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1883 As farpas_ Ramalho Ortigão_ExLibris_Primeira Parte_Cap VII O Porto_ Julho 1883_

Jockey Club do Porto_pag175

Ontem, no hipódromo de Matosinhos, realizou-se a corrida de cavalos da estação do Outono,


promovida pelo Jockey Club Portuense. Um dia belíssimo. O hipódromo, apesar de não ter a
vista grandiosa do hipódromo de Belém, está situado risonhamente à beira do mar por um
lado, cercado de pinheirais pelo outro. A pista, de mil e quinhentos metros de extensão, plana
e de bom piso. Não obstantes essas favoráveis condições, para disputar o prémio do Governo
na importância de 300$000 réis inscreveram-se apenas dois cavalos. O prémio de 100$000
réis, do Jockey Club, foi alcançado por um cavalo que correu só e chegou à meta no meio de
grandes aplausos... Efetivamente ele tinha-se vencido a si mesmo, o que é o cúmulo da força e
da filosofia.

Na tribuna reservada às famílias dos sócios e na tribuna do público não havia mais de duzentas
senhoras. No interior do campo uma dúzia de carruagens, quase todas da praça. A maioria do
público tinha tomado modestamente o elétrico de Matosinhos. De sorte que, pelo seu aspeto
exterior, esta corrida de cavalos parecia especialmente destinada a aperfeiçoar a raça dos
carros americanos.

O Governo, que por proposta do governador civil do distrito retirou ao teatro lírico do Porto o
subsídio de quatro contos de réis, mandando aplicar essa quantia ao custeio de uma casa de
correção, suprimiu igualmente o prémio de 300$000 réis à sociedade do Jockey Club.

Desviar do teatro para uma penitenciária a proteção pecuniária do Estado parece-me ser da
parte do poder executivo um duro e acerbo epigrama ao diletantismo portuense. Enquanto à
supressão do prémio ao Jockey Club, o facto não é talvez amável para o Sport do Largo dos
Lóios e da Rua de Santo António, mas é justo.

Enquanto o Governo não proteger o aperfeiçoamento da raça humana por um meio conhecido
e praticado em toda a parte — a instituição dos jardins de infância —, será inconveniente, e
poderia até ser perigoso, estabelecer um excessivo desequilíbrio entre as perfeições
progressivas do cavalo e as inferioridades estacionárias do cavaleiro.

Para as necessidades do homem o cavalo parece-me que está já desenvolvido de mais, porque
o cavalo de corridas excede o limite da utilidade prática e é uma excrescência monstruosa. Se
querem fazer sacrifícios para aperfeiçoar a raça de alguns dos animais que nos servem, não é
para o cavalo, é para o jumento que devemos dirigir a nossa atenção.

O homem tem de saldar com o burro uma dívida de indemnização. O burro doméstico é um
animal atrofiado pela dureza e pela crueldade humana. Estudos de zoologistas demonstram
que o burro selvagem é muito mais belo, mais corpulento e mais forte do que o burro
doméstico. Como esse prestante quadrúpede era sóbrio, paciente e bom, nós abusámos dele,
sobrecarregámo-lo de trabalho, pusemo-lo em dieta permanente, enchemo-lo de pancadas.
Com esse regime o burro degenerou, cresceu-lhe o pêlo, estreitaram-se-lhe os olhos, alongou-
se-lhe a orelha, fez-se melancólico e casmurro. Em pequeno é ainda vivo, esbelto, elegante,
ligeiro; mas logo que começa a conhecer o mundo e os homens torna-se sorumbático,
pensativo e caturra.

É preciso proteger o burro. A espécie asinina é suscetível de grande progressos. Tornar esses
progressos efetivos é uma obrigação para com a nossa consciência e para com o burro, tão
injustamente desprezado e, todavia, tão útil animal, tão submisso, tão simpaticamente
prestável aos pobres, aos velhos, às crianças e aos enfermos!

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