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Um conto

de William
Faulkner
Tradução e apresentação de
Sueli Cavendish
COMICIDADE, GROTESQUERIE E Evening Post. Posteriormente viria a se tornar * O conto é inédito no Brasil.

uma das histórias mais antologizadas do au-


HORROR EM “FOLHAS RUBRAS” tor. Gene M. Moore (cf. Towner and Carother’s
Reading Faulkner Collected Stories) alega que
à visão faulkneriana da cultura indígena
William Faulkner raramente se furta a falta precisão, o que vem ao encontro da
incursões na literatura do horror e “Folhas crença faulkneriana na incompatibilidade
Rubras”* é um dos espécimes mais legítimos entre os fatos e a verdade. Conta-se que a
dessa inflexão tantas vezes imprimida aos mãe de Calvin Brown, um historiador da
seus escritos. Nesse conto, porém, o horror Universidade de Oxford, no Mississipi, lhe
evolui e se materializa por gradações que perguntara, em certa ocasião, “de onde
se iniciam pela ironia, seguida do humor saíram os seus índios”, ao que Faulkner
e do grotesco até incluir em seu espectro candidamente respondera: “Madame, eu os
o horror superlativo. O cenário inusitado inventei”. Respondendo a Malcolm Cowley
é o de choque entre três culturas e raças, sobre a que tribo pertenciam os índios de
cuja originalidade encontra suporte na “Red Leaves” – chickasaw ou choctaw –
transferência do poder senhorial para a ele respondera no mesmo tom: “Os índios
população indígena; isso exigirá da exímia eram na verdade chickasaw, ou de agora
pena faulkneriana que a poética da invenção em diante poderão vir a ser”.
opere em altíssima voltagem, uma vez que Na primeira parte do conto, os efeitos
liberta de quaisquer parâmetros oferecidos de humor são produzidos em cascata,
pela realidade factual; e que se negue, do através da exposição da prática imitativa
mesmo modo, a enveredar quer pela trilha dos brancos pelos índios, como arreme-
do mito, quer pela da chamada literatura do. Chinelos de saltos altos vermelhos
fantástica, quer ainda pela adoção de uma comprados por Issetibbeha em Paris são
perspectiva politicamente simplista, o que o símbolo maior de soberania. Os negros
o gênio faulkneriano por princípio evita. são adquiridos porque conferem à tribo o
A escravidão de negros por índios no Sul status senhorial dos brancos. Mantidos em
norte-americano do século XIX é o foco, senzalas, arranjar-lhes ocupação – uma vez
o elemento que a desnaturaliza, até que, que o que “os negros mais gostam é de suar
desnudada de sua iniquidade costumeira, sob o sol” – constitui para os índios a maior
venha a revelar-se em sua inteireza, por um tribulação advinda da sua posse. Quando
lado, de aberração e de horror, se a vemos morre o chefe Issetibbeha, chamado o
do ponto de vista dos costumes e das rela- Homem, o funeral não pode prosseguir
ções sociais e históricas, por outro, em seu porque, segundo os costumes, o cadáver
valor intrínseco e universal – a escravidão há que ser enterrado juntamente com o
tout court, fatalidade a que todos os huma- cavalo, o cachorro e o serviçal do chefe, um
nos, sejam índios, brancos ou negros, um negro vindo da Guiné. O negro foge pela
dia se submeterão, na inevitabilidade do mata e, ao novo chefe, Mokketubbe, um
enfrentamento do Senhor maior, a morte. índio levado à obesidade pelo ócio, caberá
Doom, cujo significado é “o Homem”, é o a captura. Na caçada somos levados, por
nome atribuído ao primeiro chefe do clã. uma mudança no ponto de vista, à identi- SUELI CAVENDISH
é professora adjunta
A data precisa da composição de “Folhas ficação com o homem da Guiné, o escravo
do Departamento
Rubras” é incerta, mas a história foi publi- em fuga, e é essa identificação que produz de Letras da UFPE,
cada em outubro de 1930 no jornal Saturday a tônica propriamente trágica da história. ensaísta e tradutora.
FOLHAS RUBRAS “Não é como se o Homem mesmo tivesse
que encontrar trabalho para eles fazerem.”
William Faulkner “É isso. Não gosto de escravidão. Não
é um bom caminho. Nos velhos tempos,

I
havia o caminho certo. Mas não agora.”
“Você também não se lembra da maneira
antiga.”
“Tenho escutado aqueles que lembram.
Os dois índios cruzaram a plantation E tenho tentado esse caminho. O homem
em direção à senzala. Alvas com a caiação, não foi feito para suar.”
erguidas em fino tijolo, as duas fileiras “É isso mesmo. Veja o que fez com a
de casas nas quais moravam os escravos carne deles.”
pertencentes ao clã confrontavam-se atra- “Sim. Negra. Tem gosto mais amargo
vés da sombra suave do beco marcado e também.”
assinalado por plantas de pés e brinquedos “Você já comeu dela?”
improvisados emudecidos na poeira. Não “Uma vez. Eu era jovem na época e mais
havia sinal de vida. audacioso de apetite do que agora. Agora é
“Sei o que vamos encontrar”, o primeiro diferente comigo.”
índio disse. “É. Eles têm valor demais para serem
“O que não vamos encontrar”, disse o comidos agora.”
segundo. Embora fosse meio-dia, o beco “Há um gosto amargo na carne que eu
estava vazio, as portas dos casebres vazias não gosto.”
e silenciosas; nenhuma fumaça de fogão “Eles valem demais para serem comidos,
emergia de quaisquer das chaminés rachadas de qualquer jeito, desde que os brancos lhes
e emplastradas. dão cavalos.”
“Sim. Aconteceu assim quando o pai Entraram no beco. Os brinquedos mu-
dele, que é agora o Homem, morreu.” dos, miseráveis – objetos de fetiche feitos
“Você quer dizer, dele, que era o Ho- de madeira e trapos e penas – jaziam na
mem.” poeira perto dos degraus de pátina, entre
“Yao.” ossos e cuias quebradas. Mas não havia
O nome do primeiro índio era Três nenhum som em nenhum casebre, nenhum
Cestos. Tinha talvez sessenta anos. Os dois rosto em qualquer porta; não tinha havido
eram atarracados, sólidos, como burgueses; desde ontem, quando Issetibbeha morreu.
pançudos, cabeçudos, caras grandes e largas, Mas eles já sabiam o que iriam encontrar.
da cor da poeira, guardando a serenidade Era na cabana central, uma casinha um
indistinta de cabeças entalhadas num muro pouco maior que as outras, onde em certas
em ruínas do Sião ou da Sumatra, semien- fases da lua os negros se juntavam para
cobertas pela neblina. Presa na orelha, Três começar suas cerimônias antes de se reti-
Cestos usava uma caixa de rapé esmaltada. rarem depois do cair da noite para o fundo
“Venho dizendo sempre que esse não é do riacho, onde guardavam os tambores.
o melhor caminho. Nos velhos tempos não Nessa sala guardavam os acessórios meno-
havia senzala, nenhum negro. O tempo de res, os ornamentos misteriosos, a memória
um homem lhe pertencia então. Ele tinha do cerimonial, que consistia de gravetos
tempo. Agora precisa gastar a maior parte cobertos com barro vermelho arranjados em
dele encontrando trabalho para eles que símbolos. Tinha um fogareiro no centro do
preferem suar.” soalho, sob um buraco no teto, com algumas
“São como cavalos e cachorros.” cinzas frias de madeira queimada e um
“Não são como coisa alguma nesse caldeirão de ferro suspenso. As persianas
mundo sensível. Não se contentam com das janelas estavam fechadas; quando os
nada que não seja o suor. São piores que dois índios entraram, deixando a inclemente
os brancos.” luz solar, nada podiam distinguir com os

