coordenação Regional da FUNAI (antes denominada Administração

Regional) também não é reconhecida como uma mediadora imparcial

para os problemas que opõem os Fulkaxós ao restante da comunidade

da Terra Indígena Kariri-Xocó. Com efeito, José Heleno, filho do

Cacique Cícero de Aruanda, esteve até outubro de 2009 no cargo de

coordenador regional da FUNAI, e é acusado pelas lideranças Fulkaxo

de não dar encaminhamento às reivindicações do grupo, vem como de

persegui-los politicamente.

É importante considerar que, conforme entendo, a Funai mais que um

possível mediador dos conflitos da Terra Indígena Kariri-Xocó,

especialmente no que se refere ao faccionalismo político é parte

deles. (f. 117)

Contudo, apesar da clara finalidade para a qual foi

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instituída, a FUNAI tem sido omissa em relação a esse problema. Como se

verifica da prova juntada aos autos e dos depoimentos ora transcritos, a

FUNAI não tratou com a devida prioridade a questão dos índios Fulkaxós. Não

cabe, agora, após quase 05 anos da instauração do Procedimento

Administrativo visando a aquisição de terras para os referidos indígenas, a

FUNAI alegar que não foram adotadas todas as providências com vistas a

comprovar a absoluta necessidade da aquisição.

Para o antropólogo que visitou a comunidade Kariri-Xocó, a

necessidade de aquisição de terras para os Fulkaxó encontra-se plenamente

justificada, conforme se avista no laudo pericial:

e) As restrições impostas pela FUNAI para a aquisição de terras

consubstanciada às fls. 65/66, são adequadas do ponto de vista

antropológico?

Os critérios adotados pela Funai respondem, parece-me, a

necessidades de ordem política e administrativa. A aquisição de terras

deve, parece-me, ser uma exceção posto que a maior parte dos povos

indígenas tem sua identidade étnica profundamente marcada pelo

pertencimento ou pela luta em defesa de seu território tradicional.

Não obstante, não se pode confundir essa relação dos grupos étnicos

com um território com a substancialização de suas identidades. Assim,

do ponto de vista antropológico o importante é reconhecer que os

povos indígena como sujeitos conscientes, com interesses e

expectativas próprias, capazes de tomar decisões acerca de seu

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futuro. Não significa dizer que os índios podem ter a terra que

quiserem, mas também não significa que não possam reivindicar serem

assentados em uma área diferente daquela reconhecida como

tradicional.

No caso em análise, os Fulkaxó justificam com clareza as razões que

os levam a solicitar a aquisição de uma área para assentamento do

grupo. Além disso, a área por eles indicada a Fazenda Kadói apresenta

algumas características que se coadunam com os usos tradicionais da

terra pelo grupo, principalmente quanto à existência de uma

significativa área de mata preservada – importante como local para o

serviço religioso do Ouricuri, assim como para a obtenção de matéria-

prima par o artesanato indígena.

A distância relativamente pequena, aproximadamente 60 Km da

fazenda indicada à Terra Indígena Kariri-Xocó, também é considerada

como um indicador positivo pois favorece a possibilidade de se manter

os vínculos religiosos com a comunidade Kariri-Xocó.

Não se pode olvidar, portanto, que a proteção às terras

indígenas, e, na casuística sob exame, a destinação de terras para os índios

discriminados, se confunde com a proteção à própria vida desses indígenas.

Isso porque, a destinação de terras para esses índios proporcionará uma

melhor distribuição de terra e uma vida digna, já que muitas famílias não

possuem sequer um pedaço de terra para plantar.

A necessidade de aquisição de terras para abrigar os

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Fulkaxós, portanto, é explicita e imperiosa, eis que, como se viu a

discriminação desses índios tem gerado clima de tensão entre os indígenas que

vivem na comunidade Kariri-Xocó, o que pode a qualquer momento acarretar

um conflito violento, já que os índios Fulkaxos vem sendo ameaçados de morte

e impedidos de usufruir das políticas públicas destinadas aos Kariri-Xocós.

Resta claro que a FUNAI não observou o comando

contido no art. 231 da Constituição Federal de 1988, mesmo tendo amplo

conhecimento de que sua omissão vem causando sérios prejuízos aos índios

Fulkaxós.

Diante de todo o exposto, não há como se negar que a

aquisição de terras destinadas aos índios Fulkaxós é medida que

imprescindível para que o comando constitucional de proteção às populações

indígenas seja integralmente cumprido.

2.6 - DO DIREITO À PRESERVAÇÃO DA CULTURA INDÍGENA

Além da proteção territorial, a CF/88 prevê uma especial

proteção à cultura e aos costumes indígenas. A proteção da cultura indígena se

insere ainda na proteção constitucionalmente conferida ao patrimônio cultural.

Essa proteção genérica encontra previsão nos arts. 215 e 216 da Lei Maior:

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Art. 215. O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos

culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e

incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais.

§ 1º - O Estado protegerá as manifestações das culturas

populares, indígenas e afro-brasileiras, e das de outros grupos

participantes do processo civilizatório nacional.

§ 2º - A lei disporá sobre a fixação de datas comemorativas de alta

significação para os diferentes segmentos étnicos nacionais.

§ 3º A lei estabelecerá o Plano Nacional de Cultura, de duração

plurianual, visando ao desenvolvimento cultural do País e à integração

das ações do poder público que conduzem à: (Incluído pela Emenda

Constitucional nº 48, de 2005)

I defesa e valorização do patrimônio cultural brasileiro; (Incluído pela

Emenda Constitucional nº 48, de 2005)

II produção, promoção e difusão de bens culturais; (Incluído pela

Emenda Constitucional nº 48, de 2005)

III formação de pessoal qualificado para a gestão da cultura em suas

múltiplas dimensões; (Incluído pela Emenda Constitucional nº 48, de

2005)

IV democratização do acesso aos bens de cultura; (Incluído pela

Emenda Constitucional nº 48, de 2005)

V valorização da diversidade étnica e regional. (Incluído pela

Emenda Constitucional nº 48, de 2005)

Art. 216. Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de

natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em

conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à

memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira,

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nos quais se incluem:

I - as formas de expressão;

II - os modos de criar, fazer e viver;

III - as criações científicas, artísticas e tecnológicas;

IV - as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços

destinados às manifestações artístico-culturais;

V - os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico,

artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico.

(omissis)

Sobre os componentes do patrimônio cultural ensina o

ilustre colega Wilson Rocha Assis10:

“os modos de vida, produção e reprodução, as percepções de mundo,

os saberes tradicionais de todos e de cada um, dos grupos formadores

da sociedade brasileira – elementos definidores de suas identidades

culturais – é que compõem o patrimônio cultural nacional. Por certo, é

este o viés para a adequada compreensão do patrimônio cultural. Como

dito, ao expor bens que compõem o patrimônio cultural, a Constituição

faz expressa referência à questão das identidades ao tratar dos

diferentes grupos formadores da sociedade brasileira”.

