Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
ARTIGO ARTICLE
Abortion in Brazil: a household survey
using the ballot box technique
Debora Diniz 1
Marcelo Medeiros 2
Abstract This study presents the first results of Resumo O artigo apresenta os primeiros resul-
the National Abortion Survey (PNA, Pesquisa tados da Pesquisa Nacional de Aborto (PNA), um
Nacional de Aborto), a household random sample levantamento por amostragem aleatória de do-
survey fielded in 2010 covering urban women in micílios, realizado em 2010, cuja cobertura abran-
Brazil aged 18 to 39 years. The PNA combined geu as mulheres com idades entre 18 e 39 anos em
two techniques, interviewer-administered ques- todo o Brasil urbano. A PNA combinou duas téc-
tionnaires and self-administered ballot box ques- nicas de sondagem: a técnica de urna e questioná-
tionnaires. The results of PNA show that at the rios preenchidos por entrevistadoras. Seus resul-
end of their reproductive health one in five wom- tados indicam que, ao final da vida reprodutiva,
en has performed an abortion, with abortions be- mais de uma em cada cinco mulheres já fez abor-
ing more frequent in the main reproductive ages, to, ocorrendo os abortos em geral nas idades que
that is, from 18 to 29 years old. No relevant differ- compõem o centro do período reprodutivo das
entiation was observed in the practice of abortion mulheres, isto é, entre 18 e 29 anos. Não se obser-
among religious groups, but abortion was found vou diferenciação relevante na prática em função
to be more common among people with lower ed- de crença religiosa, mas o aborto se mostrou mais
ucation. The use of medical drugs to induce abor- comum entre mulheres de menor escolaridade. O
tion occurred in half of the abortions, and post- uso de medicamentos para a indução do último
abortion hospitalization was observed among ap- aborto ocorreu em metade dos casos e a interna-
proximately half of the women who aborted. Such ção pós-aborto foi observada em cerca de metade
results lead to conclude that abortion is a priority dos abortos. Tais resultados levam a concluir que
in the Brazilian public health agenda. o aborto deve ser prioridade na agenda de saúde
Key words Induced abortion, Abortion surveys, pública nacional.
Medical abortion, Reproductive history, Ballot box Palavras-chave Aborto induzido, Pesquisa de
technique, Brazil aborto, Aborto médico, História reprodutiva, Téc-
nica de urna, Brasil
1
Anis – Instituto de
Bioética, Direitos Humanos
e Gênero. Caixa Postal
8011, Setor Sudoeste.
70673-970 Brasília DF.
anis@anis.org.br
2
UnB.
960
Diniz D, Medeiros M
xual e reprodutiva em populações que incluem oral e as pesquisadoras de campo foram instru-
pessoas com baixa escolaridade, o formato do ídas para o encaminhamento ao posto de saúde
questionário da urna era simples, sem questões em caso de desconforto psicológico causado pela
conceitualmente complexas ou envolvendo or- entrevista ou em caso de demandas por serviços
denamentos e respostas múltiplas24. de saúde reprodutiva. No entanto, não houve
As perguntas foram realizadas em três eta- intercorrências dessa natureza.