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olhos, salvo um movimento, sombra, da “Nem eu. Mas paciência, são selva-
qual globos oculares rolavam, de modo que gens; não se pode esperar que respeitem a
o lugar parecia estar cheio de negros. Os tradição. É por isso que digo que esse é um
dois índios se postavam à entrada. mau caminho.”
“Yao”, Cestos disse. “Eu disse que esse “Yao. Eles resistem. Prefeririam até
não era um bom caminho.” trabalhar ao sol a entrar na terra com um
“Não creio que eu queira estar aqui”, chefe. Mas ele se foi.”
disse o segundo. Os negros nada haviam dito, não emi-
“É o cheiro do medo do negro que você tiram nenhum som. Os globos oculares
sente. Não cheira como o nosso.” brancos rolavam selvagens, subjugados; o
“Não creio que eu queira estar aqui.” cheiro era rançoso, violento.
“Teu medo também tem um odor.” “Sim, eles temem”, o segundo disse. “O
“Talvez seja Issetibbeha que cheiramos.” que faremos agora?”
“Yao. Ele sabe. Ele sabe o que encon- “Vamos voltar e falar com o Homem.”
traremos aqui. Ele sabia, quando morreu, “Moketubbe ouvirá?”
o que devíamos encontrar aqui hoje.” Do “O que ele pode fazer? Não vai gostar.
lusco-fusco espesso da sala os olhos, o chei- Mas ele é o Homem agora.”
ro dos negros ondulava em torno deles. “Eu “Yao. Ele é o Homem. Ele agora pode
sou Três Cestos, a quem vocês conhecem”, calçar os sapatos com os saltos vermelhos.”
Cestos disse em direção à sala. “Viemos Eles deram as costas e partiram. Não havia
pelo Homem. Aquele a quem procuramos porta no portal. Não havia portas em nenhum
se foi?” Os negros nada disseram. O cheiro dos casebres.
deles, de seus corpos, parecia fluir e refluir “Ele calçou de qualquer jeito.”
no ar quente estagnado. Pareciam estar me- “Pelas costas de Issetibbeha. Mas ago-
ditando como se medita sobre algo remoto, ra são seus sapatos, uma vez que ele é o
inescrutável. Eram como um único polvo. Homem.”
Eram como as raízes descobertas de uma “Yao. Issetibbeha não gostou. Ouvi falar.
enorme árvore, a terra esfarelada momen- Sei que ele disse a Moketubbe: ‘Quando tu
taneamente sobre o entrançado revolto, fores o Homem, os sapatos serão teus. Mas
espesso, fétido de suas vidas sombrias e até então, são meus sapatos’. Mas agora
ultrajadas. “Então”, Cestos disse. “Vocês Moketubbe é o Homem; ele pode usá-los.”
sabem da nossa missão. Ele a quem pro- “Yao”, o segundo disse. “Ele agora é o
curamos se foi?” Homem. Ele andava calçando os sapatos
“Eles estão pensando em algo”, disse o pelas costas de Issetibbeha e não se sabe
segundo. “Eu não quero estar aqui.” se Issetibbeha sabia disso ou não. Então
“Eles estão sabendo de algo”, Cestos Issetibbeha tornou-se morto, que não era
disse. velho, e os sapatos são de Moketubbe,
“Eles o estão escondendo, você acha?” pois ele agora é o Homem. O que você
“Não. Ele se foi. Foi-se desde ontem acha disso?”
à noite. Já aconteceu antes, quando o avô “Não penso sobre isso”, Cestos disse.
dele que é agora o Homem morreu. Leva- “Você pensa?”
mos três dias para apanhá-lo. Por três dias “Não”, o segundo disse.
Fatalidade ficou sobre a terra, dizendo ‘Vejo “Bom”, Cestos disse. “Você é sábio.”
meu cavalo e meu cachorro. Mas não vejo

II
meu escravo. O que fizeram com ele que
não me permitem descansar?’”
“Eles não gostam de morrer”.
“Yao. Eles resistem. Isso nos causa
desgraça, sempre. Um povo sem honra e A casa ficava num outeiro, cercada de
sem decoro. Sempre uma desgraça.” carvalhos. A frente era da altura de um andar,
“Não gosto disso aqui.” composta do convés de um barco a vapor

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que tinha encalhado e que Fatalidade, o pai uma charrete, e eles viajaram durante três
de Issetibbeha, havia desmontado com seus dias, vagarosamente, uma vez que ela já ia
escravos e içado sobre rolos de cipreste doze adiantada na gravidez, para a plantation,
milhas por terra até a casa. Levaram cinco onde ela ficou sabendo que Doom agora
meses. A casa dele consistia à época de uma era o chefe. Ele nunca disse a ela como o
parede de tijolo. Ele colocou o barco a vapor conseguira, a não ser que seu tio e seu pri-
com os costados para a parede, onde agora mo tinham morrido subitamente. Naquele
o dourado rachado e descascado dos frisos tempo a casa consistia de uma parede de
de rococó arqueava-se num esplendor tênue tijolos construída por escravos ineptos,
acima da inscrição brilhante dos nomes nas contra a qual fora escorado um alpendre
cabines de vapor acima das portas providas com telhado de palha dividido em quartos
de persianas. e entulhados de ossos e refugo, assentados
Doom tinha sido um mero subchefe, um no centro de dez mil acres de um incom-
Mingo, um dos três filhos do lado matrili- parável parque florestal onde os gamos
near da família. Ele fez uma viagem – era pastavam como gado doméstico. Doom e
um jovem então, e Nova Orleans era uma a mulher se casaram ali pouco tempo antes
cidade europeia – do norte do Mississipi a de Issetibbeha nascer, por uma combina-
Nova Orleans num barco de quilha onde ção de ministro itinerante e mercador de
ele conheceu o Cavalheiro Soeur Blonde escravos que chegou numa mula, em cuja
de Vitry, um homem cuja posição social, sela foram amarrados um guarda-sol de
à primeira vista, era tão equívoca quanto algodão e um garrafão de três galões de
a do próprio Doom. Em Nova Orleans, uísque. Depois daquilo, Doom começou a
entre os jogadores e facínoras da beira do adquirir mais escravos e a cultivar parte
rio, Doom, sob a tutela do seu patrono, de suas terras, como os brancos faziam.
era conhecido como o chefe, o Homem, o Mas ele nunca tinha o bastante para eles
proprietário por herança daquela terra que fazerem. Em extremo ócio, a maioria deles
pertencia ao lado patrilinear da família; levava uma vida transplantada em tudo
foi o Chevalier de Vitry que o chamou du das selvas africanas, salvo nas ocasiões
homme, e portanto Doom. quando, entretendo convidados, Doom os
Eles eram vistos juntos em toda parte caçava com cães.
– o índio, o homem atarracado com um Quando Doom morreu, Issetibbeha, seu
rosto audaz, inescrutável, mestiço, e o pa- filho, tinha dezenove anos. Ele tornou-se
risiense, o expatriado, o amigo, se dizia, de proprietário da terra e da horda quintupli-
Carondelet, e íntimo do general Wilkinson. cada de negros para os quais ele não tinha
Em seguida eles desapareceram, os dois, nenhum uso. Embora o título de Homem
sumiram de seus antigos hábitats equívocos lhe pertencesse, havia uma hierarquia de
e deixaram atrás deles a lenda das somas primos e tios que governavam o clã e que
que Doom supostamente teria conquistado, finalmente se reuniram de cócoras num con-
e uma história sobre uma jovem, filha de clave sobre a questão do negro, acocorados
uma família razoavelmente bem-sucedida com firmeza sob os nomes dourados acima
das Índias Ocidentais, o filho e o irmão da das portas do vapor.
qual procuraram Doom com uma pistola “Não podemos comê-los”, disse um.
em seus antigos hábitats durante um tempo “Por que não?”
depois do seu desaparecimento. “São demasiado numerosos.”
Seis meses mais tarde a própria jovem “Isso é verdade”, um terceiro disse.
desapareceu, a bordo de um paquete de “Uma vez que começássemos, teríamos
Saint Louis, que atracou uma noite numa que comer todos eles. E essa quantidade de
rampa de madeira no lado norte do Mis- carne não é boa para um homem.”
sissipi, onde a mulher, acompanhada de “Talvez venham a ser como carne de
uma criada negra, desembarcou. Quatro gamo. Não pode fazer mal.”
índios a encontraram com um cavalo e “Podíamos matar alguns deles e não

