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Contos do Reino
 
 
 
 
 
 
 
 
 

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Jeremias 29:13 
Vocês Me encontrarão sempre que Me procurarem; mas para isso, 
precisam Me procurar de todo o coração. 
 
Mateus 11:12  
Desde os dias de João Batista até agora, o Reino dos céus é tomado à 
força, e os que usam de força se apoderam dele. 
 
 
Efésios 2:1-5 
Vocês estavam mortos em suas transgressões e pecados, nos quais 
costumavam viver, quando seguiam a presente ordem deste mundo e o 
príncipe do poder do ar, o espírito que agora está atuando nos que 
vivem na desobediência. Outrora todos nós também vivíamos entre 
eles, satisfazendo as vontades da nossa carne, seguindo os seus desejos 
e pensamentos. Como os outros, éramos por natureza merecedores da 
ira. Todavia, Deus, sendo rico em misericórdia, pelo grande amor com 
que nos amou, deu-nos vida juntamente com Cristo, quando ainda 
estávamos mortos em transgressões — pela graça vocês são salvos.  
 
 
 
 
 
 

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Era uma vez, não muito tempo atrás e não muito distante, um menino, 
não mais uma criança, mas ainda não um homem, que morava na Cidade 
Encantada. 
O  menino,  Cicatriz,  e  o  seu  irmão  menor,  Pequena  Criança,  não 
eram  como  as  outras  crianças  da  cidade.  Ontem,  a  mãe  deles  morreu  e 
imediatamente  eles  foram  levados  em  custódia  pelos  homens  do 
Encantador.  O  boato  era  que  o  Encantador  ficava  com  os  órfãos  para 
poder  alimentar  os  grandes  fogos  que  queimavam  nas  profundezas  de 
Dagoda, o templo onde o Encantador morava e reinava. 
Um  Queimador,  policial  secreto  que  cumpre  as  ordens  do 
Encantador,  trouxe  os  meninos  para a Praça das Cinzas. Lá iriam assistir 
a  cerimônia  do  funeral  de  sua  mãe:  o  corpo  dela  descansava  sobre  um 
ataúde muito enfeitado, no meio da praça. 
Pensando  na  mãe,  o  menino  maior  queria  chorar.  Ela  tinha  sido 
tão linda, tão linda quanto a filha de um rei. 
“Existe  um  Rei”,  sua  mãe  sempre  insistia  com  eles.  “Um  Rei 
Verdadeiro”.  Ela  acreditava  nas  histórias  antigas,  mesmo  que  por  todo 
canto da Cidade Encantada houvesse placas afixadas que declaravam: 
"NÃO EXISTE TAL COISA COMO UM REI; 
MORTE PARA AQUELES QUE FAZEM DE CONTA". 
Mas  a  sua  mãe  ficou  doente,  assim  como  tantos  outros,  por  causa 
do  ar  podre  da  cidade encantada. Nos últimos dias antes de morrer, nos 
momentos  em  que  ela  ficava  livre  da  febre,  e  então  consciente,  ela 
contava para Cicatriz as antigas histórias da sua infância. 
“Uma  vez  um  grande  Rei  dominava  nossa  cidade”,  ela  dizia. 
“Todas  as  pessoas  o  achavam  lindo  e  o  serviam  alegremente.  Mas  o 
Encantador  veio  e  enganou  o  povo  e  colocou  uma  maldição  na  cidade. 
O  Rei  foi  exilado.  Aqueles  que  o  procuram  precisam  buscá-lo  no  lugar 
onde as árvores crescem ...” 
Um-pa-pa...Um-pa-pa...Um-pa-pa-dim...os  tambores  da  morte 
interromperam  as  memórias  do  menino.  Agora  ele  ouvia  as  sinetas 
cerimoniais  que  estavam costuradas na barra dos mantos dos Sacerdotes 
do  Fogo.  Ele  ouvia  o  canto  plangente.  Logo  depois,  um  aceno  com  a  mão 
e uma explosão. As chamas do funeral foram acesas. 
Ao  subir  as  espadas  tortuosas  de  fogo  ao  céu,  uma  longa  fila  de 
carros  brilhantes  veio  na  direção  da  praça.  Estacionaram  quietamente, 
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em  meio  a  sombras,  ao  lado  da  praça.  O  coração  do menino começou a 
bater mais forte. O Encantador veio para o funeral. 
Cicatriz  se  endureceu  ao  ver  o  homem  alto  pisar  no  campo  de 
cinzas.  Os  olhos  ficaram  grandes  ao ver o cabelo ruivo que se enrolava e 
refletia  a  luz  do  fogo.  A  maioria  o  considerava  elegante.  Mas  a  mãe  de 
Cicatriz  disse  que  o  olhar  de  seus  olhos  era  cruel.  O  menino  pegou  na 
mão de Pequena Criança e a segurou bem forte. 
O  Encantador  estava  usando  o  manto  de  fogo,  uma  obra  prima de 
cores:  tons  de  vermelho  e  amarelo  mesclados  com  laranja,  branco  e 
azul.  Queimadores,  cada  um  segurando  um  atiçador abrasador na mão, 
desceram  dos  outros  carros.  Logo  o  homem  alto  e  orgulhoso  estava 
cercado por estes guardas. 
O  Encantador  dominava  a  Cidade  Encantada  com  fogo.  Ele amava 
o  fogo  e  amava  o  poder  que  ele  trazia.  Ele  clamava  ao  fogo  e  o  usava 
para  impor  maldições.  Muito  tempo atrás ele decretou que a noite fosse 
dia e que o dia fosse noite, porque tinha inveja da luz do dia. 
Agora  as  pessoas  da  Cidade  Encantada  levantavam-se  das  suas 
camas  para  trabalhar,  brincar  e  comer,  na  luz  inferior,  a  da  lua. 
Dormiam  ao  amanhecer.  Mães,  ao  deitarem  suas  crianças diziam: “Bom 
dia, até à noite”. 
O  Encantador  virou-se  e  olhou  do  outro  lado  da  Praça  de  Cinzas, 
para  os  dois  meninos,  enquanto  os  tambores  ressoavam  com  seu  ritmo 
peculiar, dim...dim...dim. 
“São estes os órfãos?” disse ele ao apontar para os meninos. 
Um Queimador acenou com a cabeça. 
Com  passos  grandes  e  rápidos  o  homem  alto  atravessou  o  campo 
entre  eles.  Queimadores  marcharam  em  formação  logo atrás dele, cada 
um  abanando  seu  atiçador,  fumegante  de  poder  quente. Cicatriz cobriu 
um lado do seu rosto com a mão. 
O  Encantador  encarou  os  meninos.  Os  olhos  do  homem 
esticaram-se  e  depois  quase  se  fecharam.  De  repente,  o  Encantador 
pegou  a  mão  de  Cicatriz  e  a  arrancou  do  seu  rosto  e,  no  mesmo  gesto, 
levantou  o  queixo  do  menino.  “O  que  é  isso  no  seu  rosto?  Por  que  que 
não foi banido da cidade?” 
O  menino  se  esticou  todo.  Ele  queria  gritar  de  medo.  Queria  dar 
um  grande  chute e correr. O toque do homem era quente. Cicatriz fez de 
tudo  para  manter  a  sua  calma.  “Não...não é uma doença, senhor. E nem 
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nasci com esse defeito. Foi um... um... acidente na hora da marcação”. 
Era  verdade.  Tempo  atrás,  como  era  o  costume  quando  uma 
criança  completasse  cinco  anos,  Queimadores  pegavam  todas  as 
crianças  dessa  idade  e  marcavam  as  suas  mãos  com  um  atiçador 
ardente. 
“Você  está  marcado  com  a  assinatura  do  Encantador”,  o  homem 
gritou.  “Nunca  se  esqueça  de  que você pertence ao Guardião do Grande 
Queimador!” 
O  menino  tinha  gritado,  mordido  e  esperneado.  No  conflito,  um 
ferro  quente  caiu,  ou  por  acidente  ou  de  propósito,  na  face  do  garoto. 
Ele carregaria a cicatriz pelo resto da vida. 
Pessoas  sempre  olhavam  para  ele  e  suspiravam  fundo. Desviavam 
os  olhos. Crianças apontavam e gritavam: “Cicatriz! Ei, você aí, Cicatriz!” 
Logo ele aprendeu a cobrir a sua face com a mão. 
Agora  Cicatriz  se  lembrava  das  últimas  palavras  de  sua  mãe: 
“Pegue  Pequena  Criança  e  fuja...fuja  antes  do  dia  da  marcação,  antes 
que Pequena Criança faça 5 anos. Fuja antes que venha o Encantador”. 
Mas  agora  era  tarde  demais.  O  Encantador  prendia  o  queixo  do 
menino como um alicate. O homem se encurvou e o menino estremeceu 
com  as  ondas  de  calor.  “A  sua  mãe  tolamente  acreditava  em  reis”, 
sussurrou o Encantador. 
Como  ele  sabia  isso?  Cicatriz  pensou.  Ele  notou  que  os  atiçadores 
dos  Queimadores  soltaram  faíscas  ao  som  destas  palavras.  Os  lábios  do 
Encantador  deram  um  sorriso  bondoso,  mas  nos  seus  olhos  só  tinha 
maldade. “E o que é que seu filho, seu filho órfão, crê?” 
O  menino  arrancou  o  seu  queixo  das  garras  do  homem.  Ele  cobriu 
a  sua  face novamente. Seus olhos fixaram-se no chão. “Jamais vi um rei, 
senhor. Somente um encantador”. 
Os  olhos cruéis ficaram menores. “Ver é crer. Veja que você sempre 
entenda deste jeito, órfão. Sempre pense assim.” 
Com  isso,  o  Grande  Queimador  deu  meia  volta,  os  guardas 
marcharam  ao  seu  lado  e  os  tambores  marcaram  o  passo: 
dim...dim...dim... 
E  todos  foram  embora. Os pulmões de Cicatriz estavam gritando por 
falta  de  ar  fresco.  Seu  coração  compassava:  Fugir...Fugir...Fugir...  Ele 
preferia morrer do que ser um escravo do Encantador. 
Mas  era  tarde  demais  para  tais  pensamentos.  Cicatriz  sentia  uma 
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mão  pesada  no  seu  ombro.  A  ponta  de  um  atiçador  de  um  Queimador 
estava  espetada  no  seu  lado,  seus  olhos  ocos  e  escuros  apesar  da  luz 
dançante das chamas. “Venha”, disse ele. “Para a Guarda-Órfãos". 
Os  três  se  distanciavam  da  Praça  das  Cinzas  e  agora  desciam 
pequenas  ruas,  passando  por  prédios  estreitos.  Pequenas  luzes  da 
noite,  em  cima  de  postes,  iluminavam  o  caminho.  Faltava  muito  para 
surgir  o  dia.  Quando  chegaram  à  feira,  Cicatriz  pôde  ver  a  confusão  de 
barris  e  feirantes  e  ouvir  a  gritaria  e  as  discussões.  O  Queimador  tinha 
dado  alívio  tirando  a  garra  de  seus  ombros,  mas  não  importava:  seu 
ferro  duro  ainda  estava  espetado  no  seu lado e Cicatriz sabia que nunca 
poderia  correr  mais  rápido  do  que  seu  captor.  Pequena  Criança 
choramingou e Cicatriz pegou o menino nos braços. 
De  repente  a  energia  caiu.  “Acabou  a  força!  Acabou  a  força!”  as 
pessoas gritavam. 
Falta  de  energia  era  comum,  mas  para  acontecer  neste  exato 
momento  parecia  um  milagre.  A  Cidade  Encantada  precisava  de  força 
artificial,  produzida  pelo  homem,  para  viver  e  iluminar  a  noite.  Tudo 
dependia  da  energia  que  vinha  das  fornalhas  em  baixo  da  cidade,  que 
precisavam  ser  alimentadas.  Ônibus,  carros  e  prédios  eram  ligados  por 
cabos  subterrâneos.  Mas  o  suprimento  das  fornalhas  era  sempre 
insuficiente. A energia produzida pelo homem estava sempre falhando. 
Quando  a  força  faltava,  o  trânsito  parava.  Casas  e  comércios 
tornavam-se  escuros.  Os  relógios  corriam  fora  da  hora,  na  hora,  entre  a 
hora.  Nem  o  brincar  funcionava.  Às  vezes  a  força  acabava  bem  na  hora 
dos pênaltis, justo quando era mais necessária. 
Mas  Cicatriz  sabia  que  esta  era  a  sua  chance  para  escapar.  Ele  se 
arrancou  do  Queimador,  carregando  Pequena  Criança  seguramente  em 
seus braços. 
“Fugitivos! Fugitivos!” gritou o Queimador. 
Mas  ninguém  o  ouviu  no  meio  da  confusão.  Buzinas,  carroças, 
vendedores...  todos  ampliavam  o  barulho.  “Ei!  Pega  ladrão!”  “Tira  sua 
mão  das  minhas  coisas!”  gritavam  os  vendedores,  ao  perceberem  a 
vantagem  que  os  mendigos  estavam  tirando  da  situação  para 
conseguirem  algo  para  comer.  Todos  gritavam:  “LUZES!  LUZES!”  E,  no 
meio dessa confusão, Cicatriz conseguiu fazer a fuga. 
Ele  correu  com  seu  irmão  nos  braços,  correu  até  sentir  que  seu 
coração iria estourar. 
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Quando  a  força  voltou,  Cicatriz  parou  com  sua  corrida  frenética. 
Estava  perdido  e  sabia  que os Queimadores viriam procurando por eles. 
O Encantador não aceitaria ser roubado naquilo que era dele. 
Ainda  bem  que  a  manhã  estava  próxima.  Todos  obedeceriam  o 
mandato  DURMA  À  LUZ  DO  DIA,  com  exceção  dos  Queimadores  que 
continuariam  a  caçá-los,  mesmo  que  a  luz  do  sol  doesse em seus olhos. 
Se  ele  conseguisse  ficar  acordado  e  esconder-se  até  que  achasse  um 
escape...  Mas  qual  era  o  caminho  do  escape?  Será  que  poderia  existir 
um  Rei  como  sua  mãe  tinha  dito?  Seria possível achar o lugar onde esse 
rei morava? 
Cicatriz  jogou-se  num  buraco  debaixo  de  umas  escadas  de  uma 
casa  próxima,  para poder ter tempo para pensar. “Não é escuro no lugar 
onde  as  árvores  crescem”,  sua  mãe  tinha  falado.  Mas  na  cidade  não 
havia  árvores, porque todas tinham sido cortadas para queimar. Cicatriz 
sabia  que  árvores  cresciam  em  florestas.  Ele  ouviu  que  havia  uma 
floresta em algum lugar fora da cidade. Se ele soubesse o caminho... 
O  homem-relógio  passou,  gritando  as  horas.  Faltavam  duas  horas 
para  o  amanhecer.  De  repente  Cicatriz  ouviu  os  tambores.  Batiam  alto  e 
com  raiva.  M-pa-pa...M-pa-pa...M-pa-pa.  O  menino  sabia  que  estavam 
dando  sinal  por  causa  dele.  Não  havia  lugar  seguro agora; nenhum lugar 
para ele esconder. Toda sombra poderia ser um Queimador. 
O  menino  achou  um  pouco  de  dinheiro  no  seu  bolso  e  ele  já  tinha 
ouvido  que  motoristas  de  táxi  poderiam  levar  pessoas  para  onde 
precisavam  ir.  Mas  será  que  seria  seguro?  Certamente  eles  também 
reconheceriam  a  mensagem  dos  tambores.  Mas  Cicatriz  teria  que 
tentar,  era  sua  única  opção.  Pegou  a  mão  do  irmão,  cuidadosamente 
olhou para cima e para baixo e logo acenou para um táxi. 
“Poderia  nos  levar  para  o  fim da cidade onde existe uma floresta?” 
perguntou ao motorista quando ele parou na sarjeta. 
O  motorista  olhou  para  as  crianças  com  um  ar  de  astuto.  “Claro, 
claro”,  disse.  “Mas  ande  logo.  Está  quase  na  hora  de  dia.  Pague  agora  e 
só tem reembolso em caso de acabar a força”. 
Cicatriz  respirou  fundo  e  os  meninos  entraram.  O  motorista  deu 
início  no  seu  taxímetro  e  conectou  à  força.  Sua  pressa  pelas  ruas  não 
movimentadas  fez  os  pneus  cantarem.  Logo  eles  chegaram  num  vasto 
lixão na beira da cidade. Cicatriz nunca tinha vindo até ali. 
“Final  da  estrada”,  o  homem  disse  com  certa  urgência.  “Podem 
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descer”. 
Cicatriz hesitou. “Aqui fica perto de onde crescem as árvores?” 
O  motorista  virou  para  trás  e  abriu  a  porta  para  os  meninos.  “A 
linha  só  vai  até  aqui.  Aqui  é  o  lixão”.  E  com  isso  ele  deu  uma  piscada  e 
disse: “Se procurar bem, irá achar onde as árvores crescem”. 
Os  meninos  desceram  e,  quando  o  táxi  acelerou,  Cicatriz  pensou 
que ouviu o homem gritar: “Ao Rei!” 
“Ao  Rei!”  A  frase  deixou  a mente de Cicatriz perplexa. Mas ele estava 
com  pouco  tempo  para  avaliar  a  despedida estranha do motorista, pois o 
batido  familiar  dos  tambores—M-pa-pa...M-pa-pa—interrompeu  seus 
pensamentos  e  o  forçou  a  olhar  ao  seu  redor  para  tentar  achar  um 
esconderijo. Ou melhor ainda, o começo de uma floresta. 
Pequena  Criança  começou  a  tossir  e  reclamar.  “Shh!”  disse 
Cicatriz. 
Os  dois  meninos sentaram-se na estrada cinzenta. Uma linha cinza 
de  luz  rachou  o  céu  acima  do  mundo.  Pequena  Criança  caiu  no  sono, 
mas  Cicatriz  aguardava  a  chegada  da  manhã.  Escutava  os  tambores 
distantes. 
Alguma  coisa  está  errada  aqui!  Cicatriz  pensou.  De  repente,  ele 
percebeu  que  as  sombras  estavam  se  mexendo!  Cicatriz  estava  quase 
certo  de  que  tinha  visto  um  vulto  cinza  se mexer em sua direção. Primeiro 
um aqui! Depois outro lá! 
O  cinza  no  céu  se  espalhava.  Podia  agora  enxergar  pela  luz.  Pelos 
montes  de  lixo,  homens  estavam  se  aproximando  deles.  Queimadores! 
pensou  Cicatriz.  Sem  um  piu  eles  se  aproximaram  mais:  primeiro  um, 
depois outro... 
O menino encurvou-se e abraçou mais perto o seu irmão que ainda 
dormia;  seus  joelhos fracos de medo. A ameaça avançava por três lados. 
Ele conseguia vê-los melhor agora que o céu clareou. 
Os  tambores  estavam  enviando  sua  mensagem  de  longe,  do  meio 
da cidade, mas estavam acelerando cada vez mais. 
Rapidamente  Cicatriz  ficou  ereto  e  encarou  as  sombras.  Ele  não 
tinha  vindo  a  esta  distância  para  desistir  agora.  Ele  equilibrou  Pequena 
Criança  em  um  braço  e  tirou  seu  canivete  do  bolso  e  o  levantou  em 
desafio:  “Não!”  gritou.  “Não  serei  seu!  Se  há  um  rei,  eu  vou  achá-lo!  Se 
existe  uma  saída,  eu  vou  achá-la  de  qualquer  jeito!  Vou  buscar  e  lutarei 
até o fim!” 
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Naquele  momento  o  dia  raiou  atrás  do  menino.  O  céu  refletiu  um 
rosa  pálido.  Os  Queimadores  pararam. Seus olhos não suportavam a luz 
brilhante. 
Cicatriz  ouviu  um  zunido  estranho  vindo  do  outro  lado  de  um 
portão  velho  na  beira  da  montanha  de  lixo,  que  ele  não  tinha  notado 
antes.  Os  Queimadores  pararam  e  protegeram  seus  olhos  do  sol  cada 
vez mais brilhante. 
Neste  momento  de  vantagem,  Cicatriz  deu  uma  meia  volta  e  saiu 
no  pique.  Correu  com  Pequena  Criança  nos  braços,  na  direção  do 
portão velho e fechado, deixando os servos do Encantador surpresos. 
Ervas  daninhas  cresciam  na entrada do portão. A fechadura estava 
enferrujada.  Respirando  forte,  o  menino  parou  e  chacoalhou  o  portão. 
Neste  instante  o  sol  raiou  em  cima  deles,  e  o  portão  começou  a se abrir 
vagarosamente.  Esperando  com  impaciência  para  entrar,  o  menino 
olhou para cima e viu um arco por cima do portão. As seguintes palavras 
estavam  escritas  no  velho  portão:  SEJAM  BEM-VINDOS  TODOS  OS  QUE 
BUSCAM. 
Cicatriz  se  espremeu  com  seu  irmão  no  espaço  cada  vez  maior  da 
entrada.  Estava  sem  fôlego.  Pequena  Criança  estava  pesado.  Como  ele 
iria fechar o portão? Onde ele iria se esconder agora? 
“Você chamou?” perguntou uma voz atrás dele. 
O  menino  virou-se  rapidamente  para  ver  o  homem  mais 
engraçado  que  ele  já  tinha  visto.  A  criatura  era  alta  e  usava  uma 
pequena  árvore  na  sua  cabeça  como  um  chapéu.  Sua roupa era de uma 
cor  meio verde, marrom e cinza. Um molho de chaves estava pendurado 
em  um  ramo  que  também  dava  uma  volta  na  sua  cintura.  Ele  tinha 
cabelo  longo  e  branco  e  uma  barba  também  longa  e  branca,  e  os  dois 
ele  encaixava  no  seu  cinto.  Seu  casaco  tinha  bolsos  e  seu  colete  tinha 
bolsos  e  sua  calça  também  tinha  bolsos—todos  cheios  de  ferramentas 
tais como alicates para podar, tesouras e trolhas. 
O  homem  estava  segurando  um  machado  com  algumas  marcas 
estranhas  encravadas  nele.  Com  precisão  ele ergueu o machado com as 
duas  mãos  sobre  a  cabeça,  e  foi  então  que  Cicatriz  percebeu  que  o 
zunido  musical  vinha  do  machado.  O  portão  se  fechou  com  um 
estrondo. Os tambores pararam de tocar. 
Tudo estava quieto. 
Cicatriz  só  pôde  ouvir  um  som:  Piu...Piu...  O  que  era  isso?  Um 
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pássaro  cantando?  O  som  o  fez  lembrar-se  da  descrição  de  sua  mãe. Mas 
ele  nunca  tinha  ouvido  antes  a  sua  melodia,  porque  não  havia  nenhuma 
coisa  livre  na  cidade  encantada.  Ele  olhou  para  o  seu  irmão  nos  seus 
braços.  Pequena  Criança  estava  tão  quieto  que  parecia  estar  em  coma 
profunda. 

“Bem-vindo  Caçador”,  o  homem  estranho  disse  e  soltou  uma 


gargalhada.  Ele  pendurou  o  machado  no  seu  cinto.  Todo  movimento 
que  ele  fazia  ressoava  em  tons  metálicos  –  eram  as  ferramentas 
batendo uma contra a outra. 
“É você que é o rei?” Cicatriz pensou em voz alta. 
“Não”,  disse  o  homem  rindo.  Ele  se  aproximou  e  pegou  a  criança 
pesada  dos braços de Cicatriz. “Sou um dos homens do Rei. Meu nome é 
Cuidador. E o seu é Herói. Bem-vindo ao Grande Parque”. 
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“Esse  não  é  meu  nome”, protestou o menino. Sua mão agora vazia 
levantou por hábito para cobrir a cicatriz. 
O  homem  deu  risada  de  novo.  “É  mais  o  seu  nome do que imagina”, 
disse, e virou-se para descer a trilha. Cicatriz observou-o. O menino estava 
atônito  com  essa  criatura  engraçada  e  notou  que,  de  vez  em  quando, 
Cuidador  dava  um  pulinho. Um homem do rei, ele pensou. Sua admiração 
aumentava. 
Cuidador  parou  e  olhou  para  ele.  “Vamos”,  ele  chamou.  “Vamos 
para a casa de Misericórdia”. 
Cicatriz  observou  o  homem  dançando  pela  trilha.  Notou  que  o  dia 
tinha  raiado.  O  menino  pôde  ver  as  árvores  e  os  arbustos  e  a  grama 
gloriosa  –  tudo  aquilo  que  cresce.  Ele  respirou  fundo  e  encheu  os 
pulmões com ar fresco. 
Herói?  Ele  iria  esperar  e  ver  se realmente este nome seria o dele. Um 
homem  do  rei?...mas  onde  então  estaria  o  Rei?...  Ele  ficaria  de  olho 
aberto. Ao final das contas, ver é crer. Não foi isso que disse o Encantador? 
De  uma  coisa  ele  sabia.  A  sua  mãe  estava  certa:  Não  era  escuro 
neste  lugar  onde  as  árvores  crescem.  Aliás,  quase  não  havia  nenhuma 
escuridão. 
O  menino  correu  para  alcançar  Cuidador,  sentindo no seu coração 
como  se  tivesse  descoberto  algo  que  ele  tinha  procurado  por  toda  sua 
vida. 

Então, o menino escapou da perigosa Cidade Encantada porque era 


um caçador de coração e caçadores sempre acham mais do que 
sabem. 
 
 

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Era uma vez, quando o Encantador decretou que todos os que tinham 
doenças ou defeitos, que não podiam ser sarados, deveriam ser jogados 
para fora da cidade e abandonados para morrerem. Todos os 
desprezados e todos os esquisitos foram jogados para fora, junto com 
aqueles que não pertenciam a alguém, com a exceção dos órfãos. Órfãos 
eram mantidos porque serviam de proveito ao Encantador. 
 