E acrescenta:

“Esse caráter transcendente do patrimônio cultural é um dado

relevante. Por isso se disse que o patrimônio cultural é o aspecto mais

10 ASSIS, Wilson Rocha, O Patrimônio Cultural e a Tutela jurídica das Identidades, in Olhar
multidisciplinar sobre a efetividade da proteção do patrimônio cultural, Coord. Cláudia Márcia Freire
Lage, Belo Horizonte: Fórum, 2011, pp. 72/73.

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substancial e significativo da cultura geral, uma vez que só ingressam

nessa categoria as manifestações humanas cuja expressão seja capaz

de construir um significado que transcende o tempo e o espaço nos

quais se dá a sua enunciação. Trata-se, pois, de manifestações

culturais que constroem um caminho coletivo de identificação e

diálogo, tornando-se significativas para a sociedade na qual ela surge”.

Dos excertos supra transcritos verifica-se a importância

da preservação da cultura indígena como patrimônio cultural, uma vez que

constitui verdadeiro elemento formador da sociedade brasileira.

Dentre os elementos formadores da sociedade brasileira,

possui relevante posição a cultura indígena, razão pela qual esta encontra-se

abrangida pelo conceito de patrimônio cultural nacional, e, ainda mais por isso,

merece proteção diferenciada, garantida constitucionalmente. Assim, cabe ao

Estado assegurar a preservação do referido patrimônio, adotando todas as

medidas cabíveis e necessárias à sua efetiva manutenção, sob pena de

empobrecimento cultural da nação.

No caso do patrimônio cultura indígena, tal garantia possui

intrínseca relação com o território em que os índios vivem. É no âmbito das

aldeias, das comunidades indígenas, que se manifestam as crenças e os

costumes, que se realizam os cultos religiosos, bem assim se perpetuam o

modo de viver indígena.

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Ferir o direito ao território é, por via reflexa, atingir o

direito indígena, constitucionalmente garantido, de os índios expressarem sua

religiosidade, sua cultura e os seus costumes. É ferir, também, o mandamento

contido na Lei Maior de preservação do patrimônio cultural nacional. É essa a

lição de Hartmut Emanuel:

“Por um lado, a terra não tem apenas significado especial para a

sobrevivência física, ms também para a sobrevivência cultural dos

índios. Elas têm relevância não somente para a garantia de existência

no quadro da questão indígena. Ao contrário, existe uma ligação tão

estreita com a história cultural das etnias, sua mitologia, as ligações

familiares e o conjunto dos sistemas sociais, políticos e econômicos

das populações indígenas, que a questão da terra recebe significado

essencial para a garantia de sobrevivência dos índios como grupos

populacionais etnicamente diferentes”.

As manifestações culturais, consuetudinárias e religiosas

das populações indígenas necessitam de um ambiente propício para

desenvolverem-se. Demais disso, os rituais e costumes indígenas são

marcadamente de cunho coletivo, ou seja, a preservação da cultura se torna

bastante difícil em circunstâncias de desaldeamento e de desagregação, como

se encontram os índios xocós.

“os rituais indígena constituem momentos importantes que marcam a

socialização de um indivíduo ou a passagem de um grupo de uma

situação para outra. Eles marcam momentos constitutivos da

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identidade dos indivíduos nas diferentes fases de sua vida, incluindo a

passagem para o mundo dos mortos. Manifestam as relações entre o

mundo social e o mundo cósmico, entre o universo natural e o

sobrenatural. A maioria destes rituais são planejados e preparados

com antecedência, envolvendo grande quantidade de alimentos,

confecção de artefatos e convites a parentes e aliados (A temática

indígena na escola – Festas e rituais indígenas – p. 33611).

É nesse contexto que a existência de um território em

que os índios possam se reagrupar se mostra absolutamente imprescindível

para a preservação cultural indígena. Para o saudoso Ministro Menezes

Direito:

(...) Preservar as sociedades indígenas é também uma forma de

reconstituí-las, de manter a integridade da sua cultura, reforçando a

necessária perspectiva de respeito entre todos os que são parte da

nacionalidade brasileira. Anoto, desde logo, que, por isso, a proteção

constitucional aos índios não é segregacionista. Não há índio sem

terra. A relação com o solo é marca característica da essência

indígena, pois tudo o que ele é, é na terra e com a terra. Daí a

importância do solo para a garantia dos seus direitos, todos

ligados de uma maneira ou de outra à terra. É o que se extrai do

corpo do art. 231 da Constituição. (...). O conceito indica modo de

ocupação, a maneira pela qual os índios se relacionam com a terra. É

um novo ângulo em relação ao que previam as Constituições anteriores

que, se de um lado justifica a extensão geográfica dos direitos a


11 SILVA, Aracy Lopes da et GRUPIONI, Luís Donisete Bensi, A temática indígena na escola – Festas e
rituais indígenas. MEC/MARI/UNESCO, 1995 – p. 336

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serem reconhecidos, de outro pode significar a exigência de que a

ocupação pelos índios se dê em conformidade com a cultura e o modus

vivendi que se deseja preservar.

A prova produzida ao longo do ICP demonstra que os

Fulkaxós possuem forte preocupação com a manutenção e preservação de sua

cultura e costumes. Entendem o intenso contato com os brancos que os índios

Kariri-Xocós possuem acarreta grande prejuízo à manutenção dos costumes

indígenas, eis que a cultura e os costumes pertinentes a essa etnia não

encontram condições propícias à propagação e preservação.

Que o alegado crescimento geográfico da terra indígena Kariri-Xocó

só ocorreu no papel, pois as terras até hoje não foram entregues aos

índios. Que não podem exercer plenamente sua cultura, pois apenas a

área de cerimônia é de todos, mas as danças estão se perdendo, bem

como o uso das ervas medicinais e isso está doendo muito. Que a TI

Kariri Xocó é próxima à cidade, fica a 20 minutos a pé, o que leva a

uma grande discriminação, os novos passam a ter vergonha de se

dizerem índios e de agir como índios. Que os índios ao invés de se

prepararem para o Toré, estão saindo para a sociedade branca. Que as

índias não se preocupam em aprender a fazer potes e cantar. Que as

lideranças Kariri-Xocó nada fazem diante disso. Que as 72 famílias

que se reconhecem como Fulkaxó tem grande apego às tradições

indígenas. Que as lideranças Kariri-Xocó são Júlio Queiroz Suira

(Kariri) e Cícero Santiago (Xocó) dividem o poder na TI Kariri-Xocó.