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comê-los”, Issetibbeha disse. que Pompadour arrumava o cabelo enquanto
Eles olharam para ele por um tempo. Louis sorria maliciosamente para o seu rosto
“Pra quê?”, um disse. refletido por cima do ombro empoado dela,
“É verdade”, um segundo disse. “Não e um par de chinelos com saltos vermelhos.
podemos fazer isso. Eles são valiosos Eram muito pequenos para seus pés, uma
demais; lembre de todo o trabalho que vez que ele não tinha usado nenhum calçado
nos deram, para encontrar coisas pra eles até que alcançou Nova Orleans a caminho
fazerem. Devemos fazer como fazem os do estrangeiro.
brancos.” Ele trouxe os chinelos para casa em
“Como é isso?”, Issetibbeha disse. lenço de papel e guardou-os no bolso re-
“Criar mais negros limpando mais terras manescente de um par de alforjes cheios
para plantar milho para alimentá-los, depois de raspa de cedro, exceto quando os tirou
vendê-los. Vamos limpar a terra e plantá-la ocasionalmente para seu filho, Moketubbe,
com comida e criar negros e vendê-los por brincar com eles. Aos três anos de idade,
dinheiro ao branco.” Moketubbe tinha uma cara de mongol larga
“Mas o que faremos com o dinheiro?”, e chata que parecia existir numa letargia
um terceiro disse. completa e impenetrável, até que confron-
Eles pensaram por um tempo. tada com os chinelos.
“Veremos”, disse o primeiro. Eles se A mãe de Moketubbe fora uma moça
acocoravam, profundos, graves. atraente que Issetibbeha tinha visto um
“Isso quer dizer trabalho”, o terceiro dia trabalhando seu turno num campo de
disse. melões. Ele parou e olhou-a por um tem-
“Deixe que os negros o façam”, o pri- po – as coxas grossas e sólidas, as costas
meiro disse. retas, a face serena. Ele estava a caminho
“Yao. Deixem. Suar é ruim. É úmido. do riacho para pescar naquele dia, mas não
Abre os poros.” deu mais um passo; talvez, enquanto estava
“E aí o ar noturno entra.” ali olhando a moça inadvertida, ele tenha
“Yao. Deixem os negros fazerem. Eles se lembrado da própria mãe, a mulher da
parecem gostar de suar.” cidade, a fugitiva com seus abanos e renda
Assim eles desbravaram a terra com e sangue negro, e toda a espalhafatosa
os negros e plantaram-na com grãos. Até cupidez daquele caso lamentável. Dentro
aquele momento os negros tinham morado de um ano Moketubbe nasceu; mesmo aos
num enorme chiqueiro com um teto incli- três anos ele não conseguia pôr os pés nos
nado num dos lados, como um chiqueiro de chinelos. Observando-o nas tardes quentes
porcos. Mas agora começavam a construir e sossegadas enquanto ele lutava com os
senzalas, casebres, pondo os negros jovens chinelos com certa rejeição monstruosa
nos casebres aos pares, para se acasalarem; dos fatos, Issetibbeha sorria calmamente
cinco anos mais tarde Issetibbeha vendeu consigo mesmo. Riu de Moketubbe e dos
quarenta cabeças para um mercador de chinelos por muitos anos, porque Moke-
Memphis e pegou o dinheiro e foi para o tubbe não desistia de tentar calçá-los até
estrangeiro, seu tio materno de Nova Orle- que completou dezesseis anos. Aí ele
ans conduzindo a viagem. Naquela época, desistiu. Ou Issetibbeha pensou que sim.
o Chevalier Soeur Blonde de Vitry era um Mas ele tinha simplesmente parado de
velho em Paris, com uma peruca e um colete, tentar na presença de Issetibbeha. A esposa
com uma velha cara desdentada fixa numa mais jovem de Issetibbeha lhe disse que
careta excêntrica e profundamente trágica. Moketubbe tinha roubado e escondido os
Ele tomou trezentos dólares emprestados de chinelos. Issetibbeha parou de rir então,
Issetibbeha e em troca introduziu-o em cer- e mandou embora a mulher, a fim de ficar
tos círculos; um ano mais tarde Issetibbeha só. “Yao”, ele disse. “Eu também gosto
voltou para casa com uma cama dourada, de estar vivo, parece.” Mandou chamar
um par de candelabros em cuja luz se dizia Moketubbe. “Vou dá-los a você”, disse.

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III
Moketubbe tinha vinte e cinco anos
então, e era solteiro. Issetibbeha não era
alto, mas tinha seis polegadas a mais que
o filho e quase quarenta e cinco quilos a
menos. Moketubbe já era doente da carne, “Serão três dias”, Cestos disse, enquanto
com um rosto pálido, largo, inerte e mãos ele e o outro índio voltavam para casa. “Se-
e pés hidrópicos. “Eles agora são seus”, rão três dias e a comida não será suficiente;
Issetibbeha disse, olhando-o. Moketubbe eu já vi isso antes.”
tinha olhado para ele uma vez quando ele O nome do segundo índio era Louis
entrou, um olhar breve, discreto, dissi- Berry. “Ele vai feder também, nesse tempo.”
mulado. “Yao. Eles não são mais que problemas
“Obrigado”, ele disse. e uma preocupação.”
Issetibbeha olhou para ele. Jamais fora “Talvez não leve três dias.”
capaz de dizer se Moketubbe tinha visto “Eles correm para longe. Yao. Vamos
qualquer coisa, olhara para qualquer coisa. cheirar esse Homem antes de ele entrar na
“Por que não será o mesmo se eu entregar terra. Você olhe e veja se não estou certo.”
os chinelos a você?” Eles se acercaram da casa.
“Obrigado”, Moketubbe disse. Isse­ti­b­ “Ele pode usar os calçados agora”, Berry
beha estava cheirando rapé no momento; um disse. “Pode usá-los agora à vista de todos.”
branco havia ensinado a ele como pôr o pó “Ele não pode usá-los por um tempo
dentro do lábio e esfregá-lo nos dentes com ainda”, Cestos disse. Berry olhou para ele.
um bastão de resina ou de malva. “Ele vai conduzir a caça.”
“Bem”, ele disse, “um homem não pode “Moketubbe?”, Berry disse. “Você acha
viver para sempre”. Ele olhou para o filho, e que ele irá? Um homem para quem até
em seguida seu olhar ficou vazio, invisível, mesmo falar é penoso?”
e ele cismou por um instante. Não se podia “O que mais pode fazer? É o seu próprio
dizer o que estava pensando, salvo o que pai que logo começará a feder.”
ele pronunciou em meia voz: “Yao. Mas o “Isso é verdade”, Berry disse. “Ainda há
tio de Doom não tinha sapatos com saltos um preço que ele deve pagar pelos calçados.
vermelhos”. Olhou para o filho de novo, Yao. Ele verdadeiramente os comprou. O
gordo, inerte. “Debaixo de tudo isso, um que você acha?”
homem poderia pensar em fazer qualquer “O que você acha?”
coisa e não seria descoberto até que fosse “O que você acha?”
tarde demais.” Ele sentou-se numa cadeira “Não acho nada.”
de vime enredada com tiras de gamo. “Ele “Nem eu. Issetibbeha não vai precisar
não pode nem calçá-los; ele e eu estamos dos sapatos agora. Deixe que Moketubbe
frustrados pela mesma carne repulsiva que os tenha; Issetibbeha não vai se importar.”
ele veste. Ele não pode nem calçá-los. Mas “Yao. O Homem deve morrer.”
isso é minha culpa?” “Yao. Que morra; ainda há o Homem.”
Ele viveu por mais cinco anos, e depois O teto de casca de árvore do pórtico era
morreu. Adoeceu uma noite e, embora o sustentado por estacas de cipreste descasca-
médico viesse numa pele de jaritataca e das, bem acima das cabines do barco a vapor,
queimasse gravetos, ele morreu antes do protegendo um tabuão sem assoalho onde na
meio-dia. terra batida mulas e cavalos eram amarrados
Isso foi ontem; o túmulo foi cavado e no mau tempo. Na extremidade dianteira
durante doze horas, agora o Povo vinha do convés do barco a vapor sentava-se um
chegando em charretes e carruagens e no velho e duas mulheres. Uma das mulheres
dorso de cavalos e a pé, para comer o ca- estava recheando uma ave, a outra estava
chorro assado e o milho verde com feijão e descascando milho. O velho estava falando.
o inhame cozidos em cinzas e para participar Estava descalço, num longo casaco de linho
do funeral. e um chapéu de castor.

