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Traduç
Arte sobre imagem de Jazzia/123RF
resumo abstract
sas perguntas, faremos uma leitura crítica revista New Left Review (n. 114, 2018)2,
do Feminismo para os 99% - um mani- o Manifesto foi publicado em 13 idiomas.
festo, publicado por Cinzia Arruzza, Tithi
Bhattacharya e Nancy Fraser (2019), no CARACTERÍSTICAS DO MANIFESTO
qual promovem a formação de um “novo
feminismo” que possa enfrentar as crises
O Feminismo para os 99% se distingue
políticas e o vazio que se abre no momento
de outros manifestos difundidos no âmbito
em que o neoliberalismo, justamente por
dessas marchas e greves, que são publicados
suas próprias e múltiplas crises, estaria
sem autoria ou com autorias coletivas. O
perdendo sua hegemonia.
primeiro ultrapassa os limites ao ser um
O impulso para a elaboração desse
texto que convoca, já que apresenta a lei-
Manifesto surgiu no contexto das mobi-
tura das autoras sobre a atual conjuntura e
lizações para a Marcha Mundial, nos Esta-
uma visão em torno das múltiplas crises e
dos Unidos, através do chamado feito por
sua agudização. Diferentemente dos textos
um grupo de acadêmicas, em fevereiro de
que convocaram as marchas feministas na
2017, para convidar a participar da greve
Polônia, Espanha, Itália, Turquia, México,
internacional de mulheres, utilizando o
Argentina, Brasil, etc., que reúnem diagnós-
lema “um feminismo para os 99%”1. Um
ticos, análises e curtas petições, o Mani-
segundo chamado foi publicado também no
festo de Fraser, Arruzza e Bhattacharya,
The Guardian, em 2018. Ambos estavam
escrito em relação à marcha nos Estados
dirigidos às mulheres dos Estados Unidos
Unidos e agora convertido em livro, aspira
e convidavam não só para a luta contra a
a ser uma referência teórica e prática sobre
política de Trump como também para com-
o conjunto desses movimentos oferecendo
bater o capitalismo neoliberal, por deterio-
uma “narrativa mestra” que assume uma
rar o nível de vida da maioria das pessoas
liderança sobre o rumo não só dos protestos
nos últimos 30 anos. Em sua tentativa de
feministas em tempos de “desorientação”,
impulsionar a internacionalização do pro-
como também aspira a ser a vanguarda de
testo feminista, as autoras do Manifesto
um movimento que pudesse ser uma “fonte
desenvolveram a ideia do Feminismo dos
de esperança para a humanidade inteira”
99%, retomando o slogan do movimento
(M99%, 2019, pos. 221). Diante das dificul-
Occupy, para construir uma aliança entre
dades de criar espaços e discursos entre os
os diversos feminismos das greves de 8
feminismos regionais em vista de articular
de março e das marchas contra Trump,
uma frente global, transnacional, que seja
nos Estados Unidos. Em 2019, depois de
capaz de tornar visível um feminismo ao
ter sido publicado como um resumo na
aborto. Dali, sustenta o Manifesto, passou ses de Rita Segato (2013), como crimes
para a Argentina, onde o movimento Nem políticos (Gago, 2018, p. 27). O caráter
Uma a Menos organizou uma greve nacio- transnacional do feminicídio consiste em
nal para protestar pelo assassinato de Lucía que este “produz uma forma de ressonância
Pérez, para continuar se expandindo pelo e implicação na composição de um corpo
mundo até chegar a se institucionalizar na comum: uma política que faz do corpo de
greve de 8 de março de 2017, articulando uma o corpo de todas” (Gago, 2018, p. 27)
diferentes demandas no Dia Internacional da e com isso visibiliza como esses corpos
Mulher, que, segundo as autoras do Mani- são territórios de novas conquistas colo-
festo, conseguiram recuperar suas raízes niais. Com base nisso, as argentinas do
históricas dentro dos feminismos socialistas Nem Uma a Menos transformaram essa
e de trabalhadorxs, ao mesmo tempo que experiência em “um contrapoder frente à
começaram a unificar “mulheres separa- ofensiva feminicida que não é nada mais
das” (NMF, 2018, p. 126). O que caracte- do que o modo como hoje se aninha no
riza esta mobilização, segundo as autoras, corpo das mulheres um cruzamento de
é a forma pela qual redefine o conceito de violências” (Gago, 2018, p. 28). Para ela,
trabalho para incluir outras atividades não a greve simbolizou o momento em que
remuneradas, como o trabalho social para se politizou a violência contra as mulheres
reproduzir a vida, assim como seu poten- e serviu de ferramenta que posicionou as
cial para “superar a oposição obstinada e mulheres como sujeito político (Gago, 2018,
divisória entre a ‘política identitária’ e a p. 30). Consideramos que parte dos sucessos
‘política de classe’” (NMF, 2018, p. 126). das epistemologias feministas foi questionar
Um olhar a partir do sul global, como o explicações de origens monocausais porque
da ativista argentina Verónica Gago, inter- contradizem a complexidade das opressões.
