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Traduç
Arte sobre imagem de Jazzia/123RF
resumo abstract

No presente artigo, propomos uma In this article we propose a critical reading


leitura crítica do Feminismo para os 99% of Feminism for the 99% - a manifesto,
- um manifesto que, retomando o slogan which, taking the slogan of the Occupy
do movimento Occupy, faz um chamado movement up, calls for a global alliance
para construir uma aliança global entre os between the various feminisms of the
diversos feminismos das greves de 8 de march 8 strikes and the marches against
março e das marchas contra Trump nos Trump in the United States. We are
Estados Unidos. Interessa-nos discutir interested in discussing the ways that
os caminhos que as autoras desse texto, the authors of this text, Cinzia Arruzza,
Cinzia Arruzza, Tithi Bhattacharya e Tithi Bhattacharya and Nancy Fraser,
Nancy Fraser, propõem para criar um propose to create a hegemonic bloc able
bloco hegemônico que possa enfrentar to confront and transform the policies of
e transformar as políticas do capitalismo neoliberal capitalism. At the same time, we
neoliberal. Ao mesmo tempo, queremos aim to draw attention to the risks involved
chamar atenção sobre os riscos implicados in a political proposal that articulates a
numa proposta política que articula um populist feminism operating with abstract
feminismo populista operando com antagonisms, which reproduce historical
antagonismos abstratos que reproduzem forgetfulness and epistemic hierarchies
esquecimentos históricos e hierarquias between North and South and polarize
epistêmicas entre o norte e o sul global current feminisms.
e polarizam com os feminismos atuais.
Keywords: Feminism for the 99%;
Palavras- chave: feminismo dos neoliberalism; anti-capitalism; anti-
Arte sobre imagem de Jazzia/123RF

99%; neoliberalismo; anticapitalismo; genderism.


antigenerismo.
A
s novas mobilizações Brasil, ativistas da Marcha das Mulheres,
feministas (manifesta- nos Estados Unidos, e da Greve Interna-
ções, marchas, greves) cional das Mulheres, na Europa, só para
em diferentes países do mencionar algumas delas. Dentro dessas
mundo contra o femini- mobilizações feministas destaca-se a greve
cídio e outras formas de do dia 8 de março de 2018, que conseguiu
violência de gênero e a reunir mais de 5 milhões de participantes
favor dos direitos repro- na Espanha (García et al., 2018, p. 39).
dutivos das mulheres, Sem dúvida alguma, depois de uma
que vêm se articulando longa fase de fragmentações feministas e
desde 2015 na Argentina de lutas identitárias, fazer uma proposta
e em outros lugares da para refundar um feminismo coletivo trans-
América Latina e da nacional que seja integrador sem homo-
Europa, não só conseguiram congregar um geneizar as diferenças e sem repetir os
grande número de ativistas como também erros de tentativas anteriores é mais do
– e graças à sua difusão através das redes que urgente. Como interpretar essas novas
sociais – construir amplas frentes de pro- mobilizações feministas? Podemos falar
testo feminista local, nacional e transna- de um feminismo globalizado que será a
cional, que incluem grupos muito heterogê- vanguarda que encabeçará uma aliança
neos com demandas políticas que vão bem antissistêmica que permita transformar o
além do que comumente se associa com as capitalismo depredador atual? Partindo des-
lutas dos movimentos feministas. Assim,
a celebração do Dia da Mulher agora se
transformou numa mobilização para a
greve internacional para a qual conver- TERESA OROZCO MARTÍNEZ e
gem ativistas latino-americanas associadas MARTHA ZAPATA GALINDO são professoras
e pesquisadoras do Instituto de Estudos
ao coletivo argentino Nem Uma A Menos Latino-Americanos da Universidade
ou à Marcha Mundial das Mulheres, no Livre de Berlim (Alemanha).

