Você está na página 1de 3

A INFÂNCIA DE TIA NEIVA - (Relato de Tia Neiva ao Adjunto Ypuena Mestre Lacerda, no ano de 1979)

A INFÂNCIA DE TIA NEIVA

(Relato de Tia Neiva ao Adjunto Ypuena Mestre Lacerda, no ano de 1979)

"Meus filhos jaguares: Voltemos atrás, antes de terminarmos o esboço


desta história. Sei que não há acaso; todas as coincidências são significativas a
nossa época. Vivemos simultaneamente a era do espaço da psicologia das
profundezas e dos horóscopos; vivemos uma época de transmutação em que
as barreiras são derrubadas, e os seus reinos, que até então eram reservados
e cultivados, são violados por qualquer sinal vindo do extra-senhorial, desde
que seja para o enriquecimento dos seus conhecimentos. Veremos o que
podemos tirar de proveito desta minha vida de infância. Salve Deus.
Sei que fui nascida em Sergipe numa cidade sertaneja chamada Propriá.
Assim começou a minha família. João de Medeiros Chaves e Pedro de Medeiros
Chaves, dois irmãos holandeses muito unidos, que foram deportados de sua
pátria por questões políticas. Já em alto mar, os dois ficaram sabendo qual
seria seu destino. Destemidos, combinaram e então largaram-se no mar. E
ainda no convés, fizeram o compromisso de que quem cansasse primeiro
ficaria, e o outro não olharia para trás. Pedro não resistiu e afundou e João
seguiu o seu destino. Chegando nas costas do Estado de Sergipe, onde formou
uma enorme família. João de Medeiros Chaves se instalou na Fazenda Cabo
Verde, localizada a alguns quilômetros de Propriá, e dominou toda aquela
região e, sendo valente e honesto, logo tornaram-no um coronel. Naquela
época, os escravos lhe tinham como verdadeiro amigo, sendo considerado o
juiz dos desamparados. João de Medeiros Chaves teve muitos filhos, dos quais
Pedro, meu avô. Justamente Pedro, o nome do que havia morrido no mar.
Com a morte, seus filhos continuaram a obra. Todos os membros da família se
orgulhavam do seu valente tronco e faziam questão de que todos nós
soubéssemos desde o princípio.
Mais tarde, meu pai casou-se com a filha de Luiz Seixas (vulgo Lulu) e foi
uma luta para que meu nome deixasse de ter “Medeiros”. Passei a me chamar
Neiva de Medeiros Chaves, em vez de Neiva de Seixas Chaves. Meu pai,
Antônio de Medeiros Chaves, e José de Medeiros Chaves, resolveram partir.

Acervo Digital – Mestre Kazagrande


A INFÂNCIA DE TIA NEIVA - (Relato de Tia Neiva ao Adjunto Ypuena Mestre Lacerda, no ano de 1979)

