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05/03/2020 São Francisco de Assis

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Texto da aula Aulas do curso

Introdução a Chesterton

São Francisco de Assis


Uma das características mais chamativas do método biográfico de Chesterton é a sua
abordagem aparentemente pouco biográfica. Em “São Francisco de Assis”, Chesterton não se
propõe reconstruir a vida do poverello a partir de um estudo erudito e exaustivo de fontes
históricas.

Isso não quer dizer, porém, que o livro careça de fundamento historiográfico. Significa, pelo
contrário, que a obra é fiel à história sem ser “historicista”, assumindo com simplicidade o que
nos dizem de São Francisco os principais testemunhos da época, sem varrer para baixo do
tapete os aspectos extraordinários, milagrosos, de sua vida.

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Além de suas obras apologéticas e literárias, das quais falaremos mais tarde,
Chesterton escreveu também algumas biografias. Dos cerca de dez livros que
ele escreveu na matéria, apenas dois são propriamente hagiografias, isto é,
vidas de santos. O mais conhecido deles, ao menos em alguns países, está
dedicado a S. Tomás de Aquino. No entanto, quiséramos falar sobretudo
daquele que foi o santo mais importante para o escritor, além de uma presença
contínua em sua vida sob diversos aspectos. Trata-se de S. Francisco de Assis.

A biografia do poverello, Chesterton a redigiu já convertido ao catolicismo. A


devoção ao santo de Assis, não obstante, foi em certa medida uma constante
desde a sua infância. De fato, temos de Chesterton uns versos muito bonitos,
escritos ainda na juventude, sobre S. Francisco, sem contar uma breve
conferência a respeito dele publicada pouco antes de vir à luz esta biografia. O
sinal, porém, talvez mais claro e chamativo dessa presença providencial do

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santo na vida do escritor seja a sua própria esposa. Como vimos na primeira
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aula, foi justamente Frances — “Francisca” em inglês — quem o aproximou do
cristianismo e lhe serviu até o fim como ajudante e companheira amorosa,
como signo da presença e do amor divinos.

Pois bem, uma das características mais marcantes do método biográfico de


Chesterton, tanto nesta como na vida de S. Tomás, é a sua abordagem
aparentemente pouco “biográfica”, ao menos segundo certos padrões atuais.
Em São Francisco de Assis, Chesterton não se propõe reconstruir a vida do
santo a partir de um estudo minucioso, erudito e exaustivo de fontes
históricas, como quem quisesse discernir o verdadeiro do puramente lendário.
O que não quer dizer, é claro, que o livro careça de fundamento historiográfico:
significa, pelo contrário, que a obra pretende ser fiel à história sem ser
“historicista”, ou seja, ela assume com simplicidade o que nos dizem de
Francisco os principais testemunhos da época, sem varrer para baixo do
tapete os aspectos extraordinários de sua vida.

Chesterton começa o livro advertindo, num capítulo preambular, que existem


três maneiras de contar a vida de S. Francisco. A primeira busca reduzir a
figura do santo à de um homem admirável, mas prescindindo de Deus e de
toda referência ao seu catolicismo. É o método seguido pelos que pretendem
apresentá-lo como um “amante ecológico” da natureza ou como um “devoto
socialista”, empenhado em erradicar do mundo as injustiças socioeconômicas.
Não é preciso conhecer previamente a vida do santo para se dar conta do
inadequado que é esse método e do quão extemporâneas, para não dizer
mentirosas, são as categorias sob as quais procura reler a história de S.
Francisco.

A segunda maneira, se não é tão deformante quanto a anterior, é no entanto


também inadequada, ao menos sob certo aspecto: consiste em acentuar em
excesso a radicalidade da vida franciscana, a ponto de converter o poverello de
Assis em um “devoto agressivo”, quase “descerebrado”, tornando-o dificilmente

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inteligível aos que, apesar de se encontrarem fora do catolicismo, o desejam


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conhecer um pouco de mais perto.

É para satisfazer o desejo desta parcela do público que Chesterton opta por
seguir por um terceiro caminho: escrever a biografia de S. Francisco a fim de
torná-lo conhecido, sem deformações tendenciosas nem parcialidades
desconfiadas, a leitores sem preconceitos céticos, isto é, àquela parte do
mundo moderno que, por alguma razão, ainda vê no santo católico um homem
ao mesmo tempo simpático e desafiador, que inspira curiosidade, mas também
põe em xeque os paradigmas do que julgamos ser “racional”. Por isso, o São
Francisco de Chesterton se dirige a homens de boa-vontade, e é com toda a
boa vontade, com a mais estrita fidelidade ao que foram a vida e as motivações
de S. Francisco, que o escritor inglês se centra no essencial — místico, religioso
— de sua biografia.