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sas perguntas, faremos uma leitura crítica revista New Left Review (n. 114, 2018)2,
do Feminismo para os 99% - um mani- o Manifesto foi publicado em 13 idiomas.
festo, publicado por Cinzia Arruzza, Tithi
Bhattacharya e Nancy Fraser (2019), no CARACTERÍSTICAS DO MANIFESTO
qual promovem a formação de um “novo
feminismo” que possa enfrentar as crises
O Feminismo para os 99% se distingue
políticas e o vazio que se abre no momento
de outros manifestos difundidos no âmbito
em que o neoliberalismo, justamente por
dessas marchas e greves, que são publicados
suas próprias e múltiplas crises, estaria
sem autoria ou com autorias coletivas. O
perdendo sua hegemonia.
primeiro ultrapassa os limites ao ser um
O impulso para a elaboração desse
texto que convoca, já que apresenta a lei-
Manifesto surgiu no contexto das mobi-
tura das autoras sobre a atual conjuntura e
lizações para a Marcha Mundial, nos Esta-
uma visão em torno das múltiplas crises e
dos Unidos, através do chamado feito por
sua agudização. Diferentemente dos textos
um grupo de acadêmicas, em fevereiro de
que convocaram as marchas feministas na
2017, para convidar a participar da greve
Polônia, Espanha, Itália, Turquia, México,
internacional de mulheres, utilizando o
Argentina, Brasil, etc., que reúnem diagnós-
lema “um feminismo para os 99%”1. Um
ticos, análises e curtas petições, o Mani-
segundo chamado foi publicado também no
festo de Fraser, Arruzza e Bhattacharya,
The Guardian, em 2018. Ambos estavam
escrito em relação à marcha nos Estados
dirigidos às mulheres dos Estados Unidos
Unidos e agora convertido em livro, aspira
e convidavam não só para a luta contra a
a ser uma referência teórica e prática sobre
política de Trump como também para com-
o conjunto desses movimentos oferecendo
bater o capitalismo neoliberal, por deterio-
uma “narrativa mestra” que assume uma
rar o nível de vida da maioria das pessoas
liderança sobre o rumo não só dos protestos
nos últimos 30 anos. Em sua tentativa de
feministas em tempos de “desorientação”,
impulsionar a internacionalização do pro-
como também aspira a ser a vanguarda de
testo feminista, as autoras do Manifesto
um movimento que pudesse ser uma “fonte
desenvolveram a ideia do Feminismo dos
de esperança para a humanidade inteira”
99%, retomando o slogan do movimento
(M99%, 2019, pos. 221). Diante das dificul-
Occupy, para construir uma aliança entre
dades de criar espaços e discursos entre os
os diversos feminismos das greves de 8
feminismos regionais em vista de articular
de março e das marchas contra Trump,
uma frente global, transnacional, que seja
nos Estados Unidos. Em 2019, depois de
capaz de tornar visível um feminismo ao
ter sido publicado como um resumo na

2 Citaremos a versão publicada na New Left Review, em


1 Este chamado foi publicado na mídia (The Guardian, espanhol, da seguinte maneira: NMF, 2018, p. Quando
6/2/2017) e foi assinado por Angela Davis, Barbara nos remetemos à publicação do Manifesto como livro,
Ransby, Cinzia Arruzza, Keeanga-Yamahtta Taylor, Lin- referimo-nos à versão Kindl em espanhol, publicada
da Martín Alcoff, Nancy Fraser, Rasmea Yousef Odeh e pela Editora Herder, de Barcelona, e a citamos como:
Tithi Bhattacharya. M99%, 2019, pos.

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mesmo tempo diverso e compartilhado, essa ras perseguem e ao qual convidam para
iniciativa é, sem dúvida, valiosa. debater em forma de tese. Interessa-nos, no
Embora os textos convocatórios não cum- entanto, destacar as seguintes dimensões: a
pram as regras acadêmicas e não incluam primeira focaliza os esquemas de interpre-
um “estado da arte”, surpreende que grande tação que se oferecem sobre a conjuntura
parte das ideias expostas no Feminismo para política, xs3 atores que são mencionadxs e
os 99% - um manifesto retome debates dos as genealogias que se constroem. A segunda
feminismos internacionais desde os anos dimensão indaga o projeto político que esse
1960 até os dias de hoje, sem ser expli- feminismo populista anticapitalista oferece.
citamente mencionados. É sintomático que Finalmente, formulamos reflexões críticas
no Epílogo sejam incluídas reflexões gerais sobre a reprodução de hierarquias epistêmi-
sobre os outros feminismos que seguiram o cas em tempos de polarizações e, por fim,
mesmo caminho, sem chegar a especificá-los. outras que vão mais além do Manifesto.
Além disso, dado que quando se fala
das outras marchas e greves feministas suas DIAGNÓSTICO DA CONJUNTURA
metas sejam só parcialmente reconstruídas,
POLÍTICA E “O NOVO FEMINISMO”
vamos voltar a elas nos tópicos seguintes,
já que nesse livro elas se imiscuem como
legitimação do feminismo para os 99%. Como parte integral da conjuntura polí-
Ainda que se parta do respeito para com tica atual, o Manifesto nos apresenta um
a heterogeneidade dos protestos, ao mesmo cenário bipolar no qual aparecem duas
tempo se persegue a criação de uma meta visões feministas antagônicas. Por um lado,
de luta comum e, nesse sentido, as auto- temos um feminismo que atua como “servo
ras – extrapolando sua própria experiên- do capitalismo” e fomenta a “dominação
cia – fazem uso de um “nós” imaginário com igualdade de oportunidades” e, por
com funções de interpelação: “muitas de outro, um feminismo que propõe “o fim da
nós nos vemos obrigadas a trabalhar em dominação capitalista e patriarcal” (NMF,
múltiplos ‘empregos-lixo’, viajando longas 2018, p. 124). A figura emblemática que
distâncias utilizando meios de transporte personifica a primeira visão é Sheryl San-
caros, deteriorados e inseguros” (M99%, dberg e sua interpretação da igualdade de
2019, pos. 897). Isso se torna patente tam- oportunidades a partir da perspectiva elitista
bém quando as perspectivas das autoras se empresarial; a segunda visão é encarnada
expressam pressupondo um consenso geral pelo movimento feminista internacional da
sobre as mesmas. greve internacional de 8 de março (8M).
Devido à brevidade deste ensaio, não Ambos os feminismos aparecem no cená-
vamos analisar como se produzem essas rio no contexto da crise histórica que atinge
passagens de um discurso particular a um não só a política, a sociedade, a economia,
discurso generalizante e universalizante; nós
nos limitaremos a marcar as hierarquias
epistêmicas que se criam e seus efeitos para 3 Em vez do asterisco inserido pelas autoras, optou-se
pelo uso brasileiro (x) em todas as ocorrências ao
a definição do projeto político que as auto- longo do texto (N. da T.).