Que há houve reunião com eles sobre os problemas que hoje estão

sendo discutidos, mas eles são omissos, não exercem a disciplina, não

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incentivam o povo a trabalhar e os jovens ficam soltos, buscando o

álcool e outras coisas ruins para os índios. Que é grande a

discriminação que sofrem, pois não tem liberdade de exercerem sua

cultura livremente (f. 105/114).

2.7 - DO DIREITO À MORADIA DIGNA COMO DIREITO SUBJETIVO

PÚBLICO

Não se pode olvidar que os índios Fulkaxós estão sofrendo

forte discriminação por parte dos Kariri-Xocó sendo a falta de espaço para

moradia, plantio e exercício de sua cultura elemento que agrava tal circunstân-

cia, criando conflitos entre as etnias.

Não há dúvida de que a moradia digna é um direito funda-

mental, mormente em razão de sua expressa previsão no art. 6º da Carta Re-

publicana, ao definir como direitos sociais “a educação, a saúde, o trabalho, a

moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e

à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição”.

Ressalte-se que este direito, malgrado primitivamente não

inscrito na Carta Magna como direito social, já detinha o status de fundamen-

tal, seja porque é elemento integrante de composição do salário mínimo do tra-

balhador urbano e rural (art. 7º, IV), o qual, é de comum sabença, presta-se

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para atender as necessidades básicas da pessoa; seja por estar englobado na

competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípi-

os, a qual sinaliza a promoção de programas de construção de moradias e me-

lhoramento das condições habitacionais e de saneamento básico (art. 23, IX,

da CF).

Agora, por força da emenda constitucional (EC) nº.

26/2000, o Poder Reformador viu por bem, em razão da importância do acesso

à habitação, fazer inseri-lo expressamente no núcleo do art. 6º, da Lei Maior.

Segundo Norberto Bobbio, a melhor forma de obter o

fundamento de valores é por intermédio da observação, em dado período his-

tórico, da sua aceitação.

In casu, no plano internacional, tem-se que o art. 25 da

Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1945, assegura um padrão de

vida adequado a todo homem, e inclui neste conceito a necessidade de habita-

ção.

Nesta senda, a Declaração de Vancouver, de 1976, encam-

pa garantia semelhante, no que tange ao reconhecimento do direito em apreço.

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Há, ainda, o Pacto Internacional sobre Direitos Econômi-

cos, Sociais e Culturais, o qual prevê, em seu art. 11 a necessidade da moradia

adequada.

Não podem ser esquecidas, também, a Convenção Interna-

cional sobre Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial (1965), a

Convenção sobre Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a

Mulher (1979), a Convenção sobre os direitos das Crianças (1989) e a Agenda

21 sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (1992). Todas estas cartas supra-

nacionais tratam do direito à moradia, reputando-o como imprescindível ao ple-

no desenvolvimento da pessoa humana.

Então, tais documentos internacionais tornam inconteste o

consenso quanto à importância da habitação, no momento histórico ora vivenci-

ado. Afinal, resta manifesta a sua fundamentalidade substancial, eis que alça-

do ao patamar de direito humano universal.

E, cabe ressaltar, em todas essas declarações e pactos in-

ternacionais a República Federativa do Brasil foi parte, pelo que reconheceu o

direito de toda pessoa a um nível de vida adequado, incluindo-se aí a moradia.

Sendo assim, tal direito foi recepcionado por nossa Constituição, por força do

§ 2º do seu art. 5º, que dispõe não ser o rol de direitos e garantias previstos

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em seu corpo como taxativo, mas sim exemplificativo, haja vista a possibilida-

de de ingresso de novos por meio de participação do Estado em pactos supra-

nacionais.

A habitação, assim, não obstante considerada um direito

social, é imprescindível à salvaguarda de direitos relacionados à própria liber-

dade e dignidade do ser humano, integrando o que a doutrina denomina de mí-

nimo existencial.

Nada obstante, ainda na linha do raciocínio de Norberto

Bobbio, urge sublinhar que o problema dos direitos humanos, hoje, não é tanto

o de fundamentá-los, mas sim o de efetivá-los.

E é neste ponto que residem as dificuldades.

As conclusões do Radar Social 2006, empreendido pelo

IPEA, são bastantes para comprovar a precariedade das condições habitacio-

nais brasileiras. Segundo este estudo, há 14,8 milhões de lares brasileiros com

adensamento excessivo, 7,2 milhões com irregularidade fundiária, 5,3 milhões

de pessoas que sofrem de ônus excessivo com o pagamento de aluguel e 43,4

milhões de brasileiros sem acesso a saneamento básico adequado.

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Neste plano, a única alternativa é considerar o direito em

voga como subjetivo público, passível de exigibilidade oponível ao Estado, com

espeque nos ensinamentos de J.J. Gomes Canotilho:

Os direitos sociais são compreendidos como autênticos di-

reitos subjetivos inerentes ao espaço existencial do cidadão, independente-

mente da sua justicialidade e exequibilidade imediatas. Nem o Estado nem

terceiros podem agredir posições jurídicas reentrantes no âmbito de proteção

destes direitos.

Do mesmo pensamento comunga o Ministro Gilmar Ferrei-

ra Mendes, para quem descabem questionamentos quanto à natureza de direito

subjetivo público dos direitos sociais, vez que o constituinte os aclamou como

fundamentais e vinculantes aos Poderes Públicos, especialmente pela existên-

cia das garantias do mandado de injunção e da ação direta de inconstitucionali-

dade por omissão.

Todavia, se é certa a natureza jurídica do direito à mora-

dia enquanto direito subjetivo público, certo é também que a realidade fática

não é alterada somente pela caneta do constituinte. Na preleção de Gustavo

Rabay Guerra, o direito à moradia não dispõe de aplicabilidade fática, sendo

necessária a intermediação de projetos públicos adequados.

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O direito à moradia, ainda que expresso, carece de força

normativa plena, a par de conferir-lhe aplicabilidade fática. Em termos empíri-

cos, essa deverá ser buscada por meio de medidas e programas habitacionais

resultantes de políticas sociais adequadas, ou ainda, por meio da função direti-

va exercida pelo Judiciário, respaldada pelo princípio maior que representa a

predita consignação fundamental, o primado da dignidade da pessoa humana.

O Direito de moradia é direito fundamental positivado no

art. 6º da Constituição Federal e diretamente ligado ao direito fundamental da

dignidade da pessoa humana, art. 1º, III, da Constituição Federal.