Sem dar excessiva importância à recomposição cronológica dos fatos (com


efeito, não encontramos ao longo do livro todo uma data sequer), Chesterton
nos narra a vida de Francisco tendo como fio condutor o sentido profundo da
existência do santo, a saber: o ter sido, e ainda sê-lo, espelho de Jesus, um
instrumento com que nos brindou a Providência para que pudéssemos ver
realizado em um de nós, pela graça, aquilo que Jesus Cristo é por excelência.
Francisco de Assis, neste sentido, é como uma luz que reflete, ao seu modo, a
luz recebida do sol, que é Cristo; ele é como um exemplo mais próximo e
familiar do que são o espírito e as virtudes, os sentimentos e pensamentos de
Nosso Senhor.

Para isso, Chesterton faz questão de nos remontar ao mundo em que nasceu
Francisco, isto é, ao contexto que possibilitou o surgimento de um santo tão
marcante na história da Igreja. S. Francisco foi, antes de tudo, o perdão divino a
andar sobre a terra, como alguém em quem Deus finalmente exorcizou tudo o
que havia de desordenado no relacionamento entre homem e natureza. Não
percamos de vista que o mundo anterior à vinda de Cristo, o mundo pagão,

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viveu durante séculos uma complicada relação com a natureza. Contemplada


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em si mesma, sem sua estrutural referência ao Criador, a natureza foi ora
divinizada, ora demonizada, ora reverenciada na força indomável dos seus
elementos, ora temida por seus caprichos imprevisíveis e mortais.

Foram necessários mais ou menos mil anos para que esse mundo, sob a ação
purificadora da Igreja Católica, se fosse libertando do antigo olhar pagão, até
que o homem estivesse, em Cristo, plenamente reconciliado com a natureza: o
homem, reconhecendo a soberania do Deus uno e trino; a natureza, posta no
seu devido lugar, tratada como aquilo que essencialmente é — um espelho
através do qual o homem vê não só a sua própria superioridade, mas sobretudo
a majestade d’Aquele que tudo criou e a quem todos devem obediência.

A vida de S. Francisco assinala, pois, “o momento em que o paganismo cediço”,


que envenenara o mundo pré-cristão com seus erros e distorções, “foi
finalmente exorcizado do sistema social”. Marca, noutras palavras, o tempo em
que deixou de surtir efeito o veneno da idolatria da natureza, quando o homem,
sanado pela graça de Cristo e iluminado pelo Evangelho, pôde enfim
relacionar-se com o seu entorno de maneira ordenada.

E essa ordenação se deve, em boa medida, à alegre notícia do pecado original: o


homem se encontra num estado decaído, proclive ao pecado, sujeito à morte e
à corrupção. Mas eis que o Evangelho nos descortina a existência de Deus
redentor, que vem dar remédio à nossa fraqueza moral e restituir-nos a graça
que no princípio havíamos perdido. No sacrifício de Cristo, manifesta-se-nos
em toda a sua crueza a seriedade do pecado original, sucumbidos ao qual até o
povo mais sábio da Antiguidade, os gregos, se deixaram tiranizar pelas
práticas mais abomináveis e antinaturais. Para compreender, pois, o amor que
S. Francisco terá à natureza cumpre ter presente a dimensão teológica do
mundo em que ele nasce, mundo que, educado pela Igreja, deixara de cultuar
as energias cósmicas e, por isso, enfim emergira da verdadeira “idade das
trevas”.

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Outro aspecto que cumpre levar em consideração na hora de se aproximar do


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santo de Assis é o seu temperamento sanguíneo, o seu ímpeto soldadesco, a
sua energia verdadeiramente militar. Os amores de um homem como ele não
poderiam nunca ser medíocres. É por isso que, para vencer nele o amor às
festas e divertimentos, Deus lhe incutiu o amor à nossa grande alegria, que é
Jesus Cristo. Foi este amor divino que o fez, depois de ver frustrados tantos
projetos humanos, abraçar o único projeto digno de prosperar, que é desposar-
se com a pobreza. Misticamente, ao entregar ao pai a roupa do corpo, menos
seu cilício, Francisco consagrou-se a Deus, revivendo à sua maneira o
despojamento do Filho feito homem.