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“Este mundo está indo para os cães”, ele ultrajados e as cristas arrepiadas de ainda
disse. “Está sendo arruinado pelos brancos. outras aves de briga. O quarto era assoa-
Conseguimos viver por anos a fio antes que lhado com barro comprimido; a um canto
os brancos empurrassem seus negros para se encostava um arado tosco e dois remos.
nós. Nos velhos tempos os velhos sentavam- Do teto, suspensa por quatro tiras de couro
-se na sombra e comiam guisado de carne de de gamo, dependurava-se a cama dourada
gamo e milho e fumavam tabaco e falavam que Issetibbeha tinha trazido de Paris. Não
de honra e assuntos graves; agora o que fa- tinha nem colchão nem molas, o estrado
zemos? Mesmo os velhos se desgastam até entrelaçado agora por uma rede de tiras
a morte tomando conta deles que gostam de em bom estado.
suar.” Quando Cestos e Berry atravessaram Issetibbeha havia tentado fazer a sua
o convés, ele parou e olhou para eles. Seus esposa mais nova, a mais jovem, dormir
olhos estavam queixosos, lacrimejantes; no na cama. Ele mesmo tinha um fôlego curto
seu rosto miríades de pequeninas rugas. congênito e passava as noites semirreclinado
“Ele fugiu também”, disse. na sua cadeira de vime. Ele a levava para a
“Sim”, Berry disse, “ele se foi”. cama e mais tarde, acordado, dormindo como
“Eu sabia. Eu disse isso a eles. Vai levar ele apenas três ou quatro horas por noite,
três semanas, como quando Doom morreu. sentava-se no escuro e simulava um cochilo
Esperem e verão.” e escutava seus infinitesimais movimentos
“Foram três dias, não três semanas”, furtivos para fora da cama dourada e adornada
Berry disse. de fitas, para deitar-se num catre acolchoado
“Você estava lá?” no chão até pouco antes do nascer do dia.
“Não”, Berry disse. “Mas eu ouvi.” Então ela entrava calmamente na cama de
“Bem, eu estava lá”, o velho disse. “Du- novo e por sua vez simulava um cochilo,
rante três semanas inteiras, pelos pântanos enquanto no escuro ao seu lado Issetibbeha
e urzes.” Eles prosseguiram e o deixaram calmamente sorria e sorria.
falando. Os candelabros estavam presos por tiras
O que havia sido o salão do vapor era de couro a dois paus encostados em um
agora uma casca, apodrecendo vagaro- canto onde um garrafão de dez galões de
samente; o mogno polido, a entalhadura uísque também jazia. Havia um fogareiro
cintilando momentaneamente e sumindo de barro; à frente deste, na cadeira de vime,
no mofo em figuras cabalísticas e profun- Moketubbe sentava-se. Ele tinha talvez uma
das; as janelas escavadas eram como olhos polegada a mais que um metro e meio e
com catarata. Continham alguns sacos de pesava cento e catorze quilos. Usava um
semente ou de grão, e a parte da frente da casaco de algodão fino e nenhuma camisa,
engrenagem de uma caleche, no eixo da a barriga de balão de cobre, redonda, macia,
qual duas molas enferrujavam em curvas dilatando-se acima da parte de baixo de um
graciosas, sustentando o nada. A um canto traje íntimo de linho. Nos pés estavam os
um filhote de raposa corria incessante e chinelos com saltos vermelhos. Atrás da
silenciosamente de um lado a outro da cadeira dele postava-se um jovem com uma
gaiola de salgueiro; três galos de briga ventarola semelhante a um punkah indiano
esqueléticos moviam-se na poeira, e o de papel franjado. Moketubbe sentava-se
lugar estava salpicado e marcado por seus imóvel, com sua face larga, amarela e seus
excrementos secos. olhos fechados e narinas chatas, seus braços
Eles passaram pela parede de tijolos estendidos que nem barbatanas. Na face
e entraram num quarto grande cercado havia uma expressão profunda, trágica e
de paus. Nele havia a parte de trás da inerte. Ele não abriu os olhos quando Cestos
caleche, e a estrutura desmontada jazendo e Berry entraram.
ao seu lado, a janela coberta por varas de “Ele os está usando desde o amanhe-
salgueiro, através das quais se projetavam cer?”, Cestos disse.
as cabeças, os olhos quietos, minúsculos e “Desde o amanhecer”, o jovem disse.

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A ventarola não parou. “Você pode ver.” ficou esperando três dias, dizendo, ‘Onde
“Yao”, Cestos disse. “Podemos ver.” está meu negro?’ E Issetibbeha, vosso pai,
Moketubbe não se mexeu. Parecia uma respondeu, ‘Eu vou encontrá-lo. Descanse;
efígie, como um deus malaio em suas ves- eu o trarei até você para que você possa
tes, calças, torso nu, os triviais sapatos de começar a jornada’”.
saltos vermelhos. “Yao”, Berry disse.
“Eu não o perturbaria, se fosse vocês”, Moketubbe não se havia movido, não
o jovem disse. tinha aberto os olhos.
“Não se eu fosse você”, Cestos disse. Ele “Por três dias Issetibbeha procurou na
e Berry se acocoraram. O jovem movia a baixada”, Cestos disse. “Ele nem mesmo
ventarola firmemente. “O Homem”, Cestos retornou à casa para comer, até que o
disse, “ouça”. Moketubbe não se moveu. negro estivesse com ele; então ele disse a
“Ele fugiu”, Cestos disse. Doom, o pai dele, ‘Aqui está o vosso cão,
“Eu avisei”, o jovem disse. “Eu sabia o vosso cavalo, o vosso negro; descansai’.
que ele fugiria. Eu disse.” Issetibbeha, que está morto desde ontem,
“Yao”, Cestos disse. “Você não é o pri- contou. E agora o negro de Issetibbeha
meiro a nos dizer depois o que devíamos fugiu. O cavalo e o cão esperam com ele,
saber antes. Por que é que vocês sábios não mas o negro fugiu.”
deram um passo ontem para evitar isso?” “Yao”, Berry disse.
“Ele não deseja morrer”, Berry disse. Moketubbe não se movera. Seus olhos
“Por que não deveria querer?”, Cestos estavam fechados; em sua forma mons-
disse. truosamente indolente havia uma colossal
“Porque ele ter que morrer um dia não é inércia, algo profundamente imóvel, para
motivo”, o jovem disse. “Isso também não além da carne, impérvio a ela. Eles olhavam
me convenceria, velho.” para o seu rosto, acocorados.
“Segure a língua”, Berry disse. “Quando vosso pai tornou-se o novo
“Por vinte anos”, Cestos disse, “en- o Homem, isso aconteceu”, Cestos disse.
quanto outros da raça dele suavam nos “E foi Issetibbeha quem trouxe de volta o
campos, ele serviu o Homem na sombra. escravo para onde seu pai esperava para
Por que não quereria morrer, uma vez que entrar na terra.” A face de Moketubbe não
não queria suar?” tinha se mexido, seus olhos não tinham se
“E será rápido”, Berry disse. “Não leva mexido. Depois de um tempo Cestos disse:
tempo.” “Remova os sapatos”.
“Encontre-o e lhe diga isso”, o jovem O jovem removeu os sapatos. Moke-
disse. tubbe começou a arquejar, o peito nu
“Calado”, Berry disse. Eles se acocora- movendo-se profundamente, como se ele
ram, olhando o rosto de Moketubbe. Ele bem estivesse emergindo do além de sua carne
podia estar morto. Era como se estivesse tão impenetrável de volta à vida, como se da
encaixado na carne que mesmo a respiração água, do mar. Mas os olhos ainda não es-
acontecia muito nas profundezas dele para tavam abertos.
se mostrar. Berry disse: “Ele vai conduzir a caçada”.
“Ouça, o Homem”, Cestos disse. “Yao”, Cestos disse. “Ele é o Homem.
“Issetib­beha está morto. Ele espera. Seu Vai conduzir a caçada.”
cachorro e seu cavalo nós temos. Mas seu

