Você está na página 1de 35

“A Representação das Mulheres nos Media.

Dos Estereótipos e «Imagens de Mulher» ao «Feminino» no


Circuito da Cultura”. In Comunicação e Identidades Sociais: diferença e reconhecimento em sociedades
complexas e culturas pluralistas, de João Pissara Esteves (ed.), Livros Horizonte, pp. 101-128, 2008

A Representação das Mulheres nos Media


Dos Estereótipos e «Imagens de Mulher» ao «Feminino» no Circuito da Cultura1

Maria João Silveirinha

Quando a investigação fala em representações nos media é, com frequência, para


denunciar, como falsos, os estereótipos construídos em torno de certos grupos ou
indivíduos. A velha ideia de que os media fornecem imagens cristalizadas e caricaturais
de pessoas de diferentes grupos sociais já está claramente patente no trabalho de Walter
Lippmann, mas também a teoria crítica, nomeadamente através do trabalho de Adorno,
fez aliar a psicologia ao conceito de ideologia para questionar os estereótipos como
centrais às indústrias da cultura. A contestação identitária dos estereótipos como
representações mediáticas situa-se, no entanto, sobretudo nas investigações da década
de 1960 em torno da raça, do sexo e da classe. Numa altura de forte ativismo centrado
em processos de consciencialização e de contestação de «imagens» consideradas
opressoras, para as mulheres, em particular, era fundamental denunciar as múltiplas
imagens mediáticas reprodutoras dos papéis sociais predominantes numa sociedade
entendida como patriarcal. Com a complexificação dos movimentos feministas e com
novos enquadramentos analíticos para compreender as questões identitárias e os
próprios media, as limitações dessas primeiras abordagens em identificar «falsas»
imagens tornaram-se, no entanto, evidentes. Para além da ainda importante questão dos
estereótipos, a análise das representações mediáticas passou, assim, a envolver outros
conceitos que se ligam à questão da (re)construção da identidade: ideologia, produção,
consumo, o próprio conceito de representação. A recente tendência da investigação dos
media para explorar os gostos populares, no entanto, com frequência fez perder de vista
a forma como as ideologias sociais justificam e legitimam as relações de poder e de
interesse.
No terreno contestado das representações mediáticas das mulheres são, pois, estes
os temas que nos propomos aqui explorar. Pensamos que, dessa forma, podemos situar,
num tempo alargado, o que foram e são presentemente os estudos feministas dos media,

1
A autora gostaria de agradecer ao Professor Greg Philo e ao Glasgow Media Unit da
Universidade da Glasgow, o apoio que permitiu a concretização deste texto, durante o seu período de
permanência nesta instituição.

1
num quadro de pensamento que articula aspetos cognitivos e psicologistas com
instrumentos de análise cultural e social.

Quadros nas Nossas Cabeças


O termo estereótipo traduz uma das primeiras formas de preocupação com as
questões da representação. O termo deriva de uma metaforização do vocabulário da
imprensa e da tipografia onde significava moldar o texto numa forma rígida, para fins
de utilização repetida (Pickering, 2001). No século XX, foi desenvolvido de forma mais
significativa pela psicologia e pelas análises dos media e da cultura. No seu estudo do
preconceito, o psicólogo Gordon Allport definiu-o como «uma crença exagerada
associada a uma categoria. A sua função é justificar (racionalizar) a nossa conduta em
relação a essa categoria» (Allport apud Pickering, 2001: 10). Esta definição acabou por
estar presente em várias das noções que o termo adquiriu, nomeadamente pela ideia de
que os estereótipos sociais exageram e homogeneízam os traços considerados como
categorias de determinados grupos sociais ou indivíduos. Ligado a esta vaga conceção
está também o argumento de que a simplicidade e deficiências de representação que lhe
estão associadas podem ser corrigidas por mais informação sobre as categorias em
questão, o que estabelece o campo da representação como um terreno contestado de
significação.
Os dilemas relacionados com o estereótipo são, no entanto, bem identificados por
Walter Lippmann, no início da década de 1920. Ainda que possivelmente não tivesse
sido o primeiro a usar o termo, foi, pelo menos, o primeiro a dar-lhe uma definição
crítica no livro Public Opinion, onde procurou capturar a «mente pública» e o papel da
imprensa na interface com a realidade física, social e política. Aí, situava o estereótipo
como uma questão fundamental para compreender (e assim poder melhorar) o
funcionamento da vida pública. A ligação que estabeleceu entre os estereótipos e os
media residia na sua tentativa de reavaliar de uma forma séria o modelo liberal de
cidadania, concentrando-se nos obstáculos de uma política democrática, em especial em
relação ao papel da imprensa no processo político. Os estereótipos mediáticos eram um
desses problemas políticos específicos.
Lippmann equacionou a questão das representações (nomeadamente dos
estrangeiros) como o resultado de dois tipos de experiência: uma, de carácter cognitivo,
resultava dos processos da própria modernidade; a outra estava ligada à necessidade
subjetiva de manter o poder e a identidade do sujeito.

