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RESENHAS

A universidade e a interpretação do Brasil


Thiago Lima Nicodemo

P
oucos autores brasileiros receberam tanta Buarque fazia sucesso com canções de protesto e

EDUARDO CESAR
atenção nos últimos anos como Sérgio Buar- a peça Calabar (1973). O livro de Furtado mostra
que de Holanda, considerando não apenas as nuances e contradições do campo de forças que
a quantidade de livros publicados, de reedições, converge para essas construções sociais.
de homenagens, mas sobretudo de trabalhos aca- O papel da coleção História Geral da Civili-
dêmicos dedicados a esmiuçar aspectos da sua zação Brasileira (HGCB) como um vetor da dis-
obra. Assim como ocorreu com Machado de Assis ciplinarização da história na universidade, que
ou Guimarães Rosa, o acúmulo de fortuna crítica corresponde ao outro eixo, é tratado em dois ca-
permitiu um investimento para além da exegese pítulos. Amparado solidamente por estudos em
textual, direcionando investigações às reverbe- história cultural e editorial, Furtado avança muito
rações e reapropriações das suas obras ao longo na compreensão das circunstâncias de edição e
do tempo, assumindo o desafio de avaliar o peso circulação da obra. A Difel, editora da obra, en-
As edições do cânone – desses autores na cultura brasileira. tendeu a universidade enquanto um mercado a
Da fase buarqueana na As edições do cânone: Da fase buarqueana na ser explorado e assim a coleção segue linhas se-
coleção História Geral da
Civilização Brasileira
coleção História Geral da Civilização Brasileira melhantes a manuais, como o História Geral das
(1960-1972) (1960-1972), de André Carlos Furtado, contri- Civilizações, traduzido e publicado pouco antes.
André Carlos Furtado bui para sedimentar esta fase na interpretação A pesquisa avança menos do que poderia na
Eduff de Buarque de Holanda e pode ser equiparado compreensão da restruturação do campo dos estu-
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a outras iniciativas recentes, tais como os livros dos históricos diante do advento da universidade.
Signo e desterro, de Pedro M. Monteiro (2014), Já se sabia que a HGCB, enquanto obra coletiva,
A morte do homem cordial, de Rafael P. da Silva ocupou posição estratégica, pois se aproveitou das
(2015), a até então inédita edição crítica de Raí- primeiras levas de estudos monográficos produzi-
zes do Brasil (2016), ou o recente dossiê sobre os dos no contexto universitário, majoritariamente
80 anos de Raízes do Brasil da Revista Brasilei- na Universidade de São Paulo (USP). Também era
ra de História (2016). O ímpeto em comum é o conhecida a prevalência do século XIX na fase
de escovar a memória disciplinar a contrapelo, buarqueana, já que cinco tomos tratam do período
retrospectivamente, mostrando como e por que (apenas dois tratam da fase colonial). A pergunta
algumas interpretações atribuídas a Buarque de essencial é como a história do Brasil deveria ser
Holanda tornaram-se predominantes em detri- escrita a partir desse novo lugar de social que é a
mento de outras, ajudando a condicionar nosso universidade, especialmente a USP. Para respon-
olhar sobre o Brasil. dê-la, conviria uma leitura mais atenta da tradição
O livro se lança ao desafio de integrar dois mo- de escrita da história do Brasil, não só a que vem
vimentos. O primeiro é o papel de Buarque de desde Francisco A. de Varnhagen, mas a que se
Holanda no processo de disciplinarização da colocava naquele momento com outras sínteses,
história na universidade brasileira; o segundo, o representadas por obras tão díspares quanto as
legado do autor na constituição de uma cultura de de Pedro Calmon ou de Nelson Werneck Sodré.
resistência à ditadura militar e, posteriormente, A resposta de Furtado é simplista ao apontar um
no imaginário do período da abertura política. De “desejo de ver superada a tradição histórica pre-
modo retrospectivo, a obra começa a partir do cedente” por parte de um certo “paradigma us-
segundo movimento com uma análise instigante piano”, encarado com homogeneidade excessiva.
sobre a ressignificação do pensamento de Buar- Isso não compromete um valioso esforço de
que de Holanda na década de 1970, em compasso pesquisa exaustiva e original que foi muito além
com o debate público em torno da democracia das exigências do mestrado e sobre o qual se es-
e da garantia de direitos sociais. Sérgio Buarque pera que rendam bons frutos.
de Holanda conjugava ação política, por meio
do Centro Brasil Democrático, com a escrita de
Thiago Lima Nicodemo é pesquisador do Instituto de Estudos
textos como Da Monarquia à República (1972); Brasileiros da USP e professor adjunto do Departamento de História
enquanto, quase simultaneamente, o filho Chico da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).

92 | FEVEREIRO DE 2017

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