Para as comunidades indígenas garantir o direito à mora-

dia não significa apenas a concessão de uma casa, mas implica em possibilitar

uma convivência digna junto a seus pares, com o fortalecimento dos seus víncu-

los,, dentro de um território comum, que possa garantir a sobrevivência física

e cultural do grupo.

A aquisição de uma área para que os Fulkaxós possam se

instalar com suas famílias e dela retirar seu sustento é medida que ao mesmo

tempo em que protege culturalmente a comunidade indígena, realiza o direito

subjetivo à moradia.

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2.8 - DA RAZOÁVEL DURAÇÃO DO PROCESSO

Os fatos narrados nesta demanda revelam que além de

não realizar sua finalidade precípua, qual seja, a proteção das populações

indígenas, a FUNAI, não observou o princípio da razoável duração dos

processos garantidos constitucionalmente.

A dependência de prévio orçamento para a aquisição de

terras não pode levar a um processo administrativo sem fim. É necessário que

os órgãos administrativos conduzam seus procedimentos de modo a fornecer

ao administrado uma resposta certa. Não é permitida ao administrador a

pratica ora perpetrada pela FUNAI, a qual após 05 anos do requerimento de

aquisição de terras, sugere que o procedimento não se encontra devidamente

instruído, por não terem sido esgotadas as possibilidades de solução do

conflito.

Insta realçar que cabia à própria FUNAI diligenciar para

a instrução de seu procedimento administrativo, cabia à própria FUNAI atuar

para buscar a superação do conflito intra-étnico existente entre os índios

Fulkaxós e Kariri-Xocós, porém nada fez nesse sentido.

Tal proceder afronta os preceitos processuais

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estabelecidos na Lei Maior, que após a EC 45/2004, passou a prever no rol dos

direitos e garantias fundamentais a razoável duração dos processos, inclusive

dos processos administrativos. A demora na solução de procedimentos

administrativos equivale à omissão do órgão, a qual é passível de

responsabilização . Nesse sentido é o entendimento do Superior Tribunal de

Justiça:

MANDADO DE SEGURANÇA. ANISTIA POLÍTICA. MILITAR

FALECIDO.PENSIONISTA. ATO OMISSIVO DO MINISTRO DE

ESTADO DA JUSTIÇA. CONCLUSÃO DO PROCESSO

ADMINISTRATIVO. RAZOABILIDADE E EFICIÊNCIA.

CONCESSÃO PARCIAL DA ORDEM.

1. Em exame mandado de segurança impetrado por Nisete Cardoso

Lacerda, pensionista de anistiado político, contra ato omissivo do

Ministro de Estado da Justiça consubstanciado na não conclusão de

processo administrativo em que se reviu o valor da pensão por morte.

2. Nos termos dos arts. 10 e 12 da Lei nº 10.559/2002, Lei de Anistia,

a competência para decidir acerca dos pedidos de anistia política é

única e exclusiva do Ministro de Estado da Justiça.

3. O Ministro da Justiça não está vinculado à manifestação da

Comissão de Anistia, que exerce função de assessoramento.

4.Consoante reiterada jurisprudência do STJ, fica caracterizada

a omissão da autoridade impetrada em concluir o processo

administrativo da impetrante, pois a todos é assegurada a

razoável duração do processo, não se podendo permitir que a

Administração postergue, indefinidamente, a conclusão de processo

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administrativo. Razoabilidade e eficiência administrativas.

5. No caso, levando-se em consideração que o processo administrativo

tramita desde 2004, que a Comissão de Anistia já esgotou seu ofício,

desde maio de 2010, que a autoridade impetrada entende não estar

demorando na análise do pleito, não se pode permitir que a

Administração Pública postergue, indefinidamente, a conclusão do

processo administrativo, sendo necessário resgatar a devida

celeridade, característica de processos urgentes instaurados com a

finalidade de reparar injustiças outrora perpetradas.

6. Na esteira dos precedentes do STJ, impõe-se a concessão da

segurança para determinar que a autoridade coatora profira, no prazo

de 60 (sessenta) dias, decisão no processo administrativo da

impetrante, como entender de direito.

7. Ordem parcialmente concedida.

(MS 15.598/DF, Rel. Ministro MAURO CAMPBELL MARQUES,

PRIMEIRA SEÇÃO, julgado em 28/09/2011, DJe 04/10/2011)

A inércia da FUNAI em resolver os problemas dos

Fulkaxó pode agravar o conflito e a discriminação existente entre a referida

etnia e os Kariri-Xocó.

2.9 - DOS LIMITES À DISCRICIONARIEDADE DA ADMINISTRAÇÃO

NA IMPLEMENTAÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS

Se o campo das políticas públicas está historicamente re-

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lacionado com a noção de discricionariedade administrativa, é certo que os

dias atuais agravaram a distância entre as expectativas da sociedade, que con-

vivem com o aumento da demanda por prestações públicas, e a efetiva respos-

ta da administração pública por meio da aplicação de recursos públicos.

O administrador define políticas públicas quando elabora

seu orçamento anual. Ciente de todas as carências que administra nas mais di-

versas áreas como a educação, saúde, transporte, lazer, dentre outros, deve o

administrador fazer escolhas para melhor investir recursos públicos. A “esco-

lha ótima” exigível da administração certamente não será a de deixar pessoas

sem saneamento básico, crianças sem escola, sociedade desguarnecida de ser-

viços de saúde, enquanto destina os recursos à construção de sofisticados

prédios para o funcionamento da máquina administrativa ou investe em propa-

ganda, ainda que institucional.

Discricionariedade não pode ser pretexto para a inefici-

ência da administração pública e para a sonegação de direitos sociais funda-

mentais como o saneamento básico.

Observe-se que o campo da discricionariedade adminis-

trativa, no âmbito dos estudos jurídicos, sofreu grandes mutações nos últimos

anos. Houve mudanças significativas do entendimento da doutrina e da juris-

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prudência, tanto estrangeira quanto nacional, acerca do controle da discricio-

nariedade administrativa por parte do poder judiciário.

Os tribunais superiores brasileiros já assumiram postura

garantista quando se trata de determinar à administração pública o cumpri-

mento de obrigações que concretizem direitos sociais. Confira-se o preceden-

te abaixo que mostra como o poder judiciário determina a execução de política

pública quando essa afeta a saúde pública e o direito ao meio ambiente, por

ineficiência das ações de saneamento:

PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO. COLETA DE LIXO.

SERVIÇO ESSENCIAL. PRESTAÇÃO DESCONTINUADA. PREJUÍZO

À SAÚDE PÚBLICA. DIREITO FUNDAMENTAL. NORMA DE

NATUREZA PROGRAMÁTICA. AUTO-EXECUTORIEDADE.

PROTEÇÃO POR VIA DA AÇÃO CIVIL PÚBLICA. POSSIBILIDADE.