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o meio-ambiente e em geral a totalidade de grandes segmentos da população, sobretudo


nossa existência. No centro dessas crises quando se posicionam em defesa de prin-
agudas as autoras do Manifesto identifi- cípios democráticos e do Estado de direito.
cam “uma crise hegemônica crescente, um Aqui encontramos muitas mulheres que
vazio de liderança e organização, e uma não só serviram como “criadas dos inte-
sensação de que é preciso mudar alguma resses de sua classe”. Portanto, é urgente
coisa” (NMF, 2018, p. 130). Este chamado recordar e fazer distinções, já que a luta
se dirige à construção de um novo femi- pela ampliação dos direitos das mulheres
nismo para os 99% que se articula como o não teria sido pensável nem possível sem
novo sujeito histórico que poderá impulsio- a participação de muitas mulheres que, de
nar a transformação social. É notório que suas posições de poder, se solidarizaram
a lógica populista que subjaz à construção com classes menos privilegiadas contri-
desse antagonismo exige o desaparecimento buindo para ampliar as margens de inclu-
de todos os feminismos que não poderiam são na cidadania, na educação, no acesso
ser colocados nessas posições. à saúde, no acesso aos recursos legais,
As descrições do feminismo do 1% são, na legalização do aborto, etc. Nessa gros-
de acordo com o esquema populista, impre- seira estigmatização do “feminismo liberal”
cisas, adquirindo nomes muito diversos, tampouco se distingue se os feminismos
tais como feminismos “de umas poucas dos microcréditos e as práticas femocratas
almas privilegiadas” (M99%, 2019, pos. são, a princípio, orquestrados por bancos e
190), “feminismos das elites”, “feminismos Estados que se apropriaram dos feminis-
gerenciais”, “feminismos lean in”, refe- mos, fazendo política pública para mulhe-
rindo-se especificamente a Sheryl Sand- res, empregando mulheres para isso, sem
berg. Em uma longa frase, vinculam-se ser necessariamente feministas. Da mesma
cinco descrições centrais: “[...] o feminismo maneira, empregar migrantes para o ser-
das mulheres com poder: as gurus empre- viço doméstico não é, de modo algum,
sárias que predicam o lean in, as femocra- uma distinção do 1%: “O feminismo liberal
tas que pressionam o ajuste estrutural e o subcontrata a opressão” quando, para che-
microcrédito no Sul Global e as políticas gar a suas metas, apoia-se em “mulheres
profissionais de blazer que recebem hono- migrantes mal remuneradas” (M99%, 2019,
rários de seis cifras para dar conferências pos. 190). Sem dúvida alguma, é preciso
em Wall Street” (M99%, 2019, pos. 190). A analisar os atuais processos de coopta-
categoria que engloba todas essas caracte- ção de lutas e programas feministas pelo
rísticas é a do “feminismo liberal”, que é capitalismo neoliberal que, como mostram
fundido pelas autoras com os feminismos as pesquisas de Angela McRobbie, não se
neoliberais e com os feminismos das elites restringem às elites, mas o que não se
do capitalismo financeirizado. Essa fusão pode aceitar é fundir, sem diferenciação,
discursiva é problemática, se recorrermos o feminismo liberal com o financeirizado
à história dos feminismos liberais e vir- neoliberal. Nesse sentido, deram-se amplos
mos que não se circunscrevem às elites, debates sobre as políticas de transversaliza-
mas que também são compartilhados por ção de gênero que surgiram como medidas