Num  sol  abrasador,  uma  mulher  jovem  tropeçava  no  seu  caminho 
atravessando  o  lixão  ao  lado  da  Cidade  Encantada.  Ela  estava  usando 
óculos  escuros,  um  chapéu exagerado para proteger a sua pele pálida, e 
um  botão  grande  e  redondo  que  anunciava:  AMAMOS 
CRIANÇAS--Associação  dos  Órfãos.  Ela  continuamente  escorregava  nos 
montes  de  lixo.  Mesmo  com  os  óculos  escuros,  seus  olhos  se 
incomodavam  com  a  luz.  "Ich!  Lá  vou  eu  de  novo.  Cuidado!  Luz  é 
branca",  ela  resmungava  para  si  mesma.  "Puxa!  Ai-ai...que  lixão 
nojento!" 
Mesmo  manchada  e  suja  por  causa  de  seus  escorregões,  ela 
aproximou-se  do  Portal  de  Pedras,  a  entrada  para  o  Grande Parque. Ela 
preferia  estar  fazendo  qualquer  outra  coisa  hoje  do  que  estar  correndo 
atrás  de  órfãos  extraviados.  "Tô  perdendo  um  dia  de  sono.  Que  chato!" 
E  agora,  como  que  ela  iria  abrir  este  portão?  Ela  nunca  tinha  entrado 
neste  parque  horroroso  antes,  mas  era  aqui  que  os  Queimadores 
disseram que os órfãos estavam. 
Ela  chacoalhou  o  portão  de  ferro.  Notou  uma  casca  de  batata  na 
sua  roupa  e  parou  para tirá-la. Ela tentou subir pelo portão, mas os seus 
pés  escorregavam  e  o  seu  botão ficou preso entre os ferros. Finalmente, 
ela  deu  um  passo  para  trás  e  soltou  um  berro.  "Tem  alguém  aí?"  Seu 
chapéu deu uma balançada no final do grito. Ela ajeitou a sua bolsa, que 
parecia mais um cesto, e deu outro grito. "Tem alguém aí?" 
Silêncio. 
Ela  tentou uma outra idéia. "Eu sou a Assistente da Guarda-Órfãos! 
Em nome do Encantador, abra! Estou procurando órfãos!" 
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O  portão  rangeu  ao  abrir.  Ela  se  admirou  com  o  poder  do  nome 
que  tinha  usado,  nunca  suspeitando  por  um  momento  que  os  portões 
sempre abrem para aqueles que buscam. 
Uma  vez  no  lado  de  dentro,  ela  seguiu  seu  caminho  com 
dificuldade  de  respirar.  Ai,  ai,ai...!  Que  matagal!  Tantas  árvores!  Seria 
melhor  se  fossem  cortadas  para  abastecer  os  fornos  da  Cidade 
Encantada...Que barulho é esse? 
Na  distância,  ela  notou  uma  turma  no  meio  de  um  grande  campo. 
Algumas  pessoas  pareciam  estar  dançando.  Um  jovem  estava  fazendo 
malabarismo  com  várias  bolas.  Aí  deixou  uma  cair.  Um  senhor  de  mais 
idade  estava  andando  sobre  uma  corda  de  acrobata.  Todos  estavam 
rindo  e  ela  até  teve a impressão de que estavam tendo um tempo gostoso 
um com o outro. Que lugar estranho! 
A  Assistente  seguiu  apressadamente,  ignorando  as  flores 
brilhantemente  coloridas  balançando  sobre hastes verdes, e nem notou 
as  belas  criaturas,  que  não  se  mexiam,  com  os  ouvidos  em  pé  para 
captar  o  mínimo  ruído.  Ainda  bem  que  estava  usando  óculos  escuros. 
Ela  forçava  os  olhos  por  trás  deles,  tentando  evitar  toda  essa  luz 
brilhante e horrorosa profusão de forma e cor. 
O  que  estava  em  sua  mente  era  órfãos.  Que  chato!  Órfãos  e 
delinqüentes.  Ninguém  que  era  gente  gostava  deles.  Ela  já  tinha  sentido 
isso  na  pele.  Ela  tinha  sido  filha  de  uma  rejeitada,  antes  de ter alcançado 
este lugar útil no serviço do Encantador. 
"Nhê,  nhê,  nhê,  nhê,  nhê,  nhê"  caçoavam  as  crianças  da  Cidade 
Encantada,  quando  ela  era  menor.  "A  sua  mãe  é  uma  rejeitada,  serve 
pra nada, vai ser jogada!" 
A  sua  mãe  tinha  ficado  adoentada  com  uma  doença  incurável, era 
o  seu  coração,  e  foi  banida.  E  depois,  quando  o  seu  pai  morreu,  ela  se 
tornou uma órfã. 
A  sua  cabeça  esticou  e  seus  ombros  chiaram  só  de  lembrar.  Ela 
odiava os delinqüentes! Todo mundo os evitava. 
O  caminho  que  ela  pegou  a  levou  para  a  cabana  de  Cuidador,  que 
era toda bonitinha e bem cuidada. Um jovem alto e bonito abriu a porta, 
assim  que  ela  chegou.  Ele  estava  vestido  com  um  manto  azul  marinho, 
com  uma  fivela  de  prata  no  ombro.  Ela  aprendeu  no  treinamento  que 
era  o  uniforme  de  um  Atalaia,  um  dos  muitos  que  ficavam  à  disposição 
total para o homem que se chamava de Rei. 
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"Posso  ajudá-la?"  o jovem perguntou. Seus olhos cintilavam com a 
luz, mas seus lábios não estavam sorrindo. 
Dentro  dela  ela  quis  dar  uma  risadinha  e  responder,  Certamente, 
bonitão...mas  ao  invés,  ela  resmungou, "Ô Chatice! Me tira dessa luz. Esse 
sol  me  derrete  toda.  O  Sr.  Cuidador  está?  A  Guarda-Órfãos  me  disse  para 
falar com uma tal de Misericórdia e pegar os órfãos dela". 
O  Atalaia  pegou  suas  bolsas  pesadas,  segurou  a  porta  e  explicou: 
"Misericórdia  é  a  esposa  do  Cuidador.  Cuidador  não  está  hoje. 
Entre...Misericórdia,  tem  alguém  aqui  pra  você  da  Associação  dos 
Órfãos". 
A  Assistente  tirou  seus  óculos  escuros.  Ela  viu  uma  mulher  idosa 
em  pé,  frente  à  lareira. Tinha mais idade que qualquer outra pessoa que 
ela  já  vira  antes.  A  mulher  idosa  estava mexendo algo dentro da panela, 
no  fogo.  Usava  um  vestido  longo  e  azul  e  por  cima  um avental. Um anel 
de  cabelo  branco  escapava  por  debaixo  de  uma  fita  em  volta  de  sua 
cabeça.  Ela  virou-se  e sorriu para a visitante, que achou interessante ver 
as suas rugas se mexerem para cima. 
"Bem-vinda, caçadora" ela disse. "Eu sou Misericórdia, a esposa do 
Cuidador.  Somos  servos  do  Rei".  A  mão  que  ela  estendia  para 
cumprimentá-la  era  lisa  e  limpa  como  de  uma  menina  e  suas  costas 
estavam firmes e retas. 
Estranho, pensou a Assistente. Misericórdia parecia jovem e velha ao 
mesmo  tempo.  A  Assistente sentiu-se nervosa e confusa. Fique de olho nos 
estranhos  e  seja  oficial,  ela  se  atentou.  Ecoou  a  ameaça  da 
Guarda-Órfãos:  "Tragam-nos  de  volta  vivos.  Se  falhar,  um  Queimador 
estará em sua busca". 
"Eu  sou  a  Assistente da Guarda-Órfãos", ela anunciou, em voz bem 
alta,  esperando  que  todos  na  sala  ficassem  impressionados.  Ela  pegou 
firme  no  seu  botão  oficial  e  puxou  bem  para  que  todos  pudessem  ver. 
Abrindo  o  seu  cesto,  tirou  um  documento  assinado.  "Tenho  aqui  uma 
autorização  para  prender  fugitivos,  assinada  pela  própria 
Guarda-Órfãos.  Ela  quer  de  volta  os  dois  órfãos  que  entraram  pelo 
Portal de Pedras. Um deles chama-se Cicatriz".  
Seus  olhos  agora  estavam  se  ajustando  à  luz  amena  do interior da 
casa, e o que viu a surpreendeu. 
Duas  meninas  limpavam  a  mesa,  mas  só  que  apalpavam  a 
superfície da mesa com as mãos e contavam com os dedos. Eram cegas. 
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Esqueletos  de  crianças  entravam  e  saíam.  Quem  iria  querer  estes 
ratinhos?  pensou  a  Assistente.  No  chão,  três  crianças  estavam brincando, 
mas  uma  não  se  mexia:  sua  muleta  estava  ao  seu  lado.  Que tipo de lugar 
é esse? Quem quer delinqüentes? Credo!  
Foi  aí  que  ela  avistou  dois  meninos  em  pé  no  canto.  Eles  fugiram 
do  seu  olhar.  O  mais  velho  escondeu  a  sua  face  com  uma  mão  e  com  a 
outra segurou bem forte o mais novo. Lá estavam!  
O  jovem Atalaia se mexeu: "Desculpe-me Misericórdia, mas preciso 
ir  e  vigiar.  Vai  precisar  de  algo  mais?"  ele  perguntou  olhando  para  a 
senhora.  Mas  a  esposa  de  Cuidador  balançou  a  cabeça,  dizendo  não. 
Com um jogar da sua capa, ele saiu. 
Tolo!  pensou  a  Assistente.  Pensa  que  essa  velha  pode  resistir contra 
mim?  Ela  ficou  triste  por  ele  ter  que  ir.  Ela  precisava  de  um  pouco  de 
romance  em  sua  vida.  Uma  assistente  se  cansava  de  sempre  fazer  as 
mesmas  coisas:  fazer  chamada  de  órfãos,  contar  órfãos,  cumprir  os 
turnos  de  órfãos,  ler  o  manual  de órfãos. E agora, por que uma caçada de 
órfãos?  O  Dagoda  do  Encantador  realmente  não  era  o  lugar  para  uma 
criatura tão sentimental como ela era.  
Ela  sempre  sonhava  com  um  jovem  elegante  e  bom  dizendo: 
"Assistente da Guarda-Órfãos, você é o desejo do meu coração--". 
O  menino  no  canto  arregalou  os  olhos.  Ela  o  encarou  mais ainda e 
disse:  "Ai,  ai!  Tá  quente  não?  Que  calor!"  Ela  tirou  sua  blusa e se ajeitou 
numa  cadeira  para  descer  as  suas  meias  grossas.  Tirou  do  cesto  um 
grande  lenço  e  limpou  o  suor  do  seu  rosto.  Ao  ajeitar  o  seu  chapéu,  um 
tomate podre caiu para o chão. Alguém soltou uma risadinha. 
Eu  te  pego  ainda!  Você  vai  ver  só!  pensou  a  Assistente  da 
Guarda-Órfãos.  Mas  em  voz  alta  disse:  "De  quem  são  estas  crianças? Não 
podem ser todas suas!" 
Misericórdia  soltou  um  sorriso  de  novo,  as  rugas  se  esticando. 
"São  todas  minhas.  Não  temos  órfãos  em  Grande  Parque.  Todos  aqui 
pertencem a alguém".  
Todos  aqui  pertencem  a  alguém?  A  Assistente  nunca  tinha  ouvido 
algo  tão  tolo.  Se  ela  não  conseguisse  provar  que  as  duas  crianças  eram 
órfãs, teria que agarrar os fugitivos e escapar correndo. 
Quando  Misericórdia  se  sentou  do  outro lado da mesa comprida, a 
Assistente  tirou  vantagem  para  entrar  em  ação.  Ela  correu  para  os 
meninos  encolhidos  no  canto  de  tanto  medo,  agarrou  Pequena  Criança 
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debaixo  de  um  braço  e  com  o  outro  pegou  firme  na  mão  do  Cicatriz  e 
puxou-os na direção da porta.  
Mas,  mesmo  com  toda  a  sua  força,  a  Assistente  não  conseguia 
fazer  com  que  Cicatriz  saísse  da  porta  da  casa  do  Cuidador.  Ela  puxou 
com  toda  a  sua  força,  se  arrastou  e  esticou  o  pescoço  até  ficar  sem  ar. 
"Droga!" Finalmente, ela desistiu e olhou confusa para Misericórdia. 
"Não  temos  órfãos  em  Grande  Parque",  repetiu  Misericórdia. 
"Estas  crianças  têm  o  seu  lugar  aqui.  Você  não  pode  levá-las,  sem  que 
elas queiram ir voluntariamente".  
Voluntariamente,  é?  Um  brilho  veio  aos  olhos  de  Assistente.  "Você  é 
velha,  muito  velha",  ela  disse  para  Misericórdia.  "Velha  demais  para  me 
impedir".  
Era  um  desafio.  Os  dois  meninos  correram  de  volta  para  o  canto 
mais distante.  
A  Assistente  se  ajeitou  na  cadeira  do  outro  lado  da  mesa.  Ela 
colocou  os  cotovelos  na  mesa  com  seu  queixo  em  suas  mãos. 
Misericórdia  tomou  a  mesma  pose.  Os  olhos  das  duas  mulheres  se 
fixaram.  
Todos  dentro  da  casa  interromperam  o  que  estavam  fazendo.  O 
que  estava  acontecendo?  Quem  iria  sair  vitoriosa?  Por  que  o  Atalaia 
forte  tinha  saído?  No  canto,  Cicatriz  e  Pequena  Criança  abraçavam-se 
um ao outro.  
A  Assistente  foi  quem  falou  primeiro:  "Pela  Guarda-Órfãos.  Pela 
morte  e  miséria.  Pela  dor  e  tristeza,  doenças  e  loucuras.  Pela 
Guarda-Órfãos. Guarda-Órfãos. Vocês não pertencem a ninguém".  
Com  isso,  dores  há  muito  tempo  esquecidas  pelas  crianças  foram 
trazidas  à  tona.  O  menino  na  cadeira  de  rodas  se  encurvou  e 
choramingou.  As  irmãs  cegas  esbarraram-se  uma  na  outra, e uma tigela 
caiu.  Uma  rosnou.  Outra  criança  coçou-se.  A  criança  aleijada  deu  as 
costas para seus companheiros.  
Misericórdia  olhou  bem  nos  olhos  da Assistente da Guarda-Órfãos. 
Ela  retrucou  a  maldição.  "Cuidador!  Cuidador!  Esposa  do  Cuidador!  De 
quem  são  estas?  São  minhas.  São  minhas.  Cuidador!  Cuidador!  Esposa 
do Cuidador!”  
Misericórdia  levantou  seu  rosto  das  suas mãos, mas nunca tirando 
seus  olhos  da  sua  adversária.  Ela  abriu  seus  braços,  tanto,  tanto  que 
parecia  englobar  o  quarto  inteiro.  "As  coisas  não  são  o  que  elas 
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aparentam  ser!"  ela  gritou.  "As  coisas  não  são  o  que  elas  parecem  ser! 
...Em Grande Parque sabemos que isso é verdade".  
O  menino  na  cadeira  de  rodas  se  endireitou.  Ele  não  tinha  mais 
dor.  Ele  ergueu  bem  a  cabeça.  As  meninas  cegas  ajudaram  uma  a  outra 
a limpar a tigela quebrada. Uma delas assobiava uma melodia. A criança 
de  muletas  se  ajuntou  de  novo  aos  seus  companheiros.  Alguém  soltou 
uma risada. Duas crianças magrelas saíram correndo para brincar.  
A  Assistente  da  Guarda-Órfãos  estava  toda  suada  a  esta  altura. 
Pingos  de  água  escorriam  na  sua  face.  Droga!  Que  coisa!  Ela  seria 
demitida na certa e seria entregue aos Queimadores. De onde vinha esta 
força da Misericórdia?  
A  Assistente  deu  um  murro  na  mesa.  Uma  caçada  ordinária  de 
órfãos  hein?!  Que  é  isso!  Não  tem  nada  de ordinário nisso. Que Guarda de 
Órfãos  chata!  Ela  deveria  vir  ela  mesma.  Ela  focalizou  sua  mente  no 
menino  encurvado  no  canto.  Cicatriz,  vem,  vem,...ela  pensou.  Pelos 
tambores da morte, os Sacerdotes das Chamas, pelo manto de fogo. 
Eu  o  farei  vir  voluntariamente.  Ela  se  concentrou  mais  e  mais  no 
nome  de  Cicatriz.  Mas  o  trabalho  era  difícil.  Aí  ela  percebeu que o menino 
deu  um  passo  em  sua  direção,  saindo  do  canto.  Ela  viu  que  ele  soltou  a 
mão  do  seu  irmão.  Cicatriz, vem, vem. Era só uma questão de minutos até 
que o menino estivesse ao seu lado. 
De  repente,  o  órfão  endureceu.  Meu  nome  é  Herói  ele  se  pegou 
lembrando.  
Herói?  Herói  de  quem?  Respondeu  a  Assistente  à  resistência  do 
menino.  Este  não  é seu nome. Nunca! Quem já ouviu uma coisa dessa. Um 
órfão  com  o  nome  de  Herói?  Rapidamente,  a  jovem  aumentou  sua 
concentração.  Ela  sentiu  a  sala  inclinar-se  em  direção  da  porta.  Ela 
chamou em sua mente: Cicatriz, vem, vem...  
Devagarinho, o menino deu mais um passo.  
Agora!  Agora  era  a  hora!  Invoque  os  nomes!  A  jovem  ficou  de  pé, 
suas  mãos  ainda  agarradas  na  beira  da mesa, suas costas envergadas, e 
seus  olhos  que  nem  alfinetes  em  direção  de  Misericórdia.  Sua  voz  era 
aguda:  "Eu  sou  a  Assistente  da  Guarda-Órfãos!  Em  nome  da 
Guarda-Órfãos!  Em  nome  dos  Sacerdotes  das  Chamas  e  Queimadores  e 
Quebrantadores  e  Negadores!  Em  nome  do  Encantador!  Eu  ordeno  que 
todos aqueles que pertencem àquele que queima venham até mim!" 
As  crianças  choramingavam.  Cicatriz  começou  a  andar  na  direção 
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da  Assistente,  seus  olhos  deslumbrados  e  seus  passos  mecânicos.  Ele 
abaixou a mão, revelando a cicatriz crua e feia na sua face.  
Gotas  de  suor  se  ressaltaram  na  testa  enrugada  de  Misericórdia. O 
cabelo  branco  em  baixo  do  seu  laço  estava  úmido. Mas estava sorrindo. 
Ela  pegou  firme  o  seu  lado  da  mesa  e  travou  o  seu  olhar  com  a  da 
jovem. Ela levantou-se da cadeira e ordenou: 
"Eu  sou  a  Misericórdia,  esposa  do  Cuidador  do  Grande  Parque. 
Pelo  nome  do  Comandante  do  Atalaia,  protetor  e  guardador  da  vigia. 
Pelo  poder  das  chamas  sagradas.  Pelo  nome do Rei, Filho do Imperador 
de tudo, que trará a Restauração do Reino. Eu te impeço! Eu te previno!" 
A  casa  voltou  a  sua  posição  original.  O  menino  voltou  ao  seu 
lugarzinho no canto.  
Misericórdia  levantou  suas  mãos  acima  da  cabeça  e  segurou-as 
juntas. "Ao Rei!" ela gritou. "Ao Reino! À Restauração!"  
A  maldição  da  Guarda-Órfãos  foi quebrada. As crianças respiraram 
fundo.  Misericórdia  sentou-se  na  sua  cadeira.  Proteção  pairava  sobre 
eles novamente.  
A  Assistente  abaixou  os  olhos.  Um  pequeno  choro  veio  de  seus 
lábios.  "Coitada  de  mim,  ai  de  mim....  Achar  Misericórdia  foi  o  que  a 
Guarda-Órfãos  pediu.  Pois  achei-a  ...  mas  Misericórdia  tem-me 
derrotado. Serei demitida, na certa".  
A  Assistente  da  Guarda-Órfãos  colocou  seu  rosto  entre  as  mãos  e 
chorou  como  uma  criança.  Ela  pranteou  e  debulhou.  Ela  acabou  tendo 
que tirar um lenço do seu cesto para limpar o rosto.  
Gentilmente,  uma  pequena  mão  apareceu  e  tocou  o  seu  braço  e 
depois  seu  ombro,  limpou  as  lágrimas  do  seu  rosto  e,  a  final,  dos  seus 
olhos.  Era  uma  das  meninas  cegas.  A  criança,  com  um  cheiro  suave  de 
perfume e sabonete, encostou seu rosto no dela.  
Abrindo  seus  olhos,  a  jovem  descobriu  que  estava  rodeada  por 
crianças.  O  menino  na  cadeira  de  rodas  ofereceu  um  pano  úmido  e 
cheiroso  para  colocar  na  sua  testa.  A  criança  que  usava  muletas  trouxe 
um  copo  de  água,  enquanto  uma  das  crianças  disse:  "Não  chore, 
Assistente, não chore!" 
Mas  isso  fez  com  que  ela  chorasse  mais  ainda.  Quem  antes  tinha 
falado  com  ela  de  maneira  tão  gentil?  Seu  pai  morreu  nos  fornos 
embaixo da cidade e sua mãe foi banida.  
Finalmente,  também  os  dois  meninos  do  canto  da  sala  se 
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achegaram.  O  mais  velho  falou  com  Misericórdia:  "Eu  posso  voltar  com 
a  Assistente.  Pequena  Criança  pode  ficar  com  você.  Ser  demitida  seria 
terrível. Ninguém deveria ser demitido por minha causa".  
A  Assistente  da  Guarda-Órfãos  pranteou.  Ela  lembrou-se  do  dia de 
marcação.  Sua  mão  doía  só  de  pensar.  Ela  só  era  uma  Assistente  da 
Guarda-Órfãos  porque  servia  à  Guarda-Órfãos  e  ao  Encantador  sem 
questioná-los,  não  porque  eles  se  importassem  com  ela.  Ela  não  tinha 
amigos. Mas Misericórdia tinha dito: "Todos aqui pertencem a alguém".  
As  crianças  tocaram  na  sua  mão.  Misericórdia  anunciou:  "Eu  acho 
que  tenho um final feliz. Por que a Assistente da Guarda-Órfãos não fica! 
Desta  maneira,  Herói  não  terá  que  voltar,  e  ela  não  terá  que  ser 
demitida".  
As  crianças  dançaram  e  pularam.  "Isso!  Fica!  Fica  com  a  gente, 
Assistente! Por favor! Por favor! Queremos que você fique!" 
A  Assistente  assoou  o  nariz.  Ela  lacrimejava  e  fungava.  Ela  olhou 
para  a  Misericórdia.  Os  olhos  da  jovem  estavam  cheios  de  admiração. 
"Você me quer?" ela perguntou maravilhada.  

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"Eu  tenho  uma  confissão a fazer", disse Misericórdia. "Fui eu quem 
te  chamei  da  Guarda-Órfãos.  Eu  persuadi  você  a  atravessar o lixão até o 
Portal  das  Pedras.  Eu  queria  você  aqui.  Eu  acho  que  será  ótima  com  as 
crianças".  
"Fica!",  disse  a  menina  cega, implorando. "Não queremos que seja 
mandada embora. More conosco! Vai adorar o Rei!" 
"Oba!  você  pode  morar  com  a  gente!"  disse  o menino aleijado. Ele 
agitou  sua  muleta  no  ar  e  quase  caiu  ao  perder  o  equilíbrio.  Mas  a 
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Assistente conseguiu esticar a mão e evitar o tombo.  
"Mas por quê?" gaguejou a jovem. "Por quê?"  
Misericórdia  pegou  uma  colher  para  mexer  o  que  estava  no  fogo. 
"Mais uma pessoa para amar, eu suponho. Mais uma pessoa para amar".  
A  Assistente  da  Guarda-Órfãos  assoou  o  nariz  de  novo.  Ela  limpou 
seu  rosto  com  o  pano  úmido.  "Ó  Misericórdia,  você  não  é  nada  velha, 
né..." 
Misericórdia  deu  uma  risada.  Ela  se  deslocou  até  a  cadeira  onde  a 
jovem  estava  sentada.  Deu  um  abraço  bem  grande  nela  e  disse:  "Eu  te 
falei que as coisas não são o que elas aparentam ser". 
 

Então, a caçadora ficou, porque achou a órfã que estava procurando​⎯ 


ela mesma. Descobriu que o Reino era para os delinqüentes, e cada 
um teria que se tornar um delinqüente para poder seguir o Rei. 
 
 
   

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Mateus 13:44,45 
O Reino dos Céus é também como um negociante que procura pérolas 
preciosas. Encontrando uma pérola de grande valor, foi, vendeu tudo o 
que tinha e a comprou. 
 
Marcos 8:35 
Pois quem quiser salvar a sua vida, a perderá, mas quem perder a vida, 
por minha causa e pelo evangelho, a salvará. 
 
Romanos 8:14 
Porque todos os que são guiados pelo Espírito de Deus são filhos de 
Deus. 
 
   

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Havia um malabarista em Grande Parque, a terra do Rei, que queria mais 
do que qualquer outra coisa neste mundo se juntar à turma dos 
Malabaristas. Mas ele tinha algo terrível escondido no seu coração, um 
segredo que não tinha compartilhado com ninguém... 
 
O  Malabarista  Aprendiz  estava  certo  de  que  traria  vergonha 
para  a  turma  na  apresentação  daquela  noite.  Ele  sabia  que  iria  deixar 
cair  um  bastão  durante  a  apresentação  da  pirâmide  em  cascata.  Aí,  o 
Mestre  Malabarista  iria  ficar  sabendo  o  seu  segredo  e  ele,  então, 
perderia  o  seu  lugar  nessa  companhia  de  malabaristas.  O  nó  na  sua 
barriga parecia um gigante brincando de cabo-de-guerra.  
Posicionando-se  no  meio  da  roda  de  treino,  o  Malabarista 
Aprendiz  esquentou  as  suas  mãos  num  retalho  de  luz  da  manhã. 
Aqueceu  seus dedos com exercícios localizados. Começou jogando duas 
bolas em uma configuração básica de malabarista.  
O  Malabarista  Aprendiz  concentrou-se.  Ele  podia  ouvir  as  palavras 
do  Mestre  Malabarista  na  sua  primeira  aula:  "Ensine  as  bolas  a 
dançarem.  A  palavra  bola  vem  do  francês.  Quer  dizer  dançar.  Faça  as 
bolas dançarem!" 
As  bolas  realmente  dançaram  nas  mãos  do  Malabarista 
Aprendiz.  Enquanto  ele  trabalhava  sozinho,  ele  estava  bem.  Neste 
último  ano,  como  aprendiz,  ele  aprendeu  a  fazer  malabarismos  com 
anéis,  bastões,  pinos  de  boliche  e  ovos  (até  uns  não-cozidos).  Podia 
rodar  pratos  em  varas.  Podia  equilibrar  guarda-chuvas  na  testa,  nos 
ombros e nas mãos, tudo ao mesmo tempo.  
Ele  colocou  três  bolas  em  ação.  Joga  *  Joga-cata  *  Cata;  Joga  * 
Joga-cata * Cata.  
Ninguém  sabia  que  ele  estava  lutando  contra  seu  próprio  ritmo 
interior.  Ninguém  sabia  que  uma  batida  diferente  da  do  seu  coração 
estava nas suas mãos.  
Só  quando  o  Malabarista  Aprendiz  trabalhava  com  os  outros 
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estudantes  de  malabarismo,  ou  quando  fazia  um  ensaio  com  toda  a 
turma, é que dava problemas. 
Ele tropeçava.  
Deixava bastões caírem. 
Os  outros  pensavam  que  era  porque  não  tinha  experiência 
em  malabarismo.  Mas  o  jovem  sabia  que  a  sua  batida  interior  era 
simplesmente  diferente.  Ele  não  queria  que  ninguém  ficasse  sabendo 
do  seu  segredo,  especialmente  o  Mestre  Malabarista.  Trabalhar  com  a 
turma era o alvo glorioso de qualquer aprendiz.  
As  bolas  dançaram  nas  mãos  do  Malabarista  Aprendiz.  Ele  mudou 
para  duas  bolas  e  só  uma  mão.  Ensaiou  "chuveirinhos".  Pegou  dois 
pinos  de  boliche  e  testou  o  peso  deles  em  cada  mão.  Jogou  um  bem 
alto.  Deu  duas  voltas  no  ar.  Introduziu  um  terceiro  bastão,  com  o  pé 
direito  por  fora.  Também  virou  duas  vezes  no  ar.  Logo,  até  os  pinos 
estavam dançando.  
Ele se protegeu contra o seu próprio ritmo interior.  
Um  dos  outros  rapazes  estava  fazendo  malabarismo  com bastões. 
Chegou  mais  perto  do  Malabarista  Aprendiz  e  começou  a  passá-los  a 
ele.  Seis  bastões  agora  rodavam  pelo  ar.  O  jovem  compassou  em  voz 
alta: "Um-dois-três...Um-dois-três...Um-dois-três...". 
Até  agora,  tudo  bem,  pensou  o  Malabarista  Aprendiz:  se  ele  só 
pudesse  contar  em  voz  alta  como  estava  fazendo  agora.  Mas  todo 
malabarista sabia que esse era o sinal de um iniciante.  
"Muito  bem!  Ótimo!"  gritou  o  Mestre  Malabarista.  "Trabalho 
excelente  hoje  de  manhã!  E  eu  tenho  uma  notícia  maravilhosa.  O  Rei 
estará  presente  na  Grande  Celebração  hoje  à  noite.  Estaremos  fazendo 
as proezas para Ele!" 
A  turma  inteira  soltou  um  grito  de  aplauso,  mas  o  coração  do 
Malabarista  Aprendiz  despencou  até  a  barriga  de  novo,  onde  assolava 
uma  guerra.  Ele  já  tinha  feito  malabarismos  em  outras  Grandes 
Celebrações,  com  os  outros  estudantes.  Hoje  à  noite  era  para  ele  fazer 
um solo e depois aparecer com todos para o final.  
E  se  ele  falhasse  diante  do  Rei?  Seria  merecido  pelo  fato  de  ter 
mantido  para  ele  mesmo  esta  coisa  escondida.  O  único  sonho  que  ele 
tinha  era  de  ver  o  Rei  sorrindo  com  prazer,  ao  ver  seus  malabarismos. 
Ele  até imaginou o Rei aproximando-se dele e dizendo: "Jovem, você fez 
muito bem. Você tem um dom especial".  
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A  voz  do  Mestre  Malabarista  interrompeu  seus  pensamentos: 
"Vamos ensaiar o final!" 
A  turma  de  malabaristas  ficou  em  formação  para  a  pirâmide  em 
cascata.  Quatro  malabaristas  se  alinharam em fila. O sinal foi dado. "Já!" 
Todos  contaram  silenciosamente:  Um,  dois,  três  PULA!  Três  malabaristas 
pularam em cima dos ombros dos quatro primeiros.  
O  sinal  veio  de  novo:  "Já!"  Um,  dois,  três,  PULA!  Um  agarrar  de 
mãos, um trepar, um pulo. Os dois aprendizes subiram até o topo.  
Os  bastões  começaram  a  dar  laçadas  para  cima,  virando e girando, 
subindo  a  pirâmide.  Oito  vieram  de  baixo.  Seis  foram  passados  ao  meio. 
Os  aprendizes devolveram os bastões que chegaram até em cima, para os 
homens  no  lado  de  fora.  Era  uma  manobra  rápida  mas  simples  ​⎯  isto  é, 
enquanto  o  ritmo  fosse  mantido.  O  Malabarista  Aprendiz  sabia  que  todos 
os  nove  membros  da  turma  estavam marcando o tempo silenciosamente: 
Joga * Joga-cata * Cata; Joga * Joga-cata * Cata.... 
Com  horror,  ele  percebeu  que  o  seu  marcar  do  tempo  estava 
fora  do  tempo  de  novo.  Ele  estava  no  interior  dele  marcando:  Joga  * 
Joga-cata  *  Joga!  Ele  se  pegou  a  tempo  e  mudou  o  seu  compasso,  mas 
ficou como um sinal gritante e perigoso.  
Será  que  ele  deveria  falar  para  o  Mestre  Malabarista?  Mas  como 
poderia  suportar  ver  alguém  tomar  o  seu  lugar? O que iria acontecer, se 
ele seguisse o seu próprio ritmo interior? Que desastre sucederia?  
Com  ombros  caídos,  o  Malabarista  Aprendiz  deixou  o  campo  de 
ensaio  e  voltou  para  casa.  Mais  tarde,  com  as  pernas  molengas,  ele  fez 
seu  caminhar  até  a  grande  abertura  na  Floresta  Profunda.  Era  ali  onde 
as  Grandes  Celebrações  sempre  se  realizaram,  rodeadas  pelo  círculo 
das Chamas Sagradas. 
Os  súditos  do  Rei  já  estavam  começando  a  chegar  para  a  Roda 
Íntima.  As  Chamas  Sagradas  que  já  estavam  acesas,  resplandeciam  e 
dançavam  em  um  grande  círculo.  Atalaias  em  suas  capas  azuis  se 
posicionaram  ao  redor  das  chamas.  A  música  da  celebração  já  tinha 
começado.  
O  Malabarista  Aprendiz  observou  os  celebrantes  atravessarem  o 
círculo  de  chamas  para  dentro  da  Roda  Íntima:  esta  cerimônia 
chamava-se  "fazendo  entrada".  Ele  avistou  cada  um  tornar-se  real  ao 
fazer  isso,  por  que  as  Chamas  Sagradas  mostravam  as  pessoas,  não 
como  aparentavam  ser,  mas  como  realmente  eram.  Todos  os  disfarces 
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caíam. 
Os  risos,  a  música  e  o  gozo  dentro  das  chamas  atraíam  o 
Malabarista  Aprendiz,  mas  ele  se  segurava.  Como  poderia  fazer  entrada 
com  esta  coisa  escondida  no  seu  coração?  O  seu  segredo  não  seria 
revelado, quando ele tornasse real?  
O  velho  e  engraçado  Cuidador  atravessou  as  chamas.  A  sua  forma 
tornou-se  fosca  por  um  momento,  na  luz  brilhante.  Aí  ele  fez  entrada. 
Tornou-se  alto,  reto, ombros largos, usando a capa azul escuro e a fivela 
de  prata  de  um  Atalaia.  Cuidador  não  era  o  que  aparentava  ser.  Ele  se 
tornou  o  Atalaia  Comandante,  o  protetor  chefe  do parque e conselheiro 
íntimo do próprio Rei. 
O  Malabarista  Aprendiz  se  contorceu.  Lembrou-se  de  como 
Cuidador  o  tinha  achado,  quando  era  criança  pequena,  abandonada  e 
faminta,  e  o  levou  até  Misericórdia  que  o  amou  e  cuidou  dele. 
Lembrou-se  de  como  Cuidador  e  Misericórdia  odiavam  coisas  escuras  e 
escondidas. 
  Ele  decidiu  esperar  pelo  Mestre  Malabarista  e  revelar  o  segredo 
escondido  de  que  o  seu  ritmo  interior  era  diferente  e  perigoso  à  turma. 
O  Malabarista  Aprendiz  iria  pedir  para  escolher  outro  para  o  final.  Era  o 
único jeito.   
Um  soluço  sacudiu  seus  ombros.  Nunca  mais  sentiria  o  gosto  de 
segurar  bastões  ou  a  emoção  de  objetos  dando  cambalhotas.  Nunca 
mais o ritmo maravilhoso da turma de malabaristas.  
Ele  daria  o  seu  lugar  a  outro.  Qual  seria  então  o  seu  fim?  Onde 
seria  o  seu  lugar?  O  jovem  sabia  que  nunca  seria  um  bom  padeiro  ou 
jardineiro,  ou  guarda  florestal.  Ele  não  suportava  dançar ou cantar. Não 
tinha  nenhum  desejo  de  ser  um  Atalaia.  A  única  coisa  que  ele  quis fazer 
foi ver bolas, bastões, anéis e ovos ​⎯​ não cozidos ​⎯​ dançarem. 
Indignado,  o  Malabarista  Aprendiz  jogou  para  o  alto  as  bolas  que 
segurava.  Desta  vez,  ele  marcou  o  seu  próprio  tempo.  Era  o  que 
suspeitava:  as  bolas  se  mexiam  em  intervalos  desajeitados.  O  jogar  das 
bolas  não  era  fluido.  O  ritmo  aumentava  e  diminuía,  criando  incerteza. 
Ele  tinha  que  contar  o  seu  segredo.  Ele  nunca  seria  igual  aos  outros 
malabaristas.  
Um  mendigo  estava  se  aproximando  do  círculo  de  fogo. O homem 
vestia  uma  capa  marrom  com  um  capuz  que  cobria  o  seu  rosto. 
Carregava  um  cajado  e  mancava.  "Um  trocado  por  favor!  Um 
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trocadinho!" ele gritava. "Moedinhas para o pobre!" 
O  mendigo  parou  perto  do  menino  e  perguntou:  "Malabarista, 
você está participando da apresentação na Grande Celebração?" 
O  jovem  balançou  a  cabeça.  De  repente,  ele  queria  soltar  o  seu 
segredo. Ele queria dizer: "Eu tenho algo escondido no meu coração".  
O mendigo acenou para ele achegar-se mais perto e sussurrou: "Eu 
vi  você  treinando  agora  mesmo.  Marque  o  seu  próprio  tempo.  Escute  o 
ritmo da sua própria cadência".  
O  Malabarista  Aprendiz  ficou  maravilhado.  Como  um  mendigo  iria 
saber  que  sua  cadência  estava  fora,  se  ele  tinha  guardado  isso  para  si  e 
não contado a ninguém?  
O  mendigo  riu  e  disse:  "Eu  entendo.  O  meu  ritmo  é  diferente 
também". Com isso o mendigo se virou para fazer entrada. 
O  menino  ouviu  os  Atalaias  gritarem:  "Ao  Rei!  À  Restauração!"  A 
forma  do  homem  passou  para  dentro  da  Roda  Íntima.  Um  grito  de 
reconhecimento  subiu.  Pessoas  vieram  correndo  para  receber  o 
recém-chegado. Gritaram boas-vindas e chamaram um ao outro. 
O  Malabarista  Aprendiz  arregalou  os  olhos.  Ele  não  estava 
preparado  para  o que aconteceu. O homem estava lá, transformado. Ele 
tinha  a  mesma  altura  do  Atalaia  Comandante  e  era  elegante.  A  luz  das 
chamas  dava  um  reflexo  dourado  em  seu  cabelo.  Ele  agachou-se  e 
pegou  uma  pequena  criança  e  colocou-a  em  cima  dos  seus  ombros 
largos.  Misericórdia,  jovem  e  linda,  agora  que  ela  tinha  dado  entrada, 
veio  correndo  de  um  lugar  dentro  do  círculo  e  pegou  a  sua  mão.  Ela 
chamou  seu  marido,  Atalaia  Comandante,  que  se  aproximou  e  fez 
continência ao Rei. 
O  mendigo  é  o  Rei,  pensou  o  Malabarista  Aprendiz.  Ele  disse: 
"Marque o seu próprio tempo".  
O  Rei  elevou  o  outro  braço; o primeiro ainda segurando a pequena 
criança. "Deixe a celebração começar!" veio o comando. 
Malabarista  Aprendiz  correu  para  fazer  entrada.  Os  malabaristas 
eram  os  primeiros  e  ele  deveria  fazer  um  solo  logo  no  começo  da 
apresentação. 
Em  resposta  ao  comando  do  Rei,  os  músicos  começaram  a  tocar 
uma  melodia  alegre  que  dava  vontade  de  marcar  o  tempo  com  o  pé. 
Isso  chamava  os  súditos  da  Floresta  Profunda  para  atravessarem  as 
Chamas  Sagradas,  para  dentro  da  Roda  Íntima.  Os  malabaristas 
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estavam  se  aglomerando  no  coração  da  celebração.  O  Rei  e  os  seus 
seguidores  andavam  em  círculo  ao  redor  deles.  Todos  batiam  palmas 
no ritmo da música.  
A  turma  estava  fazendo  malabarismos:  cada  um  para  si,  alguns 
com  bolas,  outros  com  anéis.  Logo  veio  o  momento  para  a 
apresentação do solo do Malabarista Aprendiz. Todos pararam.  
O  coração  do  jovem  estava  na  sua  garganta.  E se ele deixasse uma 
bola  cair?  E  se  tropeçasse?  E  se  não  conseguisse  manter  o  controle  do 
seu  tempo?  Foi  então  que  ele  se  lembrou  das  palavras  do  Rei  Mendigo: 
"Ouça o marcar do tempo do seu próprio ritmo interior".  
Ele  deu  ouvidos.  Uma  cadência  nova  estava  surgindo  dentro  dele:  a 
sua  própria  cadência.  Gozo  veio  jorrando,  encheu  suas  mãos  e  seu 
coração.  Esta  cadência  era  diferente  de  todas  as  outras  que  ele  já  tinha 
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ouvido:  Joga  *  Joga-cata  *  Cata  *  Cata-cata  *  Joga;  Joga  *  Joga-cata  * 
Cata * Cata-cata * Joga... 
Ele  jogou  uma  laranja  alto,  mas  bem  alto  no  ar,  e  logo  outra  e 
depois  outra.  Ele  catou  a  primeira  laranja  bem  em  tempo,  centímetros 
do  chão.  A  multidão  suspirou.  Ele  catou  a  segunda  e  a  jogou  próximo, 
rebatendo  com  o  seu  pé.  O  povo  suspirou  de  novo;  depois  todos  riram. 
O  Malabarista  Aprendiz  mergulhou  para  pegar  a  terceira;  jogou  para  o 
alto,  deu  uma  cambalhota,  catou  a  seguinte  rente  ao  chão, 
arremessou-a  rapidamente  de  volta  para  cima.  A  multidão  soltou  seus 
brados.  
Ele  ouviu  os  cochichos:  "Que  maravilhoso!"  "Nunca  vi  um 
malabarista fazer tantas coisas como este!" "Que diferente!" 
Ele  continuou  a  dar  ouvidos  para  a  cadência  interior:  Joga-cata  * 
Cata  *  Cata-cata  *  Joga.  Ele  arremessou  e  deu  cambalhotas e mergulhou 
e  marcou  o  tempo.  Finalmente,  ele  encerrou.  Todos  riram,  aplaudiram, 
gritaram e bateram os pés.  
O  Malabarista  Aprendiz  se  curvou.  Levantou-se,  e  se  dobrou  de 
novo.  Desta  vez,  quando  ele  se  levantou,  estava  olhando  direto  nos 
olhos do Rei.  
O Rei estava sorrindo em aprovação.  
"Um  palhaço!  Um  palhaço!"  alguém  estava  gritando.  Era  o  Mestre 
Malabarista. 
"Você  tem  o  ritmo  de  um  palhaço!"  ele  cantou.  "Parece  que  você 
não  vai  conseguir...parece  que  você  vai  deixar  algo  cair,  mas  não  deixa! 
Um palhaço é o melhor malabarista de todos!" 
O  Mestre  Malabarista  ficou  sério.  Ele  chacoalhou  os  ombros  do 
malabarista. "Por que você não me disse que o seu ritmo era diferente?" 
"Por-porque",  gaguejava  o  jovem  entre  as  chacoalhadas.  "Eu 
pensei que-que iria perder o meu lugar na turma dos malabaristas".  
O  Mestre  Malabarista  parou  de  chacoalhá-lo.  "Perder  o  seu  lugar? 
Melhor  ainda  é  achar  o  seu  devido  lugar!  Não  sabia  que,  na  Grande 
Celebração, todos que desejam um lugar acham seu lugar?" 
Com  isso  o  Mestre  Malabarista  deixou  sua  cabeça  cair  para  trás  e 
soltou  uma  gargalhada.  "Um Malabarista com o instinto de um palhaço! 
Ah!  São  tão  raros!  Tão  raros!  Que  turma  teremos!  Todos  vão  adorar! 
Faremos as bolas dançarem!"  
 
29
 

E, então, o Malabarista Aprendiz perdeu o seu lugar na turma dos 


malabaristas, mas achou um outro. Porque todos os que vivem pelo 
ritmo da sua cadência interior, aquela que ao Rei aprouver, acham um 
lugar só seu no Reino. Mais do que outros, vivem felizes daquele dia 
em diante. 
 