ESFERA DE DISCRICIONARIEDADE DO ADMINISTRADOR.

INGERÊNCIA DO PODER JUDICIÁRIO.

1. Resta estreme de dúvidas que a coleta de lixo constitui serviço

essencial, imprescindível à manutenção da saúde pública, o que o torna

submisso à regra da continuidade. Sua interrupção, ou ainda, a sua

prestação de forma descontinuada, extrapola os limites da legalidade

e afronta a cláusula pétrea de respeito à dignidade humana, porquanto

o cidadão necessita utilizar-se desse serviço público, indispensável à

sua vida em comunidade.

2. Releva notar que uma Constituição Federal é fruto da vontade

política nacional, erigida mediante consulta das expectativas e das

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possibilidades do que se vai consagrar, por isso cogentes e eficazes

suas promessas, sob pena de restarem vãs e frias enquanto letras

mortas no papel. Ressoa inconcebível que direitos consagrados em

normas menores como Circulares, Portarias, Medidas Provisórias, Leis

Ordinárias tenham eficácia imediata e os direitos consagrados

constitucionalmente, inspirados nos mais altos valores éticos e morais

da nação sejam relegados a segundo plano. Trata-se de direito com

normatividade mais do que suficiente, porquanto se define pelo dever,

indicando o sujeito passivo, in casu, o Estado.

3. Em função do princípio da inafastabilidade consagrado

constitucionalmente, a todo direito corresponde uma ação que o

assegura, sendo certo que todos os cidadãos residentes em

Cambuquira encartam-se na esfera desse direito, por isso a

homogeneidade e transindividualidade do mesmo a ensejar a bem

manejada ação civil pública.

4. A determinação judicial desse dever pelo Estado, não encerra

suposta ingerência do judiciário na esfera da administração.

Deveras, não há discricionariedade do administrador frente aos

direitos consagrados, quiçá constitucionalmente. Nesse campo a

atividade é vinculada sem admissão de qualquer exegese que vise

afastar a garantia pétrea.

5. Um país cujo preâmbulo constitucional promete a disseminação das

desigualdades e a proteção à dignidade humana, alçadas ao mesmo

patamar da defesa da Federação e da República, não pode relegar a

saúde pública a um plano diverso daquele que o coloca, como uma das

mais belas e justas garantias constitucionais.

6. Afastada a tese descabida da discricionariedade, a única dúvida que

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se poderia suscitar resvalaria na natureza da norma ora sob enfoque,

se programática ou definidora de direitos.

7. As meras diretrizes traçadas pelas políticas públicas não são ainda

direitos senão promessas de lege ferenda, encartando-se na esfera

insindicável pelo Poder Judiciário, qual a da oportunidade de sua

implementação.

8. Diversa é a hipótese segundo a qual a Constituição Federal consagra

um direito e a norma infraconstitucional o explicita, impondo-se ao

judiciário torná-lo realidade, ainda que para isso, resulte obrigação de

fazer, com repercussão na esfera orçamentária.

9. Ressoa evidente que toda imposição jurisdicional à Fazenda Pública

implica em dispêndio e atuar, sem que isso infrinja a harmonia dos

poderes, porquanto no regime democrático e no estado de direito o

Estado soberano submete-se à própria justiça que instituiu. Afastada,

assim, a ingerência entre os poderes, o judiciário, alegado o

malferimento da lei, nada mais fez do que cumpri-la ao determinar a

realização prática da promessa constitucional.

10. "A questão do lixo é prioritária, porque está em jogo a saúde

pública e o meio ambiente." Ademais, "A coleta do lixo e a limpeza dos

logradouros públicos são classificados como serviços públicos

essenciais e necessários para a sobrevivência do grupo social e do

próprio Estado, porque visam a atender as necessidades inadiáveis da

comunidade, conforme estabelecem os arts. 10 e 11 da Lei n.º

7.783/89. Por tais razões, os serviços públicos desta natureza são

regidos pelo PRINCÍPIO DA CONTINUIDADE." 11. Recurso especial

provido.

(REsp 575.998/MG, Rel. Ministro LUIZ FUX, PRIMEIRA TURMA,

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julgado em 07/10/2004, DJ 16/11/2004 p. 191)

No STF, o entendimento não é divergente daquele firma-

do no STJ. Confira-se julgado do STF, cujo relator é o Ministro Celso de Mel-

lo:

E M E N T A: RECURSO EXTRAORDINÁRIO - CRIANÇA DE ATÉ

SEIS ANOS DE IDADE - ATENDIMENTO EM CRECHE E EM PRÉ-

ESCOLA - EDUCAÇÃO INFANTIL - DIREITO ASSEGURADO PELO

PRÓPRIO TEXTO CONSTITUCIONAL (CF, ART. 208, IV) -

COMPREENSÃO GLOBAL DO DIREITO CONSTITUCIONAL À

EDUCAÇÃO - DEVER JURÍDICO CUJA EXECUÇÃO SE IMPÕE AO

PODER PÚBLICO, NOTADAMENTE AO MUNICÍPIO (CF, ART. 211, §

2º) - RECURSO IMPROVIDO. - A educação infantil representa

prerrogativa constitucional indisponível, que, deferida às crianças, a

estas assegura, para efeito de seu desenvolvimento integral, e como

primeira etapa do processo de educação básica, o atendimento em

creche e o acesso à pré-escola (CF, art. 208, IV). - Essa prerrogativa

jurídica, em conseqüência, impõe, ao Estado, por efeito da alta

significação social de que se reveste a educação infantil, a obrigação

constitucional de criar condições objetivas que possibilitem, de

maneira concreta, em favor das "crianças de zero a seis anos de

idade" (CF, art. 208, IV), o efetivo acesso e atendimento em creches

e unidades de pré-escola, sob pena de configurar-se inaceitável

omissão governamental, apta a frustrar, injustamente, por inércia, o

integral adimplemento, pelo Poder Público, de prestação estatal que

lhe impôs o próprio texto da Constituição Federal. - A educação

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infantil, por qualificar-se como direito fundamental de toda criança,

não se expõe, em seu processo de concretização, a avaliações

meramente discricionárias da Administração Pública, nem se subordina

a razões de puro pragmatismo governamental. - Os Municípios - que

atuarão, prioritariamente, no ensino fundamental e na educação

infantil (CF, art. 211, § 2º) - não poderão demitir-se do mandato

constitucional, juridicamente vinculante, que lhes foi outorgado pelo

art. 208, IV, da Lei Fundamental da República, e que representa fator

de limitação da discricionariedade político-administrativa dos entes

municipais, cujas opções, tratando-se do atendimento das crianças em

creche (CF, art. 208, IV), não podem ser exercidas de modo a

comprometer, com apoio em juízo de simples conveniência ou de mera

oportunidade, a eficácia desse direito básico de índole social. -

Embora resida, primariamente, nos Poderes Legislativo e Executivo, a

prerrogativa de formular e executar políticas públicas, revela-se

possível, no entanto, ao Poder Judiciário, determinar, ainda que em

bases excepcionais, especialmente nas hipóteses de políticas públicas

definidas pela própria Constituição, sejam estas implementadas pelos

órgãos estatais inadimplentes, cuja omissão - por importar em

descumprimento dos encargos político-jurídicos que sobre eles

incidem em caráter mandatório - mostra-se apta a comprometer a

eficácia e a integridade de direitos sociais e culturais impregnados de

estatura constitucional. A questão pertinente à "reserva do possível".