preta o caminho em direção ao movimento Nesses debates, insiste-se em que a espe-
solidário 8M a partir de outras coorde- cificidade da violência de gênero não pode
nadas, que contrastam com as visões que ser compreendida sem se levar em conta
o Manifesto dá sobre esses movimentos, dimensões que ultrapassam o surgimento
assim como sobre as metas em suas estra- do capitalismo e que se potencializam jus-
tégias de luta. Gago mostra como o movi- tamente por se ancorarem em estruturas de
mento grevista começa a ser gestado nas legitimação coloniais ancestrais, que fazem
maquiladoras 4 situadas na fronteira entre parte de uma trama de uso e abuso de poder
os Estados Unidos e o México, onde iden- patriarcal, classista e racista, sem privile-
tifica os feminicídios, seguindo as análi- giar nenhuma dessas dimensões sobre as
outras. Enquanto no Manifesto a violência
de gênero prioriza, por razões populistas,
4 São empresas que realizam a manufatura parcial, o capitalismo atual – “longe de ser algo
encaixe ou empacotamento de um bem sem que acidental, fundamenta-se na estrutura ins-
sejam as fabricantes originais. Ou seja, são fábricas
destinadas à transformação, elaboração ou reparo titucional básica da sociedade capitalista”
de mercadorias de procedência estrangeira cujo
(M99%, 2019, pos. 301) –, pode-se concluir
destino principal é a exportação para os Estados
Unidos (N. da T.). que “fundamentar” a violência de gênero
Do lado do 1%, as autoras situam como mentos mas não alianças interclassistas
primeiro adversário o populismo reacio- entre mulheres? É preciso orquestrar uma
nário que agrupa uma parte da classe tra- interpretação polarizante que divida os
balhadora, assim como todos aqueles que feminismos e que se oponha à própria
defendem o militarismo e são “xenofóbicos mobilização internacional pela greve que
e etnonacionalistas” (NMF, 2018, p. 145). E afirma o caráter de inclusão da luta? No
como segundo adversário, o neoliberalismo chamado à greve das espanholas, publicado
progressista das elites do feminismo lean in, pela Comissão Feminista 8 de Março-Madri,
das “antirracistas e anti-homofóbicas merito- para a mobilização da greve de 2019, se
cráticas, as capitalistas verdes e partidárias contradiz essa visão populista excludente a
da ‘diversidade da empresa’ e uma fração partir de uma visão interseccional:
da classe trabalhadora que inclui a ‘massa
menos privilegiada de mulheres imigrantes “Sabemos que as possibilidades para parti-
e de cor’” (NMF, 2018, p. 145). cipar da greve são diferentes para cada uma
Nós nos damos conta de que o Manifesto de nós, pois estamos atravessadas por desi-
tem um problema de metáforas em colisão gualdades e precariedades que nos situam
que perseguem duas lógicas diferentes: por em lugares muito diversos [...]. Por isso a
um lado, a oposição antagônica entre dois greve feminista é uma proposta aberta na
feminismos em luta (99% versus 1%) e, por qual todas podemos encontrar uma forma
outro, a figura de um “guarda-chuva” anti- de participar” (Manifesto Madri, 2019).