 
   

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Efésios 6:12 
Pois a nossa luta não é contra carne e sangue, mas contra os poderes e 
autoridades, contra os dominadores deste mundo de trevas, contra as 
forças espirituais do mal nas regiões celestiais. 
 
Gálatas 5:9  
Um pouco de fermento leveda toda a massa. 
 
Romanos 1:17 
Pois no evangelho é revelada a justiça de Deus, uma justiça que, do 
princípio ao fim é pela fé, como está escrito: “O justo viverá pela fé”. 
 
 

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Muitos anos atrás, o perigo se aproximava das pessoas mais corajosas e 
dos lugares mais lindos do Grande Parque. Homens e mulheres nunca 
eram o que aparentavam ser, pois a mágica, o mistério e a maravilha 
sempre era possível. E isso não é muito diferente da maneira como as 
coisas são hoje. 
 
Não  muitos  dias  após  o  menino  Herói  ter  chegado  ao  Grande 
Parque,  ele  foi  explorando-o,  atravessando  alguns  vales  e  montes  em 
direção  ao  Lago  dos  Patos,  passando  pelas  Hortas  do  Grande  Parque, 
nos  Vinhedos  de  Misericórdia,  depois  dando  a  volta  pelo  Lago  Marmo. 
Ele  beirava  as  bordas da Floresta Profunda para um lugar meio afastado 
chamado  Campo  Relvoso.  Sentando-se  na  beira  do  Pantanal  Cantante 
abriu  o  saco  de  lanche  que  a  esposa  do  Cuidador  tinha  preparado  para 
ele.  Era  pão  com  queijo.  Finalmente,  ao  meio-dia,  ele  se  refrescou  nas 
sombras da Floresta Silvestre. 
Pela  primeira  vez  na  vida,  Herói  se  sentiu  feliz  e  protegido.  Não 
tinha  queimadores  atrás  dele.  Chamas  de  fogo  não  o  estavam 
ameaçando.  Ele  não  sabia  quem  reinava  nesse  lugar,  mas  certamente 
era melhor do que a Cidade Encantada. 
De  repente,  o  som  de  risadas  o  surpreendeu.  Tentando  saber  de 
onde  vinha,  ele  encontrou  uma  menina  sentada  sobre  o  tronco  de  uma 
árvore  com  flores  entre  os  seus  dedos  do  pé,  fazendo  tranças  em  seu 
cabelo  longo  e  loiro.  Ela  parou,  esticou  o  braço  e  uma  borboleta 
assentou no seu dedo.  
Ela  girou  com  o  som  de sua chegada. Ao vê-la, Herói cobriu o rosto 
com  a  mão.  Por  um  momento,  ele  tinha  se  esquecido  da  sua  terrível 
cicatriz.  
"Hoje  eu  acordei  mais  tarde",  ela  disse  sem  demonstrar  nenhuma 
surpresa  em  vê-lo.  Soprou  a  borboleta  que  saiu  batendo  as  asas, 
continuou  tirando as flores dos dedos do pé, uma por uma, e colocou-as 
nas  tranças  em  seu  cabelo.  "Bem-vindo  ao  Reino,"  disse  ela  com  um 
sorriso. 
"O  Reino?"  Herói  perguntou.  Todo  mundo  sabia  que  tal  coisa  não 
existia.  Aí  ele  parou;  mas  é  claro,  a  menina deve estar fazendo de conta. 
Ele decidiu entrar na dela. "Ah! e suponho que o seu pai é o Rei".  
"Ah!,  não",  ela  respondeu.  "O  Rei  é  o  meu irmão mais velho, assim 
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como ele é o irmão de todos os que crêem".  
Herói  tentou  não  mostrar  suas  dúvidas.  "E,  então,  você  deve  ser 
uma princesa", ele caçoava observando os jeans e a camisa desbotada. 
"Sim".  A  menina  estava  amarrando  o  seu  tênis.  Ao  terminar,  ela 
ficou  em  pé  bem  reta,  elegantemente  fez  a  reverência,  segurando  os 
lados de sua calça: “Sou a Princesa Amanda. Bem-vindo, Herói”.  
Herói  disfarçou  uma  risada  e  ficou  surpreso  por  ela  saber  o  seu 
nome. Antes dele poder prosseguir, a menina cuspiu.  
"Consegue fazer isso?" ela perguntou.  
Qualquer  um  consegue  cuspir,  pensou  Herói.  Ele  cuspiu  no 
chão. 
"Ah,  mas  consegue  fazer  isso?  Consegue  acertar  aquele  cogumelo 
ali?"  O  cogumelo  era  pequeno e estava numa distância de cinco metros. 
Amanda  cuspiu  de  novo  e  acertou  na  mosca!  Herói  não  conhecia 
ninguém que conseguisse fazer isso.   
"É um dom", disse Amanda. "Eu tenho a mira certa".  
"Ela  cuspiu  de  novo  e  acertou  exatamente  no  nó  de  uma  árvore. 
"Eu  estava  a  caminho  do  campo  onde  praticamos  isso,  mas  pensei  em 
colher  algumas  flores  para  o  meu  cabelo.  Estamos  ensaiando  para  a 
Grande Celebração. Qual é o seu dom, Herói?" 
O  menino  pensou,  mas  nada  lhe  veio  à  mente.  Ele  agradeceu, 
quando  a  conversa  foi  interrompida  por  um  grito  que  ressoou  pela 
floresta. "Como vai o mundo?" 
Ele ouviu uma resposta: "O mundo não vai bem".  
Depois uma outra resposta: "O Reino está chegando".  
"Este  é  o  grito  da  vigilância",  explicou  Amanda.  "Vai  de  torre  em 
torre.  Os  Atalaias  vigiam. Eles protegem o parque contra Queimadores e 
Negadores.  Eles  também  ficam  de  olho  em  pessoas  feridas,  fogo  na 
floresta,  e  protegem  os  abandonados.  Seus  corações  são  cheios  de 
coragem  e  bravura"  disse  Amanda,  ao  começar  a  sua  caminhada  até ao 
campo de ensaio. 
"Espere!  Espere!"  gritou  Herói.  "Não  estou entendendo. Não estou 
entendendo nada." 
Amanda  parou.  Fios de cabelo já estavam soltos das suas tranças e 
algumas flores já haviam caído. 
"O que é um reino? O reino de quê? Onde está o reino?" 
O  queixo  de  Amanda  caiu.  Ela  riu  surpresa.  "Ué,  esta  é  a  primeira 
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regra do Grande Parque: O Reino é Qualquer Lugar Onde o Rei Reina!" 
O  menino  sentiu-se  bobo.  A  resposta  parecia  óbvia,  mas  ele  ainda 
não estava entendendo. "Eu pensava que isto era um parque".  
"Claro  que  é, é um Grande Parque. E o Reino está nele. É aqui onde 
o  Rei  reina,  em  exílio.  Mas  o  Reino  não é somente aqui, é qualquer lugar 
onde  o  Rei  é  obedecido.  E  algum  dia  o  Reino  do  Rei  será  restaurado  na 
Cidade  Encantada...  e  em  todo  o  lugar.  É  por  essa  razão  que clamamos: 
"Ao Rei! À Restauração!" 
Herói  estava  considerando  todas  essas  coisas  quando,  de 
repente,  tocou  bem  alto  uma  trombeta  na  floresta.  Foi  respondida  com 
outro e mais outro. FÓÓÓiiiiiiii! FÓÓÓiiiiiiii!  
Amanda  soltou  as  flores.  Seu  corpo  ficou  tenso  para  ação.  O 
sorriso  deixou  seus  olhos.  "Perigo!"  ela  gritou.  "Trombetas  de  Atalaias. 
Estão dando um alarme".  
As  trombetas  soaram  de  novo.  Desta  vez  três  rajadas  curtas. 
Fói! Fói! Fói!  
"Fogo!  Fogo  na  floresta!"  Amanda  gritou.  "Venha!  Precisamos 
ajudar. As trombetas estão dando o sinal de que precisam de ajuda!"  
Herói  sentiu  uma  caverna  oca  se  abrir  na  boca  de  seu  estômago. 
Fogo?  O  seu  velho  pavor  subiu  e causou náusea. Uma visão de fumaça e 
pilares  de  fogo  lampejou  atrás  de  seus  olhos,  assim  como  tambores  de 
morte  e  pira  funerária.  A  marca  no  seu  rosto  começou  a  latejar;  e  ele  a 
cobriu com sua mão.  
Amanda  nem  notou.  "Venha!"  ela  gritou.  Ela  pegou firme no braço 
do  menino  mais  velho  e  saiu  correndo  com  ele  pela  floresta. 
"Precisamos ir depressa!" 
Os  dois  correram  até  um  pavilhão  construído  à  beira  da  Floresta 
Profunda.  Centenas  de  Atalaias  estavam  reunidos,  homens  e  mulheres 
usando  capas  longas  e  azuis  com  fivelas  prateadas  nos  ombros.  Alguns 
pegavam  baldes,  outros  pás  e  vassouras,  enquanto  se  apressavam para 
dentro do prédio espaçoso. 
Herói e a Princesa Amanda também entraram e foram levados pela 
multidão  até a frente do grande salão. Na plataforma estava um homem 
alto,  que  parecia  poderoso.  Estava  examinando  mapas,  dando  ordens, 
enviando grupos pequenos de Atalaias para a esquerda e para a direita.  
Finalmente,  ele  levantou  a  mão pedindo por silêncio. O salão ficou 
logo  quieto,  o  homem  na  frente  continuou  sustentando  sua  mão  bem 
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alto.  Herói  notou  que  o  seu  cabelo  preto  tinha  listas  de  cinza.  Os  olhos 
escuros  brilhavam  como  fogo.  Ele  parecia  ser  um  rei,  se  é  que  havia um 
rei. 
Amanda  respondeu  a  pergunta  interior  dele.  "Não,  este  não  é  o 
Rei. É o Atalaia Comandante".  
"Fogo  na  floresta",  anunciou  o  Comandante.  Ele  apontou  para  os 
mapas  espalhados  nos  grandes  quadros.  "Dois  fogos  começaram  em 
pontos distantes dentro de um curto prazo. Aqui e aqui".  
Um  murmúrio  baixo  se  espalhou  pelo  salão.  Isso  só  poderia 
significar uma coisa: alguém planejando colocar fogo na floresta inteira.  
"Estes  fogos  estão  na  terceira  e  na  quarta  região  florestal,  nos 
distritos  treze  e  quinze  da  brigada.  O  esquadrão  de  primeiros  socorros 
já está em posição". 
O  Atalaia  Comandante  virou-se  para  os  mapas  e  explicou  a 
estratégia.  "Mobilizem-se  imediatamente.  O grupo com machados e pás 
deve  atuar  desse  lado  e  desse.  O  grupo  com  baldes,  logo  atrás. Estejam 
prontos  para  irem  contra  o  fogo;  mas  esperem pelo sinal das trombetas 
para darem início. Lembrem-se: não mais fogo do que o necessário".  
Ele  olhou  para  o  pessoal  com  expectativa.  Herói  ficou 
impressionado  ao  sentir  o  comando  absoluto  do  homem.  "Trabalhem 
duro", ele disse. "Orem por ventos calmos, chamem a chuva".  
Depois ele gritou: "Ao Rei! À Restauração!"  
O  pavilhão  reverteu  o  grito  com  cada  Atalaia,  erguendo  um 
machado:  "Ao  Rei!  À  Restauração!"  Depois  veio  agitação,  arrastar  de 
botas,  tumulto  de  Esquadrões  de  Combate  ao  Fogo,  todos  correndo 
para suas tarefas. 
Em  um  instante  o  Atalaia  Comandante  estava  ao  lado  de  Amanda 
e  Herói.  "Venha  comigo",  disse  à  pequena  menina.  "Os  seus  dons  de 
visão  serão  úteis  para  mim.  E  você,  rapaz,  venha  também.  Poderá  dar 
uma  força  para  uma  brigada.  Amanda  vai  lhe  mostrar  o  que  fazer,  ao 
terminarmos". O homem deu meia-volta e saiu apressadamente.  
Confuso,  aliviado  e  estranhamente  desapontado, Herói seguiu. Ele 
estava dividido entre querer fazer parte do drama ou não. 
O  homem  forte  se  apressou  para  uma  torre  de  vigia  próxima  e 
subiu  a  escada,  dois  degraus  de  cada  vez.  Amanda  e  Herói  fizeram  o 
melhor possível para manter o pique.  
No  topo,  Herói  conseguiu  ver  todo  o  Grande  Parque.  Será  que 
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havia  outro  lugar  tão  belo?  Na  Cidade  Encantada  estava  certo  que  não. 
O  Atalaia  deste  posto  logo se aproximou e colocou o dedo na direção de 
duas colunas de fumaça, a distância, na Floresta Profunda. 
"Dois  fogos  pequenos,  começando  agora",  ele  reportou.  "Quatro 
quilômetros  de  distância  uma  da  outra.  A  equipe  de  bombardeamento 
do  Lago  Marmo  poderá  levar  água  até  aquela  primeira  posição,  se  o 
fogo  progredir.  Mas  o  segundo  parece  ser  mais  difícil.  Um  fogo  bem 
colocado ao seu redor é provavelmente a melhor estratégia".  
De repente a Amanda apontou "Olhe! Logo ali à esquerda". Todos os 
quatro  forçaram  a  vista.  Antes  de  Herói  poder  ver  qualquer  coisa,  o 
Atalaia  do  posto  tirou  uma  grande  trombeta  do  seu  lugar  pendurada  na 
parede.  Ele  saiu  para  a  sacada, que era cercada, e deu três toques curtos, 
Fói! Fói! Fói! 
Numa  fração  de  segundos,  os  toques  foram  respondidos  pelas 
torres  vizinhas,  e  pelas  outras  mais  distantes,  e  assim  por  toda  a 
floresta. 
"Um  fogo  novo",  explicou  o  Atalaia  Comandante  para  Herói,  com 
um  tom  sério.  O  homem  apontou  "está  vendo  a  segunda  coluna  de 
fumaça? Olhe para o norte. O fogo novo está no distrito 21".  
Então,  o  Atalaia  Comandante  virou-se  para  Amanda.  "O  que  você 
vê?" 
A  princesa  dirigiu  os  olhos  para  dentro  da  Floresta  Profunda.  E 
depois,  para  a  surpresa  de  Herói,  ela  fechou  seus  olhos.  Um  momento 
silencioso  passou  e  parecia  que  a  menina  tinha  perdido  todo  o  sentido 
ao  seu  redor.  Herói  teve  o  pressentimento  de  que  ela  estava  olhando 
para  dentro  de  coisas  que  outras  pessoas  nunca  podiam  ver.  Ela 
respondeu:  "Um  manto  azul...Um  homem  correndo...uma  tocha 
acesa..."  
Ela  abriu  os  olhos.  Estavam  grandes  e  horrorizados.  O  Atalaia 
Comandante  olhou  para  o  outro  Atalaia,  e  eles  ficaram  chocados  ao 
saber  que  o  ofensor  usava  um  manto  de  Atalaia.  "Estamos  em  maior 
perigo  do  que  imaginamos",  disse  o  Comandante  com  uma  voz  de 
preocupação.  
Naquela  tarde  mais  três  incêndios  se  alastraram  na  Floresta 
Profunda, ao todo seis.  Herói  acompanhou  Amanda,  levando  baldes 
de  água  para  os  homens  que  estavam  com  sede,  por  causa  da  luta 
contra  o  fogo,  labareda  por  labareda.  As  duas  primeiras  áreas 
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incendiadas  foram  rapidamente  dominadas:  uma  por  água  bombeada 
do  Lago  Marmo,  e  a  outra abafada com latas de terra tiradas do chão da 
floresta.  Mas  o  terceiro  fogo  começou a se alastrar fazendo um caminho 
preto  pela  floresta,  antes  que  os  Atalaias  conseguissem  chegar  até  ele. 
Os  que  lutavam  contra  o  fogo  começaram  a  cortar  raízes  e  grama  com 
seus  machados,  a uma certa distância das chamas invasoras. Turmas de 
suporte  capinavam  um  círculo  com  suas  enxadas  e  depois  varriam 
qualquer  tipo  de  folha  ou  galho  para  que  o  fogo  não  tivesse  como  se 
espalhar .  
Mas  ainda  uma  parede  de  chamas  aproximava-se  bruscamente, 
chegando  mais  e  mais  perto  de  Herói,  que  estava  paralisada  diante  de 
seu  velho  inimigo,  e  não  pôde  se  mexer  e  nem  gritar  por ajuda. Ele nem 
conseguia  jogar  o 
cesto  de  comida 
que  estava 
carregando  para  os 
trabalhadores. 
Logo  a  brigada 
começou  o  fogo  de 
trás,  uma  parede  de 
chamas  que  logo 
cresceu  até  o  céu. 
Os  Atalaias  estavam 
lutando  fogo  com 
fogo,  usando  este 
fogo  de  trás  para 
rodear  as  outras 
chamas  para  que 
nada  ficasse  para  o 
fogo consumir. 
Herói  estava  preso 
entre os dois. Ele viu 
as  chamas  ficarem 
mais  e  mais  altas  e 
mais  e  mais 
quentes.  Os  olhos  do  menino  começou  a  queimar  e  sua  visão  ficou 
embaçada  de  tal  modo  que  não  conseguia  ver  nada  distintamente,  só 
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muros  maciços  de  vermelho,  laranja  e  escarlate.  E  o  seu  corpo  ficou 
estático. 
A  fumaça  penetrante  queimou  sua  garganta,  sufocando-o.  À 
distância  ele  pensou  que  ouvia  sons  familiares  dos  tambores  da  morte: 
Um-pa-pa...Um-pa-pa...Um-pa-pa-dim... 
Subitamente,  do  nada,  um  Atalaia  apareceu  ao seu lado. Ele jogou 
o  menino  nos  seus  ombros  como  um  saco  de  batata,  agarrou  o  cesto,  e 
correu  de  volta  para  um  lugar  seguro.  Mudo,  Herói  assistiu  enquanto  o 
fogo  que eles acenderam pulava e dançava, se alimentando de tudo que 
queimava  dentro  do  anel.  As  duas  paredes  avançaram  em  cima  uma da 
outra.  Finalmente  as chamas se abraçaram, inflamaram, e depois de um 
longo tempo morreram porque não tinham mais nada para queimar.  
Logo,  então,  um  hino  começou  a  subir  dos  lábios  dos  homens  e 
mulheres  cansados,  seus  rostos  ainda  pretos  da fumaça. "Ele é a chama 
que  brilha  mais  forte,  saltando  no  coração  do  homem.  Ele  é  o  anel  de 
fogo  dentro  da  alma  de  cada  um  que  a  todos  aquece  para  a  existência. 
O Rei! Nosso Rei é o Rei do fogo e da chama!" 
O  Atalaia,  que  tinha  socorrido  Herói,  o  cobriu  com  seu  manto 
longo  e  azul,  que  tinha  o  cheiro  de  cinzas  e fumaça. Ele tirou um pão do 
cesto,  partiu  um  pedaço,  e  deu  para  Herói.  "Não  está  acostumado  a 
apagar  fogo,  hein?  É  trabalho  duro!  Mas  acho  que  acabou.  Este  aqui  já 
está  sob  controle.  Cuidador  fará  o  resto  para  nós.  Sente  a  chegada  da 
chuva  no vento? Cuidador está fazendo os seus velhos truques! É isso aí! 
A chuva já vai chegar".  
Herói  ficou  encucado,  o  que  aquele  velho  engraçado  tinha  a  ver 
com  o  fato  de  chover  ou  não?  Mas,  realmente,  ele  podia  sentir  o  toque 
suave  do  ar  fresco no seu rosto. Splesh! Uma gota grande de chuva caiu, 
e depois outra e mais outra, e mais e mais rápido. 
Acima  da  floresta,  bem  alto  nas  torres,  os  Atalaias  tocaram  suas 
trombetas em três toques curtos: Fói! Fói! Fói!  
Como  se  fosse  o  som  das  trombetas  a  causa  de  Amanda  achá-lo, 
ela  apareceu  ao  lado  de  Herói;  seu  cabelo  estava  ensopado;  seu  rosto 
listrado com cinzas, mas estava dançando. Ela dava voltas e mais voltas, 
suas  mãos  levantadas  para  o  céu.  "Ai,  aquele  maravilhoso, 
engraçadinho, velho Cuidador. Ele fez de novo. Ele chamou a chuva." 
Ela  inclinou  sua  cabeça  para  trás  e  abriu  a  boca,  bebendo  a  água 
fresca.  De  repente,  ela  ficou  parada,  como  se tivesse lembrado algo que 
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tinha esquecido.  
"Os  toques  de  trombeta!  Estão  chamando  todos  para  um 
conselho!"  Pela  segunda  vez  aquele  dia,  a  jovem  pegou  firme  a  mão  de 
Herói,  e  o  arrastou  para  acompanhá-la.  "Eu  esqueci!  Esqueci!  O  Atalaia 
Comandante precisa da minha visão!" 
O  rapaz  e  a  moça  correram  até  o  pavilhão com outras centenas de 
pessoas  que  responderam  à  convocação.  Quando  entraram,  viram  a 
Misericórdia  que  tinha  organizado  uma  estação  de  primeiros  socorros 
nos  fundos.  Era  uma  confusão  de  panelas  fervendo  com  ervas,  panos 
rasgados  e  colchões,  mas  a  senhora  idosa  trabalhava  com  eficiência, 
acalmando os feridos. 
Uma  vez  que  todos  os  Atalaias se ajuntaram, pingando e exaustos, 
o  Atalaia  Comandante  foi  até  ao  centro  da  plataforma e levantou a mão 
pedindo silêncio. "Todos em suas divisões!" ordenou. 
Todos  no  pavilhão  se  mexeram  e  se  misturaram  até  acharem  suas 
turmas.  Atalaias  machucados  mancavam  com  esforço  para  se  juntarem 
a suas equipes apropriadas. Herói observou de um canto. 
"Todos presentes?" perguntou o Atalaia Comandante.  
A  contagem  começou:  "Divisão  Um,  presente  e  todos  contados 
senhor".  "Divisão  Dois,  presente  e  todos  contados,  senhor".  E  assim 
prosseguiram  os  gritos,  um  por  um.  Milagrosamente,  nem  um  Atalaia 
estava ausente.  
Com  isso  o  Comandante,  com  olhos  avermelhados,  chamou: 
"Amanda!  Venha  à  frente!  Misericórdia,  esposa  do  Cuidador!  Venha  à 
frente!" A princesa deu dois passos para frente e a senhora idosa veio do 
fundo do pavilhão, ainda com um rolo de faixas na mão.  
"Ao  meu  lado!"  ordenou  o  Atalaia  Comandante,  e  as  duas  se 
posicionaram, uma de cada lado.  
"O que você vê Princesa?" perguntou o Comandante.  
Amanda  fechou  seus  olhos  e  respondeu.  "Ainda,  um  manto  azul, 
um homem correndo, uma tocha acesa".  
"O que você vê?" o Comandante perguntou à velha Misericórdia. 
Ela abaixou a cabeça. "O mesmo".  
"Um  traidor",  murmurou  o  homem  poderoso.  Sua  voz  estava 
baixa, rouca, mas todos no pavilhão escutaram. "Um incrédulo".  
"Prova na passagem", ordenou o Comandante.  
Sem  hesitar,  cada  Atalaia  marchou  um  por  um,  no  círculo 
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desenhado  no  chão  do  pavilhão  ​⎯  o  Círculo  dos  Desígnios  ​⎯  para 
apresentar-se  a  esses  três  que  olhavam  profundamente  dentro  do 
coração  de  cada  um.  Os  puros  passaram sem hesitação, marchando até 
o  centro  e  saindo.  Mas  aqueles  que  tinham  uma  sombra  sobre  as  suas 
almas tinham muito receio de que chegasse a sua vez.  
Mais  ou  menos  na  metade  da  fila  de  Atalaias,  Misericórdia  fez  um 
sinal  com  suas  mãos.  O  Atalaia  que  estava no centro de visão parou. Ele 
colocou  sua  mão  por  baixo  do  seu  manto.  O  Atalaia  Comandante  olhou 
para Misericórdia, questionando.  
Sua cabeça desceu e subiu.  
Ele olhou para Princesa.  
Ela fez o mesmo.  
Com  isso  o  Atalaia  incrédulo  soltou  um  grito  de  angústia: 
"Não-o-o-o!"  Ele  puxou  seu  machado  que  estava  embaixo  do  seu 
manto.  Girando,  com  o  machado  esticado  nas  duas  mãos,  ele  gritou: 
"Fiquem longe! Longe!" 
Quando  o  Atalaia  conseguiu  abrir  bem  o  círculo  em  volta  dele, 
parou, ergueu o machado, e mirou para acertar o Atalaia Comandante.  
"Quem  é  você?"  perguntou  o  Comandante,  absolutamente  calmo, 
como  se  a  sua  vida  não  estivesse  em  perigo  mortal.  "E  por  que  o  seu 
coração tem se tornado incrédulo?" 
"Eu  sou  um  homem  do  Rei!  Faço  parte  da  divisão  dos  protetores! 
Você não tem me julgado corretamente. Você tem cometido um erro".  
A  voz  da  Misericórdia  era  baixa,  triste,  e  gentil.  "Não,  senhor.  É 
você. Temos visto". 
"Arrependa-se",  disse  o  Atalaia  Comandante,  com  sua  voz  áspera. 
"Arrependa-se e mude! O Reino será aberto para você novamente." 
"Não  me  arrependerei!"  O  Atalaia  incrédulo  segurou  o  machado 
acima  da  sua  cabeça.  "Eu  não  me  rebaixo!  Um  movimento  seu  e  se 
arrependerá!" Sacudiu a arma ameaçando. 
Destemida,  a  Princesa  Amanda  rapidamente  sacou  o  machado  do 
Cuidador,  do  cinto  prateado que cingia o Atalaia Comandante. "Se jogar 
isso,  se  arrependerá",  ela  gritou.  Herói  observou,  enquanto  a  menina 
mirou  a  lâmina  na  direção  do  centro  do  círculo  vazio. Cuidadosamente, 
ela  enquadrou  seu  alvo.  Ela  girou  o  machado  em  torno  da  sua  cabeça 
várias  vezes.  Um  som  começou  a  ser  emitido,  o  mesmo  som  misterioso 
que Herói ouviu quando entrou pela primeira vez no Grande Parque.  
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A menina deu um passo para frente e soltou uma arma ressonante, 
que  foi  girando  até  bater  no  machado  que  estava  na  mão  do  Atalaia 
incrédulo, e o fez voar até cravar-se na parede distante. 
O  salão  ficou  absolutamente  quieto.  O  coração  de  Herói  ficou  na 
boca.  Cuspir  em  cogumelos  era  uma  coisa,  mas  a  habilidade da menina 
em um combate era outra. 
O  Atalaia  Comandante  falou:  "Você  tem  amado demais o poder do 
fogo.  Este  poder  controla  você.  Pela  segurança  do  Grande  Parque,  terei 
que  bani-lo  à  Cidade  Encantada  como  punição.  Ali  encontrará  fogo  o 
bastante.... Ore para que não queime a sua alma".   
Passos  compassados  ecoaram  pelo  salão,  marcados  e  em  ordem. 
Um  grupo  de  Atalaias  com  mantos  azuis cercou o homem. Um arrancou 
a  fivela  prateada  do  seu  ombro,  outro  tirou  seu  manto  longo  e  azul,  e 
outro  exigiu  que  entregasse  o  cinto  que  tinha  uma  fivela  também  de 
prata.  Finalmente,  um  outro  recolheu  todas  as  vestes  do  Atalaia 
incrédulo e colocou-as nas mãos de Misericórdia. 
Os  Atalaias  fecharam  o  círculo  ao  redor  do  traidor  e  o  conduziram 
para  fora  do  pavilhão.  Um  silêncio  terrível  e  pesado  caiu  sobre  os 
homens  e  mulheres  cansados  que  ficaram  para  trás,  depois  que  o 
Atalaia  incrédulo  saiu.  Pela  primeira  vez,  aquele  dia  Herói  viu  a  cabeça 
nobre  do  Atalaia  Comandante  cair  de  cansaço.  "Orem",  ele  sussurrou, 
"que os incrédulos possam mais uma vez desejar seguir o Rei".  
O  que  aconteceria  com  o  Atalaia  incrédulo  na  Cidade  Encantada? 
Herói  pensou.  Ele  ainda  não  tinha  encontrado  o  Rei,  mas  o  menino 
sabia  naquele  momento  que  ele  preferia  estar  entre  estas  pessoas  que 
usavam  o  nome  do  Rei  em  vez  de  estar  entre  quaisquer  outros.  Se 
necessário, ele daria a sua vida pelo Grande Parque. 
 

Então, o menino aprendeu que o Reino é um lugar onde não basta 


proferir o nome do Rei. É necessário fazer a vontade do Rei, do jeito do 
Rei, ou perder o Reino por completo.  
 

 
 
 
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Colossenses 2:13,14 
Quando vocês estavam mortos em transgressões e na incircuncisão da 
sua carne, Deus os vivificou juntamente com Cristo. Ele nos perdoou 
todas as transgressões, e cancelou o escrito de dívida, que consistia em 
ordenanças, o qual se nos opunha. Ele o removeu, pregando-o na cruz, 
e, tendo despojado os poderes e autoridades, fez deles um espetáculo 
público, triunfando sobre eles na cruz. 
 
Ezequiel 36:25-27 
Então, jogarei água pura sobre vocês, para limpar todos os seus 
pecados. Vocês ficarão purificados de todas as coisas erradas que 
fizeram e do terrível pecado da adoração de imagens. Darei a vocês um 
coração novo, com novos pensamentos e desejos. Darei a vocês um 
espírito novo. Em vez de terem corações duros como pedra, que só 
queriam saber de pecar, vocês terão corações de carne, para poderem 
Me obedecer. Colocarei dentro de vocês o meu Espírito; assim vocês 
serão capazes de viver conforme as minhas leis, e obedecer os meus 
mandamentos. 
 
 
 
   

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Sempre, e para sempre, o Cuidador do Grande Parque trazia aqueles que 
estavam machucados ou amedrontados, doentes ou quebrados, à sua 
esposa Misericórdia, porque ela era sábia e tudo que tocava se 
transformava no melhor.... 
 