Doutrina.

(RE 410715 AgR, Relator(a): Min. CELSO DE MELLO, Segunda Turma,

julgado em 22/11/2005, DJ 03-02-2006 PP-00076 EMENT VOL-

02219-08 PP-01529 RTJ VOL-00199-03 PP-01219 RIP v. 7, n. 35,

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2006, p. 291-300)

Na mesma senda, segue outro julgado do STJ:

ADMINISTRATIVO. CONSTITUCIONAL. ART. 127 DA CF/88. ART.

7. DA LEI N.º 8.069/90. DIREITO AO ENSINO FUNDAMENTAL

AOS MENORES DE SEIS ANOS "INCOMPLETOS". NORMA

CONSTITUCIONAL REPRODUZIDA NO ART. 54 DO ESTATUTO DA

CRIANÇA E DO ADOLESCENTE. NORMA DEFINIDORA DE

DIREITOS NÃO PROGRAMÁTICA. EXIGIBILIDADE EM JUÍZO.

INTERESSE TRANSINDIVIDUAL ATINENTE ÀS CRIANÇAS

SITUADAS NESSA FAIXA ETÁRIA. CABIMENTO E PROCEDÊNCIA.

1. O direito à educação, insculpido na Constituição Federal e no

Estatuto da Criança e do Adolescente, é direito indisponível, em

função do bem comum, maior a proteger, derivado da própria força

impositiva dos preceitos de ordem pública que regulam a matéria.

2. O direito constitucional ao ensino fundamental aos menores de seis

anos incompletos é consagrado em norma constitucional reproduzida

no art. 54 do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei n.º

8.069/90): "Art. 54. É dever do Estado assegurar à criança e ao

adolescente: (...) V - acesso aos níveis mais elevados do ensino, da

pesquisa e da criação artística, segundo a capacidade de cada um;

(omissis)" 3. In casu, como anotado no aresto recorrido "a Lei de

Diretrizes e Bases da Educação Nacional prever, em seu art. 87, § 3º,

inciso I, que a matrícula no ensino fundamental está condicionada a

que a criança tenha 7 (sete) anos de idade, ou facultativamente, a

partir dos seis anos, a Constituição Federal , em seu art. 208, inciso V,

dispõe que o acesso aos diversos níveis de educação depende da

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capacidade de cada um, sem explicitar qualquer critério restritivo,

relativo a idade. O dispositivo constitucional acima mencionado, está

ínsito no art. 54, inciso V, do Estatuto da Criança e do Adolescente,

sendo dever do Estado assegurar à criança e ao adolescente o acesso

à educação, considerada direito fundamental.

Destarte, havendo nos autos (fls. 88 a 296), comprovação de

capacidade das crianças residentes em Ivinhema e Novo Horizonte do

Sul, através de laudos de avaliação psicopedagógica, considerando-as

aptas para serem matriculadas no ensino infantil e fundamental, tenho

que dever ser-lhes assegurado o direito constitucional à educação (...)"

4. Conclui-se, assim, que o decisum impugnado assegurou um dos

consectários do direito à educação, fundado nas provas, concluindo

que a capacidade de aprendizagem da criança deve ser analisada de

forma individual, não genérica, porque tal condição não se afere única

e exclusivamente pela idade cronológica, o que conduz ao não

conhecimento do recurso nos termos da Súmula 7 do STJ, verbis: "A

pretensão de simples reexame de prova não enseja Recurso Especial".

5. Releva notar que uma Constituição Federal é fruto da vontade

política nacional, erigida mediante consulta das expectativas e das

possibilidades do que se vai consagrar, por isso que cogentes e

eficazes suas promessas, sob pena de restarem vãs e frias enquanto

letras mortas no papel. Ressoa inconcebível que direitos consagrados

em normas menores como Circulares, Portarias, Medidas Provisórias,

Leis Ordinárias tenham eficácia imediata e os direitos consagrados

constitucionalmente, inspirados nos mais altos valores éticos e morais

da nação sejam relegados a segundo plano. Prometendo o Estado o

direito à creche, cumpre adimpli-lo, porquanto a vontade política e

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constitucional, para utilizarmos a expressão de Konrad Hesse, foi no

sentido da erradicação da miséria intelectual que assola o país.

O direito à creche é consagrado em regra com normatividade mais do

que suficiente, porquanto se define pelo dever, indicando o sujeito

passivo, in casu, o Estado.

6. Consagrado por um lado o dever do Estado, revela-se, pelo outro

ângulo, o direito subjetivo da criança. Consectariamente, em função do

princípio da inafastabilidade da jurisdição consagrado

constitucionalmente, a todo direito corresponde uma ação que o

assegura, sendo certo que todas as crianças nas condições estipuladas

pela lei encartam-se na esfera desse direito e podem exigi-lo em juízo.

A homogeneidade e transindividualidade do direito em foco enseja a

propositura da ação civil pública.

7. A determinação judicial desse dever pelo Estado, não encerra

suposta ingerência do judiciário na esfera da administração.

Deveras, não há discricionariedade do administrador frente aos

direitos consagrados, quiçá constitucionalmente. Nesse campo a

atividade é vinculada sem admissão de qualquer exegese que vise

afastar a garantia pétrea.

8. Um país cujo preâmbulo constitucional promete a disseminação das

desigualdades e a proteção à dignidade humana, alçadas ao mesmo

patamar da defesa da Federação e da República, não pode relegar o

direito à educação das crianças a um plano diverso daquele que o

coloca, como uma das mais belas e justas garantias constitucionais.

9. Afastada a tese descabida da discricionariedade, a única dúvida que

se poderia suscitar resvalaria na natureza da norma ora sob enfoque,

se programática ou definidora de direitos. Muito embora a matéria

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seja, somente nesse particular, constitucional, porém sem importância

revela-se essa categorização, tendo em vista a explicitude do ECA,

inequívoca se revela a normatividade suficiente à promessa

constitucional, a ensejar a acionabilidade do direito consagrado no

preceito educacional.