2
O ponto de partida é, portando, a modernidade: «na grande, emergente e ruidosa
confusão do mundo exterior, percecionamos o que a nossa cultura já definiu para nós e
tendemos a perceber o que percecionámos na forma que nos foi estereotipada pela nossa
cultura» (Lippmann 1922: 81). A emergência do domínio da experiência «em segunda-
mão» estava situada dentro da «Grande Sociedade», um mundo onde as ligações globais
se tinham tornado cada vez mais visíveis, e o localismo parecia ter acabado. Da
«Grande Sociedade» faziam parte os meios de comunicação que, perante as fragilidades
da «mente pública», deveriam fornecerem ao público uma informação credível. Estava
assim identificado um dos problemas mais sérios da modernidade: a necessidade de um
conhecimento fidedigno das complexidades do mundo, conhecimento que a
dependência do público de representações mediáticas inadequadas e mesmo
manipuladas comprometia. Esta manipulação não se devia a um qualquer plano
orquestrado e maléfico, mas a razões comerciais, que seguem a linha de «menor
resistência» em relação aos preconceitos existentes.
Os estereótipos, para Lippmann, devem, antes de mais, ser entendidos como uma
forma de representação que deriva de uma perda do conhecimento individualizado e
pessoal das pessoas e das suas comunidades, nomeadamente em relação aos
estrangeiros. Por outro lado, são formas necessárias para fazermos sentido do mundo:
«o ambiente real é demasiado grande, demasiado complexo e demasiado
mutável para dele termos um conhecimento direto. Não estamos equipados
para lidar com tanta subtileza, variedade, permutações e combinações.
Embora tenhamos de agir nesse ambiente, temos de o reconstruir num
modelo mais simples para o podermos gerir. Para atravessar o mundo, os
homens têm que ter mapas do mundo» (Ibid.: 16).

E aqui reside a ambivalência dos estereótipos: são, por um lado, distorções e


obstáculos à razão mas, por outro, são «quadros nas nossas cabeças», isto é, um modo
de processar informação em sociedades altamente diferenciadas. São, por isso,
elementos fundamentais da perceção humana, com uma utilidade fundamental no
mundo moderno. Dando «estabilidade» e «consistência» à nossa vida quotidiana
turbulenta e desordenada, os estereótipos funcionariam como uma espécie de economia
de esforços, formando um «repertório de impressões fixas» que «nós temos nas nossas
cabeças» (como modelos mentais rígidos que enquadram a nossa experiência de um
mundo). Tais modelos «intersectam a informação a caminho da consciência» (Ibid.: 57).
Precisamos de descrever e julgar mais pessoas, mais coisas, mais ações, do que
podemos alguma vez imaginar, pelo que precisamos de resumir e generalizar.

3
Precisamos, a partir de amostras, de generalizar. Estes modelos cognitivos respondem,
por outro lado, a uma sociedade que é também cada vez mais impessoal, tornando certos
objetos familiares ou estranhos (Ibid.: 90).
Mas para Lippmann, os «quadros nas nossas cabeças» eram muito mais do que
simples «atalhos» - eram também uma parte fundamentalmente inscrita na identidade do
sujeito, dando corpo ao «núcleo da nossa tradição pessoal, às defesas da nossa posição
na sociedade» (Ibid.: 95). Inscrevendo impressões de forma permanente, ofereciam não
só um quadro habitual da realidade mas uma linha de defesa contra ameaças reais ou
pressentidas ao nosso mundo. Lippmann equaciona assim a identidade do sujeito como
a perceção do seu lugar no universo relativamente a todos os outros sujeitos e coisas.
O estereótipo dá forma e estabiliza uma visão do mundo que se estende para além
da experiência imediata e se constitui como uma realidade de segunda mão, onde o
sujeito se «encaixa»:
«[Os estereótipos] são um quadro ordenado mais ou menos consistente do
mundo a que os nossos hábitos, os nossos gostos e as nossas esperanças se
ajustaram. Podem não ser um quadro completo, mas são o quadro de um
mundo possível a que nos adaptamos. Nesse mundo, pessoas e coisas têm os
seus bem-conhecidos lugares, e fazem certas coisas que esperamos delas.
Sentimo-nos em casa nesse mundo. Encaixamo-nos nele. Somos membros
dele. Conhecemos os cantos à casa. Aí, encontramos o charme do familiar, o
normal, o seguro; os seus detalhes e formas são aqueles que nós esperamos
encontrar (…) Ajustamo-nos a ele como a um velho sapato» (Idem).