Com  exceção  da  Suja.  Suja  se  recusava  a  tornar-se  melhor. 
Cuidador  a  tinha  achado,  no  lado  de  fora  do  Portal  de  Pedras,  fuçando 
em  busca  de  comida,  após  um  Queimador  tê-la  espancado.  A  criança 
estava coberta de machucados e feridas.  
Quando  Cuidador  se  aproximou,  ela  ficou  em  pé  imediatamente  e 
gritou:  "Sou  Suja!  Nunca  me  lavo!  Nunca  Choro!  Luto  contra  tudo  que 
ergue  sua  mão  contra  mim!"  Aí  desmaiou  por  causa  de  suas  feridas  e 
fome.  
Foi  então  que  Cuidador a trouxe até Misericórdia. Mas nem mesmo 
os  esforços  da  senhora  idosa  ajudaram  a  menina  a  desfrutar  a  vida  no 
Grande  Parque.  Suja  odiava  a  cabana.  Ela  desprezava  as  pessoas  que 
moravam  lá.  Achava  que  Cuidador,  com  seu  chapéu  de  árvore  e  seus 
bolsos  que  soavam  com  tons  metálicos,  era  bobo.  Ela  odiava  a  cicatriz 
feia do Herói. 
"Eu  não  vou  morar  com  aqueles  doidos!"  ela  declarou  um  dia, 
enquanto  saía  grunhindo  em  direção  ao  curral  para  ir  morar  com  os 
porcos. 
Daquele  dia  em  diante,  ela  perambulava  pela  lama  e  dormia  nos 
barracões.  Ensaiava  seus  grunhidos  de  porco.  Aprendeu  a  fazer  as 
chamadas  que  os  porcos  faziam:  "Hoi-soi-soi-soi-hoi!"  Ela  viu  as  porcas 

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terem  porquinhos,  e  fez  deles  seus  animais  de  estimação.  E  como  eram 
gentis! Ela os amava. 
Porém, se recusava a amar as pessoas. 
  Uma  outra  exclusa  estava  morando  na  cabana,  uma  menina  da  idade 
de  Suja;  ela  sofria  de  uma  doença,  que  a  tornou  aleijada.  Suja  odiava  a 
Aleijadinha  porque 
ela era feia. 
  "Sui!  Sui!"  ela  dizia 
a  seus  porcos:  "Como 
podem  viver  com 
essa  coisa  feia?  Por 
que  não  se  livram 
dela?" 
  Suja  sentava-se  em 
cima  de  uma 
grande  porca  e 
observava  quando 
Cuidador  carregava 
Aleijadinha  nos 
braços  e  a  colocava 
à  luz  aconchegante 
do  sol.  Ela  escutava 
a  voz  rouca  da  dona 
da  casa  a  cantar 
cânticos.  Suja  fazia 
grunhidos  para 
abafar o som. 
Primeiro,  Misericórdia  tentou  persuadir  a  menina  a vir para dentro 
da  cabana  para  as  refeições,  mas  ela  não  queria.  Depois,  Misericórdia 
levava  comida  nutritiva  até  os  montes  de  refugo,  onde  Suja  gostava  de 
sentar-se,  e  lá  ela  comia  com  a  menina.  Finalmente,  Suja  recusou 
qualquer tipo de comida da mão de Misericórdia.  
"Posso  comer  os  restos  com  os  porcos",  ela  disse.  "Se  fazem  bem 
para os porcos, então vão fazer bem para mim!" 
Finalmente,  o  casal,  que  era  sábio,  decidiu  deixar  Suja  a  sós.  A 
menina  teria  que  aprender que o que era bom para porcos, nem sempre 
era o certo para crianças. 
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E  então,  a  Suja  vivia  nos  barracões  ao  redor  do  quintal  da  cabana 
do  Cuidador  e  nunca  saía  de  lá  ​⎯  com  a  exceção de rastejar para dentro 
da  Floresta  Profunda  em  noites  de  Grande  Celebração.  Suja  gostava  de 
ouvir  os  cânticos  e  de  ver  as  danças,  o  banquete  e  a  comunhão  alegre. 
Ela  se  escondia  tão  bem  que  nenhum  dos  súditos  do  Rei  sabia  que Suja 
os  observava,  em  noites  quando  as  Chamas  do  Círculo  Sagrado  eram 
acesas. 
De  início,  a  entrada  ​⎯  a  hora  em  que  todos  os  súditos  tornam-se 
reais  ​⎯  parecia  estupidez  para  Suja.  Ela  ficou  irritada ao descobrir que a 
vaidosa  Amanda  era  realmente  uma  Princesa.  Ela  pensava  que  todo 
esse  ar  da  Amanda  fosse  só  orgulho.  Ficou  furiosa  quando  Misericórdia 
passou  pelas  chamas  sagradas  e  se tornou a mulher mais bela de todas. 
Bufou quando o Cuidador bobo se tornou o Atalaia Comandante. 
Que tipo de truque eles estavam tentando fazer com ela? 
Agora  fazia  sentido  porque  eram  sempre  felizes  e  bondosos.  Será 
fácil  rir  se  você  realmente  é  uma  princesa.  Será  fácil  ser  boa  se  você 
realmente  é  bonita.  Qualquer  um  poderia  ser  bom  se  tivesse  tanto 
poder. 
Mas,  e  se  você  só  fosse  uma  pessoa  ordinária  que  nunca se tornou 
algo  de  especial?  A  vida  então  não  seria  tão  fácil  assim.  Suja  odiava  os 
súditos  do  Rei  mais  ainda,  mas  por  alguma  razão  não  conseguia  ficar 
longe das Grandes Celebrações que eles faziam. 
Numa  noite,  Suja  se  escondeu  num  buraco  dentro  de  uma  árvore, 
e  observava  os  celebrantes  fazerem  entrada  pelas  Chamas  Sagradas. 
Olhando  através  do  fogo  dançante,  ela  conseguia  ver  que  mesas 
estavam  sendo  preparadas  com  comida  gloriosa  destinada  a  um 
banquete.  Ela  trouxe  do  chiqueiro dos porcos uma espiga de milho seco 
e estava tentando mastigar os caroços duros.  
De  repente,  ouviu  alguém  gritando:  "Uma  caridade!  Dê  uma  ajuda 
ao  pobre!"  Ela  colocou  a  sua  cabeça  no  lado  de  fora  e  viu  que  era  um 
mendigo com a roupa toda rasgada e esfiapada de tanto usar.  
Tarde  demais!  Ela  foi pega! O mendigo a avistou e estava vindo em 
sua  direção.  Ela  grunhiu  e  grunhiu,  pensando  que  isso  iria  assustá-lo. 
Ele  se  agachou,  olhou  para  ela  bem  nos  olhos,  em  seu  esconderijo 
dentro  da  árvore.  "Você  não  vem  para  a  Grande  Celebração?" o homem 
perguntou. 
Suja  saiu  do  seu  esconderijo,  agachou-se  e  ficou  de  joelhos  e 
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mãos  no  chão  e  esticou  o  seu  nariz  até  o  chão.  Ela  bufou,  grunhiu  como 
porco: "Hoi-soi-soi-soi-hoi!" 
O  mendigo  não  aceitou  a  idéia  que  ela  fosse  uma  porca.  "Venha", 
ele  disse.  "Venha!  Passe  pelas  chamas  comigo.  Seja  a  minha  convidada 
no banquete".  
Suja  olhou  para  ele,  mostrou  os  dentes,  grunhiu  de  novo.  Ela 
disse:  "Sui!  Sui!  Ir  com  você?  Você  não  passa  de  um  mendigo  feio!  Eu 
prefiro estar com os porcos!" 
O  mendigo  tocou  gentilmente  seu  ombro.  Suja  se  retraiu,  mas 
sentiu um calor no lugar onde a mão do mendigo tinha tocado.  
"Ah,  Suja",  ele  disse,  "você  não  sabe?  Todos  os  súditos  do  Rei  não 
são nada mais do que mendigos feios".  
Com  isso,  ele  se  retirou.  Ela  ficou  abismada  porque  ele  não  bateu 
nem  soltou  um  berro  tipo:  "Sua porca! Quem é você para me chamar de 
feio?" 
Suja  observou  o  mendigo  fazer  entrada.  Ela  ouviu  os  Atalaias  o 
saudarem.  Ela  viu  o  alvoroço  feliz  de  cumprimentos  no  Círculo  Íntimo. 
Ela  viu  o mendigo tornar-se real. Pelas chamas ela viu que ele era o mais 
lindo de todos os homens que já tinha visto. Ele era o próprio Rei. 
E ele a tinha convidado para ir com ele.... 
Naquele  momento, Suja, fedorenta e descuidada, começou a amar 
o  Rei.  Um  desejo  encheu  seu  coração:  ela  queria  ser  tão  linda  quanto 
ele.  
A  música  para  a  celebração  começou.  O  Rei  desapareceu  dentro 
da  multidão  feliz.  Suja  se  escondeu  novamente  no  seu  buraco.  De  lá, 
conseguia  ver  os  atrasados  que  se  apressavam  em  fazer  entrada.  À 
distância,  ela  pôde  avistar  Misericórdia  e  Cuidador  ligeiramente 
passando pela floresta em direção às Chamas Sagradas.  
Ao  se  aproximarem,  Suja  conseguiu  ver  que  estavam  carregando 
Aleijadinha  sobre  os  braços  trançados.  Eles  a  levavam  para  a 
celebração. 
Suja  queria  ver  isso  melhor.  Arrastou-se  para  fora  do  seu  buraco 
para  ver  se  aquela  criatura feia iria tornar-se real. Ela olhou bem para os 
três  ao  proferirem  o  voto  do  Reino: "Ao Rei! À Restauração!" Ela prestou 
atenção quando passaram pelas chamas.  
Ha!  Exclamou  Suja.  Misericórdia  tornou-se  linda.  Cuidador 
tornou-se  o  Atalaia  Comandante.  Mas  Aleijadinha  ainda  estava 
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deformada.  
Mas  espere!  Espere!  O  que  é  que  Atalaia  Comandante  e 
Misericórdia  estavam  fazendo  agora?  A  multidão  se  dividiu  quando  os 
viu carregando Aleijadinha, para abrir caminho. . .ao Rei! 
Suja  acompanhou  enquanto  o  Rei  sorria  para  Aleijadinha.  Ele 
agachou-se  e  a  pegou  em  seus  braços.  Viu  o  Rei  segurar  bem  de perto a 
cabecinha  daquela  menina  estúpida.  Aquele  homem  lindo  estava 
segurando aquela coisa feia! Estava conversando com ela.  
Não! Não! pensou Suja. Ele convidou a mim!" 
Aí,  Suja  arregalou  os  olhos.  O  Rei  abaixou  a  cabeça  e  beijou  a 
menina  que  estava  nos  seus  braços.  Com  o  seu  beijo,  ela  de  repente 
ficou real. Seu corpo ficou reto. Ela estava linda e radiante.  
Poderia  ter  sido  eu,  pensou  Suja.  Se  eu  não  tivesse  agido 
tanto como uma porca. Se eu... 
Suja  ficou  cheia  de  raiva.  "Sui!  Sui!  Seus  estúpidos!  Seus 
nojentos!"  Mas  ela  realmente  estava irada consigo mesma. A menina saiu 
pela  noite  guinchando.  Voltou  para  os  porcos,  de  volta  às  únicas  coisas 
que ela decidiu amar.  
Na  manhã  seguinte,  Suja  estava  lá  sentada  em  cima  do  monte  de 
refugo e viu Cuidador carregar Aleijadinha para o seu lugar à luz do sol . 
Há! Ela exclamou. Sui! Sui! Ela ainda é uma aleijada feia. 
Mas  espere  um  pouco! Aleijadinha estava cantando. A menina porca 
engatinhou  para  fora  do  portão para poder examinar Aleijadinha mais de 
perto. 
Ouvindo  um  barulho,  Aleijadinha  virou  o  rosto  para  ver  a  menina 
que  rastejava.  Sua  face  tinha  a  mesma  beleza  que  teve  quando  o  Rei  a 
beijou!  Até  Suja  sabia  que  ninguém  poderia  pensar  que  a  menina  era 
feia uma vez que contemplasse o seu rosto, pois brilhava. 
Então  é  isso  que  acontece  quando  se  recebe  um  beijo  do  Rei, 
pensou Suja. Ela se lembrou do toque caloroso e gentil de sua mão.  
O  pensamento  de  voltar  para  os  porcos  tornou-se  horrível  agora. 
Só  de  pensar  na  lama,  era  nojento.  Só  de  imaginar-se  morando  no 
chiqueiro,  comer  restos,  era  algo  terrível.  Suja  estava  disposta  a  deixar 
tudo  isso  em  troca  de  mais  uma  chance,  para  poder  dizer:  "Sim,  eu 
adoraria ser a sua convidada..." 
Mas  era  tarde  demais.  Ela  tinha  se  tornado  mais  porca  do  que 
nunca. Ele nunca a iria amar, nunca iria dar um beijo nela. 
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Quando  ela  se  deu  conta  de  que  estava  chorando  em  frente  à 
menina  do  rosto  radiante,  ela  saiu  correndo  pela  floresta  afora.  Levou 
dias  para  Cuidador  achá-la.  Quando  ele  finalmente  conseguiu  achá-la, 
as  suas  mãos  e  seu  rosto estavam limpos. Seu cabelo e as unhas tinham 
sido  lavados  no  lago Marmo. Sua roupa tinha sido esfregada num riacho 
ali pertinho. Mas ela ainda estava chorando. 
Cuidador  a  pegou  nos  braços,  soltando  um  barulhinho  de  tinidos, 
e a carregou, como fazia com todas as coisas feridas, até Misericórdia.  
Misericórdia  ficou  encantada.  "Ué?  Quem  temos  aqui?"  ela 
perguntou. 
"Sou-sou a Su-Suja", a menina respondeu com soluços.  
"Mas  você  está  limpa",  Misericórdia  disse,  tentando  fazer  um 
elogio.  
"Não,  não!"  a  criança  berrou  mais  ainda.  "Eu  tenho  me  lavado  e 
me  esfregado,  mas  ainda  continuo  suja.  Sou  uma  porca  por  dentro.  O 
Rei nunca vai me amar. É muito tarde!" 
Misericórdia  balançou  a  cabeça  já  que  sabia  melhor.  "Vamos  ver o 
que o Rei tem a dizer sobre isso".  
Então,  Misericórdia  levou  a  menina  porca  para  a  próxima  Grande 
Celebração.  Atalaias estavam todos posicionados ao redor do Círculo de 
chamas.  Suja  puxou  a  capa  de  um  e  perguntou:  "O  mendigo  vem hoje à 
noite?" 
Quando  o  homem  alto  balançou  a  cabeça  que não, seu coração se 
partiu. 
Suja  seguiu  Misericórdia  até  que  começou  a  passar  pelo  fogo.  O 
calor  escaldou  o  coração  da  menina  porca.  Parecia  que  tudo  dentro 
dela  estava  sendo  queimado.  A  menina  gritou,  e  Misericórdia  colocou 
seus  braços  em  volta  dela.  Ela  sussurrou,  "Não  tenha  medo.  A  dor  é 
momentânea".  
"Não  adianta!  Não  adianta!"  Suja  gritou.  "O  Rei  não  vai  vir!  É  ele 
quem  eu  preciso  ver.  Mais  ninguém  pode  me tornar. . . limpa". Com isso 
as  duas  fizeram  passagem,  e  a  menina  olhou  para  cima  e  viu  a  beleza 
indescritível  da  jovem  Misericórdia,  seu  cabelo  preto  e  longo  agora 
chegando à sua cintura.  
Misericórdia  pegou  na  mão  da  menina.  "Deixe-me  te  contar  um 
segredo  maravilhoso",  disse  ela.  "Todas  as  pessoas  do Reino conhecem 
este  segredo.  É  uma  das  primeiras  lições  que  aprendem.  O  Rei  não 
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precisa vir para que possamos vê-lo. Ele está sempre presente".  
Suja  parou  de  chorar.  Ela  olhou  para  Misericórdia.  "Não  estou 
entendendo o que você está querendo dizer". 
"Escute",  disse  Misericórdia.  Ela  colocou  o  seu  dedo nos lábios em 
sinal  de  silêncio.  "Escute,  e  vai  poder  ouvi-lo  falando.  Dê  ouvidos.  Ele 
tem algo para te dizer". 
Suja  limpou  as  lágrimas,  fechou  os  olhos  e  abriu  os  ouvidos  o 
melhor possível. 
Sim,  havia  algo.  Ela  pôde  ouvir  alguém  falando.  Era  a  voz  do  Rei 
Mendigo.  Ele  estava  dizendo,  Venha,  venha  comigo.  Seja  a  minha 
convidada especial para o banquete. 
Suja  manteve  seus  olhos  fechados.  ​Seu  convidado  especial.​ ..  Ela 
podia  sentir  algo  sendo  despejado  sobre  ela.  Fluiu  por  dentro  dela, 
começando  na  sua  cabeça,  depois  passando  por  trás  dos  seus  olhos, 
invadindo  todos  os  nós  e  lugares  torcidos  no  seu  interior.  Era  quente, 
gentil e fluido. 
Misericórdia assoprou: "É o Amor do Rei, Suja. O Amor do Rei".  
Suja  podia  ouvir a voz de novo. O Rei estava rindo. Aí ele parou. Ele 
disse:  "Estou  tão  feliz  porque  você  preferiu  estar  comigo  do que com os 
porcos".  
A  inundação  calorosa  já  tinha  chegado  aos  dedos  do  pé.  Suja  se 
sentiu  como  se  estivesse  sendo  segurada  pelo  Rei,  assim  como 
Aleijadinha  o  foi.  Ela  sentiu  o  seu  beijo.  Misericórdia  estava  certa:  não 
era necessário ver o Rei para ser envolvida pelo poder do seu amor.  
Suja  começou  a  ouvir  música.  Os  violinistas  e  os  tocadores  de 
harpas  tinham começado a tocar. Era a hora da dança que dava início às 
celebrações.  Ela  já  tinha  visto  isto  muitas  vezes  do  lado  de  fora.  Agora, 
ela  estava  bem  no  centro.  Todos  os  súditos  deram-se  as  mãos  em  um 
grande círculo.  
Suja  queria  dançar.  Ela  queria  cantar  e  gritar.  Ela  olhou  para 
Misericórdia.  "O  Rei  realmente  me  ama!  Estou  limpa!  Estou  limpa!  O  rei 
me fez pura!"  
Misericórdia  a  pegou  pela  mão  e  a  trouxe  mais  para  dentro  do 
círculo  dos  que  estavam  dançando  dentro  das  Chamas  Sagradas. 
Alguém  pegou  a  outra  mão  dela.  Os  músicos  começaram  a  marcar  o 
ritmo.  A  menina  sabia  que  a  dança  iria  começar  devagar,  e  iria 
crescendo,  e  que  o  círculo  iria  girar  em  perfeita  ordem,  tornando-se 
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mais e mais rápido. 
Ela  conhecia  os  passos.  Ela  tinha  visto  isso  várias  vezes.  Mas  não 
sabia  que  todos  os  súditos  iriam  cantar  a  sua  música  que  já  ressoava 
por todos aqueles que estavam na roda:  
Estou limpa! Estou limpa! 
O Rei tem-me feito pura! 
Ela está limpa! Ela está limpa! 
O Rei a tornou pura! 
 
E  a  roda  girava  mais  e  mais  rápido.  Os  súditos  do  Rei 
cantavam  e  dançavam,  regozijando-se.  Mas  ninguém  cantava  mais  alto 
e  nem  dançava  com  mais  força  do  que  a  Suja,  que  se  tornou  Alimpia,  . . 
.a limpa.  
 

E então a menina porca deixou os seus porcos por Aquele que ela 
amava. E ela ficou sendo a limpa, que tinha um carinho muito especial 
por todas as coisas feias, pois sabia que um Rei pode achar algo lindo 
em qualquer monte de lixo. 
 
 
 
 
   

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2 Timóteo 1:7 
Pois Deus não nos deu espírito de covardia, mas de poder, de amor e de 
equilíbrio. 
 
1 João 4:16-18 
Assim conhecemos o amor que Deus tem por nós e confiamos nesse 
amor. Deus é amor. Todo aquele que permanece no amor permanece 
em Deus, e Deus nele. Desta forma, o amor está aperfeiçoado entre nós, 
para que no dia do juízo tenhamos confiança, porque neste mundo 
somos como ele. No amor não há medo; pelo contrário o perfeito amor 
expulsa o medo, porque o medo supõe castigo. Aquele que tem medo 
não está aperfeiçoado no amor. 
 
Efésios 4:22-24 
Quanto à antiga maneira de viver, vocês foram ensinados a despir-se do 
velho homem, que se corrompe por desejos enganosos, a serem 
renovados no modo de pensar e a revestir-se do novo homem, criado 
para ser semelhante a Deus em justiça e santidade provenientes da 
verdade. 
 
 
 
 
 

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O de Herói 
 
Há muito tempo atrás, hoje e para sempre havia e há e sempre haverá um 
Cuidador que está eternamente ocupado em criar e cuidar de novas 
idéias. Mas as idéias de que ele mais gosta são aquelas que ele planta na 
mente de crianças.  
 
"Nunca  vou  ter  a  coragem  de  ser  um  Atalaia",  disse  Herói  um  dia, 
quando  estava  observando  o  Cuidador  criar  flores  no  meio  da  Floresta 
Silvestre.  O  menino  estava  sentado  com  a  sua  mão  cobrindo  a  sua 
cicatriz.  As  pessoas  no  Grande  Parque nunca o xingavam, mas o menino 
estava  certo  de  que  já  as  tinha  pego  olhando  para  ele.  Ele  pensou  que 
provavelmente falavam sobre ele quando ele não estava perto. 
"Tenho  uma  nova  idéia",  disse  o  Cuidador.  "Vamos  tentar  isso  e 
ver  se  fica  legal.  Ta-doo!"  O  velho  homem  fez  um  gesto  com  as  suas 
mãos  em  frente  do  seu  rosto.  Uma  flor  amarela  brilhante  explodiu  da 
ponta do talo. 
"Ta-daa..."  disse  Cuidador  de  novo.  A  flor  mudou.  Desta  vez,  ela 
ficou  com  um  centro  cor  de  laranja  e  as  pétalas  ficaram  achatadas  e 
arredondadas ao invés de pontudas.  
"Não,  não,  não.  Não  fico  bom.  Não  tá  legal".  Cuidador  balançou 
sua  cabeça.  "Deixe-me  ver..."  Ele  pensou mais um pouco, com a mão no 
queixo.  
O  velho  de  repente  levantou  a  cabeça,  com  um  brilho  forte  nos 
seus olhos cinzas. "Aha! Já sei!" Ele levantou seus braços. "Te-dee!" 
A  flor  estremeceu  e  logo  depois  suas  pétalas  de  dentro  ficaram 
espetadas e as de fora ficaram lisas e arredondas na beirada! 
"Ah-hah!"  gracejou  Cuidador.  "Perfeito.  Perfeito.  Legal. 
Absolutamente lindo. Agora fique olhando rapaz! Fique olhando".  
O  velho  ficou  na  ponta dos pés. Seus cotovelos estavam dobrados, 
mas  erguidos;  e  aí  ele  começou  a  balançar  os  braços.  As  facas  e 
tesourinhas  e  pazinhas  em  seu  colete  começaram  a  tinir.  "Ta-dee! 
Ta-dee! Ta-dee!" Mais flores explodiram.  
Cuidador  balançou seus braços ainda mais. Ele apontou. "Ta-daa!" 
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Pétalas  e  talos.  "Ta-dee!"  Um  esguichar  de  amarelo.  "Ta-doo!"  O  chão 
do  bosque  ficou  atapetado  com  um  tom  de  manteiga,  cada  flor 
delicadamente alaranjada no meio.  
Cuidador  girava  e  girava.  "Ai,  são  lindas!"  Ele  sentou-se.  "Lindas!" 
Ele colocou a mão na barriga e riu, só pelo prazer de criar.  
Herói  ficou  abismado.  Ele  já  tinha  ouvido  que  o  Atalaia 
Comandante  e  esse  velho  Cuidador  eram  a  mesma  pessoa.  Os  poderes 
contidos  em  cada  um  continuamente  o  surpreendia.  Um  tinha  o  poder 
de  liderança;  o  outro  tinha  poder  sobre  a  criação.  Herói  estava 
aprendendo a amar as duas faces, mas de maneiras diferentes.  
Cuidador  parou  com  seu  divertimento,  radiante.  Ele  limpou  seus 
olhos. "O que você estava dizendo, rapaz?" 
Por  um  momento,  Herói não conseguia lembrar-se. Ele continuava 
vendo  flores  selvagens explodindo em sua mente. Aí ele se lembrou. "Eu 
disse  que  nunca  vou  ser  corajoso".  No  fundo  do  seu  coração  Herói 
queria  ser  um  Atalaia,  um  vigia  nas  torres,  sempre  cheio  de  coragem  e 
verdadeiro.  O  menino  olhou  para  baixo.  Ele  segurou  com  mais  força 
ainda  a  sua  mão  cobrindo  seu  rosto.  "Eu  acho",  ele  continuou,  "que 
você me deu o nome errado".  
"Tolice",  disse  Cuidador.  O  velho  homem  ficou de pé. Ele encaixou 
sua  barba  de  novo  no  seu  cinto  de  videira,  colocou  de  volta  algumas 
ferramentas  nos  seus  bolsos,  e  pegou  seu  chapéu  do  chão  que  era  uma 
pequena  horta  brotando.  Ele  pegou  o  rapaz  pelos  ombros.  Sua  voz  era 
baixa  e  bondosa.  "Só  um  menino  com  um  coração  de  herói  teria 
desafiado  o  Encantador  para  poder  achar  um  Rei.  Sempre  se  exige 
coragem para crer". 
Mas  Herói  sabia  que  ele  só  tinha  procurado  o  Grande  Parque 
porque  estava  com  medo:  medo  do  Encantador,  da  praça  das  cinzas, 
medo  do  fogo  e  de  ser  um  órfão.  Herói  tentou  fazer  com  que  sua  gola 
cobrisse  a  marca  na  sua  face.  Sua  voz  implorava:  "Não  dá para você me 
fazer  corajoso?  Será  que  não  dá  para  você  me  dar  algo  para  tomar  ou 
comer  que  me  faria  corajoso?  Você  pode  fazer  ​qualquer  coisa.  Não  dá 
prá você me transformar em um menino corajoso?”  
Com  ar  sério,  Cuidador  abanou  o  seu  dedo  ao  lado  da  sua cabeça. 
"Deixe-me  ver...ummm...vamos  ver...Eu  sei!  Eu  Sei!  Você  precisa  de  um 
desafio. É, é isso aí, um desafio. Heróis sempre precisam de um desafio". 
"Um  desafio?"  perguntou  Herói.  Ele  esperava  que  não  fosse  nada 
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como  andar  em  cima  de  brasas  vivas  descalço  ou  ficar  no  meio  de  um 
círculo de chamas. 
"O  que  poderia  ser?  Vamos  ver..."  A  voz  de  Cuidador  interrompeu 
seus  pensamentos.  "Socorrer  uma  princesa?  Não,  não,  não!  Só  temos 
uma princesa em Grande Parque e ela não necessita de ser socorrida". 
Herói pensou em Amanda e concordou com Cuidador.  
"Que tal passar por aquilo que você mais teme?" 
O  coração  de  Herói  começou  a  dar  socos  no  seu  peito.  Ele  pôde 
ouvir o som das chamas lambendo a madeira.  
"Não,  não,  não" Cuidador respondeu com risadas ao ver o olhar de 
horror  que  tomou  posse  do  rosto  de  Herói.  "Todas  as  coisas  em  seu 
tempo devido: Vamos ver..." 
Herói  conseguiu  respirar  bem  fundo.  Que  tal  esquecer  essa  idéia 
toda  de  um  desafio?  Talvez  ele  acordaria  uma  bela  manhã  e  se  sentiria 
corajoso.  
"Eu  sei!"  gritou  Cuidador.  Ele  levantou  seu  dedo  no  ar. "Você deve 
enfrentar seu maior inimigo em combate justo!" 
Quem que é o meu maior inimigo? pensou Herói. Queimadores? Suor 
frio  começou  a  escorrer  pelo  meio  das  suas  costas.  Talvez  houvesse  algo 
terrível  e  escondido  nas  sombras  mais  escuras  da  Floresta  Profunda, 
pronto para atacá-lo. 
"Agora,  vamos  lá",  disse  Cuidador.  "Eu tenho outros afazeres hoje. 
Sim, isso mesmo. Enfrente seu maior inimigo em combate justo".  
Herói  estava  encucado.  Que  idéia  boba.  Um  desafio.  Como  que 
isso  iria  torná-lo  corajoso?  Se  ele  conseguisse  achar  o  seu  maior 
inimigo,  era  provável  que  fosse  maior  do  que  ele.  E  aí  quem  é  que  iria 
derrotar quem? Talvez Cuidador estivesse fazendo uma brincadeira com 
ele.  Se  Herói  pudesse  achar  Amanda,  ela  iria  poder  avisá-lo  se  esse 
desafio  era  verdadeiro  ou  se  era  só  uma  brincadeira  nova. Nessas horas 
Amanda  estaria  nos  campos  de  treinamento,  preparando-se  para  a 
Grande Celebração daquela noite.  
Herói  nunca  ia  para  as  Celebrações.  Ele tinha medo de passar pelo 
Círculo  das  Chamas  Sagradas.  Era  uma  das  razões  porque  ele sabia que 
nunca iria conseguir ser um Atalaia.  
No  seu  caminho  para  os  campos de treino, o menino encontrou-se 
com  o  Lenhador,  que  estava  cortando  árvores  na  Floresta  Silvestre. 
Raios  da  luz  do  sol  refletiam  tons  dourados  no  seu  cabelo,  enquanto 
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trabalhava.  "Cuidado!"  gritou  o  homem.  "A  árvore  está  quase  no  ponto 
de  tombar".  Houve  um  estouro  leve  quando  a  madeira  começou  a 
rachar,  e  aí  o  grande  carvalho  veio  estalando  e  tombando  até  o  chão. O 
coração de Herói ficou impressionado com o poder magnífico da queda. 
"Oi!  Você  parece  ser  um  rapaz  forte.  Dá  para  me  ajudar  um 
pouquinho?" o Lenhador perguntou.  
Herói  pensou que ele fosse gostar de ajudar. Ele tinha um desafio a 
cumprir,  mas  aquilo  dava  para  esperar. Pegou firme com uma das mãos 
em  uma  ponta  do  serrote.  A  sua  outra  mão  ficou  colada  no  seu  rosto 
para esconder a cicatriz feia.  
"O,  rapaz",  disse  o  Lenhador,  "vai  precisar  das  duas  mãos  para 
esse  trabalho;  duas  mãos  fortes.  O  ritmo  vai  assim:  você  puxa  e  depois 
eu  puxo.  Você  puxa e depois eu puxo, tá?" Era um daqueles serrotes que 
têm um lugar para pegar nos dois lados. 
Herói  mostrou  com  um  movimento  da  cabeça  que  estava  pronto. 
Ele  colocou  as  duas  mãos  na  ponta  do  serrote  comprido.  Ele  se  sentiu 
nu e exposto, agora que sua cicatriz estava descoberta.  
Mas o Lenhador só sorria. Ele não parecia surpreso ou espantado.  
"É isso jovem. Tem que usar duas mãos fortes".  
O  rapaz  e  o  homem  trabalhavam  bem  juntos.  Herói  pegou  o  ritmo. 
Puxa-solta-puxa.  Puxa-solta-puxa.  Puxa-solta-puxa.  Herói  sempre  dava 
umas olhadas para o Lenhador. Ele viu seus músculos fazendo sua camisa 
esticar;  ele  viu  a  graça  e  a  habilidade  do  homem  ao  fazer  a  ferramenta 
trabalhar  contra  a  madeira.  Era  gostoso  fazer  o  trabalho  de  homem. 
Herói esqueceu que a sua cicatriz feia estava se mostrando.  
Entre  uma  das  serradas,  os  dois  descansaram.  "Você  é  um  dos 
homens do Rei?" Herói perguntou.  
"Sim,  eu  sou",  disse  o homem ao afiar os dentes do serrote com uma 
lima. E depois ele piscou: "Um dos melhores dos homens do Rei".  
Quando  a  árvore  enorme  tinha  sido cortada em peças de tamanho 
adequado,  o  Lenhador  agradeceu  ao  rapaz.  "Você  é  uma  boa  ajuda. 
Espero não o ter atrapalhado de fazer algo importante".  
"Ah,  não",  respondeu  Herói,  ao  cobrir  o  seu  rosto  de  novo  com  a 
mão.  "Eu  só  estava  indo  cumprir  um  desafio".  Ele  se  sentiu  meio  bobo 
falando  isso  e  esperava  que  o  Lenhador  não  fosse  rir  dele.  "É  para  eu 
enfrentar o meu maior inimigo em combate justo".  
O  Lenhador  deu uma risada. Ele colocou o serrote pesado nos seus 
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ombros.  "Parece  ser  uma  das  idéias  de  Cuidador".  O  Lenhador  virou-se 
para  começar  a  descer  a  trilha  e  Herói  notou  que  ele estava assobiando 
e  ficou  olhando  para  ele.  Aí  o  homem  virou-se  de novo de volta para ele 
e  o  chamou.  "O  jovem,  se  você  vai  sair  em  busca  do  seu  desafio  e 
encontrar  o  seu  maior  inimigo,  seria  melhor  você  usar  as  duas  mãos". 
Ele  apontou  com  o  queixo  para  aquela  que  Herói  estava  usando  para 
cobrir  a  sua  face.  Surpreso,  o  menino  meteu  as  mãos  nos  bolsos.  O 
homem sorriu, virou-se, e foi-se embora. 
Herói  ficou  com  as  mãos  nos  bolsos,  enquanto  caminhava  pela 
trilha em direção aos campos de treinamento.  
Em  poucos  momentos  ele  emergiu  da  Floresta  Silvestre.  Centenas 
de  pessoas  estavam  ocupadas  aperfeiçoando  as  suas  habilidades  no 
campo  de  treinamento.  Um  coral  estava  ensaiando  algumas  músicas, 
um  grupo  de  dançarinas  estava  medindo  bem  os  passos  de  uma  velha 
dança.  Herói  pôde  ouvir  o  Mestre  Ritmo  cantando  em  voz  alta, 
"Um-e-dois-e-três-e-".  Acrobatas  estavam  aperfeiçoando  os  seus  saltos 
duplos  e  mortais  para  cima  e  para  baixo,  vez  após  vez.  Um  homem 
estava  se  equilibrando  numa  corda  bamba.  Músicos  afinavam  seus 
instrumentos. 
Herói pôde ver Amanda, junto com outros arqueiros, puxando uma 
flecha  por  um  arco  grande  e  mirando  para  um  alvo  distante.  A  maioria 
das  vezes  ela  acertava  o que estava mirando. Herói ficou impressionado 
mais  uma  vez.  Como  que uma menina poderia mirar tão perfeitamente? 
Amanda  nunca  iria  precisar  de  ser  socorrida;  bem,  pelo  menos  por  ele 
não. 
Os  arqueiros  pararam  para  descansar  um  pouco.  Herói  sentiu  o 
calor  do  sol  e  o  cansaço  do  trabalho  na  floresta.  Ele  notou  que  grandes 
mesas  estavam  sendo  arrastadas  para  a  sombra  debaixo  das  árvores. 
Ele  foi para ajudar e, de repente, lembrou-se da despedida do Lenhador. 
"...seria melhor usar as duas mãos..." 
Herói  se  sentiu  bobo.  Ele  tinha  gasto  a  sua  vida  inteira,  desde 
aquele  dia  da  marcação  e  o  acidente,  com  uma  mão  no  rosto.  Como foi 
bom  trabalhar  com  aquele  serrote,  usando  as  duas  mãos.  Ele  fez 
questão de ajudar a arrastar as mesas, com as duas mãos. 
Ele  carregou  travessas  de  frios,  tigelas  de frutas e cestos grandes de 
pães  redondos  e  pães  de  centeio.  Eu  tenho  gasto  a  minha  vida  inteira 
desequilibrado, ele pensou, impressionado com a sua descoberta. As duas 
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mãos  são  para  trabalhar.  O  Lenhador  está  certo.  Terei  uma  terrível 
desvantagem  se  me  encontrar  com  o  meu  maior  inimigo  com  uma  mão 
colada no meu rosto! 
Ele  girou  e  olhou  de  frente  para os olhos das pessoas ao seu redor: 
os  acrobatas, os malabaristas, os palhaços. Ninguém apontou. Ninguém 
se  recolheu  de  horror.  Um  rapagão  bateu-lhe  nas  costas  e  soltou  sua 
voz:  "não  fique  parado aí. Há uma sede tremenda se manifestando aqui. 
Coloque o suco de maçã nos copos".  
Então  Herói obedeceu. Ele usou uma mão para equilibrar o fundo da 
jarra pesada. Duas mãos, ele pensou. Duas mãos é melhor do que só uma.  
Ele  decidiu  levar  um  copo  até  Amanda.  Fez  seu  caminho  por entre 
malabaristas  e  grupos  de  dança  até  chegar  ao  outro  lado  do  campo  de 
treinamento.  
Quando  ela  o  viu  chegando,  Amanda  riu.  Veio  correndo  até  ele  e 
pegou  o  refresco  gelado  que  já  tinha  criado  gotas  de  suor  no  lado  de 
fora do copo.  
"Ah,  obrigada  Herói",  ela  falou  após  ter  engolido  o  suco.  "Você 
salvou a minha vida. Estava morrendo de sede". 
Herói  deu  risadas  ao  ouvir  isso. Pena que Cuidador não pediu para 
ele  socorrer  uma  princesa,  Herói  pensou.  Acabei  de  salvar  a  vida  de 
uma, ela mesma disse. 
"Almoce  com  a  gente",  Amanda  sugeriu.  "Só  vai  demorar  uma 
meia hora".  
O  Dia  começou  a  esquentar  e  Herói  se  esticou  na  grama  cheirosa. 
Seus  braços  se  sentiram  fortes  e  exercitados.  Ele  cruzou  os  braços  por 
trás  da  cabeça.  Quem  seria seu maior inimigo? Ele se sentiu pronto para 
enfrentar esse inimigo nesse dia.  
O  que  é  uma  cicatriz?  Ele  perguntou  para  si  mesmo.  Muitas pessoas 
têm  cicatrizes.  E  aí  Herói  teve  um  pensamento  novo.  Talvez  a  cicatriz 
tivesse  sarado  aqui  no  Grande  Parque.  Talvez  tivesse  quase 
desaparecido.  Muitas  coisas  poderiam  acontecer.  Ele  até  poderia 
tornar-se corajoso.... Foi então que ele adormeceu à luz brilhante do dia.  
Antes  de  Herói  ficar  totalmente  acordado  de novo, ele ouviu como 
se  fosse  uma  brisa  brincando.  Era  Amanda  dando  risadas.  Herói  tinha 
descoberto  que  sempre  ouvia  a  Amanda  antes  de  vê-la.  "Acorde  seu 
preguiçoso.  Estou  morrendo  de  fome.  Está  na  hora  de  comer".  Ela  o 
cutucou  com  seu  dedão  do  pé.  Ele  agarrou  o  tornozelo  dela  com  sua 
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mão.  
Ela tentou escapar.  
Ele usou a outra mão para pegar firme, e puxou.  
Ela  tropeçou  e  caiu, deu umas cambalhotas, conseguiu ficar em pé 
ainda,  e  saiu  correndo  em  direção  das  mesas  com  Herói  correndo  logo 
atrás. Com as duas mãos ele conseguia até derrubar a Princesa Amanda. 
Uma  vez  à  mesa,  a  princesa  apresentou  Herói  ao  grupo  dos 
Malabaristas.  Eles  o  receberam  com  alegria.  Todos  se  silenciaram  e  foi 
dado  início  a  um cântico. Todos deram as mãos e Herói pegou nas mãos 
das  pessoas  ao  lado  dele.  Eles  cantaram  "Ao  Rei,  ao  Rei.  Ao  Reino  e  ao 
Rei".  Herói  se  lembrou  do  Cuidador  cantando  flores  em  existência 
naquela  manhã.  Ele  se  lembrou  do  som  que  o  serrote  fazia  ao  cortar  a 
madeira  e  do  ritmo  que  criava.  Ele  sentiu  o pegar forte nas duas palmas 
da mão. Duas mãos, duas mãos... 
"Você  vai  vir  para  a  Grande  Celebração  hoje  a  noite?"  Amanda 
perguntou.  "Hoje  vai  ser  a  noite  de  apresentações,  do  circo,  da  festa  de 
nomear,  do  desfile  e  do  banquete...tudo  junto.  É  quando  todos  os 
súditos tornam-se o que realmente são".  
Herói  pensou  sobre  o  Círculo  de  Chamas  Sagradas  que  eram 
acesas  em  torno  do  Círculo  Íntimo  onde  a  Grande  Celebração  se 
realizava.  Ele  sabia  que  seria  realmente corajoso, quando passasse pelo 
fogo. 
Depois  do  almoço,  as  duas  crianças  subiram  o  Monte  dos  Pinhais 
só  porque  acharam  legal.  Deste  ponto  podiam  ver  tudo  pelos  campos 
de  treinamento.  De  lá  de  cima  eles  tinham  uma  vista  de  todo  o  Grande 
Parque.  Herói  podia  ver  a  Entrada  do  Portal  de  Pedras  e  a  Cidade 
Encantada  além,  dormente.  Ele  podia  ver  a  Cabana  do  Cuidador  e  a 
linha  das  torres  de  vigia  dos  Atalaias.  Ele  e  Amanda  notaram  os  seis 
lugares  que  tinham  queimado  na  Floresta  Profunda;  agora,  círculos 
pretos.  Hectares de árvores foram queimados. Troncos feios apontavam 
dedos  e  braços  para  o  céu.  Herói  lembrou-se  do  Lugar  da Marcação. Ele 
cobriu seu rosto. 