10. As meras diretrizes traçadas pelas políticas públicas não são ainda

direitos senão promessas de lege ferenda, encartando-se na esfera

insindicável pelo Poder Judiciário, qual a da oportunidade de sua

implementação.

11. Diversa é a hipótese segundo a qual a Constituição Federal

consagra um direito e a norma infraconstitucional o explicita,

impondo-se ao judiciário torná-lo realidade, ainda que para isso,

resulte obrigação de fazer, com repercussão na esfera orçamentária.

12. Ressoa evidente que toda imposição jurisdicional à Fazenda Pública

implica em dispêndio e atuar, sem que isso infrinja a harmonia dos

poderes, porquanto no regime democrático e no estado de direito o

Estado soberano submete-se à própria justiça que instituiu. Afastada,

assim, a ingerência entre os poderes, o judiciário, alegado o

malferimento da lei, nada mais fez do que cumpri-la ao determinar a

realização prática da promessa constitucional.

13. Ad argumentandum tantum, o direito do menor à freqüência de

escola, insta o Estado a desincumbir-se do mesmo através da sua

rede própria. Deveras, matricular um menor de seis anos no início do

ano e deixar de fazê-lo com relação aquele que completaria a referida

idade em um mês, por exemplo, significa o mesmo que tentar legalizar

a mais violenta afronta ao princípio da isonomia, pilar não só da

sociedade democrática anunciada pela Carta Magna, mercê de ferir de

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morte a cláusula de defesa da dignidade humana.

14. O Estado não tem o dever de inserir a criança numa escola

particular, porquanto as relações privadas subsumem-se a burocracias

sequer previstas na Constituição. O que o Estado soberano promete

por si ou por seus delegatários é cumprir o dever de educação

mediante o oferecimento de creche para crianças de zero a seis anos.

Visando ao cumprimento de seus desígnios, o Estado tem domínio

iminente sobre bens, podendo valer-se da propriedade privada, etc. O

que não ressoa lícito é repassar o seu encargo para o particular, quer

incluindo o menor numa 'fila de espera', quer sugerindo uma medida

que tangencia a legalidade, porquanto a inserção numa creche

particular somente poderia ser realizada sob o pálio da licitação ou

delegação legalizada, acaso a entidade fosse uma longa manu do

Estado ou anuísse, voluntariamente, fazer-lhe as vezes. Precedente

jurisprudencial do STJ: RESP 575.280/SP, desta relatoria p/

acórdão, publicado no DJ de 25.10.2004.

15. O Supremo Tribunal Federal, no exame de hipótese análoga, nos

autos do RE 436.996-6/SP, Relator Ministro Celso de Mello, publicado

no DJ de 07.11.2005, decidiu verbis: "CRIANÇA DE ATÉ SEIS ANOS

DE IDADE. ATENDIMENTO EM CRECHE E EM PRÉ-ESCOLA.

EDUCAÇÃO INFANTIL. DIREITO ASSEGURADO PELO PRÓPRIO

TEXTO CONSTITUCIONAL (CF, ART. 208, IV). COMPREENSÃO

GLOBAL DO DIREITO CONSTITUCIONAL À EDUCAÇÃO. DEVER

JURÍDICO CUJA EXECUÇÃO SE IMPÕE AO PODER PÚBLICO,

NOTADAMENTE AO MUNICÍPIO (CF, ART. 211, § 2º). RECURSO

EXTRAORDINÁRIO CONHECIDO E PROVIDO.

- A educação infantil representa prerrogativa constitucional

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indisponível, que, deferida às crianças, a estas assegura, para efeito

de seu desenvolvimento integral, e como primeira etapa do processo

de educação básica, o atendimento em creche e o acesso à pré-escola

(CF, art. 208, IV).

- Essa prerrogativa jurídica, em conseqüência, impõe, ao Estado, por

efeito da alta significação social de que se reveste a educação infantil,

a obrigação constitucional de criar condições objetivas que

possibilitem, de maneira concreta, em favor das "crianças de zero a

seis anos de idade" (CF, art. 208, IV), o efetivo acesso e atendimento

em creches e unidades de pré-escola, sob pena de configurar-se

inaceitável omissão governamental, apta a frustrar, injustamente, por

inércia, o integral adimplemento, pelo Poder Público, de prestação

estatal que lhe impôs o próprio texto da Constituição Federal.

- A educação infantil, por qualificar-se como direito fundamental de

toda criança, não se expõe, em seu processo de concretização, a

avaliações meramente discricionárias da Administração Pública, nem

se subordina a razões de puro pragmatismo governamental.

- Os Municípios - que atuarão, prioritariamente, no ensino fundamental

e na educação infantil (CF, art. 211, § 2º) - não poderão demitir-se do

mandato constitucional, juridicamente vinculante, que lhes foi

outorgado pelo art. 208, IV, da Lei Fundamental da República, e que

representa fator de limitação da discricionariedade político--

administrativa dos entes municipais, cujas opções, tratando-se do

atendimento das crianças em creche (CF, art. 208, IV), não podem ser

exercidas de modo a comprometer, com apoio em juízo de simples

conveniência ou de mera oportunidade, a eficácia desse direito básico

de índole social.

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- Embora inquestionável que resida, primariamente, nos Poderes

Legislativo e Executivo, a prerrogativa de formular e executar

políticas públicas, revela-se possível, no entanto, ao Poder Judiciário,

ainda que em bases excepcionais, determinar, especialmente nas

hipóteses de políticas públicas definidas pela própria Constituição,

sejam estas implementadas, sempre que os órgãos estatais

competentes, por descumprirem os encargos político-jurídicos que

sobre eles incidem em caráter mandatório, vierem a comprometer,

com a sua omissão, a eficácia e a integridade de direitos sociais e

culturais impregnados de estatura constitucional. A questão

pertinente à "reserva do possível".

Doutrina.

16. Recurso especial não conhecido.

(REsp 753.565/MS, Rel. Ministro LUIZ FUX, PRIMEIRA TURMA,

julgado em 27/03/2007, DJ 28/05/2007 p. 290)

Quanto à exigibilidade dos direitos coletivos ante a abulia

política do Executivo, o eterno e notável jurista transnacional Norberto Bob-

bio, “verbis”:

Será que já nos perguntamos alguma vez que gênero de normas são

essas que não ordenam, proíbem ou permitem ‘hic et nunc’, mas

ordenam, proíbem e permitem num futuro indefinido e sem um prazo

de carência claramente delimitado? E, sobretudo, já nos perguntamos

alguma vez que gênero de direitos são esses que tais normas definem?