Por fim, o estereótipo, além da sua dimensão cognitiva e social, tinha também uma
vertente política: a ele estava também associada uma posição de poder e a defesa do
status quo:
«Um padrão de estereótipos não é neutro. Não é meramente uma forma de
substituir a ordem pela grande, emergente e ruidosa confusão da realidade.
Não é um mero atalho. É tudo isso e mais. É a garantia do nosso respeito
próprio; é a projeção sobre o mundo do nosso valor, da nossa posição e dos
nossos próprios direitos (…). Os estereótipos são a fortaleza da nossa
tradição, e por detrás das suas defesas podemos continuar a sentirmo-nos
seguros na posição que ocupamos» (Ibid.: 96).

Esta definição do estereótipo mostra uma boa compreensão do modo ideológico


como projetamos o mundo. Mas, ao ver nessas projeções individuais (psicologistas e
cognitivas) uma inevitável deslocação para um mundo a necessitar de lei e ordem,
Lippmann perdeu de vista as suas implicações sociais e políticas, reclamando uma
ordem científica independente das pobres e limitadas projeções que os indivíduos
singulares, servidos pelos media, conseguiam fazer do mundo. O conhecimento público

4
teria de ir além dos quadros mentais estereotipados organizados que os media ajudavam
a formar. O panorama social que servia a democracia teria de ser corrigido para se
atingir uma sociedade mais «científica». O papel dos jornalistas na configuração que
Lippmann tinha em mente não era, no entanto, simples, pelo menos por duas ordens de
razão: pelas limitações das próprias notícias, e pelo facto de estas serem, antes de mais,
um recurso produtivo de empresas a necessitar de publicidade e de audiências.

Ele próprio jornalista, Lippmann tinha uma visão muito clara do lugar das notícias
no mundo: «as notícias não são um espelho das condições sociais, mas o relato de um
especto que foi obstruído. As notícias não dizem como é que a semente germina na
terra, mas podem dizer que o primeiro rebento nasceu à superfície» (Ibid.: 340). Opondo-
se a outras visões mais «culturalistas» dos media, como a de Dewey, para Lippmann as
notícias deveriam ser o resultado de uma poderosa máquina de registo de «factos»,
alimentadas por fontes profissionalizadas que não deixassem aos próprios jornalistas
muito campo de intervenção subjetiva. O facto de estar consciente de que os media não
eram um «espelho do mundo» e de que a realidade que eles apresentavam era
necessariamente parcial, fazia-o colocar a tónica na necessidade de fazer emergir
«factos», «rebentos de sementes», que os media pudessem sinalizar, por oposição às
problemáticas subjacentes a estes mesmo factos que se podiam, então, tornar sinónimos
de «verdade»2.
Hoje, os movimentos sociais, tal como as mais poderosas máquinas políticas,
conhecem bem esta necessidade, que Lippmann já associava positivamente às
sufragistas (Lippmann, 1914). Na verdade, o que interessava ao próprio Lippmann não
era o feminismo, mas a sua novidade e o seu significado político. Na introdução a
Preface to Politics (1913), o seu primeiro livro, a «emancipação das mulheres» está
entre as preocupações sobre as quais é preciso refletir, mas, no capítulo dedicado ao
«movimentos das mulheres», fica bem patente que o interesse de Lippmann reside no
carácter de novidade deste movimento que, como diz David A. Hollinger (1977),
representava uma metáfora das roturas que era preciso fazer com a tradicional vida
americana. O movimento das mulheres era importante como expressão de uma
verdadeira democracia bem organizada, não tanto como movimento reivindicativo e

2
Duas passagens ilustram bem a necessidade, do ponto de vista noticioso, de se passar da
problemática ao acontecimento: «o curso dos acontecimentos tem de assumir uma certa forma definida
até estar na fase em que algum aspecto seja um facto realizado, as notícias não se separam do oceano da
verdade possível. (…) A quantos mais pontos (…) o acontecimento possa ser fixo, objectificado, medido,
nomeado, mais pontos tem para que possa haver notícia» (Lippmann, 1922: 340 e 341)

5
mesmo revolucionário das mulheres. É, no entanto, o seu conceito de estereótipo que irá
marcar a literatura que relaciona as mulheres com a comunicação mediada. Ao ver os
estereótipos como inadequados e realçando os interesses daqueles que os usam,
Lippmann realçou bem os seus perigos. Este é um especto importante ainda que, como
refere Pickering (2001), ao dizer que os estereótipos são formas primordialmente
individualizadas de processar a informação num mundo complexo, retirando-lhes assim
a dimensão social, isso tenha induzido efeitos prejudiciais no que diz respeito ao modo
como o conceito de estereótipo veio a ser utilizado posteriormente.