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"Pare com isso!" gritou a pequena menina, irritada.  
"Parar com o quê?" disse Herói surpreso.  
"De cobrir o seu rosto com a sua mão, é feio!" 
Rapidamente,  Herói  pegou  nos  ombros  da  Amanda,  e  virou  a 
princesa  para  que  ela  olhasse  bem  no  rosto  dele.  "Amanda?"  ele 
perguntou.  "O  que  você  vê  quando  você  olha  para  mim?"  Talvez  a  sua 
cicatriz  tivesse  desaparecido.  Talvez  Grande  Parque  e  a  cabana  da 
Misericórdia  e  Cuidador  tivessem  feito  algo  maravilhoso  para  ele. 
Ninguém  do  campo  de  treinamento  tinha  apontado  para  ele  e  nem 
deram risadas. Seu coração batia forte, com esperança.  
A  princesa  o  olhou  direto  nos  olhos.  "Eu  vejo  um  rapaz  elegante 
com uma velha ferida no seu rosto". 
"Ah," disse Herói desapontado.  
"Mas  não  é  só  isso  que  eu  vejo",  a menina continuou. "Eu também 
vejo um herói".  
Ele  balançou  a  cabeça.  Deu  as  costas,  para ela não poder ver a sua 
cara.  Sua  voz  estava  baixa.  "Que  herói,  que  nada.  Era  para  eu  cumprir 
um  desafio  hoje.  Era  para  enfrentar  o  meu  maior  inimigo  em  combate 
justo.  O  dia  já  está  quase  acabando  e  eu  nem  sei  quem  meu  maior 
inimigo é..." 
"Essa  idéia  veio  de  quem?"  perguntou  a  voz  baixa  e  impudente 
atrás dele. "Foi Cuidador que te mandou neste desafio, não foi?' 
Herói  virou-se  de  novo  para  olhar para ela. De propósito ele enfiou 
as  duas  mãos  nos  seus  bolsos.  "É  uma  brincadeira?  Eu  não  dou  certo 
com brincadeiras". 
Amanda  sorriu.  Sua  voz  estava  bem  baixa.  "Não  é  nenhuma 
brincadeira.  Ele  me  mandou  numa  destas  coisas  também.  Cedo  ou 
tarde,  ele  manda todos num desafio. E todos começam enfrentando seu 
maior inimigo".  
Herói  queria  cobrir  a  sua  cicatriz,  mas  ao  invés  disso  empurrou 
suas  mãos  mais  prá dentro dos bolsos ainda. "Você enfrentou seu maior 
inimigo?" 
Ela mostrou com a cabeça que sim. 
"Quem que era?" 
"O  mesmo  que  é  com  todos".  Amanda  riu  ao  ver  a  sua  careta 
perplexa.  "Eu  não  posso  ficar  por  aqui  o  dia  todo,  respondendo 
perguntas. Eu preciso ir e me preparar para a Grande Celebração".  
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"Ah,  então  vai",  disse  Herói  bruscamente.  "O  que  é  que  está  te 
segurando?"  Ele  lutou  contra  a  vontade  de  dar-lhe  um  empurrão  em 
direção ao pé do monte.  
"Não  consigo  ir",  ela  respondeu  com  sua  voz  autoritária.  "Você 
está pisando no meu vestido!" 
Herói  sabia  que  ele  nunca  iria  entender.  A  Amanda estava fazendo 
de  conta  ou  só  tentando  enganá-lo?  A  única  coisa  que  ele  podia  ver  era 
a  sua  camisa  e  seus  jeans  desbotados.  Mas,  em  Grande  Parque,  tudo 
poderia  acontecer.  As  coisas  sempre  eram  mais  do  que  pareciam  ser. 
Ele  manteve  a  sua  postura,  se  sentindo  um  pouco  estranho:  "Eu  só  vou 
sair do seu vestido, se você me disser o nome do seu maior inimigo".  
Em  um  movimento  relâmpago,  Amanda  deu  uma  rasteira  nele  e  o 
fez  cair  ao  chão.  As  suas  mãos  tinham  ficados  presas  nos  seus  bolsos, 
inúteis.  Ele  caiu  de  costas  e  a  menina  estava  em  pé  em  cima  dele  com 
olhos brilhantes de vitória.  
"Você  não  sabe?  Todos  têm o mesmo maior inimigo: eles mesmos. 
Precisamos  enfrentar  nós  mesmos,  antes  que  possamos  fazer  qualquer 
outra conquista".  
Com isso, ela desceu o monte na carreira.  
Com as costas coladas ao chão, Herói ouviu outra vez as palavras do 
Lenhador.  Duas  mãos...duas  mãos.  E  era  verdade;  se  ele  usasse  as  duas 
mãos  para  o  resto  da  vida,  isso  iria  forçá-lo  a  enfrentar  todos  e  tudo, 
incluindo ele mesmo.  

Então, o menino aprendeu que desafios podem ser jornadas interiores 


tanto quanto jornadas exteriores. Há um reino dentro de nós que 
precisa ser conquistado primeiro, antes que alguém se torne corajoso 
o suficiente para desafiar o mundo fora dele. Isto é um conceito que 
todos os cuidadores da alma conhecem. 
 
   

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Isaías 53:4-5 
Apesar disso, Ele colocou sobre Si mesmo as nossas dores, Ele mesmo 
carregou nosso sofrimento. E nós ficamos pensando que Ele estava 
sendo castigado por Deus por causa de Seus próprios pecados! A 
verdade, porém, é esta: Ele foi ferido por causa de nossos pecados; seu 
corpo foi maltratado por causa de nossas desobediências. Ele foi 
castigado para nós termos paz; Ele foi chicoteado ​⎯​ e nós fomos 
curados!  
 
1 João 4:21 
Ele nos deu este mandamento: Quem ama a Deus, ame também a seu 
irmão. 
 
Mateus 25:34-40 
Então o Rei dirá aos que estiveram à sua direita: "Venham, benditos de 
meu Pai! Recebam como herança o Reino que lhes foi preparado desde 
a criação do mundo. Pois eu tive fome, e vocês me deram de comer; tive 
sede, e vocês me deram de beber; fui estrangeiro, e vocês me 
acolheram; necessitei de roupas, e vocês me vestiram; estive enfermo, e 
vocês cuidaram de mim; estive preso, e vocês me visitaram”. Então os 
justos lhe responderão: "Senhor, quando te vimos com fome e te demos 
de comer, ou com sede e te demos de beber? ... O Rei responderá: 
"Digo-lhes a verdade: o que vocês fizeram a algum dos meus menores 
irmãos, a mim o fizeram".  
 
 
 

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O Padeiro que Amava Pão
Era uma vez um Rei que passeava pelo mundo afora — aqui, acolá e em 
todo lugar. Ele se tornou pobre para ser como as pessoas que ele amava, 
e ele vivia entre os rejeitados para poder sentir a sua dor. 
 
A  padaria  ficava  escondida  no coração da Floresta Profunda, perto 
da  abertura  onde  as  Grandes  Celebrações  eram  realizadas.  Era 
importante  para  o  Padeiro  Chefe  que  os  pães  fossem  servidos  às mesas 
do  banquete  direto  do  forno  —  quentinhos  e  fresquinhos.  Ele  tinha 
cuidadosamente  planejado  esta  vila:  as  casas  eram  feitas  de  pedras, 
onde  os  padeiros  moravam,  assim  como  os  muitos  fornos  no  lado  de 
fora  —  alguns  grandes,  outros  pequenos,  alguns  com  fogo  bem  forte  e 
outros  só  com  o  necessário  para  colocar  o  carvão.  Cada  um  feito  para 
assar os vários tipos de pães de uma maneira perfeita. 
Esse  padeiro  tinha  se  esforçado  muito  para  tornar-se  o  chefe.  O 
seu  pai  era  padeiro  e  o  seu  avô  também,  mas  ele  tinha  o  seu  próprio 
jeito  genial  de  fazer  pão.  A  sua  massa  era  mais  leve  e  mais  nutritiva  do 
que  qualquer  outra  dos  seus  ancestrais.  Todos  os  tipos  de  massas  — 
trigo,  centeio  ou  milho  —  com  o  seu  toque  tornavam-se  deliciosas  e 
davam água na boca.  
Uma  particularidade  desse  Padeiro  Chefe  era  que  ele  gostava 
muito  de  fazer  pães  especiais  para  as Grandes Celebrações. Ele adorava 
trançar  e  enfeitar  os  pães.  Adorava  inventar  receitas  novas  para  pães 
doces.  Amava  também  biscoitos,  bolinhos,  brioches,  e  croissants. 
Adorava  ouvir  as  exclamações  dos  súditos  do  Rei  quando, 
pomposamente,  o  desfile  do  banquete  tinha  início  e  os  seus  muitos 
padeiros carregavam em grandes cestos as suas criações.  
"O  Padeiro  Chefe  conseguiu  de  novo!"  todos sempre exclamavam. 
"Ninguém consegue fazer pão que derreta na boca como estes!" 
E  o  Padeiro  Chefe  sabia  que  o  pão  dava uma força especial; então, 
ele  preparava  alguns  cestos  de  pães  de  centeio  para  alimentar  aqueles 
que  gastavam  as  manhãs  nos  campos  de  treinamento.  Ele  admirava  os 
Atalaias  e  gostava  de  preparar  pães  nutritivos  de  abóbora  e  queijo para 
eles levarem nas suas vigílias. 
Isso,  entretanto,  era  o  máximo que fazia. Ele se recusava a mandar 
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cestos  de  pães  para  a  velha  Misericórdia,  mesmo  porque  ela  nunca 
havia  pedido  a  ele  isso.  Ela  tem  um  forno  e  receitas  que  são  dela, 
pensou  o  Padeiro  Chefe.  E  ainda  mais,  iria  só  encorajar  ela e aquele seu 
marido  doido,  ficarem  enchendo  o  Grande  Parque  com  pessoas 
estranhas.  Se  esses  defeituosos  tinham  tanta  coisa  de  errado,  devia  ser 
que  fizeram  algo  para merecerem isso. Com certeza não eram dignos de 
comerem os pães do Rei. 
Um  dia  o  Padeiro  Chefe  estava  inspecionando  a  sua  nova  invenção, 
uma  roda  mecânica  que  amassava  trinta  pães  de  uma  vez  só.  Genial, 
pensou. 
Naquele momento, o Padeiro Chefe notou alguém se aproximando 
pela  trilha  que  dava  acesso  à  abertura,  onde  se  localizava  o  complexo 
dos  padeiros.  Era uma mulher carregando um nenê em seus braços. Sua 
roupa estava toda rasgada.  
O  Padeiro  Chefe  procurou  pelo  seu  assistente,  mas  notou  que  o 
menino  estava  abrindo  uma  massa  para  fazer  uns  docinhos.  Todos  os 
outros  padeiros  pareciam  estar  ocupados  também:  uns  moendo  trigo, 
outros  medindo  ingredientes  e  ainda  outros  de  olho  nos  pães  que 
estavam no forno. ​Eu mesmo vou cuidar desta intrusa,​ ele pensou.  
Ele  odiava  interrupções.  Para  o  pão  sair  bem,  era  uma  questão  de 
controle  de  horário.  Tudo  tinha  que  ser  feito  no  momento  certo.  Um 
minuto antes ou depois e tudo poderia ser perdido. 
"O  que  é  que  você  quer?"  ele  perguntou  à  mulher,  com  uma  voz 
áspera, ao encontrá-la na trilha. 
Seu  nené  choramingou.  Sua  cabecinha  não  tinha  força  para 
levantar.  "Por  favor,  senhor",  a  mulher  respondeu.  "Um  pouco  de  pão. 
Nós  nos  perdemos  no  meio  da  floresta  e  não  temos  comido  nada  há 
dois dias".  
Que  estória  bem  inventada,  pensou  o  Padeiro  Chefe.  Esse  tipo  de 
pessoa  estava sempre procurando algo de graça, os preguiçosos. "Não dá 
prá  você  ver  que  estou  fazendo  as  preparações  para  a  Grande 
Celebração?  Temos  centenas  de  pães  para  fazer  hoje.  Não  posso  ser 
incomodado  agora.  Vai  procurar  Misericórdia.  Ela  está  sempre  dando 
comida a pessoas como você".  
A  criança  choramingou  de  novo,  e  Padeiro  Chefe  pensou  que  a 
mulher  estava  tentando  aparentar  o  mais  patético  possível. 
Condescendendo,  desenhou  um  mapa  na  terra.  "Este  é o caminho até a 
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Cabana do Cuidador", ele explicou. 
Nem  deu  tempo  para  a  mulher  sair  de  vista  quando  o  Padeiro 
Chefe  percebeu  que  tinha  algo  se  mexendo  na  floresta.  Alguém  estava 
se  escondendo  atrás  de  um  arbusto.  Um  Queimador,  talvez,  tentando 
roubar um pouco do seu fogo. Algum tipo de ladrão, com certeza. 
Padeiro  Chefe  fez  de  conta  que  iria  descer  a  trilha  em  direção  a 
floresta;  mas  de  repente  desviou-se  e  agarrou  o molequinho que estava 
escondido atrás de uma árvore.  
"Ahá!"  ele  gritou.  "Exatamente  o  que  suspeitava.  Um  ladrão 
tentando  roubar  um  pouco  de  pão!"  O  menino  estava  tão  sujo  que  o 
homem o segurou com o braço estendido.  
"Não  senhor!  Não  sou!"  disse  o  menino  chutando  e  esperneando. 
"Eu estava só tentando cheirar o pão. Tem um cheiro tão gostoso".  
"E  é  só  isso  que  vai  fazer?  Vai  ficar  só  no  cheiro?  Não  se  atreva  a 
entrar  nas  instalações  da  padaria.  Não  vou  ter  pessoas  achando  pulgas 
assadas  no  seu  pão.  Pode  puxar  o  carro!  Se  eu  te pegar por aqui de novo, 
vou te assar!"  
Padeiro  Chefe  chutou  o moleque algumas vezes, até ele começar a 
correr,  e  depois  jogou  algumas  pedras  em  sua  direção,  enquanto  ele 
tentava escapar pela trilha abaixo.  
Nem  deu  tempo  para  o  moleque  sair  de  vista,  quando  as  trombetas 
de  aviso  de  perigo  soaram  das  profundezas  da  floresta. 
Croi-e-e-e-e-e-e-e-e!  Croi-e-e-e-e-e-e-ee!  Era  o  sinal  de  perigo.  O  primeiro 
toque  foi  respondido  por  um  outro  e  o  grito  arrepiante  caminhava  mais e 
mais à distância, na medida que cada Atalaia ecoava a mensagem. 
Padeiro  Chefe  ouviu  um  tumulto  nas  instalações  da  padaria.  Dois 
padeiros  estavam  segurando  um  estranho  que  se  esforçava  para 
livrar-se.  O Padeiro Chefe pegou firme numa grande colher de madeira e 
se  intrometeu  na  briga.  Só  de  olhar  dava  para  perceber  que  o  homem 
tinha  más  intenções.  O  Padeiro  bateu  no  homem  com  a  grande  colher 
de  madeira—uma  vez,  duas,  três  vezes—e,  finalmente,  o  estranho  caiu 
ao chão, ferido. 
"A  gente  pegou  ele  tentando  roubar  pão,  senhor",  explicaram  os 
outros padeiros. 
Roubar  meu  pão,  pensou  o  Padeiro  Chefe.  Vou  dar  uma  lição  nele. 
Bateu  no  homem,  repetidamente, até ele estar certo de que o homem não 
tinha  nenhum  truque  sobrando.  Finalmente,  o  estranho  conseguiu  ficar 
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em pé e escapar pela floresta. 
Croi-e-e-e-e-e-e-e-e! o sinal de alerta ressoou mais alto ainda. 
De  repente,  um  bando  de  homens  e  mulheres  de  capas  azuis 
emergiram  da  floresta.  Vários  deles  estavam  carregando  um  homem 
que parecia estar morto. 
"Prá  trás!  Abram  caminho!"  ordenou  um  Atalaia,  quando  os 
padeiros vieram correndo para ver o que tinha acontecido.  
"Prá  trás!  O  Rei  está  ferido!  O  Rei  está  ferido!  Abram  caminho! 
Abram caminho!" 
Um  grito  de  horror  subiu  pelo  acampamento  dos  padeiros.  A 
pessoa ferida era o Rei! 
"Padeiro  Chefe",  um  dos  Atalaias  chamou,  "ajude-nos  a  cuidar  do 
nosso Rei!" 
"Aqui!  Tragam-no  para  cá!"  ele  respondeu,  disposto  a  fazer  o  que 
pudesse.  
O  Rei  foi  carregado  até  a  casa de pedra do Padeiro e o deitaram na 
sua  cama.  Um  fogo  foi  acesso  na  lareira.  Uma  vigia  foi  escalada  para 
certificar-se  de  que  nenhum  perigo  mais viesse, e um sinal foi dado pela 
floresta  para  notificar  Misericórdia.  Ela  saberia  como  ajudar.  As  aves  e 
as  criaturas,  a  própria  terra  lamentavam  a  notícia  terrível.  O  Rei  está 
ferido...O Rei está ferido... O Rei...O Rei.... 
"Quem  que  fez  isso?"  perguntou  o  Padeiro  Chefe.  Mas  ninguém 
parecia  saber,  pois  o  Rei  não  tinha  dito  uma  palavra,  desde  que 
levantaram seu corpo inconsciente do chão da Floresta Profunda. 
Se  eu  descobrir  quem  foi  que  feriu  meu  Rei, pensou o Padeiro Chefe, 
com  alegria  bateria  neste  inimigo  com  a  minha  colher  de  madeira.  Ele  se 
lembrou  de  como  fizera  um  excelente  trabalho  com  aquele  estrangeiro 
que tentou roubar pão.  
Misericórdia  finalmente  chegou.  Ela  se  curvou  por  cima  daquela 
forma  sem  vida  e  terrivelmente  parada  em  cima  da  cama  do  Padeiro 
Chefe.  Seus  olhos  se  encheram  de  lágrimas.  "Me  dê  seu  machado,"  ela 
disse  ao  Atalaia  em  pé  ao  lado  do  Rei.  "Rápido!"  Chamas  refletiam-se 
nas  marcas  do  machado.  Finalmente,  ela  achou  as  marcas  que  estava 
procurando.  E  logo  depois,  com  seus  olhos fechados, pressionou-as aos 
lábios e o coro veio: uma música suave e lenta de cura e paz. 
A  senhora  idosa  veio  até  a  cama  e  sentou-se  ao  lado  do  Rei. 
Colocou  uma  das  mãos  atrás  do  pescoço  do  jovem  Rei  e a outra em seu 
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peito.  Ela  encostou  a  sua  testa  na  dele.  Ali  ela  ficou,  pela  longa  tarde  e 
até anoitecer, com a música do machado ecoando no quarto.  
Por  toda  aquela  longa  noite,  os  súditos  do  Rei  o  guardaram  em 
seus  corações.  Cada  um  se  lembrou  do  amor  do  Rei.  E  a  floresta  estava 
quieta.  Grande  Parque  ficou  na  expectativa.  Até  a  lua  retardou  seu 
curso.  As  pessoas  que  estavam  no  quarto  do  Padeiro  Chefe  notaram  a 
testa  limpa  do  Rei,  sua  face  nobre,  o  cabelo  castanho  brilhando  com 
reflexos de ouro, caindo até o travesseiro, e a pele pálida.  
Finalmente,  ao  chegar  a  manhã,  Misericórdia  ficou  em  pé.  Ela 
estava  tão  pálida  quanto  o  Rei.  "Ele  estará  bem",  ela  sussurrou.  "A 
ferida  foi  superada.  Dê  algo  para  ele  comer  quando  acordar,  e  me  leve 
para um outro quarto".  
Todos  no  quarto  sentiram-se  aliviados  ao  ouvirem  as  palavras  de 
Misericórdia.  Tiveram  vontade  de  rir  e  chorar  ao  mesmo  tempo.  Em 
segundos,  o  grito  dos  Atalaias  se  espalhou  pela  Floresta  Profunda. 
"Como vai o mundo?" 
"O mundo não vai bem...".  
"Mas o Reino vem! ... O Reino vem!".  
Todos  sabiam,  do  menor  ao  maior, que o Rei agora estava bem e o 
Reino  intacto.  Eles  saíram  para  seus  trabalhos  com  corações  alegres, 
enquanto os passarinhos cumprimentaram a aurora. 
Mais  tarde,  Padeiro  Chefe  trouxe uma travessa dos pães mais finos 
ao  quarto  onde  o  Rei  estava  descansando.  Ele  ficou  aliviado  ao 
encontrar  o  Rei  sentado  desajeitadamente  na  cama.  Uma  perna  estava 
dobrada por baixo dos cobertores e seus braços por cima da cabeceira. 
"O  Senhor  teve  um  tumulto  na  floresta?"  perguntou  o  Padeiro, 
sem  jeito,  tentando  ocultar  a  sua  preocupação  com  a  saúde  do  Rei.  Ele 
colocou  a  travessa  na  cama  e  o  aroma  suave  de  biscoitos  e  pães  doces 
encheu o quarto.  
"É...  mais  ou  menos",  respondeu  o  Rei,  abrindo um pão quentinho 
e  cheiroso,  recheado  de  frutas suculentas. Ele abaixou a cabeça. "Para a 
vida  e  tudo  aquilo  que  a  sustenta",  ele  disse  baixinho.  Ele  deu  uma 
mordida  e  continuou  falando:  "sempre  disse:  'se  vais  entrar  numa  fria, 
melhor  que  aconteça  perto  do  acampamento  dos  padeiros.  O  Padeiro 
certamente terá algo para comer. Ele te tratará como um rei' ". 
Padeiro  Chefe  ficou  vermelho  com  o  prazer  ao  ouvir  essas 
palavras.  Tentando  ser  modesto,  ele  respondeu  "Bem,  senhor,  o  pão  é 
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do Rei".  
O  Rei  deu  outra  mordida.  Ele  sorriu  e numa voz suave disse, "É... O 
pão do Rei é para o povo do Rei, não é?" 
O  Padeiro  estava  arrumando  o quarto às pressas, abrindo a janela, 
mexendo  as  brasas.  "Sim  Senhor", ele disse. Lembrou-se do Rei tão sem 
vida  e  imóvel.  Ele  se  lembrou  da  longa  noite  de  apreensão.  De  repente, 
a  emoção  de  tudo  aquilo  que  tinha  acontecido  apertou  seu  coração. 
Veio  uma  vontade forte de chorar. Ele olhou o Rei bem nos olhos. "Sabe, 
meu  Senhor.  Se  eu  soubesse  quem  foi  que  te  feriu,  eu  daria  uma  nele, 
eu pegaria ele e..." 
"Mesmo?"  respondeu  o  Rei,  e  colocou  de  volta  uma  torta  que 
estava em sua mão.  
O  quarto  ficou  silencioso.  O  Rei  tirou  a  travessa  de  pães  do  seu 
colo,  saiu  da  cama  e  foi  até  a  janela.  Padeiro  Chefe  observou  as  suas 
costas largas contra a luz brilhante da manhã. 
Os  sons  de  trabalhadores  ocupados  chegaram  até  eles.  Padeiros 
cantando  ao  fazer  a  massa.  Foles  soprando.  O  bater  das  portas  dos 
fogões.  Pessoas  chamando  uma  pela  outra  e  a  fragrância  calorosa  de 
coisas gostosas flutuava adentrando o quarto.  
"Sabe,  Padeiro",  disse  o  Rei,  virando  os  seus  olhos  para  poder 
olhar  para  o  Padeiro  Chefe,  "as  minhas  feridas  não  são  iguais  às  de 
outros homens...".  
Padeiro  Chefe  parou  de  fuçar.  Ele  estava  na  dúvida  do  que  o  Rei 
queria dizer.  
"Quando  uma  pessoa  do meu povo está com fome, Padeiro", disse 
o  Rei,  "eu  também  fico  faminto.  Quando  uma  pequena  criança  é 
machucada,  eu  também  sofro.  E  até  se  o  meu  inimigo  sente  dor,  eu  o 
sinto na pele".  

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O  Padeiro Chefe ficou encucado por um momento. Mas logo, como 
uma  terrível  cachoeira  de  memória, ele viu a face de uma mulher, quase 
desmaiando,  que  ele  mandou  embora.  Ele  viu  os  olhos  de  uma  criança 
suja  a  quem  ele  tinha  chutado  e  apedrejado.  Ele  ouviu  o  grito  de  um 
estranho  quando  batia  nele  vez  após  vez  com  a  colher  de  madeira.  Ele 
viu  o  corpo  do  estranho  todo  encolhido  no  chão;  a  dor  nos  seus  olhos 
era semelhante ao olhar do Rei.  
"Padeiro, é você que tem me ferido...sim, você".  
O  Padeiro  caiu  de  joelhos:  "Não  eu,  meu  Senhor!  Não  eu!"  Mas ele 
sabia  que  era  verdade.  Ele  foi perseguido por um rosto e por olhos e por 
um  grito.  Ele  tinha  dado  a  um,  terra,  ao  outro,  pedras  e  ao  outro, 
pauladas.  
O  Rei  virou-se.  A  luz  se  irradiava  em  volta  da  sua  cabeça.  A  luz  da 
aurora  atravessou  o  quarto  e  fez  cair  sobre  a  forma  encurvada  do 
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Padeiro Chefe, a sombra do Rei.  
"Meu  Senhor,  o  que  posso  fazer?  O  que  posso  fazer?"  chorou  o 
Padeiro Chefe, sua cabeça encurvada até ao chão.  
O Rei respondeu: "Alimente o faminto".  
O  Rei  veio  até  o  homem  ajoelhado,  em  horror,  no  chão  do  quarto. 
Ele  o  levantou  e  o  abraçou.  "Alimente  o  faminto",  ele  sussurrou,  "assim 
eu  ficarei  satisfeito...".  Ele  virou-se  e  saiu  com  passos  largos,  como  se  a 
morte nunca tivesse chegado perto.  
Daquele  dia  em  diante,  o  Padeiro  Chefe  fez  questão  que  cestos  de 
pães  fossem  levados  à  Vila  dos  Rejeitados,  para  todos  os  que  não 
tinham  como  fazer  o  seu  próprio  pão.  Mochilas  de  suprimentos  de 
emergência  foram  deixadas  em  cada  torre  de  vigia  dos  Atalaias  para 
poder  nutrir  qualquer  um  que  tivesse  perdido  o  caminho,  não 
importando se fosse bom ou mau de coração. Travessas de pães doces e 
tortas  ficaram  sempre  à  disposição  no acampamento dos padeiros para 
dar  as  boas  vindas  aos  visitantes. E biscoitos com o formato de animais, 
e  enfeitados  com  cobertura  de  açúcar,  foram  colocados  em  caixinhas  e 
enviados até a cabana de Misericórdia, para as crianças.  

E o padeiro descobriu que alguém poderia amar o trabalho de suas 


mãos de maneira exagerada, e que devemos sempre amar mais o Rei. 
Amor pelo Rei é medido pelo amor que temos pelo seu povo. E, então, 
o Padeiro alimentou o faminto e o alimentou bem, para não ficar 
faminto Aquele que ele mais amava. 

 
 
 
 
 
   

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Romanos 2:13 
Porque não são os que ouvem a lei que são justos aos olhos de Deus; 
mas os que obedecem à lei, estes serão declarados justos. 
 
Hebreus 11:6 
Sem fé é impossível agradar a Deus, pois quem dele se aproxima precisa 
crer que Ele existe e que recompensa aqueles que o buscam. 
 
Isaías 53:1-3  
Quem acreditou naquilo que nós anunciamos? A quem o Senhor vai 
revelar o seu poder? Aos olhos de Deus ele era um pequeno ramo, 
brotando de uma raiz em terra seca. Mas para nós Ele não tinha beleza 
alguma; não havia nada nEle para nos atrair ou para nos agradar. Nós O 
desprezamos e rejeitamos: Ele era um Homem que conhecia, por 
experiência própria a dor e o sofrimento. Achamos que Ele não merecia 
nem ser olhado por nós; não demos a menor importância a Ele. 
 
 
 
 
 
 
 
 

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Dia de A star  
star
Os súditos do Reino trabalhavam duro para manter lindo o Grande 
Parque. Alguns eram jardineiros; outros eram guardas florestais. Alguns 
eram agricultores; outros eram especialistas em cuidar de animais; 
outros eram guias para estrangeiros. E ainda outros curavam. Não 
importava o quão duro trabalhavam, eles adoravam brincar. E a 
brincadeira de que as crianças mais gostavam era Achar-O-Rei.... 
 