IV
escravo fugiu. Aquele que segurava o vaso
para ele, que comia de sua comida, de seu
prato, fugiu. Issetibbeha espera.”
“Yao”, Berry disse.
“Essa não é a primeira vez”, Cestos Todo aquele dia o negro, o serviçal de
disse. “Isso aconteceu quando Doom, vosso Issetibbeha, escondido no celeiro, observou
avô, esperou deitado à porta da terra. Ele a morte de Issetibbeha. Ele tinha quarenta

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anos, um homem da Guiné. Tinha um nariz ocos de cipreste e os negros os mantiveram
chato, uma cabeça pequena, apertada; os escondidos; por que, ninguém sabia. Eram
cantos internos dos olhos mostravam-se enterrados na lama no banco de um charco;
um pouco avermelhados, e as gengivas um rapaz de catorze anos os guardava. Ele
proeminentes eram de um vermelho azulado era de baixa estatura e mudo; acocorava-se
pálido sobre os dentes largos e quadrados. na lama acolá o dia inteiro, debaixo de uma
Havia sido levado aos catorze anos por um nuvem de mosquitos, nu a não ser pela lama
mercador para fora de Camarões, antes que com a qual se cobria contra os mosquitos
seus dentes fossem afiados. Tinha sido o e em volta do pescoço uma sacola de fibra
serviçal de Issetibbeha por vinte e três anos. contendo uma costela de porco à qual
No dia anterior, o dia em que Issetibbeha pedaços negros de carne ainda aderiam,
caiu doente, ele retornou à senzala no cre- e duas cascas escamosas num arame. Ele
púsculo. Naquela hora de quietude a fumaça salivava nos joelhos dobrados, babando;
dos fogareiros soprava vagarosamente pela de vez em quando índios vinham sorratei-
rua de porta em porta, transportando de ramente dos arbustos atrás dele e ficavam
umas para as outras o cheiro idêntico de lá e o contemplavam por um instante e iam
carne e pão. As mulheres os preparavam; embora, e ele nunca soube.
os homens estavam reunidos no começo da Do palheiro no estábulo onde estivera
rua, olhando-o enquanto ele desceu a rampa escondido até o escurecer e depois, o negro
da casa, pondo seus pés nus cuidadosamente podia ouvir os tambores. Eles estavam a três
na estranha obscuridade. Para os homens milhas, mas ele os podia escutar como se
à espera, os seus globos oculares eram um estivessem no próprio celeiro abaixo dele,
tanto luminosos. rufando, rufando. Era como se ele também
“Issetibbeha ainda não está morto”, o pudesse ver o fogo, e os membros negros
capataz disse. entrando e saindo do fogo em lampejos
“Morto não”, o serviçal disse. “Quem de cobre. Só que não haveria fogo. Não
não?” haveria ali nenhuma outra luz além da
No escuro eles tinham rostos como o que havia quando ele jazia no palheiro
dele, as diversas idades, os pensamentos poeirento, com os arpejos sussurantes de
selados inescrutáveis por detrás de rostos pés de ratos ao longo das vigas mornas e
como as máscaras mortuárias dos símios. O imemoriais, quadradas a machado. O único
cheiro dos fogareiros, a comida, soprou forte fogo acolá seria a fuligem contra mosqui-
e vagarosamente na estranha obscuridade, tos onde mulheres com filhos de peito se
como se de outro mundo, acima da ruela e agachavam, os seios pesados e dormentes
dos negrinhos nus na poeira. sugados serena e plenamente pelas bocas
“Se ele viver até depois do pôr do sol, dos filhos dos homens; contemplativo,
ele viverá até a aurora”, um disse. esquecido dos tambores, uma vez que um
“Quem disse?” fogo significaria vida.
“A fala diz.” Havia um fogo no vapor, onde Issetib-
“É o que se diz.” beha jazia agonizante entre suas esposas,
“Yao. ‘A fala diz.’ Sabemos uma única debaixo dos candelabros dependurados e da
coisa.” Eles olharam para o serviçal en- cama suspensa. Ele podia ver a fumaça e
quanto ele se postava entre eles, os globos pouco antes do pôr do sol viu o médico sair,
oculares um tanto luminosos. Respirava num colete feito de peles de jaritataca e pôr
devagar e profundamente. Seu peito estava fogo em duas varas cobertas de barro nos
nu; ele suava um pouco. “Ele sabe. Ele sabe.” arcos do convés do barco. “Então ele não
“Vamos deixar que os tambores falem.” está morto ainda”, o negro disse na escuri-
“Yao. Deixem os tambores falarem.” dão sussurrante do palheiro, respondendo
Os tambores começaram depois da a si mesmo; podia ouvir as duas vozes, ele
escuridão. Eles os guardaram escondidos e ele mesmo:
no fundo do riacho. Eram feitos de cones “Quem não morto?”

