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Caso Célia - Grupo Spivacow - Junho de 2019

Eneida Marques
Célia, 23 anos, estudante de Psicologia e funcionária de uma empresa de
Informática. Há um ano namora Fábio, 24 anos, formando do curso de Psicologia. Após
4 anos afastada, a paciente em 16/3/2019 retorna à terapia.
Consulta em 08/06/2019
Célia conta sobre uma saída de fim de semana com o namorado.
- Célia: Fábio e eu fomos a uma festa numa casa noturna. Ficamos um tempo em frente
ao local conversando com amigos. Fábio compartilhava Vodca com os outros. Cansei de
estar ali e entrei na festa. Fábio preferiu continuar na rua. Lá dentro, encontrei um amigo
com quem já “fiquei”. Eu gostava dele e foi muito bom encontrá-lo. Conversamos no
salão e depois, subimos para o segundo andar, onde estava menos barulhento.
Continuamos nosso papo, quando Fábio chegou e teve forte crise de ciúmes. Ele estava
bêbado e fiquei impressionada com a reação dele.
- Eneida: Como foi a reação dele?
- Celia: Ele disse que ia embora. Que eu sumi! Que ele estava sentindo-se só! Fabio
sentou-se na escada, os amigos viram que não estava bem e deram-lhe apoio. Não entendi
esta reação, pois ...... esse é um assunto que eu gostaria de ter falado antes, mas não
consegui. É difícil!
- Celia: Fábio e eu temos um namoro aberto. Combinamos assim desde o começo.
Ficamos com outras pessoas e com outros casais. Eu tenho os amigos com quem transo
e ele tem os dele. Nossas relações sexuais não são com outras pessoas, são entre nós
dois.
- Eneida: Então tua surpresa foi ele ter sentido ciúmes na situação da festa. Pensavas q
ele não sentia ciúmes?
- Celia: Sim! Nós não temos ciúmes! Combinamos que seria assim! Poderíamos nos
envolver com outras pessoas!
- Eneida: Fala mais dessas pessoas.
- Célia: São amigos ou amigas ou casais hétero com quem me dou bem. Quando me
convidam participo da transa deles. Eu gosto de transar com outro casal, às vezes, durmo
entre os dois.
- Eneida: Por que estavas com dificuldade de falar sobre este assunto?
- Celia: Não sei! Minha sexualidade é muito confusa. Acho que tem a ver com o abuso.
Consulta em 15/6/2019
Na semana seguinte, Célia trouxe outros assuntos. Não retomou a falar sobre suas
questões sexuais. Conversamos sobre a evolução jurídica do processo de partilha dos bens
do pai, falecido há 4 anos. Os filhos do primeiro casamento do pai estão em litígio com a
mãe de Célia. Ela considera que o processo está correndo favorável a sua mãe.
Consulta em 22/6/2019
Célia propõe voltarmos a falar do relacionamento entre ela e o Fabio.
Célia: Acho que preciso continuar a falar sobre minha vida sexual com o Fábio. Eu quero
dizer que “não tenho orgasmo com ele”. E que percebo que o estou evitando. Espero que
ele durma para eu ir deitar. Ou, deito toda encolhida mostrando que não quero contato
físico.
Eneida: Fala sobre a relação de vocês de modo geral.
Celia: Eu gosto dele, somos parceiros. Curtimos muitas coisas juntos.
Célia começa a chorar. Ela, geralmente, chora muito durante as consultas.
Engasga-se ao falar chorando. Diz que é muito chorona.
Célia: Eu sou assim! Não consigo ter orgasmo, com outros namorados também! Eu
transo porque senão não é um namoro.
Eneida: Para ser namoro precisa transar?
Célia: Eu acho, né!
Eneida: O que pensas sobre te obrigar a transar?
Célia: Acho que se eu não me forçar, não vou mais querer transar. E o namoro acaba!
Eneida: Conversa com o Fábio sobre isto. Conversem sobre o respeito pelo desejo de
cada um. É importante que a transa seja um bom momento para vocês dois. Sem esse
respeito, o namoro também pode acabar. Obrigar-se a transar também não é namoro.
Eneida: Como é tua relação com o teu corpo? Tu te tocas?
Célia: Sim, eu gosto do meu corpo. E só tenho orgasmo me masturbando. Acho que meu
bloqueio é consequência do abuso.
A paciente refere seguidamente ao abuso sofrido, considerei significativo resgatar
este assunto. Célia diz não lembrar mais por quanto tempo foi abusada.
Célia: “Pode ter sido por uma semana ou por 5 anos! Não consigo lembrar.”
História
Célia havia iniciado o trabalho comigo em 02/07/2013 até 30/10/2013. Após,
retornou em 10/12/2014 e em janeiro de 2015 interrompeu pelo falecimento do pai.
No início da terapia, em 2013, Célia estava com 17 anos, estudava no terceiro ano
do ensino médio. Queixava-se de muita ansiedade, falta de ar, de apetite e dor de
estomago. Dizia chorar muito. Após um mês de terapia, disse que falaria de um assunto
muito difícil, que era um segredo, que ninguém sabia. Chorando muito, pede um papel e
um lápis para escrever a questão, pois não conseguia falar. Escreveu: “Eu fui estuprada!”.
Pediu que eu lesse o bilhete e, após o rasgou e jogou na lixeira.