pas: questionário das entrevistadoras, questio-
nário da urna e retorno ao questionário das en-
trevistadoras. A entrevista tinha início com ques- Resultados
tões sobre alfabetização, faixa etária, escolarida-
de e condição de ocupação laboral, que determi- Há uma produção relativamente extensa sobre o
navam as cotas amostrais e, portanto, a seleção tema do aborto no Brasil, que foi tratada por
para participação na pesquisa. Em seguida, esta- revisões recentes1,2. Todavia, dois fatores impe-
vam questões de frequência ao posto de saúde e dem a discussão dos resultados da PNA à luz
ginecologista, seguidas do questionário da urna. dos achados de outras investigações sobre a
Finalmente, depois de depositado o questioná- magnitude do aborto no país. Primeiro, o cam-
rio, concluía-se a entrevista com questões sobre po é caracterizado por estudos de natureza local,
situação conjugal, fecundidade, tamanho da fa- sendo os estudos de abrangência nacional escas-
mília, religião e renda familiar apresentadas pe- sos. Segundo, a metodologia utilizada nas esti-
las entrevistadoras. mativas nacionais não permite comparação: os
O questionário da urna perguntava à mulher estudos abrangendo o Brasil estimam indireta-
“Você já fez aborto alguma vez?”. Além disso, a mente a ocorrência de abortos em um período
informação contextual do restante do questio- determinado, ao passo que a PNA estima direta-
nário (três questões adicionais) enfatizava a son- mente mulheres que já fizeram aborto em algum
dagem do aborto induzido. Mesmo assim, ape- momento da vida. As diferenças nos períodos de
sar da redação utilizada ter como objetivo a cap- referência – ano e ao longo da vida – e nos obje-
tação do aborto induzido, é possível que tenha tos – abortos e mulheres que fizeram um ou mais
captado também abortos espontâneos. Enunci- abortos – fazem com que a comparação entre os
ados alternativos, mais incisivos na identificação resultados não seja possível.
da indução, foram avaliados nos pré-testes e des- Em 2010, no Brasil urbano, 15% das mulhe-
cartados. res entrevistadas relataram ter realizado aborto
As estimativas referem-se a abortos feitos em alguma vez na vida (Tabela 1). Os resultados não
qualquer período da vida das mulheres e não se referem a números e proporções de abortos,
apenas àqueles ocorridos em 2010. As caracterís- mas sim a mulheres que fizeram aborto. Essas
ticas sociodemográficas das mulheres são as ob- unidades de mensuração não são as mesmas,
servadas em 2010, mas são também apresenta- porque uma mulher pode abortar mais de uma
das informações sobre o último aborto realiza- vez ao longo da vida. O número de abortos é,
do. A escolha pelo último aborto teve como ob- seguramente, superior ao número de mulheres
jetivo reduzir eventuais erros de memória. que fizeram aborto, mas os dados desta pesquisa
A PNA foi financiada pelo Fundo Nacional não permitem estimar quanto. Além disso, o nú-
de Saúde, como parte de uma investigação ex- mero total de abortos no país será maior do que
tensa sobre políticas de saúde reprodutiva no Bra- o indicado neste estudo se as áreas rurais e a popu-
sil, e conduzida por duas instituições de pesqui- lação analfabeta forem também contabilizadas.
sa, a Universidade de Brasília e a Anis – Instituto Assim como outros fatos cumulativos relacio-
de Bioética, Direitos Humanos e Gênero. O pro- nados à vida reprodutiva, a proporção de mulhe-
jeto de pesquisa foi submetido ao Comitê de Éti- res que fizeram aborto cresce com a idade. Essa
ca em Pesquisa do Instituto de Ciências Huma- proporção varia de 6% para mulheres com ida-
nas da Universidade de Brasília e aprovado antes des entre 18 e 19 anos a 22% entre mulheres de 35
de sua execução, em conformidade com as dire- a 39 anos. Isso mostra o quanto o aborto é um
trizes do Conselho Nacional de Saúde25. O ter- fenômeno comum na vida reprodutiva das mu-
mo de consentimento livre e esclarecido (TCLE) lheres. Em termos simples, isso significa que, ao
foi obtido oralmente e antes do início de cada final de sua vida reprodutiva, mais de um quinto
abordagem às mulheres, como forma de garan- das mulheres no Brasil urbano fez aborto.
tir o sigilo e anonimato dos dados. Não houve Além da idade no momento da entrevista, a
registro de recusa quanto à aceitação do TCLE PNA perguntou a idade de realização do último
963
Tabela 1. Realização de aborto segundo características sociais – mulheres de 18 a 39 anos, Brasil urbano,
2010.