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“Você está morto.” pés delicados da mula se extinguir, e então
“Yao, eu estou morto”, disse calma- descobriu que ainda estava respirando e
mente. Desejou estar onde estavam os pareceu-lhe estranho que ainda respirasse
tambores. Imaginou-se saltando de entre o ar, ainda precisasse de ar. Então se deitou
os arbustos, pulando entre os tambores e observou calmamente, esperando mover-
com seus membros nus, magros, oleosos e -se, os globos oculares um tanto luminosos,
invisíveis. Mas não podia fazer isso, porque mas com uma luz calma, e sua respiração
o homem saltava para fora da vida, para leve e regular, e viu Louis Berry sair e olhar
lá onde estava a morte; ele arremetia em para o céu.
direção à morte e não morria, porque quan- Já estava bem claro então e cinco índios
do a morte tomava um homem, tomava-o já se agachavam em suas roupas dominguei-
só neste lado do fim da vida. Era quando ras no convés do vapor; ao meio-dia havia
a morte o ultrapassava por trás, ainda vinte e cinco lá. Naquela tarde cavaram a
em vida. O fino sussurro dos pés de rato trincheira na qual a carne seria assada, e os
extinguiu-se em rajadas débeis ao longo das inhames; naquele momento havia quase cem
vigas. Uma vez ele havia comido rato. Era convidados – decorosos, calmos, pacientes
um rapaz, então, mas acabado de chegar à em suas vestes europeias engomadas – e ele
América. Tinham vivido por noventa dias viu Berry retirar a égua de Issetibbeha do
num compartimento de carga com menos de estábulo e amarrá-la a uma árvore, e então
um metro de altura em latitudes tropicais, viu Berry emergir da casa com o velho
escutando acima deles o capitão da Nova cão de caça que ficava ao lado da cadeira
Inglaterra embriagado entoando alto de um de Issetibbeha. Ele amarrou o cão à árvo-
livro que ele não reconheceria dez anos re também, e este se sentou ali, olhando
depois como sendo a Bíblia. Acocorado gravemente em torno para os rostos. Em
daquela forma no compartimento, ele tinha seguida começou a uivar. Ainda uivava ao
observado o rato, civilizado, comparado anoitecer quando o Negro desceu da parede
ao homem desprovido de sua inerente de trás e entrou no braço de riacho, onde
destreza de membro e olho; ele o apanhara já estava escuro. Começou a correr, então.
sem dificuldade, quase sem mover a mão Podia ouvir o cão de caça uivando atrás dele,
e comeu-o vagarosamente, surpreendido e perto do riacho, já correndo, passou por
por haver qualquer um dos ratos escapado outro Negro. Os dois homens, um imóvel e
por tanto tempo. Naquela época ele ainda o outro correndo, entreolharam-se por um
usava a única veste branca que o mercador, instante como se através de um limite real
diácono da igreja Unitária, lhe havia dado, entre dois mundos diferentes. Ele corria
e falava apenas a sua língua nativa. para dentro da completa escuridão, lábios
Estava nu agora, salvo por um par de cerrados, punhos fechados, as largas narinas
calças de brim comprado pelos índios aos bufando com regularidade.
homens brancos, e um amuleto pendurado Continuou correndo na escuridão. Co-
numa tira de couro em torno dos quadris. nhecia bem o lugar, porque havia caçado ali
O amuleto consistia de metade de um lorg- muitas vezes com Issetibbeha, seguindo no
non de madrepérola que Issetibbeha havia dorso da mula o curso da raposa ou do gato
trazido de Paris, e o crânio de uma serpente selvagem ao lado da égua de Issetibbeha;
d’água venenosa. Ele mesmo havia matado conhecia-o tão bem quanto os homens que
a serpente e a comera, exceto o veneno da o perseguiriam. Ele os viu pela primeira vez
cabeça. Ele jazia no palheiro, observando a pouco antes do pôr do sol no segundo dia.
casa, o barco a vapor, ouvindo os tambores, Havia corrido trinta milhas então, subindo
pensando em si mesmo entre os tambores. pelo fundo do riacho, antes de voltar-se;
Ficou lá a noite toda. Na manhã seguinte da copa de um mamoeiro ele viu a perse-
viu o doutor sair, em sua veste de jaritataca guição pela primeira vez. Havia dois deles,
e montar na mula e afastar-se, e ficou bem em manga de camisa e chapéus de palha,
quieto e olhou a poeira final por baixo dos carregando suas calças bem dobradas sob os

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braços e não tinham armas. Eram de meia- esta tarde e comi-o enquanto estava es-
-idade, pançudos e não podiam se mover condido.”
muito depressa mesmo; transcorreriam “Levai um pouco de carne cozida con-
doze horas antes que pudessem alcançar vosco, então.”
o lugar de onde os vira. “Então terei até a Ele aceitou a carne cozida, embrulhada
meia-noite para descansar”, disse. Estava em folhas, e entrou no fundo do riacho
próximo o bastante da plantação para sentir de novo; depois de um tempo o som dos
o cheiro dos fogos onde se cozinhava e tambores cessou. Caminhou com firmeza
pensou em como devia estar faminto, uma até o raiar do dia. “Tenho doze horas”,
vez que não tinha comido em trinta horas. disse. “Talvez mais, uma vez que a trilha
“Mas é mais importante descansar”, disse foi seguida durante a noite.” Agachou-se e
consigo mesmo. Prosseguia falando isso comeu a carne e limpou as mãos nas coxas.
para si mesmo, do alto do mamoeiro, porque Então se levantou e tirou as calças de brim
os esforços do descanso, a necessidade e a e agachou-se novamente ao lado de um
pressa para descansar, faziam seu coração brejo e cobriu-se de lama – rosto, braços,
bater do mesmo modo que a corrida tinha corpo e pernas – e agachou-se de novo,
feito. Era como se houvesse esquecido como segurando os joelhos, a cabeça curvada.
descansar, como se seis horas não fosse Quando clareou o bastante para enxergar,
bastante tempo para fazê-lo, para lembrar- voltou ao pântano e agachou-se de novo e
-se de novo de como fazê-lo. adormeceu assim. De modo algum sonhou.
Logo que veio a escuridão ele moveu-se Foi bom que se movesse porque, acordan-
novamente. Ele tinha pensado em prosseguir do de súbito em plena luz do dia e com
firme e silenciosamente toda a noite, uma o sol alto, viu os dois índios. Estes ainda
vez que não havia nenhum lugar aonde ir, carregavam as calças muito bem dobradas;
mas logo que se moveu começou a correr estavam no lado oposto do lugar onde ele
em velocidade máxima, enfrentando o peito se escondia, pançudos, gordos, flácidos, um
arquejante, as amplas narinas chamejantes tanto ridículos em seus chapéus de palha e
através da escuridão cortante e abafada. em mangas de camisa.
Correra por uma hora, perdido, sem di- “Esse é um trabalho fatigante”, disse um.
reção, quando de súbito parou e depois “Preferia estar em casa na sombra”, disse
de um tempo as batidas do seu coração o outro. “Mas tem o Homem esperando à
desembaraçaram-se do som dos tambores. porta da terra.”
Pelo som eles estavam a menos de duas “Yao.” Olharam em torno calmamente;
milhas; ele seguiu o som até que pôde sentir inclinando-se, um deles removeu da cami-
o cheiro do fogo indistinto e sentir o gosto sa um grumo de cardos. “Dane-se aquele
da fumaça acre. Quando parou entre eles, Negro”, disse.
os tambores não cessaram; apenas o chefe “Yao. Quando foram para nós algo mais
veio até ele onde ele se postava na fumaça que provação e aflição?”
ondulante, ofegando, as narinas chamejando No começo da tarde, do alto de uma
e pulsando, o brilho silencioso das órbitas árvore, o Negro observou a plantação.
incessantes na face enlameada como se Podia ver o corpo de Issetibbeha numa
fossem movidas pelos pulmões. rede entre as duas árvores onde o cavalo e
“Nós vos esperávamos”, o chefe disse. os cachorros estavam amarrados e o pátio
“Ide, agora.” perto do barco a vapor cheio de vagões e
“Ir?” cavalos e mulas, com carroças e cavalos
“Comei e ide. Os mortos não podem selados, enquanto em agrupamentos colo-
consorciar-se aos vivos; vós o sabeis.” ridos as mulheres e as crianças menores
“Yao. Sei disso.” Eles não se olhavam. e os velhos agachavam-se perto da longa
Os tambores não haviam cessado. trincheira onde a fumaça da carne soprava
“Comereis?”, o chefe disse. vagarosa e densa. Os homens e os rapazes
“Não tenho fome. Apanhei um coelho estariam lá embaixo no fundo do riacho

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atrás dele, na trilha, suas roupas dominguei- Negro disse. Ele tocou-lhe a cabeça e viu-a
ras cuidadosamente enroladas e presas nas mordê-lo de novo no braço, e de novo, com
forquilhas das árvores. Havia um grupo de golpes cegos, aguçados, desajeitados. Ele
homens perto da porta da casa, porém, do disse então novamente: “É que não desejo
salão do vapor, e ele os olhava e depois de morrer”, num tom calmo, de estupefação
um tempo viu-os transportarem Moketubbe quieta e completa, como se algo que, até
para fora numa liteira feita de pele de gamo que as palavras se dissessem, ele achasse
e paus de caqui; bem escondido no seu que não tinha sabido, ou desconhecera a
nicho folhoso o Negro, a caça, observava profundidade e a extensão do desejo.