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para modificar as estruturas institucionais ideológico contra os direitos de igualdade e
e se transformaram em tecnocracia sim- liberdade que até agora foram bastiões do
bólica, despolitizando sua intenção origi- liberalismo. A detalhada reconstrução que
nária. Sabemos que as políticas sociais Rottenberg (2014, pp. 425-8) faz permite ver
estatais criadas para mulheres têm muito que o ato de apagar os limites entre libe-
de reprodução da matriz heterossexual e ralismo e neoliberalismo, como estratégia
pouco de feminismo emancipador. política, é não só altamente problemático
No entanto, tradições do feminismo libe- como insustentável. Veremos que no mundo
ral cuja história podemos localizar a partir inteiro haverá feminismos semelhantes ao
da Revolução Francesa foram, junto a outras, do 1%, mas a crítica feminista não pode,
pioneiras e, sim, abriram muitos “telha- em altares populistas, estigmatizar os pri-
dos de vidro” para que outras não tenham vilégios sem indagar o que se faz com eles:
que limpar vidros quebrados, “telhados de
vidro” que as autoras só conhecem para “Nossas experiências se opõem ao pressu-
as cúpulas financeirizadas, mas que exis- posto de que as mulheres só podem con-
tem em todos os espaços onde não havia seguir lucros econômicos se atuarem em
mulheres nem grupos LGBTQ+, nem par- cumplicidade com o patriarcado capitalista
ticipando nem representando. Essa crítica existente. Em todo o país, as feministas
desconcerta ainda mais quando as autoras em altas posições sociais que apoiam uma
incluem valores nitidamente liberais como visão revolucionária de mudança social
os direitos à igualdade e à liberdade como compartilham recursos e usam seu poder
parte central do mundo que o feminismo para impulsionar reformas que melhorem
dos 99% se propõe a construir (M99%, a vida das mulheres independentemente de
2019, pos. 77). Argumentando a partir da sua classe” (Hooks, 2017, p. 65).
história, os processos de neoliberalização
não podem ser descritos como uma radica- Por ser um Manifesto que quer interpelar
lização unidimensional do liberalismo, mas mulheres tanto do norte como do sul global,
também como produto de sua destruição. surpreende-nos a forma como se constroem
No âmbito da demolição dos Estados de as genealogias desse novo sujeito histórico e
bem-estar, os feminismos neoliberais trans- seu adversário. Enquanto, como vimos antes,
formaram a luta do feminismo liberal contra o feminismo liberal aparece como um femi-
as desigualdades de gênero estruturais, para nismo empresarial que reduz a igualdade de
transformá-las em um problema de caráter direitos “à ascensão das mulheres de elite
individual (Rottenberg, 2014, p. 420). aos altos cargos” (NMF, 2018, p. 125), as
Observando isso, o surgimento do femi- autoras elaboram uma genealogia do movi-
nismo à Sandberg pode ser interpretado mento feminista 8M a partir de um olhar do
como a desarticulação mais avançada do norte global altamente seletivo. Elas situam
feminismo liberal no âmbito de um projeto a origem desse movimento internacional na
de digitalização imperialista, com raios de greve de outubro de 2016, na Polônia, em
influência altamente transgressores a favor que as mulheres e as feministas saíram às
da mercantilização, securitização e controle ruas para manifestar contra a proibição do

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aborto. Dali, sustenta o Manifesto, passou ses de Rita Segato (2013), como crimes
para a Argentina, onde o movimento Nem políticos (Gago, 2018, p. 27). O caráter
Uma a Menos organizou uma greve nacio- transnacional do feminicídio consiste em
nal para protestar pelo assassinato de Lucía que este “produz uma forma de ressonância
Pérez, para continuar se expandindo pelo e implicação na composição de um corpo
mundo até chegar a se institucionalizar na comum: uma política que faz do corpo de
greve de 8 de março de 2017, articulando uma o corpo de todas” (Gago, 2018, p. 27)
diferentes demandas no Dia Internacional da e com isso visibiliza como esses corpos
Mulher, que, segundo as autoras do Mani- são territórios de novas conquistas colo-
festo, conseguiram recuperar suas raízes niais. Com base nisso, as argentinas do
históricas dentro dos feminismos socialistas Nem Uma a Menos transformaram essa
e de trabalhadorxs, ao mesmo tempo que experiência em “um contrapoder frente à
começaram a unificar “mulheres separa- ofensiva feminicida que não é nada mais
das” (NMF, 2018, p. 126). O que caracte- do que o modo como hoje se aninha no
riza esta mobilização, segundo as autoras, corpo das mulheres um cruzamento de
é a forma pela qual redefine o conceito de violências” (Gago, 2018, p. 28). Para ela,
trabalho para incluir outras atividades não a greve simbolizou o momento em que
remuneradas, como o trabalho social para se politizou a violência contra as mulheres
reproduzir a vida, assim como seu poten- e serviu de ferramenta que posicionou as
cial para “superar a oposição obstinada e mulheres como sujeito político (Gago, 2018,
divisória entre a ‘política identitária’ e a p. 30). Consideramos que parte dos sucessos
‘política de classe’” (NMF, 2018, p. 126). das epistemologias feministas foi questionar
Um olhar a partir do sul global, como o explicações de origens monocausais porque
da ativista argentina Verónica Gago, inter- contradizem a complexidade das opressões.
preta o caminho em direção ao movimento Nesses debates, insiste-se em que a espe-
solidário 8M a partir de outras coorde- cificidade da violência de gênero não pode
nadas, que contrastam com as visões que ser compreendida sem se levar em conta
o Manifesto dá sobre esses movimentos, dimensões que ultrapassam o surgimento
assim como sobre as metas em suas estra- do capitalismo e que se potencializam jus-
tégias de luta. Gago mostra como o movi- tamente por se ancorarem em estruturas de
mento grevista começa a ser gestado nas legitimação coloniais ancestrais, que fazem
maquiladoras 4 situadas na fronteira entre parte de uma trama de uso e abuso de poder
os Estados Unidos e o México, onde iden- patriarcal, classista e racista, sem privile-
tifica os feminicídios, seguindo as análi- giar nenhuma dessas dimensões sobre as
outras. Enquanto no Manifesto a violência
de gênero prioriza, por razões populistas,
4 São empresas que realizam a manufatura parcial, o capitalismo atual – “longe de ser algo
encaixe ou empacotamento de um bem sem que acidental, fundamenta-se na estrutura ins-
sejam as fabricantes originais. Ou seja, são fábricas
destinadas à transformação, elaboração ou reparo titucional básica da sociedade capitalista”
de mercadorias de procedência estrangeira cujo
(M99%, 2019, pos. 301) –, pode-se concluir
destino principal é a exportação para os Estados
Unidos (N. da T.). que “fundamentar” a violência de gênero