Nos registros clínicos passados, há referência de ter sido abusada pelo meio irmão,
Demétrio, filho do primeiro casamento da mãe.
Aos 10 anos da paciente, em 2006, seus pais se separaram por infidelidade do pai.
Célia e sua mãe mudaram-se para Pelotas/RS. O pai ficou em Porto Alegre/RS.
Aos 13 anos, em 2009, mutilava-se com gilete nos braços e pernas. Parou quando
percebeu que estava cheia de cicatrizes. Disse que nas pernas tinha cicatrizes profundas.
Vestia roupas que as escondiam e seus pais não percebiam as feridas e marcas. Por esse
tempo, escreveu 3 cartas de despedida para o pai, a mãe e o namorado, pois pensava em
se suicidar. Não entregou as cartas, nem tentou suicídio.
Lá, sentia-se só e com pouca atenção materna. Aos 16 anos volta à Porto Alegre
para morar com o pai até o falecimento dele no ano seguinte. A mãe muda-se para a
capital.
A mãe de Célia era a filha mais jovem de 13 irmãos de uma família com poucos
recursos. Não completou os estudos. Aos 13 anos foi morar com a irmã mais velha. Casou
aos 16 anos. Em seguida, engravidou, nasceu o Demétrio. Ela e o bebê foram
abandonados pelo marido/pai. O menino foi criado junto à família da mãe. Perdido entre
avós, muitos tios, tias e primos. Não conheceu o pai. Foi uma criança difícil. Com
problemas escolares e fugas de casa. A avó materna era quem conseguia contê-lo. Sua
mãe trabalhava em lancherias. Hoje cuida de idosos.
A relação entre Célia e sua mãe é distante. Pouco conversam. Célia a considera
negligente, irresponsável e imatura. Célia que administra as contas, compras e
compromissos da mãe e da casa. A mãe se responsabiliza por tarefas e não as cumpre.
A paciente acusa a mãe de fazer diferença entre os filhos. Considera que tem mais
carinho e atenção com o meio irmão. Pensa que por ser homem o rapaz é mais valorizado.
Célia: “Sinto uma sensação de abandono em relação a minha mãe. Eu tenho que ser mãe
dela! Ela e o meu pai estavam em casa, na sala, perto do quarto onde brincávamos. Não
consigo acreditar que não percebiam o abuso. E esta é minha grande mágoa!”
A paciente repete com indignação que não consegue entender como sua mãe não
notava o abuso. Tem muita vontade de contar, mas considera que ela não vai acreditar e
acusá-la de estar mentindo.
Eneida: Concordo contigo. Isto pode acontecer! Não sabemos como ela vai reagir. Mas
este é um segundo momento. O que temos que pensar é por que queres contar para ela,
e no que isto vai te ajudar.”
Eneida: “Antes de falares desta situação com a tua mãe, vocês precisam resgatar o
diálogo. Serem mais próximas e espontâneas. Alguém tem que promover esse
achegamento e como és tu quem está pretendendo conversar, quem sabes tentas?
O pai de Célia era cinegrafista de um canal de televisão. Homem inteligente e com
muita experiencia e contatos no meio cultural da cidade De origem e hábitos simples,
gostava da boemia. Estava casado, quando conheceu a mãe de Célia, 20 anos mais jovem
do que ele. Ele com 45 anos e ela com 25. Separou-se para casar com ela. Fato que causou
uma ruptura permanente entre ele e os familiares do primeiro casamento.
Célia: Com essa diferença de idade (referindo-se a diferença de idade entre os pais), não
dá pra considerar abuso? Meu pai abusou da minha mãe? E ela mesma responde: “É eu
sei... ela era adulta. Os dois eram adultos. E no meu caso eu tinha 5 e ele 12 anos.
Eneida: “ Sim! Tu eras uma criança e teu irmão um adolescente com experiencias
sofridas, mal orientado, com fugas de casa! Ele sabia o que estava fazendo. Tu não sabias
e foste manipulada por ele. A Lei é feita para proteger a inocência das crianças.” Teus
pais eram adultos. Tua mãe estava no segundo casamento. Era mãe. Sabia o que estava
fazendo. O relacionamento dos teus pais foi consensual, entre dois adultos.”
Percebe-se na família materna de Célia relacionamentos sem individuação, sem
fronteiras entre eles. Como eram muitos filhos, várias irmãs fizeram papel de mãe para
os irmãos mais novos. Assim como, a avó materna fez papel de mãe para Demétrio, seu
neto.
Ao contrário, na família paterna observam-se muitas rupturas e brigas sem perdão.
Os filhos do primeiro enlace paterno, afastaram-se dele desde o divórcio e não
compareceram aos funerais do genitor.
Quando os pais de Célia casaram, Demétrio morou com eles, causando muita briga
e discordância. A mãe contestava as interferências do padrasto no comportamento do
filho. Aos 14 anos, o adolescente foi encaminhado para um internato. Célia afirma que
com o afastamento do irmão, cessaram os abusos sobre ela.
Célia diz que gostava muito do irmão e confiava nele. Ele a convidava para
brincar. A brincadeira evoluía para uma aproximação corporal dele em direção a ela. Ela
resistia, mas ele dizia que era rápido. Celia afirma que houve penetração sexual desde
quando ela era muito pequena. Conta que ao ser abordada pelo irmão sentia medo e sabia
que algo estava errado, mas não conseguia impedi-lo.

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