Idade
18 e 19 191 11 6% 1
20 a 24 483 36 7% 1
25 a 29 488 84 17% 2
30 a 34 452 79 17% 2
35 a 39 388 86 22% 2
Escolaridade
Até a 4ª série do fundamental 191 44 23% 2
5ª a 8ª série do fundamental 429 80 19% 2
Ensino médio 974 115 12% 1
Ensino superior 408 57 14% 2
Religião
Católica 1.168 175 15% 2
Evangélica ou protestante 551 72 13% 1
Outras religiões 81 13 16% 2
Não tem religião/não respondeu 202 36 18% 2
Conclusões
Tabela 2. Características de mulheres que fizeram aborto –
mulheres de 18 a 39 anos, Brasil urbano, 2010.
A Pesquisa Nacional de Aborto (PNA) combinou
N % C(95%), pp.
duas técnicas de sondagem, técnica de urna e ques-
tionários preenchidos por entrevistadoras, para
Total 296 100% levantar dados sobre aborto no Brasil urbano
em uma amostra estratificada de 2.002 mulheres
Idade no último aborto
alfabetizadas com idades entre 18 e 39 anos em
12 a 15 anos 13 4% 2
16 e 17 anos 37 13%
2010. Seus resultados referem-se a mulheres que
4
18 e 19 anos 46 16% 4 abortaram e não a abortos. O número de abor-
20 a 24 anos 77 26% 5 tos no país é superior ao contabilizado pela pes-
25 a 29 anos 55 19% 4 quisa, não só porque uma mesma mulher pode
30 a 34 anos 21 7% 3 abortar mais de uma vez, mas também porque as
35 e 36 anos 4 1% 1 mulheres analfabetas e as áreas rurais do Brasil
Não sabe/não respondeu 43 15% 4 não foram cobertas pelo inquérito.
Usou remédio para abortar A PNA indica que o aborto é tão comum no
Sim 141 48% 6 Brasil que, ao completar quarenta anos, mais de
Ficou internada por causa do aborto
uma em cada cinco mulheres já fez aborto. Tipi-
Sim 164 55% 6
camente, o aborto é feito nas idades que com-
Fonte: Pesquisa Nacional de Aborto, microdados da amostra, Brasil 2010. põem o centro do período reprodutivo femini-
Nota: intervalos de confiança C a 95%, em pontos percentuais (pp.) no, isto é, entre 18 e 29 anos, e é mais comum
entre mulheres de menor escolaridade, fato que
pode estar relacionado a outras características
sociais das mulheres de baixo nível educacional.
A religião não é um fator importante para a dife-
observados em décadas passadas, uma hipótese renciação das mulheres no que diz respeito à re-
que se fortalece com a queda da morbimortalida- alização do aborto. Refletindo a composição re-
de por aborto inseguro no país1,2. Todavia, há ligiosa do país, a maioria dos abortos foi feita
ainda outra metade das mulheres que aborta sem por católicas, seguidas de protestantes e evangé-
recorrer a medicamentos e, nos casos de indução, licas e, finalmente, por mulheres de outras reli-
é possível que essas mulheres estejam abortando giões ou sem religião.
sob condições de saúde precárias, uma vez que O uso de medicamentos para a indução do
grande parte delas tem baixo nível educacional. último aborto ocorreu em metade dos casos.
Os níveis de internação pós-aborto são ele- Considerando que a maior parte das mulheres é
vados e colocam o aborto como um problema de baixa escolaridade, é provável que para a ou-
de saúde pública no Brasil. Cerca de metade das tra metade das mulheres, que não fez uso de
mulheres que fizeram aborto recorreram ao sis- medicamentos, o aborto seja realizado em con-
tema de saúde e foram internadas por complica- dições precárias de saúde. Não surpreende que
ções relacionadas ao aborto, o que corresponde os níveis de internação pós-aborto contabiliza-
a 8% das mulheres entrevistadas. Boa parte des- dos pela PNA sejam elevados, ocorrendo em qua-
sa internação poderia ter sido evitada se o abor- se a metade dos casos. Um fenômeno tão co-
to não fosse tratado como atividade clandestina mum e com consequências de saúde tão impor-
e o acesso aos medicamentos seguros para abor- tantes coloca o aborto em posição de prioridade
to fosse garantido. na agenda de saúde pública nacional.
965