A vida de S. Francisco foi, em resumo, a de um homem totalmente dependente


de Deus. Arrebatado de amor por tudo o que é caro ao Coração de Jesus, o
poverello começou sua obra como um modesto reformador de igrejas, para
converter-se mais tarde em um genuíno restaurador da Santa Igreja. Lutou
pela Esposa de Cristo, que, embora pareça às vezes jazer entre as ruínas do
mundo, é quem verdadeiramente nos restaura, quando a queremos restaurar
sem deformá-la à nossa imagem. Francisco não se rebelou como Lutero, mas
manteve-se fiel, como um filho à mãe doente. Permaneceu ao lado dos que
realmente saem vitoriosos, ainda que pareçam, a olhos mundanos, uns
grandes derrotados.

Por outro lado, pode-se dizer que o ideal de vida franciscana se reduz àquelas
três passagens bíblicas: a do jovem rico, a exortação de Cristo a não levarmos
nada no caminho e, sobretudo, o chamado a carregarmos dia após dia a nossa
cruz. É, portanto, um ideal de perfeita imitação de Nosso Senhor, ideal que os
primeiros franciscanos tanto melhor viveram quanto mais se rebaixaram. Eis
por que se identificavam como jograis, ou seja, saltimbancos de Deus:
colocavam-se na posição mais humilde, de quem se sabe secundário e
meramente “acessório”, mas vive a alegria de saber-se o bobo de uma corte
cujo rei é um Deus que nos faz reinar consigo. Daí o caráter infantil, no sentido

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de inocente e puro, de uma fé simples e sincera, desse primeiro


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franciscanismo.

Seja como for, uma ideia em que Chesterton insiste constantemente é o fato de
S. Francisco de Assis não ter sido um “amante da natureza”, caricatura tão
frequente que dele se faz. O santo de Assis esteve muito longe de ser um
admirador ingênuo das águas e das matas, como se visse nessas criaturas um
fim em si mesmo que deveríamos proteger da ação destrutiva do “bicho
homem”. Francisco, pelo contrário, foi uma alma em que o Espírito Santo mais
deixou ver a ação do dom de ciência, que não é outra coisa senão um olhar
sobrenatural para as realidades criadas, contemplando-as com os olhos de
Deus, isto é, como criaturas, como perfeições participadas, finitas, do único que
é Bom e Belo por essência.

Como todo místico, Francisco tinha os pés muito bem postos no chão para ser
cético e materialista. Nele tampouco se vê vestígio de paganismo, de uma
sobrevalorização desmesurada das criaturas. Para ele, a terra é irmã, e não
mãe; o sol é irmão, e não pai. E, embora tenham sido criados antes, são irmãos
menores, porque criados para o homem, a fim de que, servindo a humanidade,
a criação inteira seja um hino de louvor à sabedoria divina.

É interessante notar, aliás, o tom ao mesmo tempo jocoso e sério do Cântico


das Criaturas. Lidas à luz da espiritualidade franciscana, que é tudo menos um
despreocupado bucolismo, as invocações à irmã terra e ao irmão sol não têm
nada desse diálogo sonso em que muitos pintam o poverello, distraído no meio
da mata, enlevado pelo canto dos passarinhos… Francisco não adorava a
natureza; via nela uma obra criada, algo que aponta para Deus e, ao seu modo,
revela as grandezas de Deus.

Outro sinal dessa centralidade de Deus é a sua vida de penitência, expressão


concreta e exemplo para estes nossos tempos de que o verdadeiro valor das
coisas, das árvores ao amor humano, só se mede e se experimenta em sua

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referência a Deus. É o saber privar-se das coisas da terra que permite saborear
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as celestes. É só o casto que pode viver a sexualidade em sua verdadeira
dimensão. É só o pobre de espírito, para quem tudo é lixo fora de Cristo, que
possui as verdadeiras riquezas. É só ao paladar que jejua por amor ao Reino
dos céus que Deus torna mais saborosos os mais simples alimentos.

O ponto culminante dessa ordenação contínua de todas as coisas a Deus foi,


evidentemente, o episódio do monte Alverne. Ali retirado, viu S. Francisco a
figura alada, semelhante a um serafim, e recebeu em sua carne, alvejada por
raios de luz, os estigmas de Jesus Cristo, como um selo distintivo do amor que
ele com tanta radicalidade lhe devotara. Essas chagas, cujo significado e
conhecimento Chesterton quer-nos transmitir, indicam em S. Francisco o que
Deus espera realizar em todos nós: configurados plenamente ao Crucificado,
hemos de viver para o único Amor digno de ser amado. É só a vivência deste
amor sobrenatural o que nos permite compreender a fundo como Giovanni di
Pietro di Bernardone tornou-se S. Francisco de Assis.

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“A nada dar mais valor do que a Cristo”

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