José de Medeiros Chaves (vulgo Juca) viajou para Belo Horizonte, onde veio a
ser presidente da Assembléia Legislativa e meu pai ficou no Sul da Bahia,
deixando Pedro de Medeiros Chaves, Manoel de Medeiros e Gracinha, já casada
com Tio Quincas. O seu primo e mais três, que, desgostosas, foram para o
Convento e se enclausuraram como irmãs Carmelitas do Verbo Divino: Zozó,
Zezé e Betina.
Enquanto o meu pai vivia com dificuldades, pois deixara toda aquela
fortuna, os outros fizeram inventário sozinhos. Ainda em vida papai deu a sua
procuração para o meu tio Pedro, que cuidava da minha avó. Por volta de
1930, meu pai foi ser administrador de três fazendas de propriedade do
Senhor Amorim. Lembro-me que chegamos na famosa Fazenda Pinheiro,
localizada nas proximidades de uma cidadezinha do Sul da Bahia, conhecida
por Água Preta. O casarão da fazenda era uma verdadeira mansão. Lembro-me
que fomos num trem elétrico e saltamos bem perto. Crimes, verdadeiro
cangaço. Meu Deus, dentre eles um fato importante, quando eu ainda estava
nesta fazenda. José Pinto e o Senhor Vicente, estes eram os meus amigos.
Vicente era o barbeiro da fazenda e Zé Pinto uma espécie de capataz. Certo
dia, Zé Pinto foi festejar São João na Fazenda Grajaú, levando nas costas um
caixão de bombas, rojões e pólvora, coisas próprias dos festejos de São João.
Vi quando meu pai lhe advertiu: “ Se você cair, tudo isso irá explodir”.
Todavia, Zé Pinto se foi e não sei quanto tempo depois ouviu-se um
estampido. Vi Zé Pinto despedaçado no chão, todo mutilado: Isso deveria ser a
uma distância de cinco quilômetros. Saí gritando. Meu pai ouvira o estrondo e,
desesperado, saiu correndo em busca de notícia.
Ninguém se preocupou com isso, porém, depois, quando ele foi socorrido,
conheceram quem deu a notícia. Porém, papai me perguntou. Eu disse o que
tinha visto e ele riu muito e ficou por isso mesmo. Depois, Zé Pinto foi num
trem elétrico e não sei quanto tempo depois retornou todo mutilado e com seu
espírito forte e alegre, porém ficou muito doente, a ponto de chegar na hora
da morte.
Faltava aproximadamente meia hora para a morte dele, quando cheguei
perto e disse: “ Zé, seu Leonardo está dizendo que se você morrer com a
perna quebrada vão serrar a sua perna e puxar com sua mão de anjinho. Eu
Acervo Digital – Mestre Kazagrande
A INFÂNCIA DE TIA NEIVA - (Relato de Tia Neiva ao Adjunto Ypuena Mestre Lacerda, no ano de 1979)

ouvi ele dizer: ele morreu”. Enquanto isso, o Sr Vicente barbeiro foi convidado
para fazer um saque em Água Preta, o distrito responsável por toda a região
(de um caso a outro, porque não tenho noção do tempo), mas o fato é que o
Sr Vicente barbeiro me deu uma caixinha com tesoura e tudo, dizendo: “Vou te
dar tudo porque não vou mais trabalhar. Vou ficar rico, só não te dou a
navalha porque é perigosa”. Foi horrível, uma madrugada em que todo mundo
acordou.
Cesário Falcão e João Gomes, os dois chefes do Cangaço, passaram com
seus “cabras” na estrada, que era em frente à Casa Grande, 40 cabras, quando
eu ouvi papai dizendo: “Loucos, vocês fazem parte deste cangaço!... Sumam
daqui pelo amor de Deus. Seu Chaves, pelo amor de Neivinha”. Papai preparou
uma mochila de comida e disse novamente para eles sumirem dali e eles
desapareceram.
No entanto, do meu quarto eu via e ouvia tudo, os dias se passavam e eu
estava sozinha debaixo da castanheira, como era o meu costume, quando
papai chegou e disse: “Neivinha, vá para dentro”. Todavia, quando olhei, os
dois homens estavam atracados com os seus facões. Comecei a gritar, porém,
ninguém me ouvia. Meu pai apartou a briga e quando olhei, um já terminava,
quando dizia para papai que o Vicente barbeiro havia voltado. Ele virou-se
para a mamãe e disse: “Oh Sinhazinha, o Vicente barbeiro foi encontrado com
um balaço. Pensamos que ele havia sido salvo da volante. Foi melhor assim do
que passar aquela humilhação da maneira que vimos”. Sim, eu o vi amarrado
de costas no rabo dos cavalos.
Foi uma cena que não esquecerei jamais, eu tinha apenas cinco anos
aproximadamente. Meu filho Lacerda, se tiveres paciência comigo, todas as
noites nós vamos escrever mais um pouquinho, viu meu filho? Agora vou
atender a umas pessoas no Templo, que estão me esperando. Mãe Tildes está
aqui me dizendo que aquelas pessoas estão sofrendo muito e que vêm de
longe...! Salve Deus..."

Tia Neiva
Vale do Amanhecer, 1979

Acervo Digital – Mestre Kazagrande

Você também pode gostar