"Eu  vi  o  Rei!"  exclamou  Amanda,  ao entrar com tudo pela porta da 
cabana  de  Misericórdia.  Duas  raposinhas  entraram  pela  porta,  atrás 
dela,  brincando  e  uma  bateu  na  traseira  da  outra,  quando  tiveram  de 
parar  repentinamente.  "Eu  vi  o  Rei  no  Dia  de  Avistar!"  ela  repetiu, 
orgulhosa do seu sucesso.  
"Que  legal!"  replicou  Misericórdia,  que  tinha  acabado  de  trazer 
Homem-Que-Senta-Como-Pedra  para  uma  cadeira, perto de uma janela 
onde  o  sol  entrava.  Uma  vez  sentado,  o  homem  não  se  mexia.  Ele  não 
virava  a  cabeça.  Ele  não  falava  uma  palavra.  Misericórdia  disse  que 
talvez fosse por causa de uma terrível tragédia em sua vida.  
O  irmão  de  Herói  muitas  vezes  subia  até  o  colo  do  homem  e  dava 
uns  tapinhas  nas  suas  bochechas,  mas  mesmo  assim  ele  não  se  mexia. 
De  certa  maneira,  os  dois  eram  semelhantes.  Pequena  Criança  nunca 
falava  uma  palavra  sequer  e  o  homem nunca dava risadas. Muitas vezes 
os dois sentavam-se juntos, quietos à luz do sol.  
"Dia  de  Avistar  quer  dizer  que  o  Rei  tira  um  tempo  para  brincar", 
Amanda  disse,  virando-se  para  explicar  a  Herói,  que  ainda  estava 
cauteloso quanto a essa menina tão dinâmica. 
"As  crianças  tentam  achar  o  Rei  por  todo  o  Grande  Parque,  no  Dia 
de  Avistar",  explicou  Misericórdia  ainda  mais.  "É  um  grande  jogo  de 
Caça-ao-Rei.  Ele  aparece  com  vários  disfarces,  e  uma  vez  que  a  criança 
percebe  que  viu  o  Rei,  ele  pode  ir  para  o campo de treinamento, onde o 
Rei  e  as  crianças  brincam  o  resto  da  tarde.  Por  que  você  não  sai  numa 
caçada, Herói, em busca do Rei?” 
Herói  balançou  a  cabeça  que  não,  então  Amanda  saiu  pulando, 
pela  porta,  sem  ele.  Ela  ria  ao  correr,  e  o  menino  ficou  olhando  para  as 
raposas  que  saíram  atrás  dela,  bem  no  calcanhar,  enquanto  desciam  a 
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trilha em direção do Bosque Silvestre. 
Não  tinha  jeito.  Ele  nunca  iria "avistar" o Rei. Toda vez que alguém 
comentava  baixinho:  "olha  o  Rei!",  Herói  só  via  um  mendigo  ou 
lenhador ou agricultor. Nunca um rei.  
Misericórdia  disse  que  isso  era  porque  ele  não  acreditava  no  rei. 
"Você  precisa  crer",  ela  sempre  explicava,  "para  poder  ver".  Isso  não 
fazia  sentido  para  Herói.  O  Encantador  tinha  dito  o  oposto: "Ver é crer". 
Era  muito  bom  e  legal  para  todos os outros em Grande Parque quanto a 
falar  sobre  um  rei.  Mas  como  que  Herói  iria  saber  que  não  estavam  só 
fazendo uma brincadeira com ele? Ou fazendo de conta?  
E,  alem  do  mais,  ele  não  estava  muito  a  fim  de  brincadeiras  assim 
hoje.  Misericórdia  tinha  dito  que  um  amigo  dela  iria  vir  hoje  de  manhã 
para ver o seu irmão. Tinha algo de errado com Pequena Criança.  
Misericórdia  disse  que  ele  já  estava  na  idade  de  falar  e  que  todas 
as  crianças  normais  eram  cheias  de  risos.  Algo  deve  ter  assustado  este 

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pequeno, algo que roubou dele suas palavras e risos.  
Herói  sabia  que  era  Cidade  Encantada.  Seu  odor  podre  pairava 
sobre  os  corações.  Ele  se  lembrou  dos  Queimadores  acendendo  o 
ataúde  no  funeral  de  sua  mãe.  Ele  viu  mais  uma  vez  o  olhar  de  horror 
nos  olhos  do seu irmão. E agora o menino mais novo não dava risadas, e 
o menino mais velho não se interessava por brincadeiras.  
Ao  observar  o  seu  irmão  sentar-se  silenciosamente  no  colo  do 
homem  imóvel,  Herói  pensou:  Será  que  o  amigo  de  Misericórdia  iria 
também  saber  o  que  fazer  por  um  menino  cuja  cicatriz  na  sua  pele  ia  até 
seu coração? 
Herói  pensou  ouvir  alguém  falando:  "Rei  à  vista!" mas, ao invés do 
Rei,  um  camponês  entrou  na cabana. Ele estava usando uma camiseta e 
calças  desbotadas.  Seu  cabelo  enrolava-se  por  debaixo  de  um  velho 
chapéu  de  fazendeiro,  o  qual  ele pendurou na entrada ao lado da porta. 
Ele  bateu  alegremente  no  batente.  "Onde  está  o  meu  amigo?"  ele 
chamou. 
Herói  pensou  que  ele estivesse se referindo a Misericórdia; mas, ao 
invés,  a  senhora  idosa  apontou  para  Pequena  Criança,  ao  lado  da 
janela. "Aqui ele está", ela disse, "o seu amigo está aqui". 
O  camponês  riu.  "Eu  pensei  que  meu  amigo  gostaria  de  ir  comigo 
hoje.  Poderemos  ver  o  sol  engordar  as  uvas.  Ou  poderemos  ouvir  as 
abelhas  cantando  no  jardim.  Ou  poderemos  apostar  corrida  com  os 
patos  no  Lago  dos  Patos."  Ele abriu a mão e dentro dela havia um barco 
feito  de  madeira  de  balsa,  com  pequenas  velas  e  bonequinhos feitos de 
palha de milho. 
O  homem  deu  o  brinquedo  para  a  criança  que  o  pegou  com 
delicadeza.  De  repente,  o camponês deu uma pirueta no ar e começou a 
andar  com  as  mãos,  enquanto  que  os  pés  estavam  para  o  alto.  Herói 
engoliu de surpresa e Misericórdia deu risadas. 
O  camponês  foi  até  a  porta  com  os  seus  pés  balançando  no  ar. 
"Vamos, amigo, vamos ver os patos!"  
Para  surpresa  de  todos,  o  irmão  de  Herói  desceu  do  colo  do 
homem  que  não  se  mexia.  Misericórdia  deu  para  ele  o  chapéu  do 
homem  e  ele  seguiu  essa  figura  de  ponta-cabeça  pela  porta  e  desceu  a 
trilha.  Herói  pensou  ouvir  o  que  parecia  ser  o  começo  de  uma 
gargalhada infantil. 
Herói  ficou  perto  da cabana toda aquela manhã. De certa maneira, 
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ele  queria  que  o  camponês  o  tivesse  convidado  a  ir  junto  também.  Ele 
cortou  lenha  para  a  lareira,  tomando  bastante  cuidado  para  não  se 
aproximar  do fogo. Deu comida aos porcos. Ajudou Misericórdia a tomar 
conta do Homem-Que-Senta-Como-Pedra e varreu o chão.  
À  tarde,  um  jovem  retornou  carregando  o  irmão  do  Herói  em  seus 
braços,  dormindo.  O  menino  estava  chupando  o  dedo.  Nas  suas 
bochechas e queixo havia marcas de frutas.  
"Puxa,  tivemos  uma  bela  manhã",  o  jovem  disse,  após  colocar 
Pequena  Criança  na  cama.  Herói  e  o  homem  sentaram-se  à  mesa, 
enquanto Misericórdia serviu suco gelado. 
"Onde foi o camponês?" perguntou Herói.  
O  jovem  deu  um  sorriso.  "Foi  achar  o  Rei.  Lembra-se?  Hoje  é  o Dia 
de  Avistar....  Diga,  você já ouviu um coral de abelhas? Hoje nós ouvimos. 
É  impressionante!  Zumbem  em  harmonia.  Um  velho  abelhão  estava 
desafinado, mas a rainha logo o silenciou".  
Misericórdia deu uma risada. 
"Aí  a  gente  apostou  corrida  de  barco.  Havia  cinqüenta  patos, 
cinqüenta  barcos  e  centenas  de  crianças.  Os  patos  ganharam,  mas  o 
nosso  barco  veio  em  segundo  lugar."  O jovem deu uma olhada em volta 
e  depois  falou  por  detrás  de  sua  mão.  "Seu  irmão  e  eu  sopramos  bem 
forte nas velas!"  
Herói não sabia se acreditava nele ou não.  
"Ah,  sim!  E  a  gente  viu  as  uvas  crescerem".  Ele  apontou  para  uma 
tigela  de  frutas  na  mesa.  Herói  tinha  pensado  que  eram  ameixas,  mas 
então  percebeu  que  eram  uvas  enormes  já  tiradas  do  talo.  "E...a  gente 
ficou  olhando  muito  ​⎯  eu  estava  contando  uma  história.  Desculpe,  mas 
elas ainda estão boas. Prove uma".  
Herói  esticou  o  braço  e  pegou  uma  e  deu  uma  mordida.  Era 
deliciosa! Ele coçou a cabeça. Como a uva tinha crescido tanto?  
O  jovem  ainda  estava  falando  "...e  você  vai ficar contente ao saber 
que  o  seu  irmão  riu.  Ele  adora  ver  pessoas  andando  de  ponta-cabeça". 
Fez  uma  massagem  nos  seus  braços  e  ombros.  "E  pequena  criança 
falou. Disse: 'Ó o ei' ". 
Misericórdia  estava  à  mesa  com  eles.  "Muito  apropriado",  disse 
ela,  "no  Dia  de  Avistar,  não  acha?"  Com  isso  ela  se  levantou,  foi  até  o 
jovem,  e  plantou  um  beijo bem na sua testa. "Eu sabia que você poderia 
ajudá-lo. Obrigada, pelo seu tempo".  
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Herói  olhou  para  Misericórdia.  Quem  era  este  jovem?  O  que  tinha 
acontecido ao camponês?  
"Não  há  de  quê",  o  jovem  disse.  "Foi  muito  gostoso.  Agora  eu  vou 
até  o  campo  de  treinamento.  As  crianças  estão  esperando  por  mim  lá. 
Venha você também, Herói. Este dia é um dos melhores que tem". 
E  Herói  logo  percebeu  que  o  jovem  estava  certo. Dia de Avistar era 
muito  legal.  O  homem  organizou  gincanas  e  competições.  Tinha 
corridas  de  três  pernas  (uma  corrida  em  que  duas  pessoas  ficam  de 
lado,  abraçados,  com  a  perna  de  dentro  de  cada  uma  amarrada, 
formando  assim  uma  perna  em  comum)  e  salto  com  vara,  e 
esconde-esconde  e  pirâmides  humanas  e  travessia  do  rio  sobre 
pinguelas.  Herói se pegou sendo absorvido no meio de todo esse clamor 
e  regozijo.  Ele  descobriu  que  não  havia  lugar  mais  gostoso  de  se  estar 
do que o lugar onde o jovem estava.  
O  homem  ensinou  todos  eles  a  andarem  de  ponta-cabeça.  As 
crianças  se  esforçaram  para  aprender.  Seus  cotovelos  dobravam-se 
facilmente;  suas  pernas  se  recusavam  a  ficar  para  cima.  Seus  pés 
começavam  a  ir  muito  para  a  frente.  O-o-o-o-pa!  Caíam!  Todos  davam 
risadas. 
"Está  vendo!  "disse  o  jovem  a  Herói.  "Este  exercício  é  ótimo  para 
fazer crianças tristes rirem".  
O  jovem  fez  malabarismos  com  o  Malabarista  Palhaço;  eles  quase 
deixaram  as  laranjas  caírem  e  se  atrapalharam  todo  nos  arremessos  e 
quase  não  conseguiram  catar  os  objetos  que  caíam.  Todos  as  crianças 
riram, bateram palmas, e gritaram.  
Todos  tiveram  sua  vez  na  hora  de  pular  corda  e  todos 
compartilharam  suas  bolinhas  de  gude  e  piões,  etc.;  e  ninguém  foi 
deixado de fora das brincadeiras, e ninguém foi escolhido por último. 
As  brincadeiras  terminaram  quando  todas  as  crianças  suadas 
passearam  até  o  Lago  Marmo,  onde  caíram  na  água  fresca.  Então 
molharam  o  jovem  até  ele  ficar  encharcado,  e  este  fez  o  mesmo  com 
eles.  Herói  teve  de  admitir  que tinha sido uma tarde maravilhosa! Jogos 
e brincadeiras não eram tão ruins assim. 
Até  o  jovem  voltar  para  a  cabana  de  Misericórdia  com  Herói, 
Pequena  Criança  já  estava  jantando.  "Ó  o  ei!"  ele gritou e veio correndo 
abraçar seu amigo. 
Estas  eram  as  primeiras palavras que Herói tinha ouvido seu irmão 
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falar.  Os  olhos  do  menino  mais  velho  de  repente  se  encheram  com 
lágrimas,  e  ele  se  voltou  para  o  jovem  e  deu  um  obrigado  meio 
engasgado. 
Misericórdia  serviu  as  uvas  que  eram  tão  grandes  que  dava 
vontade  de  rir  só  de  vê-las,  junto  com  um  pouco  de  pão  e  queijo.  Herói 
deu  uma  mordida  na  fruta  e  pensou  que  nunca  tinha  experimentado 
algo tão gostoso. 
"Ó  o  ei",  disse  Pequena  Criança  sorrindo  e  já  querendo  brincar  de 
esconde-esconde. 
"Você realmente acha que ele viu o Rei?" disse Herói. 
Misericórdia  o  olhou  com  surpresa  e  vagarosamente  respondeu: 
"Sim!" 
O  rosto  de  Herói  ficou  contraído.  Sua  felicidade  estava 
rapidamente  se  transformando  em  desapontamento.  "Ué,  por  que  o 
meu irmão pode ver o Rei e eu não posso?" 
Misericórdia  olhou  para  o  jovem  com  uma  pergunta  nos  seus 
olhos.  
Quietamente,  o  jovem  se  encurvou  e  enrolou  parte  do  cabelo  de 
Herói  no  seu  dedo.  "Seu  irmão  pode  ver  o  Rei  porque  ele  é  uma 
pequena  criança,  e  crianças  pequenas  são  os  melhores  nesta 
brincadeira.  Os  outros  vêem  o  Rei  porque  eles  crêem  e  a  eles  é  dado  o 
dom de ver. Aqui no parque, fé vem antes de ver".  
"Mas será que eu vou ver o Rei um dia?" perguntou Herói. 
"Você crê no Rei?" perguntou o jovem. 
"Eu não sei. Eu acho que talvez creia, mas se eu só pudesse ver..." 
"Bem,  talvez  um  dia  então  verá",  disse  o  jovem.  Ele  pegou  uma 
outra uva gigante da tigela e a colocou na mão do menino.  
Aquela  noite,  depois  que  todos  na  cabana  do  Cuidador  tinham  se 
aquietado,  o  Cuidador  levou  Herói  para  a  Vila  dos  Rejeitados.  Ao 
andarem,  o  som  suave  das  ferramentas  nos  bolsos  do  homem  trouxe 
conforto em meio à escuridão.  
Cuidador  explicou  que,  no  "Dia  de  Avistar",  muitos  rejeitados 
ficam  incapacitados  de  entrar  na  brincadeira  de  caçar  o  Rei.  Alguns 
estão  feridos.  Outros  cegos,  e  ainda  outros  estão  se  recuperando  das 
suas  doenças.  Ao  invés,  o  Rei  vem  até  eles,  conta  histórias  e  canta.  Ele 
traz  tudo  que  é  de  bom,  mesclado  com  o  brilhar  da  lua  e  a  noite  fresca, 
até  o  nível  deles,  até  que  os  corações  dos  desabilitados  são 
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confortados, porque o Rei está no meio deles. 
Infelizmente,  Herói  estava  muito  afastado  para  ver  o  Rei  aquela 
noite.  Havia  muitas  pessoas  tumultuadas  ao  redor  dele.  A  noite  estava 
cheia  de  sombras.  Mas  ele  ouviu  a  voz  de  um  homem  se  levantar  no  ar 
da  noite  refrescante.  E  logo,  então,  todas  as  pessoas  estavam cantando 
juntas. Assim que aquela música se acabava, uma outra começava. 
O  menino  se  sentiu  estranhamente  em  paz  e  pensou  que  aquela 
queimadura feia no seu rosto talvez não fosse tão importante assim. 
Alguém  começou  a  andar  no  meio  das  pessoas.  Herói  podia  ver 
uma  forma  se  aproximando  dele,  parando  e  conversando  com  cada 
uma  daquelas pessoas sofridas. Ele tinha a esperança de que seria o Rei. 
Herói  forçou  os  olhos  para  ver  o  que  vinha  na  noite.  Era...era  ​⎯  só  um 
mendigo! O homem estava usando um manto marrom com capuz. 
"Herói?" o mendigo perguntou. "Herói? Você não me conhece? 
Herói  queria  dizer:  "Você  não  é  nada  mais  do  que  um  mendigo", 
mas algo na voz do homem o fez parar.  
"É  necessário  que  você  me  veja  com  os  olhos  do  seu  irmão",  o 
mendigo disse. "Você precisa me ver como ele me vê".  
O  mendigo  tirou  o  capuz  e  a  capa. Herói tentou vê-lo com os olhos 
do  seu  irmão,  que  tinha  avistado  o  Rei.  E  aí...  ué  ​⎯  sim,  é  claro,  era  o 
camponês  que  tinha  vindo  até  a  cabana  aquela  manhã  e  foi  passear 
com Pequena Criança. 
"Herói!"  disse  o  camponês.  "Consegue  fazer  isso?"  Ele  deu  um 
pulo  e  ficou  com  as  pernas  para  o  alto  e  andou  pela  grama  usando  as 
mãos.  
Herói  não  tinha  gasto  a  tarde  toda  no  campo  de  treinamento  por 
nada.  Ele  colocou  as  suas  mãos  acima  de  sua  cabeça  e  aí  jogou  o  seu 
corpo  para  o  chão,  as  suas  mãos  firmando  os  pés  no  alto.  Ele  andou 
desajeitadamente  até  ficar  cara  a  cara  com  o  camponês.  Eles  se 
olharam de ponta cabeça. 
O  camponês  então  retomou  aquela  face  do  jovem. Herói começou 
a  rir.  "Ah!"  ele  disse,  justo  na  hora  em que perdeu o equilíbrio e tombou 
no chão. "Você é o jovem...". 
De  repente,  tudo  fez  sentido.  Herói  entendeu.  Esse  era  o  Rei.  Esse 
mendigo.  Esse  camponês.  Esse  jovem  atleta.  Esse  era  o  homem  que  fez 
seu  irmão  rir  e  o  ajudou  a  falar.  Essa  era  a  pessoa  que  tinha  derramado 
gozo em seu coração e o ensinou que jogos eram legais. 
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O  Rei  sentou-se  na  grama,  ao  lado  de  Herói.  O  Soberano  estava 
caindo  na  gargalhada.  Cuidador  também.  Herói  podia  ouvir  o  seu  tinir. 
"Este é o Rei", disse o senhor idoso. 
"Eu  sei",  disse  Herói.  Ele  ficou  de  pé.  Deu  um  pirueta,  e  plantou as 
mãos  no  chão.  Andou  desajeitadamente  com  os  pés  para  o  alto, 
balançando, envergado, se endireitando.  
Aí ele olhou para os homens e disse: "Eu vejo o Rei!" 
E realmente ele viu. 
 

Então o rapaz descobriu que o jogo de Caça-Ao-Rei realmente é 


maravilhoso. Como todas as brincadeiras, ele deve ser feito com o 
coração de uma criança que crê, e está sempre pronta para ser 
surpreendida, porque o Rei pode usar muitos disfarces. 

 
 
   

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Zacarias 4:6 
Então ele me disse: "Esta é a mensagem do Senhor a Zorobabel: 'Não é 
pela força, nem com poder que vocês vencerão. Será pelo meu Espírito. 
Vocês, embora poucos e fracos, vencerão pelo meu Espírito.’” 
 
Efésios 4: 11-16 
E ele designou alguns para apóstolos, outros para profetas, outros para 
evangelistas, e outros para pastores e mestres, com o fim de preparar os 
santos para a obra do ministério, para que o corpo de Cristo seja 
edificado, até que todos alcancemos a unidade da fé e do conhecimento 
do Filho de Deus, e cheguemos à maturidade, atingindo a medida da 
plenitude de Cristo, para que não sejamos mais crianças, levados de um 
lado para o outro pelas ondas, nem jogados para cá e para lá por todo 
vento de doutrina e pela astúcia e esperteza de homens que induzem ao 
erro. Antes, seguindo a verdade em amor, cresçamos em tudo naquele 
que é a cabeça, Cristo, de quem todo o corpo, ajustado e unido pelo 
auxílio de todas as juntas, cresce e edifica-se a si mesmo em amor, na 
medida em que cada parte realiza a sua função. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 

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Dois Cavalheiros Barulhentos 
 
 
Havia dois cavaleiros no Grande 
Parque que pensavam que eram Atalaias. O povo do 
Reino deu a eles os apelidos de Sr. Abobrinha e Sr. 
Abobrão e tentavam ser compreensivos; mas o título de cavaleiros já 
tinha há muito tempo saído de moda. 
  Sr.  Abobrinha  era  comprido  e  fino  e  só  enxergava  à  distância.  Ele 
estava  sempre  tropeçando  em  raízes  e  pedras,  porque  ele  não  conseguia 
ver  o  perigo  que  estava  perto  dele.  Sr.  Abobrão  era  redondo  e  baixo  e  só 
enxergava  de  perto.  Ele  estava  sempre  se  metendo  numa  fria,  porque 
forçava a vista para ver o perigo à distância dele.  
Os  dois cavaleiros estavam sempre freqüentando os conselhos dos 
Atalaias  no  Pavilhão  dos  Atalaias.  Ao  final  de cada encontro, depois que 
todas  as  contas  já  tivessem  sido  prestadas  e  todos  os  contos  já 
reportados,  o  Atalaia  Comandante  solicitava  para  a  promessa  ao  Rei. 
Ele gritava: "Como vai o mundo?" 
E  todos  respondiam  de  volta:  "O  mundo  não  vai  bem! Mas o Reino 
vem!"  Cada  Atalaia  ​⎯  homem  ou  mulher  ​⎯  levantava  o  seu  machado  e 
proferia:  "Ao  Reino  e  ao Rei!" E com isso marchavam saindo do pavilhão 
para pegar seus postos de vigia ou fazer as rondas. 
Os  dois  cavaleiros  gritavam  essas  mesmas  declarações.  Eles 
desembainhavam  suas  espadas  dos  seus  coldres.  Eles  se ajuntavam em 
meio  ao  tumulto  da  saída  do  pavilhão  e  levavam  seus  cavalos  a  uma 
grande  rocha.  Abobrinha,  resmungando  e  rosnando,  empurrava  o 
pesado  Abobrão  por  sua  vez  para  cima  da  sua  sela.  E,  logo  depois, 
Abobrão,  por  sua  vez,  puxaria  o  desajeitado  Abobrinha  para  sua  sela. 
Freqüentemente um deixava cair uma espada ou bandeira. 
"Ô!  Ô!"  eles  gritavam.  "Você  aí!  Você  se  importaria  de  pegar  a 
minha espada (ou bandeira)?" 
Se  ninguém  parecia  estar  por  perto,  eles  gritavam  ainda  mais 
forte.  Quando  ninguém  aparecia,  um  dos  cavaleiros  teria  que 
desmontar, e daí repetir todo o processo para montar tudo de novo.  
Até  os  dois  ficarem  finalmente  prontos,  em  cima  dos seus cavalos, 
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todos  os  Atalaias  já  teriam  ido  embora,  as  luzes  do  pavilhão  já  teriam 
sido  apagadas;  mas,  mesmo  assim,  Abobrão  gritava:  "Em  frente! 
Seguimos sob a autoridade do Rei!" 
Mas,  como  era  de  se  esperar,  eles  nunca  pareciam  encontrar  o 
serviço  que  procuravam,  porque  o  perigo  sempre  já  tinha  se encerrado, 
quando eles finalmente chegavam à cena. 
"O  que  vale  é  a  tentativa",  Sr.  Abobrinha  lembrou  o  Sr.  Abobrão 
um  dia,  quando os dois estavam se sentindo um pouco deprimidos. Eles 
inventaram uma música para os animar.  
Um Atalaia é um Atalaia é um Atalaia  
Ele protege o parque de qualquer tipo de gandaia 
Seu grito faz todos tremerem 
Seu brado faz todos estremecerem 
E  olha  só  o  que  aconteceu,  exatamente  nesta  tarde:  eles  se 
defrontaram com o inimigo. Bem, eles pensavam que fosse o inimigo. 
"Pare!  Quem  se  aproxima?"  gritou  Sr.  Abobrão.  Seus  olhos  fracos 
não  conseguiram  identificar  o  homem  correndo  apressadamente  pela 
trilha,  mas  ele  pensou  que  podia  pelo  menos  enxergar  que  a  figura 
estava  carregando  uma  arma.  "Pare?"  questionou  o  homem.  "Ué,  sou 
eu.  O  Padeiro".  O  padeiro  Chefe  estava  vindo  da  cozinha 
apressadamente  com  três  pães  fresquinhos  que  saíram  do  forno 
naquele  momento,  e  ele  ainda  os  estava  equilibrando  sobre  sua 
espátula  de  madeira.Os  dois  cavaleiros  pensaram  que  ele  tivesse  dito, 
"Pauleiro".  ​Pauleiros  eram  homens  do  Encantador,  armados  com  paus, 
que  se  escondiam  no  mato,  pelo  Parque,  prontos  para  darem  pauladas 
em  qualquer  um  que  estivesse  descuidado.  Todos  em  Grande  Parque 
ficavam  agradecidos,  quando  Atalaias  pegassem  esses  espiões;  então, 
os cavaleiros tinham visões de glória. 
"Vamos  te  ensinar  algumas  lições!"  gritou  Abobrinha  e  dirigiu  seu 
cavalo  até  uma  ponta  da  trilha.  Abobrão  foi  tropeçando  até  a  outra 
ponta  e  deu  meia  volta,  colocando  assim  o  Padeiro  Chefe  no  meio  dos 
dois. 
Os  dois  cavaleiros  colocaram  em  posição  os  seus  visores.  Os  dois 
firmaram  suas  varas  de  combate.  Os  dois  cavalos  davam  patadas  no 

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chão e fungaram.  
"Avançar!" gritou Abobrão. "Vamos em frente!"  
Os  dois  cavaleiros  colocaram  na  pontaria  o  pequeno  padeiro,  que 
estava  carregando  com muito cuidado os seus três pães na sua espátula 
grande  de  madeira.  Entre  a  miopia  de  um  e  o  astigmatismo  do  outro, 
eles  erraram  completamente  o  alvo  do  adversário  e  com  estilo 
derrubaram um ao outro das suas selas. 
O  Padeiro  Chefe  saiu ileso, mas os seus pães frescos foram pisados 
na terra. 
"Agora  ​eu  v​ ou  ensinar  a  vocês  algumas  lições!"  ele  gritou,  e  deu 
umas  pancadas  e  uns  golpes  nas  suas  cabeças  com  a  sua  espátula  de 
madeira.  Quando  foi  embora,  as  armaduras  dos  dois  estavam  cheias de 
entalhos  e  dentes.  Mas  Abobrinha  e  Abobrão  sabiam  que  não  deveriam 
comentar essa aventura infeliz. 
Algumas  semanas  depois,  no  Dia  das  Nomeações  ​⎯  quando 
méritos  e  medalhas  eram  dados  em  reconhecimento  para  vários 
Atalaias  ​⎯  os  dois  cavaleiros  chegaram  um  pouco  atrasados  para  o 
evento  no  pavilhão.  Eles  tinham  ficado  tão  entusiasmados  ao ajudarem 
um  ao  outro  com  a  armadura  que  ela  tinha  ficado  enroscadas  uma  na 
outra.  Até  eles  se  desenroscarem  e  saírem  às  presas,  eles  chegaram  ao 
pavilhão  quando  já  estava  tudo  escuro. Mesmo assim, queriam dar uma 
olhadinha. 
Estava  tudo  muito  quieto,  mais  quieto  do  que  qualquer  outra  vez 
que  eles  já  tinham  ouvido.  Alguém  estava  sentado  na  frente  do 
pavilhão, na plataforma. Era o Atalaia Comandante. 
Quando  os  dois  cavaleiros  entraram,  o  Comandante  levantou-se 
da  sua  cadeira.  "Sr.  Abobrinha  e  Sr.  Abobrão,  estive  esperando  por 
vocês.  Uma  reclamação  foi  feita  contra  os  senhores  pelo  Padeiro Chefe, 
entre  outros.  Vocês  estão  sendo  acusados  de  desfilarem  como  sendo 
Atalaias. Venham à frente!"  
Os  dois  cavaleiros andaram até a frente. Clangue! Clongue! As suas 
armaduras  chiavam  ao  marcharem  até  a  plataforma.  Os  dois  estavam 
vestidos  com  grandes  penas  enfiadas  em  seus  capacetes,  as  quais  eles 
tinham  dado  um  ao  outro  para  honrar  suas  condutas  de  heroísmo  e 
bravura. 
"Vocês  já  receberam  qualquer  tipo  de  cicatriz  ou  ferida  por  ajudar 
outros?"  O  Atalaia  Comandante  perguntou,  muito  calmamente. 
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Abobrinha  começou  a  falar  da  vez  em  que  Abobrão  ficou  preso  na  sua 
armadura  enferrujada  e  ele  o  tinha  socorrido,  mas  pensou  melhor  e 
cortou  o  que  iria  falar.  Eles  balançaram  a  cabeça  que  não.  Os  seus 
capacetes chacoalharam. 
"Vocês  já  lutaram  contra  fogo  na  floresta?"  Mesmo  que  o 
Comandante não estivesse gritando, a sua voz ecoou no quarto vazio. 
Eles,  de  novo,  balançaram  as  suas  cabeças.  Sr.  Abobrão  perdeu  o 
equilíbrio,  tropeçou  na  sua  própria  bandeira  e  teve  que  dar  alguns 
passos. 
"Vocês já protegeram Grande Parque dos seus inimigos?" 
Sr.  Abobrinha  gaguejou,  "N-n-n-nunca,  S-s-senhor",  Ele  nem 
queria lembrar-se do problema que tiveram com o Padeiro Chefe. 
Mas,  era  como  se  ele  tivesse  lido  a  mente  do  cavaleiro,  e  o  Atalaia 
Comandante  apontou  o  incidente,  ele  mesmo.  "Vocês  lutaram  contra  o 
Padeiro  Chefe,  pensando  que  ele  fosse  um  Pauleiro,  mas  vocês  fizeram 
isso  para  buscar  glória  para  vocês  mesmos  e  não  para  proteger  Grande 
Parque.  Vocês  queriam  ser  homenageados  como  Atalaias,  mas  sem 
adquirirem as habilidades de luta, a coragem ou sem se equiparem". 
Sr.  Abobrão  conseguiu recuperar seu equilíbrio. Ele disse: "Senhor, 
somos  muito  bons  em  gritos  de  Atalaia.  Temos  composto  músicas  de 
batalha". 
Os  dois  cavaleiros  ficaram  bem  retos.  Jogaram  suas  cabeças  para 
trás. Suas penas balançaram e uma caiu até o chão. Eles gritaram: 
"Em frente pela Causa!" soltaram um berro. 
"Avançar!" bradaram.  
"Como vai o mundo?" 
Começaram a cantar: "Um Atalaia é um Atalaia é um Atalaia..." Mas 
o  Comandante  estava  tão  quieto,  e  o pavilhão tão parado, que a música 
logo desapareceu. 
Os  olhos  do  seu  líder  estavam  como  faíscas.  "Vocês  não  sabem", 
ele  perguntou  sussurrando.  (Era  o  sussurro  mais  alto  que eles já tinham 
ouvido, e ecoou pelo pavilhão): "​sabem-sabem-sabem-sabem"​ . 
“Vocês não sabem que o Reino não é barulho e sim poder?" 
"Poder-poder-poder-poder".  Este  eco  passou  com  mais  força  pelo 
hall. 
O  Atalaia  Comandante  plantou  seus  pés  firmemente na plataforma. 
Ele  levantou  seus  braços  num  gesto  rápido.  "Assim!"  gritou  o  Atalaia 
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Comandante.  Um  vento  começou  soprar.  Woo-ooo-ooo-oosh!  Os 
cavaleiros se abraçaram para não serem levados pelo vento. 
"E  assim!"  disse  o  Atalaia  Comandante  de  novo.  Luz  encheu  seu 
corpo e brilhou como uma tocha pelo salão escuro. 
"E assim!" 
Kaboom!  Um  relâmpago  estourou.  Deu  uma  trovoada.  Momentos 
depois  veio  chuva.  O  vento  levantou  o  pavilhão  das  suas  fundações. 
Começou  a  girar  e  girar  em  direção  das  nuvens.  Os  dois  cavaleiros  se 
debateram  nas  paredes,  mas  o  homem  na  plataforma  ficou  em  pé 
parado,  resplandecente,  seus  braços  erguidos,  seus  pés  firmes,  e  seus 
olhos brilhantes como as estrelas. 
Finalmente,  o  vento  acalmou-se  e  assentou  o  pavilhão  de  novo na 
terra.  A chuva parou. Não houve mais relâmpago. O trovão cessou. Tudo 
estava quieto e o salão ficou complemente escuro de novo. 
Deste  silêncio  veio  a  voz  do  Atalaia  Comandante:  "De  hoje  em 
diante,  não  tomem  para  si  mesmos  nomes  que  vocês  não  merecem. 
Vocês não são Atalaias. Vocês não defendem o Reino e nem protegem os 
desamparados,  nem  lutam contra o inimigo. Não confundam as proezas 
de  outras  pessoas  como  sendo  as  suas.  Não  pensem  que  palavras  são 
coragem.  Podem  achar  os  seus  lugares  no  Reino,  mas  não  finjam  ser  o 
que não são". 
Tudo  estava  quieto  de  novo.  O  único  som  era  o  dos  passos  do 
Atalaia  Comandante  saindo  do  hall.  Os  dois  cavaleiros  ficaram  lá,  no 
silêncio,  um  bom  tempo.  Era  a  primeira  vez  que  tomavam 
conhecimento do poder do silêncio. 
Abobrinha  e  Abobrão  nunca  mais  disseram  que  eram  Atalaias  ​⎯ 
tão  pouco  pensaram  que  eram.  Nunca  mais  foram  a  caçadas  ou  rondas 
e nem ficavam dando o grito dos Atalaias.  
Ao  invés,  eles  decidiram  viver perto do Portal de Pedras e conduzir 
passeios de boas-vindas para os recém-chegados ao Grande Parque. 
Eles  deixavam  crianças  pequenas  andarem  nos  seus  cavalos  e  as 
faziam  rir  e  contavam  histórias  das  bravuras  dos  Atalaias.  E  se 
contentaram com seus lugares apropriados no Reino. 

E, então, os dois cavaleiros nunca mais se enganaram. Pois, quando 


alguém vê, ouve e conhece a coisa real, nunca mais confunde barulho 
com poder. 
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86
 
 
Mateus 18:7-9 
Ai do mundo, por causa das coisas que fazem tropeçar! É inevitável que 
tais coisas aconteçam, mas ai daquele por meio de quem elas 
acontecem! Se a sua mão ou o seu pé o fizerem tropeçar, corte-os e 
jogue-os fora. É melhor entrar na vida mutilado ou aleijado do que, 
tendo as duas mãos ou os dois pés, ser laçado no fogo eterno. E se o seu 
olho o fizer tropeçar, arranque-o e jogue-o fora. É melhor entrar na vida 
com um só olho do que, tendo os dois olhos, ser lançado no fogo do 
inferno.  
 
Hebreus 3:12-13 
Cuidado, irmãos, para que nenhum de vocês tenha um coração 
perverso e incrédulo, que se afaste do Deus vivo. Pelo contrário, 
encorajem uns aos outros todos os dias, durante o tempo que se chama 
"hoje", de modo que nenhum de vocês seja endurecido pelo engano do 
pecado. 
 
Tiago 1:14-16 
Cada um, porém, é tentado pela própria cobiça, quando por esta é 
arrastado e seduzido. Então a cobiça, tendo engravidado, dá à luz o 
pecado; e o pecado, após ter-se consumado, gera a morte. Meus 
amados irmãos, não se deixem enganar.  
 
 

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Era uma vez, quando a grama alta crescia ao redor do Lago Marmo. Cada 
primavera dragões fêmeas vinham do céu, abriam ninhos nas canas, 
botavam ninhadas de ovos e as enterravam na areia. E uma vez concluída 
a sua tarefa, os grandes répteis voavam de volta de onde vieram. 
 