V
calmamente seu destino irrevogável com
uma expressão tão profunda quanto a do
próprio Moketubbe. “Yao”, disse calma-
mente. “Ele irá então. Aquele homem cujo
corpo tem estado morto por quinze anos Moketubbe levou os chinelos com
irá também.” ele. Não podia usá-los muito tempo em
No meio da tarde deparou-se frente a movimento, nem mesmo na liteira onde fora
frente com um índio. Estavam ambos sobre posto reclinado, e eles então descansavam
um tronco atravessado num brejo – o Negro sobre um quadrado de pele de gamo no seu
sombrio, magro, incansável e desesperado; colo – os chinelos puídos, quebradiços agora,
o Índio espesso, flácido, a encarnação apa- um tanto deformados, com suas superfícies
rente da perfeita e suprema relutância e inér- escamosas de couro envernizado e linguetas
cia. O Índio não fez qualquer movimento, desafiveladas e saltos escarlates, jazendo
nenhum som; parado no tronco e olhando sobre a indolente forma obesa quase morta,
o Negro mergulhar no ribeiro e nadar até a carregada pelo pântano e pelas urzes por
margem e embrenhar-se no mato. turnos alternados de homens que sustentavam
Pouco antes do pôr do sol ele jazia por com firmeza o dia inteiro o crime e seu objeto,
trás de um tronco caído. Tronco acima em no negócio do assassinato. Para Moketubbe
vagarosa procissão caminhava uma fileira deve ter sido como se ele, mesmo imortal,
de formigas. Ele as apanhou e comeu-as estivesse sendo transportado rapidamente
devagar, com uma espécie de indiferença, pelo inferno por espíritos condenados que,
como a de um convidado comendo amen- vivos, tinham contemplado seu desastre e,
doins salgados de um prato. Elas também mortos, eram parceiros esquecidos da sua
tinham um gosto salgado, engendrando condenação.
uma reação salivar fora de toda proporção. Depois de descansar por um momento,
Comeu-as devagar, vendo a linha contínua a liteira foi apoiada no centro do círculo
mover-se tronco acima e para dentro do dos agachados e Moketubbe, estático no
seu destino cego com uma constante e im- interior, com os olhos fechados e sua face
pressionante uniformidade. Ele não havia de súbito pacificada pelo instante e cheia
comido nada além disso durante todo o dia; de inescapável presciência, podia usar os
sob a máscara emplastrada de lama seus chinelos por um tempo. O jovem calçou-os
olhos rolavam nas bordas avermelhadas. Ao nele, forçando seus pés grandes, tenros,
pôr do sol, rastejando ao longo da margem hidrópicos dentro deles; depois do que em
do riacho até onde havia localizado um sua face apareceu de novo aquela expressão
sapo, uma cascavel atacou-o de repente trágica, passiva e profundamente atenta, que
no antebraço com um golpe cego e lento. os melancólicos ostentam. Então eles pros-
Atacou-o rudemente, deixando duas lon- seguiram. Ele não fez nenhum movimento,
gas marcas no braço como dois cortes de nenhum som, inerte na liteira rítmica por
navalha e meio esticada com sua própria alguma reserva de inércia, ou talvez virtude
força e fúria, parecia por um instante ex- majestosa tal como a coragem ou fortaleza.
tremamente desamparada ante seu próprio Passado um tempo eles baixaram a liteira
embaraço e raiva colérica. “Olé, avô”, o e olharam para ele, para a face amarelada

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como a de um ídolo, salpicada de suor. Moketubbe ainda usava as sandálias; quan-
Então Três Cestos ou Teve-Dois-Pais dizia: do alcançaram o lugar, Moketubbe havia
“Tire-as. A honra foi servida”. Eles remo- desmaiado. Eles removeram as sandálias
viam os chinelos. A face de Moketubbe não e o trouxeram.
se alterava, mas só então sua respiração No escuro, formavam um círculo per-
tornava-se perceptível, entrando e saindo to do pântano. Agachavam-se, cobertos
por seus lábios pálidos com um débil som de mosquitos; a estrela da tarde brilhava
“ah-ah-ah”, e eles se agachavam de novo baixa e próxima a oeste, e as constelações
enquanto os mensageiros e os corredores começavam a girar no alto. “Vamos dar-lhe
apareciam. tempo”, disseram. “Amanhã é só outro
“Ainda não?” nome para hoje.”
“Ainda não. Ele está indo para o leste. “Yao. Deixem que ele tenha tempo.” Eles
Ao pôr do sol vai alcançar a Boca de Tip­ então cessaram, e fitaram juntos a escuridão
pah. Então retornará. Podemos apanhá-lo onde jazia o pântano. Depois de um tempo o
amanhã.” barulho parou, e logo o mensageiro emergiu
“Esperemos que sim. Já não era sem da escuridão.
tempo.” “Ele tentou escapar.”
“Yao. Já se passaram três dias.” “Mas você o fez retornar?”
“Quando Doom morreu, levou somente “Ele retornou. Tememos por um mo-
três dias.” mento, nós três. Podíamos sentir o cheiro
“Mas aquele era um velho. Este é um dele rastejando na escuridão, e podíamos
jovem.” sentir algo mais, de que não sabíamos. Era
“Yao. Uma boa corrida. Se ele for apa- por isso que temíamos, até que ele nos
nhado amanhã, eu ganho um cavalo.” disse. Disse para matá-lo ali, uma vez que
“Que você possa ganhá-lo.” estava escuro e ele não teria que ver-lhe o
“Yao. Esse trabalho não é agradável.” rosto quando viesse. Mas não era aquilo
Aquele foi o dia em que a comida aca- que cheirávamos; ele nos disse o que era.
bou na fazenda. Os convidados voltaram Uma cobra o atacara. Isso foi há dois dias.
às suas casas e retornaram no dia seguinte O braço inchara, e cheirava mal. Mas não
com mais comida, o bastante para mais uma era aquilo que cheirávamos então, porque
semana. Naquele dia Issetibbeha começou o inchaço diminuíra e seu braço não estava
a feder; podia-se sentir-lhe o cheiro um maior que o de uma criança. Ele nos mos-
bom percurso acima e abaixo do fundo do trou. Sentimos o braço, todos nós sentimos;
rio quando ficou quente perto do meio-dia não era maior que o de uma criança. Pediu
e o vento soprou. Mas não capturaram o que lhe déssemos um machado para que
Negro naquele dia, nem no dia seguinte. cortasse fora o braço. Mas amanhã é hoje
Era próximo do crepúsculo do sexto dia também.”
quando os mensageiros vieram até a liteira; “Yao. Amanhã é hoje.”
haviam encontrado sangue. “Ele feriu-se.” “Tememos por um instante. Ele então
“Nada grave, espero”, disse Cestos. retornou ao pântano.”
“Não podemos mandar com Issetibbeha “Isso é bom.”
alguém que não lhe será útil.” “Yao. Tememos. Devemos dizer ao
“Nem que o próprio Issetibbeha tenha Homem?”
que cuidar e pajear”, disse Berry. “Vou ver”, Cestos disse. Ele afastou-se.
“Nós não sabemos”, disse o mensageiro. O mensageiro agachou-se, falando de novo
“Ele se escondeu. Arrastou-se de volta para do Negro. Cestos voltou. “O Homem disse
o pântano. Deixamos lá estacas.” que está bem. Volte ao seu posto.”
Eles trotavam com a liteira agora. O lugar O mensageiro afastou-se agachando-se.
por onde o Negro havia se arrastado até o Eles se agachavam em torno da liteira; de
pântano estava a uma hora de distância. Na vez em quando cochilavam. Pouco depois
pressa e na excitação tinham esquecido que da meia-noite o Negro os acordou. Ele