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só no capitalismo implica um claro retro- “Em torno desta divisão estão todas as
cesso. Em torno disso, é muito estranho que, formas de interpretação hierárquica como,
quando se menciona a violência de gênero por exemplo, aquela que diz que as lutas
nas maquiladoras, sejam reportados os abu- gerais são mais importantes e que devem
sos sexuais, verbais e violações (M99%, 2019, vir primeiro. Ou também que, quando as
pos. 429), mas as autoras não mencionem mulheres se concentram nas chamadas lutas
os milhares de feminicídios como casos de específicas, dividem a luta geral e tiram
violência letal associados não só à violên- sua força” (Marcha, 2009, p. 14).
cia laboral como a organizações criminosas
em conluio com o Estado mexicano. Ambas Em contraste com essas posições da
são estruturas patriarcais não reduzíveis ao MMM, as genealogias construídas no Mani-
capitalismo, contra as quais os movimentos festo colocam o protesto contra a violência
de vítimas e os movimentos feministas diri- de gênero, a misoginia e os regimes religio-
gem seu protesto. sos reacionários, as mobilizações em defesa
Outro momento de amnésia histórica da diversidade sexual, afetada também pela
que está presente no Manifesto é que den- violência letal, contra as políticas contra o
tro de sua metanarrativa não aparece uma aborto, contra os feminicídios e o sexismo
grande parte das mobilizações feministas e cotidiano e sob o manto do protesto anti-
de mulheres do sul global, por exemplo, a capitalista. Ainda que abram a estrutura a
Marcha Mundial das Mulheres (MMM) que, todos os movimentos pensáveis como radi-
desde 2000, já havia articulado demandas cais, estes são colocados como subalternos
semelhantes às quais este Manifesto retoma, à luta anticapitalista.
a saber, “tornar visível a articulação entre o
capitalismo e o patriarcado – ou entre a luta DUAS METÁFORAS E
contra a pobreza e suas causas e a violência
UM PROJETO POLÍTICO
para com as mulheres” (Marcha, 2009, p. 9).
A MMM vincula movimentos de mulheres
e feministas com os movimentos sociais do Junto à figura do antagonismo do femi-
Fórum Social Mundial e teve uma grande nismo para os 99% contra o feminismo
ressonância não só no Brasil e outros países do 1%, as autoras do Manifesto propõem
da América Latina como também na África, como objetivo construir um novo bloco
Ásia e Oceania. Ao contrário do que faz hegemônico através de uma aliança de gru-
o Manifesto, que subsume as lutas especí- pos que inclua não só as feministas, como
ficas e locais sob o guarda-chuva da luta também “outros movimentos anticapitalis-
pelas greves anticapitalistas, os chamados da tas do mundo todo”, como “os movimentos
MMM se dirigem à construção de alianças ecológicos, antirracistas, anti-imperialistas,
inclusivas e denunciam as mobilizações que LGBTQ+ e os sindicatos [...]” (NMF, 2018,
reproduzem hierarquias que “separam as lutas p. 145), assim como a parte da classe tra-
gerais das lutas específicas” (Marcha, 2009, balhadora que se encontra presa no bloco
p. 14). De forma muito clara, combatem as neoliberal, seja em sua vertente progressista
divisões hierárquicas: ou reacionária.