capitalista que congrega este “novo femi-
nismo”, as populações precarizadas e todos Isso testemunha que a esmagadora soro-
os movimentos radicais de esquerda, sob a ridade praticada nas greves, diferentemente
condição de ser anticapitalistas. Mas essa dos anos 70, só foi possível a partir do ato
ideia deixa em aberto qual seria o papel do de reconhecer os abismos que às vezes nos
movimento feminista nesta nova constelação separam e que isso não impediu o “contá-
(M99%, 2019, pos. 217-8). Também deixa em gio” feminista.
aberto a maneira pela qual se vai interpelar O Manifesto tenta concentrar discursi-
aqueles grupos que, dentro desses movimen- vamente todo o capital simbólico que se
tos, não são anticapitalistas, ou aos que são produziu dentro dos movimentos contra o
antineoliberais, mas não anticapitalistas. Um neoliberalismo, mas o que é que se quer
exemplo seria o caso das feministas liberais, combater aqui, o que é que se entende por
que podem ser ecologistas, antirracistas, anti- capitalismo? Ao longo de todo o Manifesto,
-homofóbicas e anti-islamofóbicas, mas sob as autoras identificam o capitalismo como
a lógica do antagonismo populista ficam de a causa de todos os tipos de opressão, e é
fora porque são as adversárias. Nesse sen- por isso que retomam o debate feminista
tido, a lógica de amigx/inimigx contradiz sobre a reprodução e declaram-se a favor
a lógica das alianças, sobre a qual se quer do desenvolvimento de uma nova forma de
fundar esse projeto. organização social que consiga superar a
Cabe se perguntar aqui: por que só é relação entre “produção e reprodução, seu
possível pensar as alianças entre os movi- entrelaçamento entre ‘fazer benefícios’ e
que foram alvo da “virada para a direita”? o feminismo e, mais ainda, “gênero”, são
Elas têm lugar nesse esquema antagônico considerados importações e infiltrações de
ou só na medida em que estejam precari- universidades de elite que falam inglês ou
zadas? Também elas fazem parte dos 99%? francês, além de um atentado aos prote-
Diante das violentas campanhas antigênero, cionismos patriarcais, “más intenções que
precisamos demonizar feministas liberais transtornam as mulheres submissas”. Mas o
quando também estão lutando em empre- mais importante é que para o senso comum
sas, sindicatos, instituições, universidades, esses significados (elites/povo, ricos/pobres,
etc. pelos direitos dos 99% ou impedindo privilegiadxs/não privilegiadxs, perdedores/
neoliberalizações ainda mais profundas? ganhadores) não têm um referente fixo, e
sim adquirem significados flexíveis de
POLARIZAÇÕES POPULISTAS acordo com os contextos. Essas qualida-
des discursivas são exploradas por todos os
E HIERARQUIAS EPISTÊMICAS
populismos. De tal maneira, que a percepção
do que significa “privilégio” ou “feminismo”
Um dos perigos que vemos na lógica não se define de acordo com o anticapita-
antagônica do Manifesto consiste em que ele lismo. Qualquer um pode ser privilegiadx
transporta um subtexto que possibilita que frente a outrx, dependendo do caso. Nos
uma pluralidade de feminismos situados em sindicatos de empregadas domésticas, por
espaços liberais seja estigmatizável como exemplo, mulheres que não podem se sin-
grupos que mantêm seus privilégios e não os dicalizar consideram como “elite”, “privi-
arriscam pela “causa”. Ao estabelecer uma legiadas” ou “carreiristas” as que são sin-
equivalência entre o feminismo gerencial dicalizadas.