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começara a gritar e a falar consigo mesmo, sentir-lhe o cheiro de morte na casa onde ele
a voz saindo nítida e súbita da escuridão, vivera em vida. Os convidados começavam
e em seguida ficara em silêncio. Veio o a mover-se em direção à sepultura onde
amanhecer; uma garça branca cruzou vaga- os carregadores da liteira de Moketubbe
rosamente o céu de junquilho. Cestos estava galgavam o declive.
acordado. “Vamos agora”, disse. “É hoje.” O Negro era o mais alto ali, sua cabeça
Dois índios entraram no pântano, os alta, estreita e emplastrada de lama avul-
movimentos ruidosos. Antes de alcançarem tando por sobre todos eles. Respirava com
o Negro, pararam, porque ele começou a dificuldade, como se o esforço desesperado
cantar. Eles podiam vê-lo, nu e coberto de dos seis dias suspensos e desesperados
lama, sentado num tronco, cantando. Eles tivesse se empilhado sobre ele de uma só
se agacharam silenciosamente, a uma curta vez; embora todos andassem devagar, seu
distância, até que ele terminou. Ele estava peito nu coberto de cicatrizes subia e descia
cantando algo na sua própria língua, a face sobre o braço esquerdo recolhido. Ele olhava
erguida para o sol nascente. A voz era clara, para cá e para lá continuamente, como se
cheia, com uma qualidade selvagem e triste. não estivesse enxergando, como se a visão
“Deixe que ele tenha tempo”, os índios dis- nunca emparelhasse com o olhar. Sua boca
seram, agachados, esperando. Ele parou e estava meio aberta sobre os grandes dentes
eles se aproximaram. Ele também os olhou brancos; ele começou a arquejar. Os convi-
através das rachaduras da máscara de lama. dados que já se moviam pararam, olhando
Os olhos dele estavam com raios vermelhos, para trás, alguns com pedaços de carne nas
os lábios rachados sobre os dentes curtos e mãos, enquanto o Negro olhava em torno
quadrados. A máscara de lama parecia estar para suas faces com seus olhos selvagens,
frouxa em seu rosto, como se ele tivesse contidos, incessantes.
perdido carne desde que se cobrira com “Quer comer antes?”, Cestos disse. Ele
ela; mantinha o braço esquerdo próximo ao teve de dizer duas vezes.
peito. Do cotovelo para baixo estava coberto “Sim”, o Negro disse. “É isso. Quero
e deformado pela lama negra. comer.”
Eles podiam sentir seu cheiro, um cheiro A multidão começava a apinhar-se em
rançoso. Ele os olhava calmamente até que direção ao centro; a informação passou até
um tocou-o no braço. “Venha”, disse o Índio. o ponto extremo: “Ele comerá primeiro”.
“Você correu bem. Não se envergonhe.” Eles alcançaram o barco a vapor. “Sente-
-se”, Cestos disse. O Negro sentou-se na

VI
borda do convés. Ele ainda arfava, o peito
subindo e descendo, a cabeça incessante
com as órbitas brancas, volvendo de um
lado a outro. Era como se a incapacidade
Ao se aproximarem da plantation na de ver viesse de dentro, da desesperança,
clara manhã maculada, os olhos do Negro não da ausência de visão. Eles trouxeram
começaram a rolar um pouco, como os comida e observavam calmamente enquanto
de um cavalo. A fumaça do fogo a carvão ele tentava comer. Ele pôs a comida na boca
soprava baixo ao longo da terra e sobre os e mastigou-a, mas, mastigando, o bolo ali-
convidados agachados e à espera no terreiro mentar semitriturado começava a emergir
e sobre o convés do barco a vapor, enver- dos cantos da boca e caía-lhe no queixo, no
gando seus ornatos brilhantes, toscos e de peito, coberto de lama seca, o prato sobre
cores berrantes; as mulheres, as crianças, os os joelhos, os olhos escancarados e inces-
velhos. Eles tinham enviado mensageiros santes, arfando e arfando. Eles o olhavam,
ao longo do leito do rio, e outro à frente, e o pacientes, implacáveis, em espera.
corpo de Issetibbeha já havia sido removido “Venha”, Cestos disse finalmente.
para onde a sepultura esperava, junto com “É água que eu quero”, o Negro disse.
o cavalo e o cão, embora ainda pudessem “Eu quero água.”

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O poço ficava um pouco abaixo do elevada, como se estivesse numa esteira.
declive que levava à senzala. O declive Suas órbitas tinham um brilho selvagem,
estava salpicado pelas sombras do meio-dia, refreado, como as de um cavalo. “Você
daquela hora serena quando, Issetibbeha queria água”, Cestos disse. “Aqui está.”
cochilando em sua cadeira e esperando o Havia uma cuia no poço. Eles a mergu-
almoço e a longa tarde para dormir, o Ne- lharam por completo e deram-na ao Negro,
gro, o serviçal, ficava livre. Ele sentava-se e viram-no tentar beber. Seus olhos não
à porta da cozinha, então, falando com as haviam cessado enquanto ele inclinava a
mulheres que preparavam a comida. Para cuia devagar na direção do seu rosto em-
além da cozinha a vereda entre os quartos plastrado. Eles podiam ver sua garganta se
ficava quieta, serena, com as mulheres fa- movendo e a água clara caindo em forma
lando umas com as outras através da vereda de cascata dos dois lados da cuia, sobre o
e a fumaça dos fogos do jantar soprando queixo e o peito. De repente a água parou.
por sobre os negrinhos como brinquedos “Venha”, Cestos disse.
de ébano na poeira. “Espere”, o Negro disse. Ele mergulhou
“Venha”, Cestos disse. a cuia de novo e inclinou-a em direção à
O Negro caminhava entre eles, o mais face, sob os olhos incessantes. Novamente
alto de todos. Os convidados encaminha- eles viram-lhe a garganta mover-se e a
vam-se para onde Issetibbeha e o cavalo e água não engolida repartida em fragmento
o cachorro esperavam. O Negro caminhava e miríade queixo abaixo, abrindo canais
com sua alta cabeça incessante, seu peito no peito revestido. Esperaram, pacientes,
arfante. “Venha”, Cestos disse. “Você graves, decorosos, implacáveis; membro
queria água.” do clã e convidado e parente. Então a
“Sim”, o Negro disse. “Sim.” Ele olhou água cessou, embora ainda a cuia vazia se
para trás para a casa, então para a senzala, inclinasse mais alto e mais alto, e ainda sua
onde hoje nenhum fogo ardia, nenhum rosto garganta negra macaqueasse o movimento
se mostrava em qualquer porta, nenhum vão da deglutição frustrada. Um pedaço de
negrinho na poeira, arfando. “Atacou-me lama amolecida pela água escorreu do seu
aqui, arranhando-me este braço; uma, duas, peito e quebrou-se aos seus pés lamacentos,
três vezes. Eu disse, ‘Olé, Avô’.” e na cuia vazia eles podiam escutar-lhe a
“Venha agora”, Cestos disse. O Negro respiração: ah-ah-ah
ainda estava passando pela experiência de “Venha”, Cestos disse, tomando a cuia
caminhar, o joelho para o alto, a cabeça do Negro e pendurando-a de volta no poço.

REVISTA USP, São Paulo, n.90, p. 148-163, junho/agosto 2011 163

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