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Do lado do 1%, as autoras situam como mentos mas não alianças interclassistas
primeiro adversário o populismo reacio- entre mulheres? É preciso orquestrar uma
nário que agrupa uma parte da classe tra- interpretação polarizante que divida os
balhadora, assim como todos aqueles que feminismos e que se oponha à própria
defendem o militarismo e são “xenofóbicos mobilização internacional pela greve que
e etnonacionalistas” (NMF, 2018, p. 145). E afirma o caráter de inclusão da luta? No
como segundo adversário, o neoliberalismo chamado à greve das espanholas, publicado
progressista das elites do feminismo lean in, pela Comissão Feminista 8 de Março-Madri,
das “antirracistas e anti-homofóbicas merito- para a mobilização da greve de 2019, se
cráticas, as capitalistas verdes e partidárias contradiz essa visão populista excludente a
da ‘diversidade da empresa’ e uma fração partir de uma visão interseccional:
da classe trabalhadora que inclui a ‘massa
menos privilegiada de mulheres imigrantes “Sabemos que as possibilidades para parti-
e de cor’” (NMF, 2018, p. 145). cipar da greve são diferentes para cada uma
Nós nos damos conta de que o Manifesto de nós, pois estamos atravessadas por desi-
tem um problema de metáforas em colisão gualdades e precariedades que nos situam
que perseguem duas lógicas diferentes: por em lugares muito diversos [...]. Por isso a
um lado, a oposição antagônica entre dois greve feminista é uma proposta aberta na
feminismos em luta (99% versus 1%) e, por qual todas podemos encontrar uma forma
outro, a figura de um “guarda-chuva” anti- de participar” (Manifesto Madri, 2019).
capitalista que congrega este “novo femi-
nismo”, as populações precarizadas e todos Isso testemunha que a esmagadora soro-
os movimentos radicais de esquerda, sob a ridade praticada nas greves, diferentemente
condição de ser anticapitalistas. Mas essa dos anos 70, só foi possível a partir do ato
ideia deixa em aberto qual seria o papel do de reconhecer os abismos que às vezes nos
movimento feminista nesta nova constelação separam e que isso não impediu o “contá-
(M99%, 2019, pos. 217-8). Também deixa em gio” feminista.
aberto a maneira pela qual se vai interpelar O Manifesto tenta concentrar discursi-
aqueles grupos que, dentro desses movimen- vamente todo o capital simbólico que se
tos, não são anticapitalistas, ou aos que são produziu dentro dos movimentos contra o
antineoliberais, mas não anticapitalistas. Um neoliberalismo, mas o que é que se quer
exemplo seria o caso das feministas liberais, combater aqui, o que é que se entende por
que podem ser ecologistas, antirracistas, anti- capitalismo? Ao longo de todo o Manifesto,
-homofóbicas e anti-islamofóbicas, mas sob as autoras identificam o capitalismo como
a lógica do antagonismo populista ficam de a causa de todos os tipos de opressão, e é
fora porque são as adversárias. Nesse sen- por isso que retomam o debate feminista
tido, a lógica de amigx/inimigx contradiz sobre a reprodução e declaram-se a favor
a lógica das alianças, sobre a qual se quer do desenvolvimento de uma nova forma de
fundar esse projeto. organização social que consiga superar a
Cabe se perguntar aqui: por que só é relação entre “produção e reprodução, seu
possível pensar as alianças entre os movi- entrelaçamento entre ‘fazer benefícios’ e

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‘fazer pessoas’, e a subordinação do segundo cia possível (dentro e fora das instituições)
ao primeiro” (M99, 2019, pos. 958). sem perder as fontes de trabalho, cuidando
No centro desse projeto se encontra a para não ir para a prisão, ou ser expulsas
reflexão em torno da importância do tra- do país, ou assassinadas, mas, sim, assumir
balho reprodutivo para a sociedade, para, a uma proposta anticapitalista radical na prá-
partir dali, propor uma alternativa. E não há tica. Mas só uma parte das feministas se
dúvida de que esse debate teria a força de move em espaços protegidos por Estados de
ser um ponto de luta interclassista se con- direito liberais, enquanto a grande maioria
seguisse se politizar a partir das esquerdas se move em espaços estatais vulneráveis,
transnacionais, como propuseram a partir ditatoriais, fundamentalistas ou de aberta
dos anos 1970 Silvia Federici, María Mies, fascistização, o que não impede que, sob
Vandana Shiva e Frigga Haug, entre outras. essas condições, desenvolvam formas de
No entanto, as autoras do Manifesto não resistência pagando um preço muito alto.
conseguem concretizar nenhuma alternativa, Buscando visões sobre as formas de
motivo pelo qual fica em aberto se a par- dissidência, vimos que o Manifesto faz
tir dali se poderá realmente propor uma um fervoroso chamado anticapitalista que,
reorganização social verdadeiramente anti- por fim, imiscui como slogan identitário,
capitalista da reprodução. E, nesse sentido, mas a partir de um espaço protegido, sem
é estranho que as visões que derivam do concretizar nada, além de convocar todos
Manifesto ainda se movam no âmbito de os movimentos que já protestam para se
uma economia capitalista: trata-se de colo- somar a ele. Sobre o caminho a seguir,
car em primeiro plano a reprodução social nos surgem muitas perguntas: e para onde
da vida para que todas as pessoas possam nos dirigimos? Vamos investir toda nossa
combinar “as atividades sócio-reprodutivas energia em atacar os feminismos empresa-
com um trabalho seguro, bem remunerado riais à Sandberg e em impedir candidaturas
e livre de assédios” (M99, 2019, pos. 935). como a de Hilary Clinton? Ou iremos às
A proposta da reorganização social não raízes do capitalismo financeirizado e o
implica a destruição da forma de produção combateremos como propôs o movimento
econômica capitalista, mas somente se refere Occupy? O que significa combater 1% das
à superação de suas contradições ecológi- mulheres nos altos escalões? Todas elas são
cas, políticas e sociorreprodutivas (M99, defensoras do capitalismo depredador? E
2019, pos. 767). o que fazer com Angela Merkel, a quem
Refletindo sobre as condições materiais devemos tanto as políticas de austeridade
e políticas para a dissidência, fazemos a contra a Grécia quanto a abertura tempo-
pergunta: o que significa estabelecer uma rária de fronteiras para refugiados? E para
frente de luta contra o capitalismo? Frente a além do tema de classe, não poderíamos
ela, constatamos a urgência e a dificuldade, nos solidarizar com as mulheres dos altos
já que resulta difícil pensar uma esfera da escalões quando são vítimas de sexismo
vida que não esteja impregnada por suas e violências sexualizadas? E ao mesmo
marcas. No norte global, as mulheres podem tempo combater seus programas quando for
chegar a praticar um máximo de dissidên- necessário? Onde ficam as classes médias