Dragões  no céu é o primeiro sinal de primavera em Grande Parque. 
As  crianças  vêm,  com  cestas  na  mão,  ansiosas  por  fazerem  caças  de 
ovos  de  dragões.  Elas  guardam as suas meias de inverno e acham muito 
legal  irem  descalças  na  areia  que  rodeia  o  lago.  As  crianças  apostam 
corridas,  rindo  e  respirando  forte, para verem quem consegue achar um 
ninho  de  ovos  de  dragão  primeiro.  Elas  gritam  e  fazem  a  festa  quando 
acham o tesouro.  
"Ovos  de  dragão!"  elas  gritam.  Logo  esse  grito—"Ovos  de 
dragão!"—ecoa de um lado do lago para o outro. 
As  crianças  sabiam  que  era  proibido  ficar  com  os  ovos  de 
dragão...porque  um  ovo  de  dragão  logo  se  choca  e  chega  ao  tamanho 
adulto  em  seis  meses.  As  escamas  do  dragão  nenê  ficam  duras.  Ele 
começa  a  lançar  fogo.  De  início,  só  jatos  curtos  de  ar  quente  e  mais 
tarde  tochas  fumegantes.  O  dragão  se  torna  astuto  e  não  é  confiável. 
Por  estas  razões,  há  uma  placa  nas  margens  do  Lago  Marmo  que  diz:  É 
Proibido Guardar Ovos de Dragão.  
Os  dois  ovos  que  a  Princesa  Amanda  achou  um  dia,  vários  meses 
depois  da  chegada  de  Herói,  eram  de  bronze.  Brilhavam  como  jóias 
âmbar  à  luz  do  sol.  Talvez  a  intenção  dela  fosse  de  levá-los  até 
Cuidador.  Talvez  pensasse que os ovos estavam velhos e estragados por 
dentro.  Talvez  ela  tenha  se  esquecido.  Mas  ela  não  os  levou  até  a 
cabana de Cuidador. 
Ao  invés,  ela  escondeu  os  ovos.  Ela  os  escondeu  no  Meu 
Lugarzinho,  sua  cova  no  oco  de  uma  grande  árvore  na  beira  de  Campo 
Relvoso,  que  era  tão  distante  do  Portal  de  Pedras  que  poucas  pessoas 
chegavam  até  lá.  Era  tão  calmo  lá  que  Cuidador  visitava  essa  área 
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poucas vezes ao ano. 
O  sol  da  primavera  chegou  até  o  chão  da  cova  de  Amanda 
aquecendo  o  seu  esconderijo.  Logo,  um  ovo  chacoalhou  quando  a 
princesa  pegava  nele  para  o  inspecionar.  Obviamente  não  havia  vida 
neste  ovo.  Mas  o  outro  começou  a  se  rachar.  Daí  algumas  horas,  um 
filhotinho  de  dragão  usou  o  seu  bico  para  se  livrar  da  casca  do  ovo.  O 
filhotinho  grasnou  pedindo  comida.  Seu  pescoço  estava  ainda  fraco  e 
balançava  na  tentativa  de  manter  a  cabeça  no  alto  .  Seus  pés  se 
esforçaram  para  dar  passos  equilibrando  sua  cabeça  enorme.  Ele 
acabou batendo o nariz no lado da árvore. Amanda riu.  
"Eu  preciso  levar  você  para  Cuidador",  ela  pensou  em  voz  alta. 
"Ele saberá o que fazer com um filhote de dragão inesperado".  
A  pequena  fera  virou  seu  olho  marrom  para  ela  e  uma  grande 
lágrima  pingou  no  seu  peito.  Amanda  começou  a  amar  o  nenê  dragão. 
Mesmo  sabendo  que  era  proibido,  ela  ficou  com  o  filhote  como  um 
animal  de  estimação.  ​Só  por  um  pouco  de  tempo,  ela  pensou.  Talvez  eu 
consiga domesticá-lo 
A  princesa  deu  insetos  e  raízes  para  o  nenê  de  hora  em  hora  para 
mantê-lo  vivo.  E,  por  causa  desse  nutrir  dado  ao  filhote,  ela  o  amava 
mais  ainda.  Logo  a  pele  do  filhote  ficou  coberta de escamas macias que 
ao sol cintilavam a cor bronze. 
Aquele verão se ocupou com jogos de filhote de dragão. A pequena 
fera  e  Amanda  apostavam  corridas  com  as  borboletas.  Linhas  de  asas 
brilhantes  e  uma  princesa  suada  e um dragão, cada dia crescendo mais, 
corriam  por  Campo  Relvoso.  Outros  dias  Amanda  e  o  animal  pulavam 
pelas  margaridas,  para  ver  quem  conseguia  dar  o  pulo  mais  comprido. 
Não demorou muito para o filhote ganhar toda vez. 
Algumas  vezes  Amanda  arremessava  sua bola o mais alto possível, 
e  o  filhote  pulava,  quase  na  altura  das  árvores,  e fisgava a bola nos seus 
dentes. 
"Eu  tenho  mira  perfeita.  Ele  tem  o  talento  de  pegar  perfeito. 
Devemos ser a dupla perfeita", ela cantou brincando no sol. 
Ao  chegar  no  meio  do  verão,  o  filhote  era  grande  o  suficiente para 
Amanda  se  espremer  entre  os  cravos  que  cresciam  nas  costas  do 
dragão.  Juntos  eles  voavam  acima  da  grama, se desviando dos galhos e 
folhas  das  velhas  árvores  que  cercavam  o  campo  aberto.  O  filhote 
soltou um grito jubilante: ​“Criii!”​ e Amanda riu com alegria. 
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Para  cima  e  para  baixo  eles  voaram.  Até  acima  das  árvores  e  até 
em  baixo,  nas  flores  do  campo.  Amanda  segurou  como  pôde,  enquanto 
o filhote de dragão voava, batendo as suas asas. 
Amanda  logo  descobriu  que  seu  animal  de  estimação  não gostava 
de  ser  deixado  sozinho.  Ele  gritava  sem  dó,  quando  ela  saía  para 
praticar  a  sua  pontaria  no  campo  de treinamento; então, ela começou a 
praticar  menos  e  menos. O filhote especialmente tinha uma aversão por 
ser  deixado  à  noite.  Sendo  que  a  princesa  nem  poderia  pensar  em 
trazê-lo  para  o  Círculo  Íntimo—e  até  temia  a  sua  morte,  caso  fosse 
descoberto — ela começou a se distanciar das Grandes Celebrações. 
Uma  noite  ela  entrou  meio  agachada  na  sua  cova,  ao  lado da fera, 
e  esta  lambeu  seu  rosto  e  suas  mãos.  Com  gratidão,  esticou-se  ao  lado 
dela,  respirando  fundo  por  ter  ficado.  Ela  podia  ouvir  música  à 
distância,  vindo  da  Floresta  Profunda,  e  sentiu  saudades  dos  seu 
amigos.  Criar  um  filhote  apresentava  mais  exigências  do  que  ela  tinha 
imaginado.  Amanda  ficou  com  raiva  da  lei  que  a  impedia  de 
compartilhar  seu  animal  de  estimação  com  os  outros​.  Que  dano  pode 
fazer um pequeno dragão,​ ela pensou. 
Aquela  mesma  noite  ela  notou  uma  luz amarela vislumbrando nos 
olhos  da  fera,  quando  olhava  para  ela.  Quando  lambia  seu  rosto,  ela 
podia sentir que o seu ar era quente e seco. 
Depois  disso,  ao  voltar  de  passeios  curtos  à  procura  de  comida, 
Amanda  achava  as  paredes  da  sua  cova  chamuscada.  O  oco  estava  se 
tornando  mais  preto.  Cheirava  a  carvão.  O  dragão  sempre  estava  feliz 
em  vê-la,  mas  ela tinha o cuidado de não ficar diretamente em frente do 
seu nariz e boca. 
Mais  e  mais  ela  teve  de  tomar  cuidado  com  seu  rabo.  Um  rabo  de 
dragão  adulto  é  mortal.  Um  tapa  com  o  rabo  poderia  mover  pedras  ou 
derrubar árvores ou aleijar um homem. ​Ou matar uma princesa. 
Uma  vez,  quando  ela  queria  pular  nas  costas  do  dragão  para fazer 
um  passeio,  ele  deu  um  salto  sem  ela​.  "Criii-i-o!  Criii-i-o!"  O  seu  grito 
tornou-se  um  desafio  ao  lançar  uma  labareda  de  fogo  em  sua  direção. 
Pela primeira vez, ele tinha ido diretamente contra a vontade dela. 
Cada semana que passava, Amanda ria menos e menos. 
Um  dia,  depois de apostar uma corrida com o dragão pela floresta, 
ela  o  deixou  tirando  uma  soneca  em  um  clareira  ensolarada  e  retornou 
para  a  sua  árvore  oca,  justo  na  hora  em  que  Cuidador  estava  saindo, 
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costas  primeiro.  A  pequena  árvore  em  cima  do  seu  chapéu  saiu  do 
buraco como uma cortiça sai de uma garrafa. 
"O  que  aconteceu  com  as  paredes  do  Meu  Lugarzinho?"  ele 
perguntou. "Amanda, você não tem brincado com fogo, tem?" 
"Ah!  tá  assim  um  tempão”,  ela  mentiu.  "Eu  não  sei  o  que  causou 
isso. Talvez Queimadores estiveram aqui no inverno passado". 
Amanda  quis  que  Cuidador  parasse  de  usar  esse  chapéu  ridículo 
que  era  uma  árvore.  Como  que  ela  poderia  ter  achado  aquilo  tão 
maravilhoso! 
Cuidador  ficou olhando para a terra em frente da cova. Ele colocou 
seu  pé  em  certos  lugares.  "Tem  visto  dragões  por  aqui?"  ele  perguntou 
calmamente. 
"Dragões?"  respondeu  Amanda  rapidamente.  "Recentemente 
não... a época de dragões já se encerrou". 
Cuidador  não  disse uma palavra, mas começou a sair pela trilha na 
Floresta.  ​Seu  velho  bobo,​   pensou  Amanda.  Foi  neste  momento  que  ele 
parou e virou-se e olhou para ela tristemente. 
"Se  você,  em  qualquer  momento,  precisar  da  minha  ajuda 
Amanda,  é  só  pedir."  Cuidador  olhou  bem  nos  olhos  da  Amanda  por 
alguns longos minutos e aí deu meia volta e se foi caminho abaixo. 
No  dia  seguinte,  ela  escondeu  o  dragão  numa  outra  parte  da 
floresta.  Quando  ela  voltou,  esta  vez  era  a  Misericórdia  que  estava 
sentada no lado de fora da sua cova. ​Ela é a mulher mais feia que eu já vi, 
pensou  Amanda,  meio  surpresa.  Não  queria  conversar  com  ela. Por que 
eles não me deixam em paz? 
"Amanda!"  Misericórdia  chamou  com  um  sorriso  triste.  "Eu  te  vi 
chegando, antes de ouvi-la. O que tem acontecido com o seu riso?" 
Amanda  não  sabia  como  responder.  Ela  tinha  mudado?  Tudo 
parecia  estar  diferente  agora.  Será  que  ela  estava  perdendo  o  dom  de 
ver?  Ou  será  que  ela  estava  vendo  as coisas agora como realmente são? 
Talvez a Grande Celebração fosse apenas um monte de tolice? 
Naquela  mesma  noite,  Amanda  percebeu  que  as  escamas  do 
dragão,  dormindo  ao  seu  lado,  eram  muito  duras.  Ela  sabia  que  seu 
corpo  grande  estava  deixando  Meu  Lugarzinho  apertado  e  que  dragões 
crescidos não era piada.  
Esta  seria  a  última  noite  que  ela  iria  deixar  o  dragão  retornar  do 
seu  esconderijo  e  dormir  com  ela  na  sua  cova.  Na  manhã  seguinte,  ela 
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levou  o  dragão  bem  no meio da Floresta Profunda e mandou ele ficar lá. 
Secretamente  ela  teve  a  esperança  de  que o dragão iria sair voando. Ele 
tinha  ficado  muito  grande  e  Princesa  Amanda  estava  com  medo.  De 
alguma  maneira  ela  precisava  livrar-se  do  dragão.  O  perigo  estava 
próximo. Ela podia sentir isso. 
Numa  manhã,  alguns  dias  depois,  ela  acordou  mais  cedo.  Com  os 
seus  olhos  ainda  fechados,  ela  desfrutou  do  conforto  de  ter  lugar  o 
suficiente  para  se  esticar. Era um dia crespo de outono. Ela pôde cheirar 
o  ar  crespo  e  seco.  E  ela  pôde  respirar  fundo  e  cheirar...fogo!  Amanda 
deu  um  pulo  e  ficou  em  pé. Folhas secas estavam empilhadas em frente 
à  sua  porta.  Estavam  queimandos.  Amanda  correu  para  fora,  pisando  e 
espalhando as folhas. Seus pés descalços foram queimados. 
Levantando  a  cabeça,  ela  percebeu  que  um  toco  velho  estava 
enfumaçando,  ao  lado  da  trilha.  Fumaça  estava  saindo  do  arbusto,  ao 
lado da floresta. 
Amanda  conseguiu  ver  algo grande e cor de bronze mexer-se entre 
as  árvores.  Ela  correu  para  dentro  para  calçar  seus  tênis  e  saiu  de  novo 
às pressas. 
"Espere!  Espere!"  ela  gritou.  Ela  começou  a  correr  ao  longo  da 
trilha.  "Espere  por  mim!"  Ela  estava  apavorada  de  que  a  grama  seca 
pegasse  fogo  por  causa  do  dragão  respirando.  Na  sua  mente  ela  viu  a 
floresta  inteira  queimando,  as  criaturas  correndo  e  ..ai,  que  terrível! 
Fogo em Grande Parque! Fogo por causa dela! 
  De  repente,  ela  sabia:  Grande  dano  podia  vir  de  um  pequeno 
dragão  domesticado;  coisas  pequenas  e  domesticadas  tornam-se  feras 
grandes e ferozes. 
E  agora,  onde  estaria  Cuidador?  Onde?  Por  que  ela  não  levou  o 
filhote para ele, logo no início? Por que ela mentiu? 
A  fera,  finalmente,  a  ouviu  chamar.  Saiu  das  árvores para o campo 
e  a  encarou.  Amanda  engoliu  seco.  Tinha  crescido  mais  ainda, e ela não 
tinha notado o quanto crescera. 
A  fera  enorme  estava  à  sua  espera.  Seu  rabo  comprido rastejou-se 
no  chão e a ponta do rabo mexeu-se como um chicote. As garras de uma 
pata  se  encravaram  no  solo  debaixo  delas,  e  se  abriram  de  novo, 
fazendo  flexões.  Secreção  espumosa  escorria  pelos  dentes  até  seu 
queixo.  Luz  amarela  estava  dentro  dos  seus  olhos.  O  dragão  tornou-se 
astuto. Por que ela não tinha visto isso? 
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Amanda  tentou  se  fazer  o  tão  grande  quanto  possível.  Ela  ignorou 
a  dor  das  queimaduras  nos  seus  pés.  "Dragão",  ela  anunciou  em  seu 
tom  mais  majestoso possível, "você precisa ir. Você é muito grande para 
a  minha  cova. Dragões crescidos não são permitidos em Grande Parque. 
Seu sopro está muito quente. Vá embora!" 
O  dragão  olhou  para  ela  com  malícia.  Ele  curvou  as  costas,  como 
gato  a  espreita,  e  chegou  mais  e  mais  perto  dela.  Finalmente,  a  fera 
enorme  estava  próxima.  Usou  o  rabo  para  dar  uma  rasteira.  Amanda 
pulou para evitar a ponta do rabo. O dragão puxou mais rápido o grande 
rabo  dentado.  Ela  pulou  de  novo.  Ele  levantou  a  cabeça  e  lançou  uma 
tocha  de  fogo  na  grama,  atrás  dela.  Ela  pôde  ouvir  a  vegetação 
estalando  por  causa  do  calor.  Ela  sentiu  que  começou  a  queimar.  Ela 
virou  para  pisar  no  pequeno  fogo  que  tinha  começado.  O  Dragão 
espirrou mais uma labareda. Mais fogo. 
Seu  coração  se  encheu  de  terror.  ​Uma  pequena  princesa  não 
consegue apagar todos os incêndios que um grande dragão começa! 
O  dragão  lançou  outra  labareda.  As  chamas  lamberam  sua  roupa, 
seu  cabelo.  Ela  usou suas mãos para se proteger e por fim teve que rolar 
no  chão.  Ela  viu  a  grande  fera  avançando,  pouco  a  pouco,  a  ponta  do 
rabo  posicionado  para  chicotear  e  seus  olhos  ainda  mais  amarelados. 
Amanda  se  retraiu.  Ela  sabia  que  era  inútil  correr.  O  dragão  sempre 
ganhava as corridas. 
"Socorro!"  ela  gritou.  "Cuidador!  Cuidador!  Eu  sou  pequena 
demais para esse dragão terrível. Me ajude!" 
De  repente,  sem  ela  saber  como,  Cuidador  estava  em  pé  ao  lado 
dela.  É  provável  que  ele  tenha  vindo  correndo  desde  o  momento  em 
que as chamas começaram. 
"Mate-o!  Mate-o!"  gritou  Amanda.  A  fera  enorme  começou  a  se 
preparar  para  dar  um  bote.  Levantou-se  e  se  equilibrou  nas  duas  patas 
traseiras e rugiu. Labaredas voadoras encheram o ar. 
"Não,  Amanda",  disse  o  velho  homem,  "eu  não  posso  matar  o 
dragão.  Somente  aquele  que  ama  algo  proibido  pode  fazer  este 
trabalho.  Você  sempre  me  odiará  se  eu  o  fizer.  Só  ​você  pode  matar  o 
dragão!" 
Cuidador  puxou  da  sua  cinta  de prata o seu machado de lenhador. 
Ele  o  segurou  reto  em  frente  dele  e  levantou  seus  olhos  ao  céu.  "Em 
nome  do  Rei,  Amanda.  Pela  Restauração...Você  precisa  assassinar  o 
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dragão!" 
Cuidador  jogou  o  machado  que  voou  bem  alto,  e  desceu  dando 
cambalhotas para baixo, ponta sobre ponta. O som começou; ouviu-se a 
música  que  a  princesa  sempre  tinha  amado.  O  machado  caiu  perto  dos 
seus  pés, a lâmina enfiando-se firmemente no solo. Amanda se esticou e 
agarrou  o  cabo  de  madeira.  Ela  sentiu  o  poder  do  machado  ao 
arrancá-lo. 
Com  isso  tudo,  Amanda  se  achou  no  centro  do  Campo  Relvoso,  e 
Cuidador  tinha  se  retirado  do  círculo  de  combate  mortal.  Pequenas 
fogueiras  queimaram  aqui  e  ali  na  grama.  Era necessário que a princesa 
fizesse isso rapidamente. Ela teria somente uma chance. 
Subitamente,  Amanda  teve  um  pensamento horroroso. Seu riso se 
foi.  Sua  visão  desapareceu.  E  se  o  seu  dom  de  mira  perfeita  também 
tivesse sumido?! 
O  dragão  estava  muito  perto.  Ela  ficou  de  olho  no  seu  rabo.  Ela 
sabia  que,  mesmo tendo sido ela quem o manteve vivo, ele agora queria 
rasgá-la  e  devorá-la.  O  rabo  se  mexeu.  Amanda  deu  um  pulo  para 
evitá-lo.  Vinha  de  novo  em  sua  direção.  Desta  vez,  Amanda  estava 
pronta.  Ela  acertou  o  rabo  enorme  com  seu  machado.  Aí!  Um  pedaço 
longo tremia no chão, esguichando sangue verde de dragão. 
Talvez  haja  esperança​,  pensou  Amanda.  Realmente  foi  mira  certa. 
O  dragão  soltou  um  berro:  "Cri-i-i-i!  Cri-i-i-i-i!  ​⎯  não  tanto  de  dor  como 
de  raiva.  Ele  se  armou  nas  patas  traseiras,  abriu  sua  boca,  e  soltou uma 
labareda  de  chamas  que  pegou  Amanda  por  inteiro  no  rosto.  Ela  sentiu 
chamas quentes consumindo seu cabelo, sua roupa. 
"Agora Amanda!" gritou Cuidador. "Agora ou nunca!" 

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Ela  mirou  com  cuidado,  levantou  o  machado,  avistou  as  escamas 
esbranquiçadas  no  peito  do  dragão,  que  era  o  único  ponto  vulnerável 
dele.  "Ao  Rei!”  Ela  gritou.  "À  Restauração!"  Força  encheu  seu  braço.  Ela 
deixou  o  machado  voar.  Naquele  mesmo  momento,  a  fera  avançou  de 
novo.  Pegou  a  perna  da  Amanda  com  o  que  restava  do  seu  rabo 
sangrento. Ela foi derrubada até ao chão. 
Mas  a sua mira foi verdadeira. O machado do Cuidador acertou seu 
alvo  e  o  grande  dragão  veio  despencando  sobre  a  pequena  menina. 
Meleca  verde  esparramou-se  por  todo  Campo  Relvoso  e  cobriu  a 

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princesa. 
  Estou  morrendo,​   ela  pensou.  Vou  sufocar  debaixo  deste  corpo 
pesado do dragão. 
Amanda  sentiu  a  mão  do  Cuidador  pegar  no  seu  braço.  Com 
cuidado,  e  vagarosamente,  o  velho  homem  levantou  o  lado  do  grande 
casco  do  dragão,  o  tanto  necessário  para  que  Amanda  pudesse  rastejar 
até a liberdade. 
Foi então que Cuidador aninhou a criança em seus braços, no meio 
do  Campo  Relvoso,  e  chorou.  O  cabelo  e  sobrancelhas  dela  estavam 
crestados.  Sua  roupa  estava  preta.  Seu  rosto  e  pés  cheios  de  bolhas  e 
fuligem.  Ela  estava  coberta  de  sangue  de  dragão.  Parecia  uma 
indigente. 
Mas  a  Princesa  Amanda  venceu  a  batalha.  Ela  destruiu  o  dragão 
que amava. 

Então, a princesa descobriu que, quando alguém ama algo proibido, 


perde aquilo que mais ama. Esta verdade é uma batalha difícil de ser 
vencida por qualquer um que a busque, e é sempre ganha por perda. 
 
 
 
 
 
   

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1Coríntios 12:26 
Quando um membro sofre, todos os outros sofrem com ele; quando um 
membro é honrado, todos os outros se alegram com ele. 
 
Mateus 16:16-18 
Simão Pedro respondeu: "Tu és o Cristo, o Filho do Deus vivo". 
Respondeu Jesus: "Bem-aventurado é você, Simão, filho de Jonas! Pois 
isto não lhe foi revelado por carne nem sangue, mas por meu Pai que 
está nos céus. E eu lhe digo que você é Pedro, e sobre esta pedra 
edificarei a minha igreja, e as portas do Hades não poderão vencê-la. 
 
Efésios 3:10-12 
A intenção dessa graça era que agora, mediante a igreja, a multiforme 
sabedoria de Deus se tornasse conhecida dos poderes e autoridades nas 
regiões celestiais, de acordo com o seu eterno plano que ele realizou em 
Cristo Jesus, nosso Senhor, por intermédio de quem temos livre acesso 
a Deus em confiança, pela fé nele.  
 
 
 
 
 
 
 

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Fogo na Floresta  
 
E agora, mal levantou sua cabeça ao som do caos. Enquanto 
fumaça ascendia sobre Grande Parque, figuras escuras vindas 
da Cidade Encantada começaram a avançar. . . 
 
Cuidador  veio  correndo  até  a  cabana  da  Misericórdia,  com 
Amanda  nos  seus  braços.  Ele  deitou  a  criança  numa  cama.  Misericórdia 
olhou para ela, atônita. "O que aconteceu?" ela perguntou. 
"Fogo",  respondeu  o  velho  homem  e  o  olhar  que  ele  deu  à  sua 
esposa  disse  tudo:  por  causa  da  desobediência  da  Amanda,  Grande 
Parque agora estava vulnerável ao perigo. 
Croie-e-e-e-e-e!  Croie!  Croie!  A
​ s  trombetas  dos  Atalaias  estavam 
dando o alarme insistentemente. Fogo! Perigo! 
"Faça  o que puder para ela, mas rapidamente!" ordenou Cuidador, 
se  apressando  até  a porta. "Depois, venha ao Círculo Íntimo. Os homens 
do  Encantador  estão  assolando  o  portão.  Precisaremos  de  você 
logo-logo". 
Imediatamente,  Misericórdia  foi  até  a  lareira,  onde  ela 
rapidamente  misturou  algumas  ervas  medicinais  numa  bacia.  "Herói", 
ela  chamou,  "eu  vou  precisar  da  sua  ajuda.  Molhe  estes  panos  limpos 
nesta bacia. Depois, cubra as queimaduras dela . . . assim. 
Misericórdia  cortou  fora  a  roupa  que  estava  queimada,  da 
Amanda,  e  a  cobriu  com  um  cobertor.  Herói  observou,  enquanto  a 
senhora  idosa cuidadosamente colocou gazes em todos os lugares onde 
a  pele  estava  vermelha  por  causa das queimaduras. Também pegou um 
copo,  e  com  muito  jeito  o  encheu  de  solução  da  jarra  de  cura  e  a 
derramou na boca de Amanda. 
Croi-e-e-e-e-e-e!​ Soaram as trombetas, com urgência. 
"Eu  preciso  ir",  disse  Misericórdia  a  Herói.  "Perigo  tem  avançado 
pelos  portões".  A  velha  senhora  deu  uma  parada  ao  sair  da  porta.  "Se 
você  se  sentir  ameaçado,  não  fique  com  medo.  Declare  os  gritos  dos 
Atalaias para se fortificar: 'Ao Reino! Ao Rei!'". 
Aí ela sumiu. 
Herói  ficou  olhando  a  menina  ferida,  tão  quieta  na  cama.  O  que 
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tinha  acontecido?  Deu  medo  só de olhar sua pele cheia de bolhas e seus 
olhos completamente inchados. Nem parecia que ela estava respirando. 
Sons  frenéticos,  vindo  de  fora,  interromperam  o  silêncio  na 
cabana.  Todas  as  pessoas  capazes  em  Grande  Parque  estavam  se 
apressando  na  direção  do  Círculo  Íntimo,  onde  as  chamas  sagradas 
estavam  sendo  acesas.  Herói  ouviu  gritos  de  Atalaias  e  toques  de 
trombetas  de  alerta,  incessantes.  E,  de  muito  longe,  ele  ouviu  o  bater 
baixo  e  fúnebre  dos  tambores  da  morte  vindo  da  Cidade  Encantada. 
Seus  ouvidos  pegaram  um  outro  som  também:  ​não-nunca-nada, 
não-nunca-nada, não-nunca-nada. 
Era  o  canto  de  batalha  dos  Negadores,  que  tinham  o  poder  de 
congelar  as  mentes  das  pessoas  através  da  repetição  de 
impossibilidades  em  seus  corações.  Herói  sabia  que  Queimadores, 
espalhando  fogos  de  destruição  com  seus  atiçadores  abrasadores  e 
Pauleiros,  levando  cacetes  para socar até a morte qualquer um que lhes 
resistisse, estariam avançando por detrás do exército de Negadores. 
O  coração  de  Herói  se  desesperou.  O  rapaz  olhou  para  a  jovem  na 
cama.  Ele  sabia  que  ela  estava  morrendo.  ​Amanda,  Amanda,  ele  gemeu 
de  lá  de  dentro  dele,  quando  todas  aquelas  lembranças  da  pequena 
princesa  vieram  despencando  sobre  ele:  Amanda  sentada  em  cima  de 
um  toco  de  árvore  na  floresta,  com  flores  entre  seus  dedos  do  pé; 
Amanda  lançando  o  machado  de  Cuidador  com  mira  perfeita  para 
defendê-lo contra o Atalaia Incrédulo; Amanda dando suas gargalhadas. 
Herói  se  ajoelhou  ao  lado  da  cama,  seus  olhos  cheios  de  lágrimas. 
Foi  então  que  ele  se  lembrou  das  últimas  instruções  de  Misericórdia. 
"Ao  Rei",  ele  sussurrou,  engasgando  nas  palavras.  "Ao  Reino!"  Seu 
coração  estava  pesado,  mas  ele  continuou  a  repetir  as  palavras.  Com 
isso um poder parecia enchê-lo, uma força semelhante à de ira. Ele ficou 
de pé e gritou de pulmões cheios: "Ao Reino! Ao Rei!" 
Será  que  o  quarto  se  contra-balanceou?  Ou  será  que  Herói  se 
deixou  levar  por  suas  emoções?  Amanda  de  repente  se mexeu na cama, 
e  Herói  notou  que  não  estava  mais  ouvindo  os  Negadores  a  cantar 
repetidamente os seus gritos. 
A  menina  gemeu  por  debaixo dos cobertores. Suas sombrancelhas 
se esforçaram para abrir seus olhos. "Cuidador? Fogo!" 
Herói  se  ajoelhou  ao  lado  dela  novamente.  "Ele  já  se  foi,  Amanda. 
Ele  e  Misericórdia  e  todos  em  Grande  Parque  estão  se  apressando  até o 
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Círculo Íntimo". 
A  menina  ficou  sentada,  desfaleceu,  e  tentou  levantar-se 
novamente.  Herói  tentou  impedi-la  de  se  levantar,  mas  ela  estava 
desesperada.  "Deixe-me  ir!"  ela  gritou.  "Precisamos  sair  daqui!  Todos 
estamos em perigo!" 
Freneticamente  Herói  começou  a  revirar  as  coisas  em  busca 
daquela  mistura  de  cura.  ​Onde  será  que  Misericórdia  colocou  aquela 
jarra?  M
​ as  ele  parou,  ao  ouvir  alguém  entrar  na  cabana.  Ao  olhar  em 
direção  a  porta,  Herói  avistou  uma  figura  escura  na  entrada.  Era 
encurvada  e  escondida,  por  baixo  de  um  manto  escuro,  mas  Herói 
conseguia  ver  o  rosto  esbranquiçado,  com  olhos  penetrantes  e  um 
sorriso  arrepiante.  O  intruso  segurava  um  cassetete  feio  e  rude  e  cheio 
de nós. 
Ele  se  arrastava  vagarosamente,  mas  com  determinação,  em 
direção ao canto onde Amanda estava descansando. 
Herói  queria  se  jogar  na  frente  desta forma terrível, mas ele estava 
tão congelado no momento, que parecia se mover sobre pés aleijados. 
O  Pauleiro  levantou  o  seu  porrete  sobre  sua  cabeça.  Amanda  se 
retorceu.  E  aí,  de  lugar  nenhum,  Herói  ouviu  um  grito.  O  pisar  de  pés 
apressados  e  o  som  de  um  machado  voador  encheram  o  quarto.  Foi 
então  que  um  homem  vestido  de  azul  e  o  Pauleiro  fantasmagórico 
engajaram-se  em  uma  batalha  feroz,  que  fez  cadeiras  e  mesas  se 
despedaçarem  e  terminou  com  o  Pauleiro  sendo  atirado  pela  porta 
afora, na tarde fumacenta. 
Um  Atalaia  ficou  em  pé  no  meio  da  cabana,  arrumando  mesas  e 
cadeiras.  Ele  dirigiu  um  olhar  sério,  mas  com  sorriso,  para  Herói  e 
Amanda  que  estavam  tomados  de  terror.  "Um  a  zero  para  Grande 
Parque!"  ele  disse  ao  arremessar  o  cassetete,  que  foi  abandonado  pelo 
seu dono, na lareira. 
"Como? ..." Herói perguntou. 
O  Atalaia  gentilmente,  e  com  cuidado,  empacotou  Amanda  num 
cobertor.  "Minhas  ordens  foram  para  vir  e  pegar  vocês  dois",  ele 
respondeu.  "Eu  o  vi entrando de mansinho. Estão sempre tentando tirar 
vantagem,  criaturas  malditas!  Agora,  o  Parque  está  cheio  deles".  Ele 
ergueu  a  menina  nos  seus  braços  e  deu  um  sinal  com  a  cabeça  a  Herói. 
"Pegue algo para ela vestir, que não seja apertado. Depressa!" 
O  Atalaia  saiu  rapidamente  da  cabana,  mas  Herói  hesitou  por  um 
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momento,  seu  coração  batendo  disparado,  só  em  pensar  que  teria  de 
passar  pelo  Grande  Parque  com fogo em certos lugares. Algo como uma 
oração  não solicitada, ou como um velho hino que se lembra por partes, 
surgiu de dentro dele. ​Ao Rei...ao Rei... 
Em um só movimento o menino saiu atrás do Atalaia, se expondo à 
tarde  quente  e  estranha.  Um  forte  cheiro  de  fumaça  engasgava  o  ar.  O 
céu acima estava fervendo com nuvens terríveis de tom cinza e amarelo. 
Algo  como  uma  sombra  pegou  a  atenção  de  Herói  pelo  canto  dos  seus 
olhos.  Uma forma escura correu de mansinho para trás de uma árvore, e 
logo em seguida outra a seguiu. 
Quando  finalmente  chegaram  até  o  Círculo  Íntimo,  as  Chamas 
Sagradas  já  estavam  radiantes  de  poder.  Atalaias,  dentro  do  círculo, 
estavam  dando  ordens  para  todos  os  súditos  se  organizarem  por 
unidades  de  ataque,  de  combate  ao  incêndio,  protetores,  e 
carregadores de chama. 
Herói  não  iria  passar  pelas  chamas  com  o  Atalaia  que  carregava 
Amanda,  e  até  a  menina  se  estremeceu  e  pediu  para  ficar  no  lado  de 
fora  do  Círculo  Sagrado.  O  rapaz  e  a  moça  ficaram  lá  observando  o 
Atalaia Comandante do outro lado do fogo. 
O  emblema  de  prata  brilhava  no  seu  ombro  e  na  sua  fivela. 
Misericórdia,  agora uma mulher-de-guerra forte, trabalhava ao seu lado. 
Ela  passava  para  alguns  as  tochas  a  serem  acesas,  a  outros,  mapas,  e 
ainda baldes para outros. 
O  Rei  estava  de  pé  no  meio  disso  tudo,  seus  ombros  mais  alto  do 
que  a  maioria.  Sua  face  estava  séria,  e  seus  olhos  radiavam  de 
indignação.  Ele,  também,  estava  usando  o  manto  de  Atalaia,  mas  em 
suas mãos segurava o cetro de prata, que brilhava com chamas de fogo. 
De  repente,  o  Rei  ergueu  bem  o  queixo  e  assobiou.  Logo  em 
seguida,  o  Atalaia  Comandante  e  sua  esposa,  Misericórdia,  repetiram  o 
chamado.  Num  instante,  grandes  alces,  corças  e  veados  saíram  da 
floresta,  como  se  estivessem  esperando  pelo  chamado.  Galhos e galhos 
de chifres refletiam a luz do círculo de chamas. 
De  uma  vez,  o  Rei,  o  Atalaia Comandante e Misericórdia, saíram de 
dentro  das  Chamas  Sagradas,  e  cada  um  pulou  em  cima  das  costas  de 
um  forte  alce.  Muitos,  de  dentro  do  Círculo,  seguiram,  até  que  uma 
grande  multidão  de  homens  e  mulheres  estavam  montados  em  cima 
dos grandes animais. 
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Naquele  momento  um  veado  novo,  sem  alguém  nele,  cutucou 
Herói. "Deixe-me ajudá-la a montar. Vamos com eles".  
O  Rei  se  endireitou  por  cima  da  cernelha  do  alce  em  que  estava 
montado  e  deu  um  sinal  à  tropa  atrás  dele.  Centenas  de  pessoas 
montadas  prosseguiram  para  dentro  da  Floresta  Profunda. 
Primeiramente,  as  linhas  se  mexeram  em  passo  lento,  mas  logo 
começaram  a  cavalgar,  e  por  fim a galopar, traçando seu caminho pelas 
trilhas  já  abertas  pelos  veados.  Herói  podia  ouvir  os  gemidos  baixos  de 
dor da Amanda, ao tentar se estabilizar sobre o animal. 
Logo  as  montadoras  foram  formando  um  grande  arco,  e  as 
chamas  das  suas  tochas  se  espalharam  pelas  árvores  e  os  arbustos.  Os 
soldados  sobre  animais  levantaram  suas  vozes  num  canto:  "Ao  Rei!" 
Aqueles  a  pé  responderam:  "Ao  Reino!"  O  coração  de  Herói  se  encheu 
de  uma  coragem  estranha  quanto  mais  o  canto  ecoava  pela  floresta 
com a cadência das patas dos animais como fundo. 
Ao  chegar  à  vila  dos  Rejeitados,  um  tropa  de  soldados  que 
estavam  a  pé  tiveram  a  iniciativa  de  carregar  os  coxos  e  mancos  até 
uma  fortaleza  próxima  para  serem  protegidos  do  avanço  dos  Pauleiros. 
Herói  perguntou  a  um  deles  se  poderia  estar  levando  Amanda também. 
Herói  soube  que  tinha  tomado  a  decisão  certa,  ao  ver  a  Amanda  fechar 
os olhos em sinal de alívio: ela estava muito fraca para continuar. 
Mas  Herói  sabia  que  era  necessário  que  ele  ajudasse  a  proteger 
Grande  Parque.  Seguiu  os  Atalaias  montados  em  direção  ao  Campo 
Relvoso,  onde  a  grama  seca  estava  em  chamas,  ao  redor  de  uma 
carcaça  enorme.  Fumaça  preta  enchia  o  céu.  Árvores  grandes  e  velhas 
estavam sendo consumidas pelo fogo feroz. 

