Você está na página 1de 2

Comentário a “Com as Aves Desde Idanha”

“Não ponhas tantos pássaros nos poemas


põe outra coisa, outro animal
porque não lesmas?”
Rita Taborda Duarte

Parafraseando Luís Miguel Nava, as palavras de Eugénio de Andrade têm um peso


pouco habitual: afundamo-nos num chão de “signos carregados” que fluem com fulgor
também em “Com as Aves desde Idanha” o afluente que perseguimos neste passeio.

Iniciamo-nos rentes ao chão no passeio por «Com as Aves desde Idanha»: a citação que
abre o texto – “For terrible is the earth” – roubada a Melville, rapidamente é devolvida
e reorganizada na máxima «a terra é terrível e tão bela». É precisamente através deste
regresso à terra, desta paragem na terra, que a velocidade contrastante do carro que se
estanca reitera, que se dá lugar ao lento movimento pedestre que guia o nosso caminho
pelo texto, como Eugénio de Andrade evidencia num entre o concreto e o visceral: “ a
terra é o lugar certo do coração”.

Esta distensão temporal do movimento, sob a lentidão estanque do verão, intensifica-se


no balançar reflexivo entre Idanha-a-Velha e Idanha-a-Nova. Esta lentidão quase
premonitória – quer da morte, quer do abandono – é cravada na imagem inerte, roubada
pela fotografia dos sobreiros que “só esperavam pelo inverno para morrer”. O abandono
de Idanha-a-Velha alarga-se sinestesicamente a um abandono interior: “a luz, o silêncio,
a solidão, um sopro de felicidade, tudo convidava ao abandono” combinando-se com
um gesto carregado de erotismo: “consentindo que as mãos leves do ar tomassem conta
de mim”.

Compreendemos, assim, esta outra temporalidade: a velocidade do automóvel é travada


por esta terra, imobilizada na fotografia, perecível, que convidativa ao abandono num
tom quase apocalíptico entre a espera e a morte. A reconciliação dos contrários que Luís
Miguel Nava aponta como eixo central da poesia de Eugénio de Andrade, torna-se
palpável nesta aproximação entre a terra terrível e a terra bela, entre o movimento e a
paragem, entre o verão e a morte.

Regressamos ao título, regressando também à ideia dos “signos carregados” proposta


por Luís Miguel Nava: as aves surgem no texto através de uma falha, uma
impossibilidade de identificação. Nomear o pássaro que canta no texto implica uma
apropriação: o canto é imaterial, o pássaro não, mas parece sê-lo se não encontrarmos
uma palavra que o fixe no tempo e no papel. A palavra, o nome, em Eugénio de
Andrade, é a forma da poesia de reorganizar o mundo, cada palavra tem uma carga que
a assinala como chama contagiante que a interliga as restantes. A simbologia um pouco
estafada das aves na poesia, que traz nas asas a metáfora do voo, leva também no bico a
metáfora do canto, ambas metáforas moribundas.

Hã todo um passaredo que sobrevoa as palavras de Eugénio de Andrade neste texto:


bandos de poetas que passarinham, com a suas aves, vários séculos da poesia
portuguesa. Quando a passarada aterra, por fim, no seu tempo, no de Eugénio de
Andrade, as aves também são outras, aves que responsabilizam os poetas face ao
mundo, «aves de um tempo de desastre e dor» num pairar desafiante. « Nestes versos de
uma dignidade exemplar, as sílabas da aflição encontraram as imagens amplas dos grandes
espaços, e pairam alto desafiando o tempo.»

Você também pode gostar