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que foram alvo da “virada para a direita”? o feminismo e, mais ainda, “gênero”, são
Elas têm lugar nesse esquema antagônico considerados importações e infiltrações de
ou só na medida em que estejam precari- universidades de elite que falam inglês ou
zadas? Também elas fazem parte dos 99%? francês, além de um atentado aos prote-
Diante das violentas campanhas antigênero, cionismos patriarcais, “más intenções que
precisamos demonizar feministas liberais transtornam as mulheres submissas”. Mas o
quando também estão lutando em empre- mais importante é que para o senso comum
sas, sindicatos, instituições, universidades, esses significados (elites/povo, ricos/pobres,
etc. pelos direitos dos 99% ou impedindo privilegiadxs/não privilegiadxs, perdedores/
neoliberalizações ainda mais profundas? ganhadores) não têm um referente fixo, e
sim adquirem significados flexíveis de
POLARIZAÇÕES POPULISTAS acordo com os contextos. Essas qualida-
des discursivas são exploradas por todos os
E HIERARQUIAS EPISTÊMICAS
populismos. De tal maneira, que a percepção
do que significa “privilégio” ou “feminismo”
Um dos perigos que vemos na lógica não se define de acordo com o anticapita-
antagônica do Manifesto consiste em que ele lismo. Qualquer um pode ser privilegiadx
transporta um subtexto que possibilita que frente a outrx, dependendo do caso. Nos
uma pluralidade de feminismos situados em sindicatos de empregadas domésticas, por
espaços liberais seja estigmatizável como exemplo, mulheres que não podem se sin-
grupos que mantêm seus privilégios e não os dicalizar consideram como “elite”, “privi-
arriscam pela “causa”. Ao estabelecer uma legiadas” ou “carreiristas” as que são sin-
equivalência entre o feminismo gerencial dicalizadas.
neoliberal e os feminismos liberais, invisi- Um bom exemplo de que a lingua-
biliza-se o fato de que estes são de bases gem desse Manifesto dá margem para
muito mais antigas que o neoliberalismo e estigmatizar não só o feminismo liberal, mas
mais amplas por seus compromissos políti- o feminismo em sua totalidade é mostrado
cos; justo em momentos em que a direita e por um pequeno resumo que se encontra
a extrema direita transformaram qualquer depois do Epílogo (versão em espanhol)
sujeito que se considere feminista ou que e que é retomado pela plataforma Ama-
se vincule com políticas de gênero em uma zon para promover sua venda. Quando
“elite indesejável”, em objeto de ataque, de nós o lemos pela primeira vez, pensamos
ameaça moral e de criminalização. que a Amazon teria feito uma interpreta-
Esse subtexto do Manifesto pode poten- ção mal-intencionada. Nele se afirma sem
cializar os estereótipos, preconceitos e nenhuma especificação que “o feminismo
amnésias históricas sobre os feminismos atual”, diante das crises social, econômica
em um amplo espectro, que vai desde consi- e ecológica, “difunde uma versão elitista
derar as feministas “mulheres privilegiadas” e corporativa para projetar uma aparência
(M99%, 2019, pos. 185), “mulheres que só emancipadora sobre um programa oligár-
querem poder”, até de serem “impiedosas quico e depredador: um feminismo apto ape-
carreiristas”. No caso latino-americano, nas para a poderosa minoria bem de vida”