102
Ao  se  aproximarem  desta  área,  Herói  pôde  notar  que  cada  Atalaia 
segurava  seu  machado  com  a  mão  livre.  Um  som  começou  ​⎯  a  canção 
familiar  de  poder  que  Herói  tinha  ouvido  tantas  vezes.  A  linha  de 
guerreiros  que  avançava  dividiu-se  ao  meio,  cada  ala  circulando  num 
lado  do  grande  espaço  em  chamas.  Os  Atalaias,  ainda  montados  em 
seus  animais,  levantaram  suas  vozes  em  harmonia  na  tentativa  de 
acompanhar os machados musicais. 
Naquele  momento,  o  Rei  cutucou  o  seu  grande  alce  para  ir  à 
frente.  Ele  prosseguiu,  como  ordenado,  até  ao  centro  do  lugar  cheio  de 
chamas,  ao  lado  da  carcaça  do  animal  enorme.  Herói  encheu-se  de 
admiração,  ao  ver  a  coragem  do  Rei.  O  Rei  desmontou,  mesmo  com 
fogo  por  toda  parte.  Ele  apontou  o  seu  cetro  na  direção  do  grande 
103
círculo de homens e mulheres que o rodeava. 
Naquele  instante,  um  forte  redemoinho  começou  a  soprar.  O  fogo 
na  tocha  de  cada  Atalaia  pulou  para  o  próximo  ao  seu  lado.  Um  Círculo 
de  Chamas  ligou  uma  pessoa  por  pessoa,  até  que  todos  foram  unidos, 
criando  um  só  anel  no  meio  da  floresta.  O  fogo  disperso  de  destruição 
foi  rodeado  pelas  chamas  de  poder  do  Rei,  que  iriam  conter  o  fogo, 
enquanto os Atalaias lutariam contra o inimigo. Os Atalaias soltaram um 
grito a uma só voz: "Ao Rei! Ao Reino!" 
Do  centro  do  Campo  Relvoso,  o  Rei  levantou  seu  cetro.  A  mata, 
que  antes  esteve  cheia  de  ruídos  e  gritos  dos  servos  do  Encantador, 
ficou  em  silêncio.  Os  Negadores  cessaram  seus  cantos.  O  pulsar  dos 
tambores da morte parou. Era o momento fulminante antes da batalha. 
De  repente,  em  som  estrondoso,  um  relâmpago  estourou  do  céu 
preto  e  acertou  o  topo  do  cetro  de  prata.  Luz  branca  radiou  pela  forma 
do Rei que estava com seus pés bem plantados. 
Seu  corpo  vislumbrava  e resplendia, mas por tudo isso se manteve 
firme.  Soltou  a  cabeça  para  trás  e  disse  em  voz  alta:  "Ao  Meu  Pai,  o 
Imperador de Tudo! Àquele Que Sempre É!"  
Herói  percebeu  a  esta  altura  que  os  Atalaias  estavam  aguardando 
uma  ordem.  Subitamente,  ela veio. A voz do Atalaia Comandante cortou 
o  silêncio  da  floresta:  "Preparar!"  Centenas  de  vozes  das  duas  alas 
ecoaram:  "Preparar!"  Cada  Atalaia  cravou  o  cabo  da  sua  tocha  no  chão 
da floresta e levantou o seu machado. 
"Avançar!" veio o grito. 
"Ao  Rei!"  veio  a  resposta,  e  os  Atalaias,  montados  em  alces, 
atacaram em direção à floresta. 
Estando  no  lado  de  fora  do  anel  de  chamas,  Herói  percebeu  que 
ele  estava  desarmado  para  a  batalha.  Descendo  do  seu  animal, 
arrancou  da  terra  uma  raiz  sólida  e  mortífera.  Naquele  momento,  mãos 
ásperas  o  agarraram,  jogando-o  contra  uma  grande  árvore.  Seus 
pulmões  perderam  todo  o  seu  ar.  Ele  sentiu  pancadas  fortes  no  peito  e 
nos ombros. Foi então que ouviu um grito de dor. Foi a sua própria voz. 
Por  instinto,  Herói  se  jogou  no  chão  e  rolou  para  escapar  do  seu 
atacante.  Boom!  Um  cassetete  quase  acerta  sua  cabeça.  Ele  rolou  mais 
uma vez. Quase que pega! 
Uma  raiva  terrível  subiu  dentro  de  Herói.  Apesar  de  toda  a 
confusão,  ele  ainda  conseguiu  manter  em  mãos  a  sua  própria  clava. 
104
Sem  dó,  ele  acertou  o  estômago  da  forma  que  estava  em  pé  ao  lado 
dele. Esta vez, ele ouviu o gritou de dor vindo do estranho. 
Herói  rapidamente  ficou  em  pé,  seus  pulmões  famintos  por  ar. 
Ergueu  sua  clava  e  a  desceu  com  toda  sua  força  em  cima  da  cabeça  do 
Pauleiro. 
Herói  observou  o  seu  inimigo  cair  imóvel  ao  chão...quando  não  se 
mexeu,  ele  se  encurvou  para  puxar  o  capuz  cinza  e  ver  o que estava por 
dentro.  Ele  se  assustou  com  o rosto branco, sobrancelhas grossas e, por 
final, um sorriso que mostrava os dentes. 
"Bom  trabalho  ​⎯  "  disse  uma  voz  atrás  dele.  Era  um  soldado  que 
estava a pé. "Prepare-se. Lá vem mais. Dessa vez, Queimadores". 
Herói  finalmente  conseguiu  respirar  fundo.  "Como  vamos  ...lutar 
contra...Queimadores?" 
"Lute  contra  fogo,  usando  fogo",  disse  o  soldado,  e  puxou  duas 
tochas  do  Círculo  de  Chamas,  jogando  uma  para  o  menino. "Faça o que 
eu fizer". 
Não-Nunca-Nada.​ O grito de batalha ominoso cresceu mais. 
"Não  dê  ouvido  aos  Negadores,"  avisou  o  soldado.  "Lá  vêm  os 
Queimadores!" 
Um  bando  de  sombras  escuras  saltou  da  floresta.  Os  atiçadores 
dos  Queimadores  ardiam  como  uma  luz  forte.  O  coração  de  Herói  ficou 
desesperado.  Ele  se  lembrou  da  Hora  da  Marcação,  de  muito  tempo 
atrás. Seu estômago e costas começaram a latejar. 
"Avançar!" gritou o soldado ao seu lado. 
Em  espanto,  Herói  observou  o  homem  atacar  os  Queimadores 
nocivos. 
Não-Nunca-Nada​, pensou Herói. Não adianta. São tantos! 
"Vamos rapaz!"  
Fadiga  sufocou  Herói  como  laços  de  ferro.  Desespero  acorrentou 
seu coração. Como iria o Rei vencer contra tanta maldade? 
Queimadores  cercaram  o  soldado  isolado.  Um  dos  Queimadores 
meteu  um  atiçador  em  sua  direção.  Pegou  na  roupa  do lutador. Mas ele 
girou  rapidamente para se livrar, e ao mesmo tempo esticou a sua tocha 
o  máximo  possível  e  continuou  a  girar,  distanciando-se  dos  seus 
inimigos. 
Não-Nunca-Nada... 
"Vamos rapaz! Me dê uma mão!" 
105
Em  meio  ao  medo  que  o  congelou,  Herói  ouviu  uma  outra  voz 
surgir: "Ao Reino!" Era a voz do Rei.  
Herói  agarrou  o  seu  tição  e  gritou:  "Te  darei  duas  mãos!",  e  com 
isso  ele  arrebentou  o  anel  de  Queimadores,  cheio  de  ímpeto  e  grande 
energia. 
Dando  as  costas  um  para  o  outro,  os  dois  súditos  do  Rei  davam 
seus  golpes.  Há!  Enfiando  seus  tições  no  estômago  dos  Queimadores, o 
fogo  dava  uma  volta  neles.  "Yi-i-i-i!!" gritou um dos Queimadores, e saiu 
na  carreira.  Herói  e  o  soldado  deram  uma  pancada  forte  nos  atiçadores 
dos  Queimadores  com  seus  tições,  jogando-os  ao  chão,  e  a  roupa  de 
outro pegou fogo. Logo esta banda se dispersou pela floresta adentro. 
Mais  uma  vez,  Herói  ouviu  a  voz  do  Rei:  "Ao  Imperador  de  Tudo! 
Àquele  Que  Sempre  É!"  Neste  momento...  trovejou,  e  as  chuvas  caíram. 
As  chamas  furiosas,  que  foram  contidas  dentro  do  Círculo  das  Chamas 
Sagradas,  oscilaram,  estalaram,  subiram  e  desceram  e,  finalmente,  se 
apagaram, afogadas pela chuva forte. 
Um  grande  pranto  soou  na  distância.  "Retirada!  Fujam!"  Sons  de 
perseguição  elevaram-se  pela  floresta  à  medida  que  os  Atalaias 
correriam  atrás  dos malfeitores, pela noite escura, em direção à entrada 
minúscula do Grande Parque.  
Finalmente, o próprio Círculo de Chamas Sagradas subiu em fulgor 
para  se  encontrar  com  o  céu  e,  então,  isso  também  se  extinguiu. 
Exausto,  Herói  voltou  para  Campo  Relvoso,  justo  a  tempo  de  ver  as 
chamas  tornarem-se  brasas,  e  ver o Rei abaixar o seu cetro. Misericórdia 
e Atalaia Comandante estavam um de cada lado dele. 
Logo,  a  aurora  raiou,  a  chuva  parou.  E  o  soar  dos  machados 
desvaneceu-se.  O  portão  do  Grande  Parque  fechou-se  com  um 
estrondo.  A  manada  de  animais  correu  de  volta  à  floresta.  E  cada 
homem e mulher retornou aos seus amados.  
Nada  permaneceu  no campo de batalha, onde a guerra de Fogo foi 
pelejada,  a  não  ser  a  terra  queimada,  exalando  o  cheiro  de  cinzas 
úmidas,  e  três  figuras  fatigadas  no  meio  de  Campo  Relvoso:  uma 
senhora idosa, um velho cuidador e um jovem camponês. 
Eles  curvavam  suas  cabeças  juntos  e  sustentavam  um  ao  outro. 
Então,  o  camponês  disse  bem  baixo:  "À  Restauração!"  e  ergueu  suas 
mãos ao céu.  
 
106
Foi assim, então, que se apagou o fogo feroz na floresta por um poder 
maior, pois há algumas coisas que não podem ser mudadas, não 
podem ser abaladas, não podem ser queimadas. 
 
 
 
 
 
 
Romanos 8:37-39 
Mas, em todas estas coisas somos mais que vencedores, por meio 
daquele que nos amou. Pois estou convencido de que nem morte nem 
vida, nem anjos nem demônios, nem o presente nem o futuro, nem 
quaisquer poderes, nem altura nem profundidade, nem qualquer outra 
coisa na criação será capaz de nos separar do amor de Deus que está em 
Cristo Jesus nosso Senhor.  
   

107
Provado  
Provado 
p​ elo​ Fogo
pelo​ Fogo  
 
Não muito tempo atrás, duas crianças em Grande Parque saíram com a 
intenção de fazerem uma conquista: um menino procurava um meio pelo 
qual pudesse passar por aquilo que mais temia, e uma menina que temia 
ter perdido Aquele que ela mais amava. E juntos descobriram o Reino 
dentro deles e fora ​⎯​ que todos descobrem quando têm essa coragem de 
sair nesta conquista. 
 
A  guerra  de  Fogo  foi  vencida,  mas  um  sentimento  terrível  ainda 
pairava  sobre  Grande  Parque.  Seres  escuros  pareciam  esconder-se 
dentro  de  cada  sombra  e  por  trás  de  cada  árvore  e  moita  prontos  para 
atacar. 
"Ai  Misericórdia.  A  culpa  é  toda  minha",  chorava  Amanda,  depois 
de  ter  retornado  à  segurança  da  Cabana  de  Cuidador.  "Fui  eu.  Eu 
desobedeci.  Grande  Parque  tem  sofrido  por  minha  causa.  Nunca 
seremos os mesmos. Nunca". 
Misericórdia  balançava  a  criança  ferida  em  seus  braços  e  chorou 
também.  Ela  ofereceu  para  a  menina  a  receita  sanadora  e  aplicou  uma 
compressa.  Ela  orou  pela  presença  do  amor  do  Rei,  mas  Amanda  não 
recebeu  nenhum  conforto.  Uma  ferida  fresca  se  alastrava  nas 
profundezas da sua alma. 
Mais  tarde  aquela  noite,  Herói  se  apressou  até  o  Pavilhão  dos 
Atalaias,  pois  um  conselho  havia  sido  anunciado.  Cuidador,  estava  a 
frente  na  plataforma,  pois  não  houve  tempo  para  se  tornar  Atalaia 
Comandante,  mas  os  olhos  do  homem  idoso  brilhavam  de  ousadia 
como  nos velhos tempos. Nenhum Atalaia duvidava quem era aquele no 
comando. 
"Eu  sei  que  estão  cansados",  Cuidador  gritou,  alto  o  suficiente 
para  que  aqueles  no  fundo  do  pavilhão  pudessem  ouvir.  "Todos 
estamos  afadigados.  Batalha  nunca está no coração de um povo de paz. 
108
Todos  ansiamos  a  paz.  A  guerra  do  Fogo  foi  vencida.  Mas  agora...  agora 
é  que  o  nosso  trabalho  começa.  Aqueles  que  desejam  o  mal  podem 
atacar de novo o Grande Parque. Foi aberta uma brecha na proteção! 
"Não  haverá  descanso  para  os  protetores.  Mais  cautela  é 
necessária  após  desastres.  Os  Queimadores  e  Negadores  irão  agarrar 
qualquer  oportunidade  para  tirar  vantagem.  Atenção  deve ser dobrada. 
Nosso cuidado precisará ser três vezes maior". 
O  homem  idoso  parou.  Herói  ficou  olhando  ao  vê-lo  abaixar  a 
cabeça.  Ele  parecia estar cansado, velho e um pouco tolo. Mas o menino 
o amava com todo o seu coração. 
"Devemos  tirar  tempo  para  a  Cerimônia da Pureza. Se há qualquer 
tipo  de  lascívia  por  batalha  no  seu  coração,  qualquer  amor  por 
labaredas  de  chamas,  ou  qualquer  sombra  que  se  alojou  em  sua  alma, 
terá  de  ser  chamada  para  fora.  Nenhuma  vantagem  será  dada  aos 
inimigos pelos protetores! Nenhuma!". 
Cuidador  levantou  suas  mãos  calejadas  como  sinal  de  convite. 
"Venha",  ele  disse,  "renove  seus  votos  ao  Rei!  Não  haverá  nenhuma 
Grande Celebração até que o perigo tenha passado". 
Herói  ficou  olhando,  ao  ver  os  homens  e  mulheres  curvarem  suas 
cabeças.  Silêncio  desceu  sobre  o  pavilhão,  como  uma  grande  ave  que 
abafa todo barulho com seu peito cheio de penas novas e macias. 
O  poder  do  silêncio  impressionava.  Alguns  ficaram  de  joelhos. 
Outros  de  pé,  com  lágrimas  regando  suas  faces.  Herói  pensou  sobre  o 
Círculo  dos  Desígnios,  onde  ele  tinha  visto  um  Atalaia  incrédulo 
revelado.  O  menino  deu  ouvidos  para  a  sua  própria  alma.  Chamas 
incendiaram sua mente. Uma ferida velha latejava. 
Herói  ouviu  passos  vindo  do  piso  de  madeira  ​⎯  e  mais  e  mais  e 
mais. 
"Eu sou pelo Rei e pela Restauração", disse um. A voz era baixa. 
"Eu  sou  pelo  Rei  e  pela  Restauração",  disse  o  outro.  E  assim 
continuou. 
O  menino,  ao  ouvir  estas  palavras,  percebeu  que  ele, também, era 
pelo  Rei.  Não  havia  outro  lugar  em  que  ele  desejasse  estar,  nem  outra 
maneira  que  ele  quisesse viver a sua vida. Ele fez um voto profundo: ​Vou 
achar  a  coragem  de  passar pelas Chamas Sagradas. Me tornarei parte da 
Grande  Celebração.  ​Mas  ele  não  seguiu  os  outros  até  a  frente  do 
pavilhão. 
109
Por  agora,  o  voto  bastava.  Pois  Herói  sabia  que  um  dia  ele, 
também,  teria  que  andar  para  encontrar  o  Rei.  Até  então,  o  seu  desafio 
não teria fim. 
Durante  semanas  os  Atalaias  mantiveram  sua  vigia  reforçada. 
Fecharam  as  brechas  na  floresta.  O  anel  de  hectares  devastado  pela 
Guerra  de  Fogo  foi  limpo  para  aguardar  a  primavera,  quando  Cuidador 
pronunciaria  a  mágica  do  verde  e  do  brotar.  Protetores  caçaram  as 
sombras  que  ainda  eram  ameaças,  e  os  homens  do  Rei  certificaram-se 
de que, em nome do Rei, todo mal e escuridão foram afastados. 
Herói  foi  voluntário  para  subir  às  torres  de  vigia  e  aliviar  aqueles 
que  sofriam  de  fadiga.  Ele  trabalhou  com  equipes  cortando  árvores 
queimadas.  Não  pôde  dizer  quando  nem  onde  o  seu  coração  ferido  se 
tornou  jovem  de  novo,  mas  foi  o  que  aconteceu.  Depois  de  um  tempo 
ele  se  ajuntou  aos  Atalaias,  quando  eles  começaram  a  cantar  nas  suas 
marchas  pela  Floresta  Profunda.  Logo  os  gritos  voltaram  a ser dados de 
meia  em  meia  hora,  ao  invés  das  vigias  mais  recentes,  a  cada  quinze 
minutos. 
"Como vai o mundo?" 
"O Mundo não vai bem".  
"O Reino vem". 
Esses  cantos  transmitiam  segurança.  O  menino  sentiu-se 
protegido. 
Finalmente,  Grande  Parque  retornou  ao  que  era.  Homens  e 
mulheres  foram  de  volta  aos  campos,  artesanato  e  florestas.  Mais  uma 
vez  havia  tempo  para  ouvir  o  cantar  dos  pássaros  e  notar  o  zumbir  das 
abelhas  e  observar  o  céu  tingir-se  de  rosa,  a  cada  aurora.  Planos 
começaram  a  ser  feitos  para  a  primeira  Grande  Celebração,  desde  a 
Guerra  do  Fogo.  Primavera  chegou.  Crianças  lembraram  uma  a  outra 
sobre caçadas de ovos de dragão. 
Em  todo  esse  tempo,  nem  Herói  ou  Amanda  viram  o  Rei.  Herói 
esperava  que  tivessem  visto,  pois  Amanda  continuava  adoentada  e 
esmorecida.  ​O  que  acontecia  com  ela,  ao  final  das  contas?  H ​ erói 
imaginou.  Sob  o  cuidado  da  Misericórdia,  suas  queimaduras  foram 
saradas. Milagrosamente, ela nem ficou marcada. 
Um  dia  Herói  a  encontrou  sentada  nas  escadas  da  Cabana  do 
Cuidador.  De  longe  ele  pôde  perceber  que  ela  estava  cuspindo, 
tentando acertar pedrinhas à distância.  
110
"Aha!" ele gritou ao aproximar-se dela. "Praticando sua mira?" 
Surpresa,  ela  ficou  em  pé.  "Me  deixe  em  paz",  ela  retrucou.  "Por 
que  todos  vocês  não  me  deixam  em  paz?" Ela chutou o guaxinim que se 
tinha  acomodado  ao  sol  do  lado  dela. "E para de olhar para mim. Todos 
vocês  são  feios!  Não  suporto  olhar  na  sua  cicatriz.  A  misericórdia é uma 
velha  acabada.  Cuidador  é  um  terror.  Eu  não  quero  ver  nenhum  de 
vocês!" 
Dito  isso,  ela  saiu  furiosa  e  entrou  na  Cabana  do  Cuidador.  Herói 
pôde  ouvi-la  derrubar  uma  cadeira,  atravessar  o  quarto  com  passos 
fortes e por fim bater uma porta com força. 
Ele  se  lembrou  da  Amanda  que  ele  tinha conhecido, e não gostava 
nada  do  que  ela  se  tinha  tornado.  Talvez  lutar  contra dragões não fosse 
o  trabalho  de  uma  princesa.  Bem,  ao  final  das  contas,  ela  não  parecia 
mais ser uma princesa.  
Herói bateu seu pé no chão, e com raiva se virou para ir embora. 
"Herói!"  Misericórdia  chamou.  Ela  estava  trabalhando  no  jardim  e 
tinha  escutado  toda  a  conversa.  O  rapaz  olhou  em  sua  direção.  Ela 
sorriu  e  se  sobressaiu  do  meio  dos  arbustos  cheios  de  fragrância. "Você 
está  encucado  com  o  que  aconteceu  com  a  Amanda.  Ela  está  tentando 
carregar  a  sua  própria  culpa;  este  é  um  fardo  muito  pesado  para 
qualquer um carregar". 
"Ela  me  chamou  de  feio",  disse  Herói,  surpreso  por  ter-se 
machucado  tanto.  Na  Cidade  Encantada  ele  estava  acostumado  a  ouvir 
as  pessoas  o  chamarem  de  Cicatriz.  "Eu  sou  ​realmente  feio, 
Misericórdia?" 
Misericórdia  entregou  para  ele  uma  pazinha,  e  os  dois  se 
ajoelharam  à  luz  do  sol  e  começaram a afofar a terra rica. "Não", disse a 
senhora  idosa.  "Você  é  um  jovem  bonito  e  forte;  mas  Amanda  ​⎯  bem, 
Amanda tem amado algo mais do que o Rei. Toda vez que isso acontece, 
nossa  visão  fica  apagada  e  passamos  a  enxergar  as  coisas  sem  a  visão 
real. Tudo parece feio ​⎯​ especialmente nós mesmos". 
Herói  notou  o  vermelho  dos  tomates.  "O  que  vai  ajudá-la?  Ela  vai 
voltar a ser ela mesma?" 
Misericórdia  colheu  um  pouco  de  coentro.  "O  Rei  pode  ajudá-la. 
Quando  passamos  pelas  Chamas  Sagradas, sempre nos tornamos o que 
verdadeiramente  somos.  Amanda  precisa  voltar-se  para  ele  na  Grande 
Celebração. A cura por desobediência consiste em voltar a obedecer". 
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Herói  lembrou-se  da  sua  promessa  ainda  não  cumprida.  "Ela  está 
com medo das Chamas Sagradas?" ele perguntou. 
A  senhora  velha  olhou  para  ele.  Ela  deu  um  sorriso  e  quase  deu 
uma  risada.  "Você  é  quem  está  com  medo  das  Chamas  Sagradas. 
Amanda  está  com  medo  do  Rei.  Ela  teme  que  ele  irá  bani-la  do  Reino 
por causa da sua infidelidade". 
Misericórdia  olhou  para  bem  longe,  como  se  estivesse  vendo  algo 
à  distância.  "Todos  precisamos  passar  por  aquilo  que  mais  tememos 
para  ganhar  aquilo  que  mais  queremos.  O  que  você  quer  mais  do  que 
tudo Herói?" 
Herói  soube.  Ele  se  lembrou  da  risada  de  um  jovem,  sentiu  um 
manto  marrom  de  um  mendigo  passar  no  seu  braço.  Ele  pensou  sobre 
uma  forma  se  movimentando  entre  os  rejeitados,  cantando  levemente. 
Ele  sentiu  as  suas  duas  mãos  pegarem  firme  na  serra  de  lenhador  e 
puxar.  Ele  viu  um  homem  lindo  dançando  por  trás  de  um  muro  de 
Chamas Sagradas que saltavam e ouviu a música da Grande Celebração. 
Ele  viu um Rei destemido no meio da Guerra de Fogo. Herói queria servir 
esse  homem.  Ele  queria  servi-lo  com  todo  o  seu  coração  e  mente  e 
alma. 
Misericórdia sussurrou, como se estivesse lendo a sua mente: "Vá a 
ele.  Você  irá  encontrar-lo  na  Grande  Celebração.  Leve  Amanda  com 
você.  Quando  passamos  pelas  Chamas  Sagradas  por  razão  de  outro,  o 
medo não é tão intenso".  
Mas  Amanda  não  iria  aparecer  na  Grande  Celebração.  Ela  ficava 
irritada  quando  alguém  perguntava.  Se  ela  estivesse  dentro  da  cabana, 
batia a porta ao sair. Se ela estivesse fora da cabana, jogava pedras. 
Finalmente,  Herói  apelou para a sua simpatia. "Por favor, Amanda. 
Eu tenho medo das chamas. Venha comigo. Me ajude". 
"Vá  com  Misericórdia",  ela  retrucou.  "Ou  com  Cuidador.  Há 
centenas de outros que poderiam fazer entrada com você". 
Herói  persistiu.  "Não,  eu  quero  que  você  vá  comigo.  Por  você, 
Amanda. Como que você agüenta ficar tão longe do Rei?" 
Com  isso  a Amanda derreteu-se. Era verdade. Ela ansiava ver o Rei, 
mesmo  que  ele  a  mandasse  embora.  Ela  chorou:  "Ai  Herói,  ele  irá  me 
banir.  Sempre  fui  a  princesinha  dele,  mas  olhe  só  para  mim,  não  sou 
mais uma princesa... Mas, mesmo assim, irei com você". 
Então  os  dois  foram:  o  menino  que  tinha  escapado  da  escuridão, 
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porque  ele  amava  luz  mais  do  que  sabia  e  a  menina  que  tinha  se 
tornado  ordinária,  porque  ela  não  reconheceu  o  quão  maravilhoso  era 
ser uma princesa. 
Um  leve  ventinho  soprou  as  folhas  na  Floresta  Profunda  aquela 
noite.  As  crianças  podiam  ouvir  a  música  à  distância  do Círculo Interior. 
Amanda  com  uma  das  mãos  pegou  forte  no  braço  de  Herói  e  com  a 
outra  mão  cobriu  a  sua  garganta.  "Ai,  Herói.  E  se  ele  nem  falar  comigo? 
E se fizer de conta que ele nem me vê?" 
Pela  primeira  vez,  desde  que  eles  se  conheceram,  era  o  menino 
que  a  mantinha  prosseguindo,  pegando-a  pela  mão.  Eles  chegaram 
perto  da  grande  abertura  na  floresta.  Atalaias  estavam  ao  redor  das 
Chamas  Sagradas  em seus mantos azuis. As chamas subiam mais e mais 
altas...mas  algo  estava  diferente  ​⎯  ninguém  estava  cantando,  ninguém 
estava dançando. 
Amanda soltou um gemido. "Iiii... estão todos esperando por nós." 
Era  verdade.  Todos  os  súditos  do  Reino  estavam  aguardando  em 
círculos  pequenos.  Conversando  um  com  o  outro.  E  o  Rei?  O  Rei  ​⎯  com 
as  suas  mãos  cruzadas  atrás  dele,  seu  cabelo  com  reflexos  de  ouro,  seu 
roupão  e  manta  branca  com  retoques  dourados  ​⎯  andava  prá  lá  e  prá 
cá, lá e cá, dentro do Círculo de Chamas. 
Amanda  virou  para  ir-se,  mas  Herói  pegou-a  pelo  cotovelo.  Ele 
estava determinado que a sua agonia iria terminar. Eles se aproximaram 
das  Chamas  Sagradas.  Os  dois  ajoelharam-se  diante  de  um  Atalaia.  Do 
fundo do seu ser Herói proferiu o seu voto: "Ao Rei! À Restauração!" 
Amanda  estava  chorando,  mas  conseguiu  repetir  as suas palavras: 
"Ao Rei! À Restauração!" 
Herói  ficou  frente  a  frente  com  as  chamas.  Pôde  sentir  o  calor  na 
sua  face,  mas  ao  invés  de  terror,  um  gozo  surgiu  dentro  dele.  Estava 
ansioso  por  se  encontrar  com  o  lindo  Rei  aguardando-o  no  outro  lado. 
Estava  decidido  a  fazer  parte  do  Reino.  Estava  absolutamente  convicto 
de que Amanda deveria conhecer de novo o amor do Rei. 
Os dois fizeram entrada. 
Um  momento:  um  escurecer.  Aí,  passagem.  Um  grande  brado  se 
ergueu  dos  outros  celebrantes.  Ecoou  pela  noite  afora,  pela  Floresta 
Profunda,  alto  o  suficiente  para  que  todo  Grande  Parque  ouvisse: 
Princesa  Amanda  voltou!  O  menino  Herói  a  tinha  levado  pela  coisa  que 
ele mais temia. 
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As  duas  crianças  correram  em  direção  ao  Rei,  que  já  estava  vindo 
em  direção  deles.  Misericórdia,  linda  acima  da  imaginação,  e  Atalaia 
Comandante,  vieram  correndo.  Todos  se  encontraram...se 
abraçaram...e chamaram um ao outro pelo nome. 
Amanda  chorou,  ao  olhar  nos  olhos  do  Rei.  "Eu  pensei  que  você 
nunca mais iria querer me ver". 
O  Rei  limpou  as  suas  lágrimas,  mas  ela  chorava  mais  ainda.  Todas 
as  suas  tristezas  ela  despejou:  "Eu  desobedeci.  Eu  menti. Eu amaldiçoei 
Cuidador  no  meu  coração.  Eu  amei  uma  coisa  proibida.  Trouxe  fogo  a 
Grande  Parque.  Todos  têm sofrido por minha causa. Me mande embora. 
Eu não mereço o teu amor". 
O  Rei  cobriu  a  criança,  molhada  de  lágrimas,  com  seus  braços. 
"Não  me  deixe,  Amanda",  ele  sussurrou.  "Todos  sentimos  tanta 
saudade!" 
Entre  soluços,  a moça completou: "Eu sei...que nunca poderei...ser 
uma princesa de novo, mas ainda quero ser o seu súdito e obedecer". 
"Olhe, Amanda", disse o Rei, "olhe para o que você se tornou". 
Amanda  deu  um  relance  para  baixo.  Ela  estava  vestida 
elegantemente.  Ergueu  as  dobras  da  saia.  Havia  pérolas  na  barra,  um 
anel  no  seu  dedo  e  ela  sentiu  um  leve  peso  na  sua  cabeça.  Era  um 
pequeno diadema circular. 
O  Rei  pegou-a  pelas  nãos,  a  olhou  bem  nos  olhos,  se  curvou,  e 
disse:  "Você  sempre  será  a  minha  princesa,  enquanto  eu  serei  o  seu 
irmão". 
Amanda  olhou  nos  olhos  do  Rei.  De  uma  vez,  alívio  inundou  o  seu 
ser,  de  modo  pleno  e  maravilhoso.  Ela  soltou  a  sua  cabeça  para  trás  e 
deu  uma  gargalhada!  Todos  ouviram.  Haviam  esperado  por  isso  ha 
meses. Princesa Amanda estava de volta a suas risadas! 
Misericórdia  acolheu  Amanda  em  seus  braços,  girou  com  ela  uma 
vez,  e  juntas  entravam  na  dança  que  começava  a  Grande  Celebração. O 
Rei  se  achegou  até  Herói  e  colocou  seu  braço  ao  redor  dos  ombros  do 
jovem.  "Venha",  ele  disse,  "eu  tenho  um  lugar  reservado  para  você  do 
meu lado". 
Na  mesa  do  banquete,  Herói  sentou-se  ao  lado  do  Rei.  Ele  comeu 
do  pão  do  Padeiro  Chefe  e  parecia  que  nada  tinha  sido  tão  gostoso. 
Soltou  um  grande  sorriso  ao  ver  os  dois  cavaleiros  engraçados 
contarem  estórias  e  cantou  os  cânticos  da  corte  e  aplaudiu  o 
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Malabarista  Aprendiz  e  soltou  gargalhadas,  ao  vê-lo  como  parte  dessa 
turma tão boa. 
Depois  de  um  tempo,  o  Rei  disse:  "Herói,  eu  tenho  um  trabalho 
para você. Queria saber se terá a coragem para executá-lo". 
Pela  primeira  vez  em  um  bom  tempo,  Herói  tocou  o  lado  da  sua 
face  com  a  ponta  dos  dedos.  Ele  pôde  sentir  a  marca  áspera  da  cicatriz 
Ficou  surpreso  de  que  ainda  estivesse  lá,  e  ainda  mais surpreso por que 
parecia não fazer mais diferença.  
O  Rei  continuou.  "Eu  preciso  de  um  varão  do  Rei  para  morar  na 
Cidade  Encantada.  Chegou  a  hora  para  começar  a  Restauração  do 
Reino.  Eu  preciso  de  alguém  com  um  coração  de  Herói,  alguém  que 
conheça as astúcias do Encantador. Você vem?" 
Herói  engasgou-se  com  a  migalha  de  pão  que  estava  mastigando. 
Ele gaguejou. "Mas eu...mas eu só...". 
O  Rei  deu  uma  risada.  "Eu  sei,  você  acabou  de  fazer  entrada.  Mas 
eu  não  estarei  partindo  por  um  tempo  ainda.  Tire  um  tempo  para 
aprender  os  caminhos  do  Reino.  Goze  da  Grande  Celebração.  Aprenda 
da  Misericórdia.  Ande  com  Atalaia  Comandante. Quando estiver pronto, 
o chamarei".  
Herói  olhou  nos  olhos  do  Rei.  ​Voltar  para  o  Encantador  e  seus 
Queimadores?  Que  estranho  eu  estar  disposto  a  fazer  qualquer  coisa  por 
esse  homem!..  Mas  será  que  havia  varões  do  Rei  na  Cidade  Encantada? 
Herói  lembrou-se  do  motorista  de  táxi  que  tinha  dado  o  grito:  "Ao  Rei!" 
tanto tempo atrás. Sim, talvez houvesse. 
O  Rei  conhecia  os  pensamentos  de  Herói.  "Vai  valer  a  pena  todo  o 
perigo,  Herói.  Eu  tenho  trabalho  para  você  fazer".  Ele  ficou  em  pé  e 
virou-se para sair da mesa.  
De  repente,  Herói  teve  um  pensamento  terrível:  "Mas,  senhor, 
como vou achá-lo na Cidade Encantada? Você estará com disfarce?" 
O  Rei  riu  novamente.  Ele  se  esticou  por  cima  da  mesa,  e 
firmemente  apertou  a  mão  do celebrante jovem. "Há, é... você nunca foi 
muito  bom  em  avistar".  E  com  isso  ele  se  curvou  e  sussurrou.  "Não  vai 
ser difícil de me achar. Terei uma cicatriz igual à sua". 

Então, a princesa achou o amor do Rei. E o rapaz tornou-se o varão do 


Rei, e descobriu que aquele que entra no Círculo Íntimo é para sair 
novamente. Entrada é só o começo da jornada. 
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Como sempre, se podemos ajudar em qualquer maneira por favor entre 
em contato: 
 
(45) 3025-1730 
 
todos@aosseuspes.com.br 
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Este livro foi impresso com a autorização dos autores David e Karen 
Mains, mediante a condição de que não fosse vendido. A venda do livro, 
portanto, é proibida. 

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