Um direito cujo reconhecimento e cuja efetiva proteção são adiados

‘sine die’, além de confiados à vontade de sujeitos cuja obrigação de

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executar o ‘programa’ é apenas uma obrigação moral ou, no máximo,

política, pode ainda ser chamado de ‘direito’? (Norberto Bobbio, ‘A

Era dos Direitos’, 8a ed., Rio de Janeiro: Campus, 1992, p. 77/78).

Especificamente, quanto à questão de demarcação de ter-

ras indígenas, tem se manifestado o STJ:

DIREITO ADMINISTRATIVO E PROCESSUAL CIVIL –

DEMARCAÇÃO DE TERRAS INDÍGENAS – AUSÊNCIA DE

VIOLAÇÃO DO ART. 535 DO CPC – ATO ADMINISTRATIVO

DISCRICIONÁRIO – TEORIA DA ASSERÇÃO – NECESSIDADE DE

ANÁLISE DO CASO CONCRETO PARA AFERIR O GRAU DE

DISCRICIONARIEDADE CONFERIDO AO ADMINISTRADOR

PÚBLICO – POSSIBILIDADE JURÍDICA DO PEDIDO.

1. Não viola o artigo 535 do CPC quando o julgado decide de modo

claro e objetivo na medida da pretensão deduzida, contudo de forma

contrária à pretensão do recorrente.

2. Nos termos da teoria da asserção, o momento de verificação das

condições da ação se dá no primeiro contato que o julgador tem com a

petição inicial, ou seja, no instante da prolação do juízo de

admissibilidade inicial do procedimento.

3. Para que se reconheça a impossibilidade jurídica do pedido, é

preciso que o julgador, no primeiro olhar, perceba que o petitum

jamais poderá ser atendido, independentemente do fato e das

circunstâncias do caso concreto.

4. A discricionariedade administrativa é um dever posto ao

administrador para que, na multiplicidade das situações fáticas,

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seja encontrada, dentre as diversas soluções possíveis, a que

melhor atenda à finalidade legal.

5. O grau de liberdade inicialmente conferido em abstrato pela

norma pode afunilar-se diante do caso concreto, ou até mesmo

desaparecer, de modo que o ato administrativo, que inicialmente

demandaria um juízo discricionário, pode se reverter em ato cuja

atuação do administrador esteja vinculada. Neste caso, a

interferência do Poder Judiciário não resultará em ofensa ao

princípio da separação dos Poderes, mas restauração da ordem

jurídica.

6. Para se chegar ao mérito do ato administrativo, não basta a análise

in abstrato da norma jurídica, é preciso o confronto desta com as

situações fáticas para se aferir se a prática do ato enseja dúvida

sobre qual a melhor decisão possível. É na dúvida que compete ao

administrador, e somente a ele, escolher a melhor forma de agir.

7. Em face da teoria da asserção no exame das condições da ação e da

necessidade de dilação probatória para a análise dos fatos que

circundam o caso concreto, a ação que visa a um controle de atividade

discricionária da administração pública não contém pedido

juridicamente impossível.

8. A influência que uma decisão liminar concedida em processo conexo

pode gerar no caso dos autos pode recair sobre o julgamento do

mérito da causa, mas em nada modifica a presença das condições da

ação quando do oferecimento da petição inicial.Recurso especial

improvido.

(REsp 879.188/RS, Rel. Ministro HUMBERTO MARTINS, SEGUNDA

TURMA, julgado em 21/05/2009, DJe 02/06/2009)

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O Tribunal Regional Federal da 4ª Região, tratando, a

exemplo do postulado nesta ação, de implementação de política de saúde públi-

ca, no caso, para atendimento aos indígenas, assim se posicionou:

A moderna diretriz da interpretação constitucional está em haver os

direitos fundamentais como de eficácia imediata. A Lei Maior deixa

assim de ser mero repositório de promessas ou simples carta de

intenções. A reserva do possível em caso não encontra guarida,

porquanto é flagrante a situação humilhante em que se encontram os

índios, enquanto que verbas são gastas em áreas evidentemente menos

prioritárias. No âmbito do Direito Administrativo, se não superada a

doutrina que diz vedado o exame do mérito do ato administrativo, pelo

menos seja flexibilizada no sentido de que, embora o julgador não

possa se fazer substituir ao administrador, cumpre-lhe fazer cumprir

a Constituição. Assim, tendo em vista que instituídos estão em sede

constitucional os princípios da dignidade humana e o princípio do

direito à saúde, peço vênia para votar no sentido de dar provimento

aos embargos infringentes. (Rel. Des. Federal Luiz Carlos Lugon, Ap.

Cível 1999.04.01.0149444-9/RS, 08.11.2004, Informativo do TRF/4ª

nº 219).

Portanto, é possível que o Poder Judiciário interfira em

casos concretos determinando a execução de políticas públicas à administra-

ção pública quando sua omissão põe em grave risco direitos fundamentais.

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No caso sob análise não há qualquer dúvida que a omissão

da FUNAI em adquirir terras ofende os direitos fundamentais dos índios

Fulkaxó.

3. PEDIDOS

Ante o exposto, o MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL re-

quer a autuação, recebimento e processamento desta ação civil pública segun-

do o rito preconizado em lei. Requer:

a) sejam citadas a FUNAI e a União, nas pessoas de seus

representantes legais, para serem processadas e ao final condenadas nos ter-

mos dos pedidos principais;

b) seja condenada a FUNAI a encerrar, no prazo de qua-

tro meses, contados da condenação, a instrução do PA nº.

08768.000.112/2007-DV, eis que extrapolado todos os limites para que se

possa considerar esse empo de tramitação como razoável.

c) sejam condenadas a FUNAI e a União a adotar provi-

dências administrativas, de cunho orçamentário, referente ao ano seguinte ao

da condenação, para fins de aquisição de terras para alocar os índios Fulkaxós

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em área que viabilize a sua sobrevivência física e cultural.

O MPF requer provar o alegado por meio de todas as pro-

vas admitidas em lei e que serão devidamente especificadas no momento opor-

tuno.

Dá-se à causa o valor de R$ 5.000.000,00 (cinco milhões

de reais).

Aracaju/SE, 27 de junho de 2012.

LIVIA NASCIMENTO TINÔCO


Procuradora da República

ROL DE TESTEMUNHAS:
Ademir Cruz Sorré – Pajé Fulkaxó – Aldeia Kariri-Xocó – Porto Real do
Colégio/AL.
Humberto Cruz – Cacique Fulkaxó - Aldeia Kariri-Xocó – Porto Real do
Colégio/AL.
Josete Cruz – índia Fulkaxó - Aldeia Kariri-Xocó – Porto Real do Colégio/AL..

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