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(M99%, 2019, pos. 1.015). Nessa descrição, política. Sua capacidade de convocação é
o feminismo “atual” condensa a negativi- cada vez maior, mas não chega ao espaço
dade depredadora neoliberal e se imiscui internacional com a força que deveria e não
como um singular devorador majestático, receberam o reconhecimento, a justiça e
uma manobra que, graças à astúcia da his- representação necessários. Esses movimentos
tória, converge com os ataques da direita produziram saberes e práticas anticapita-
e extrema direita “antigenerista”. listas muito valiosos e, nem sempre, mas
Por outro lado, é preciso levar em conta muitos deles estão em diálogo com os femi-
que há debates crescentes, dentro dos femi- nismos ativistas acadêmicos. Na medida em
nismos do sul, que estão aumentando na que o Manifesto é escrito como uma visão
medida em que a memória histórica colonial de futuro, é altamente problemático o status
e da opressão motiva as lutas por reco- outorgado aos movimentos do sul, já que
nhecimento cultural e pelos direitos de na “narrativa mestra” são colocados como
coletivos que anteriormente não estavam exemplo empírico do capitalismo devasta-
presentes nos feminismos urbanos, como dor e onde seriam aprendizes subalternos
grupos com agência própria e como produ- desse novo feminismo, negando seu papel
tores de conhecimento a partir de territó- de sujeito epistêmico e pioneiro na cria-
rios em luta. Isso leva a uma disputa, que ção de saberes sobre as crises neoliberais
está apenas começando, sobre os direitos a partir das lutas locais: respeito ao capital
de falar, liderar, de não ser representadas, financeirizado, ao extrativismo, aos endi-
de escolher as formas de organização e de vidamentos massivos e ao combate contra
protesto, de ter presença e direitos próprios. a violência de gênero. Nesse sentido, um
Mas como essa luta poderia funcionar sem dos problemas mais graves do Manifesto é
a reclamação pelos privilégios e as pro- que suas autoras, a partir de uma posição
fundas desigualdades ancestrais das quais populista, selecionam as bases que elas con-
milhões de mulheres privilegiadas tiveram sideram ideais do movimento e assumem
vantagem? Todos estes são temas de uma que podem representar o subalterno quando
agenda feminista atual, que não podem ser falam de incorporar ao bloco hegemônico
elaborados em esquemas de polarização por- os grupos de precarizados ou despossuí-
que, como diz Rita Segato, não basta que o dos, ignorando a crítica dos feminismos
feminismo seja anticapitalista, ele tem que pós-coloniais.
ser antipatriarcal, antirracista e anticolonial Ainda que nas tradições dos feminis-
sem reduzir uns a outro (ver Segato, 2019). mos anticapitalistas, socialistas, marxis-
Sem contar outras fases dos feminismos tas, mas também das sociais-democracias
na América Latina, há mais de 20 anos liberais, tenha-se promovido uma consci-
que se congregaram coletivos que mantêm ência reflexiva sobre os privilégios, ques-
um feminismo anticapitalista, antipatriarcal, tionando as hierarquias e as meritocracias
antirracista e anticolonial e que sustentam em perspectiva de sua abolição, não foi
essas lutas compartilhadas incluindo resis- suficiente, ainda há muito por aprender.
tência, desobediência e insubordinação, fre- Em todas essas zonas em construção, são
quentemente em condições de alta repressão necessários espaços para o diálogo e para

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o silêncio, para podermos nos escutar e rechacemos esse corselete populista sob a
defender o direito à diferença (sobretudo as lógica do amigx/inimigx e recuperemos a
diferenças coloniais, territoriais, geracionais) perspectiva que as marchas articulam na
sem nos homogeneizarmos como agentes, Argentina, no Brasil e na Espanha – só
mas reconhecendo as lutas que teriam que para citar algumas –, onde se interpela e
ocorrer juntas, a partir de nossa perspec- se inclui TODAS sem ignorar as diferen-
tiva: as anticapitalistas, as antipatriarcais ças e politizando-as em esquemas mais
e também aquelas contra a dominação (no produtivos do que os populistas.
interior dos coletivos, no nosso caso, dos Repensando as condições estruturais da
próprios feminismos e das esquerdas), as reprodução capitalista, consideramos, por
três são igualmente relevantes. Apesar da fim, prioritário orientar nossa luta contra as
imensa conectividade digital, os processos redes obscurantistas do capital multinacional
de criação de pontes duradouras e de ver- e suas organizações religiosas, culturais e
dadeiras aprendizagens feministas coletivas políticas que espalham sua força econômica
em nível transnacional mal começaram. para coordenar a investida “antigênero”, ao
Neste período de agudização da crise fazê-la brotar entre os mais diversos ato-
neoliberal, estamos sendo organizados em res e coletivos com frequência “sem nome”
blocos antagônicos que não são aqueles (Datta, 2018). Essa campanha que orquestra
com os quais Antonio Gramsci sonhava uma guerra cultural genuinamente globa-
como condição da revolução cultural comu- lizada não pôde ser identificada como tal,
nista, que acabariam por romper com o mas foi, desgraçadamente, lida como emer-
individualismo radical capitalista. As gente de contextos e conjunturas nacionais
atuais polarizações são o fundamento de notoriamente diversos. Os métodos de ação
uma guerra civil molecular, de balcani- altamente diversificados desses grupos se
zações das diferenças culturais, políticas orientam para promover utopias da extrema
e sociais, parte essencial dos projetos de direita e do neofascismo, aprofundando anti-
contrainsurgência da direita e da extrema gas brechas sociais e ganhando o coração
direita. Nesse sentido, o chamado a um e os afetos de maiorias, contando com um
feminismo dos 99% é relevante, desde que apoio feminino interclassista considerável.

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