neoliberal e os feminismos liberais, invisi- Um bom exemplo de que a lingua-
biliza-se o fato de que estes são de bases gem desse Manifesto dá margem para
muito mais antigas que o neoliberalismo e estigmatizar não só o feminismo liberal, mas
mais amplas por seus compromissos políti- o feminismo em sua totalidade é mostrado
cos; justo em momentos em que a direita e por um pequeno resumo que se encontra
a extrema direita transformaram qualquer depois do Epílogo (versão em espanhol)
sujeito que se considere feminista ou que e que é retomado pela plataforma Ama-
se vincule com políticas de gênero em uma zon para promover sua venda. Quando
“elite indesejável”, em objeto de ataque, de nós o lemos pela primeira vez, pensamos
ameaça moral e de criminalização. que a Amazon teria feito uma interpreta-
Esse subtexto do Manifesto pode poten- ção mal-intencionada. Nele se afirma sem
cializar os estereótipos, preconceitos e nenhuma especificação que “o feminismo
amnésias históricas sobre os feminismos atual”, diante das crises social, econômica
em um amplo espectro, que vai desde consi- e ecológica, “difunde uma versão elitista
derar as feministas “mulheres privilegiadas” e corporativa para projetar uma aparência
(M99%, 2019, pos. 185), “mulheres que só emancipadora sobre um programa oligár-
querem poder”, até de serem “impiedosas quico e depredador: um feminismo apto ape-
carreiristas”. No caso latino-americano, nas para a poderosa minoria bem de vida”
o silêncio, para podermos nos escutar e rechacemos esse corselete populista sob a
defender o direito à diferença (sobretudo as lógica do amigx/inimigx e recuperemos a
diferenças coloniais, territoriais, geracionais) perspectiva que as marchas articulam na
sem nos homogeneizarmos como agentes, Argentina, no Brasil e na Espanha – só
mas reconhecendo as lutas que teriam que para citar algumas –, onde se interpela e
ocorrer juntas, a partir de nossa perspec- se inclui TODAS sem ignorar as diferen-
tiva: as anticapitalistas, as antipatriarcais ças e politizando-as em esquemas mais
e também aquelas contra a dominação (no produtivos do que os populistas.
interior dos coletivos, no nosso caso, dos Repensando as condições estruturais da
próprios feminismos e das esquerdas), as reprodução capitalista, consideramos, por
três são igualmente relevantes. Apesar da fim, prioritário orientar nossa luta contra as
imensa conectividade digital, os processos redes obscurantistas do capital multinacional
de criação de pontes duradouras e de ver- e suas organizações religiosas, culturais e
dadeiras aprendizagens feministas coletivas políticas que espalham sua força econômica
em nível transnacional mal começaram. para coordenar a investida “antigênero”, ao
Neste período de agudização da crise fazê-la brotar entre os mais diversos ato-
neoliberal, estamos sendo organizados em res e coletivos com frequência “sem nome”
blocos antagônicos que não são aqueles (Datta, 2018). Essa campanha que orquestra
com os quais Antonio Gramsci sonhava uma guerra cultural genuinamente globa-
como condição da revolução cultural comu- lizada não pôde ser identificada como tal,
nista, que acabariam por romper com o mas foi, desgraçadamente, lida como emer-
individualismo radical capitalista. As gente de contextos e conjunturas nacionais
atuais polarizações são o fundamento de notoriamente diversos. Os métodos de ação
uma guerra civil molecular, de balcani- altamente diversificados desses grupos se
zações das diferenças culturais, políticas orientam para promover utopias da extrema
e sociais, parte essencial dos projetos de direita e do neofascismo, aprofundando anti-
contrainsurgência da direita e da extrema gas brechas sociais e ganhando o coração
direita. Nesse sentido, o chamado a um e os afetos de maiorias, contando com um
feminismo dos 99% é relevante, desde que apoio feminino interclassista considerável.
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