Do Estereótipo nas Indústrias da Cultura


O trabalho mais importante depois de Lippmann sobre a representação, nas suas
formas estereotipadas, foi desenvolvido nas áreas dos estudos da comunicação e da
psicologia social. No entanto, a noção foi utilizada e aplicada por vezes de formas muito
diferentes em cada uma destas áreas3.
Durante os anos entre as duas guerras, em ambas as áreas foi muito forte a
influência do paradigma behaviorista estímulo-resposta, gerando um conjunto de
investigações que pressupunham um processo linear entre emissor e recetor. Neste
modelo de efeitos diretos, os media eram vistos como capazes de seduzir e manipular
uma audiência indefesa facilmente convencida pela propaganda e pelo mito social,
apresentando estereótipos contra os quais não era possível lutar. As primeiras análises
de conteúdo desenvolvidas nesta época teriam, como veremos, eco na investigação dos
anos 60, onde as representações estereotipadas dos grupos desfavorecidos eram tidas
como veículos para crenças e pontos de vista ideológicos dominantes.
Mas, se entre os anos 30 e 40 a direção do trabalho de investigação na
comunicação foi progressivamente assumindo a forma de um «paradigma dominante»,
ao mesmo tempo, desenvolvia-se na Alemanha, e depois nos Estados Unidos, uma
crítica radical à cultura de massas assente numa determinada compreensão filosófica da
modernidade.
Um dos mais importantes trabalhos nesta época sobre o papel dos estereótipos na
reprodução ideológica foi, com efeito, o desenvolvido em A Personalidade Autoritária

3
Se nos estudos da comunicação, o estereótipo «se caracterizou pelo seu fraco desenvolvimento
conceptual, já na psicologia o conceito foi sujeito, a partir dos anos 30, a uma extensa pesquisa
experimental, desde uma série de tentativas para restabelecer a sua definição geral e aplicação até, mais
recentemente, à sua reformulação radical, resultante particularmente da teoria de identidade social e da
sua derivada teoria da auto-categorização» (Pickering, 2001: 691).

6
(Adorno et. al., 1950), um estudo realizado como parte de um grande projecto de
investigação em torno das bases psicológicas dos preconceitos anti-semitas. Procurava-
se saber como é que os indivíduos acabam por adotar uma visão estereotipada dos
grupos em que não se sentem incluídos. Adorno, em particular, estava interessado em
compreender a capacidade autoritária que alguns sujeitos têm, e outros não. O potencial
fascista em cada indivíduo foi, assim, analisado à luz de uma combinação entre o
pensamento neomarxista em torno da ideologia e a psicanálise neofreudiana. À luz das
revelações do pós-guerra, os autores mostraram-se convencidos, no tocante à extensão
das atrocidades de guerra nazis, que o preconceito era o produto de um tipo particular de
estrutura de personalidade – a do autoritarismo. O síndrome desta personalidade revela-
se no facto de o indivíduo respeitar e ter deferência para com as figuras de autoridade,
ser obcecado com a hierarquia e o status, ser intolerante com a ambiguidade e a
incerteza e ter necessidade de ver um mundo clara e rigidamente definido, expressando
ódio e discriminação contra os mais fracos.
A patologização do preconceito alia-se, em Adorno, a uma base neomarxista. O
marxismo ortodoxo havia estabelecido uma clara diferenciação entre a base económica
e a superstrutura política e ideológica (com a determinação desta por aquela), enquanto
que marxistas como Lukács, Adorno e Gramsci concederam uma muito maior
autonomia às esferas política e cultural como formas de consciência social.
A tese marxista da ideologia seria, na verdade, desenvolvida de forma diferente
pelos percursores da teoria crítica. Para dois dos seus principais autores, Adorno e
Horkheimer, a evolução do capitalismo tinha destruído a própria possibilidade de uma
política revolucionária. Acusando Marx de aceitar acriticamente a redução burguesa da
razão à razão instrumental, os autores deixam de confiar na ideologia tal como fora
definida pelo próprio Marx, porque o seu fundamento – a crença numa solução
alternativa às contradições capitalistas resultantes da expansão das forças produtivas –
já não era possível. Estes filósofos usaram então a «dialética negativa» – termo que
aponta um pensamento da não-identidade, centrado na consciência crítica de que um
conceito não pode identificar-se com o seu verdadeiro objeto – aplicada à ideologia.
Trata-se, portanto, de rejeitar a identidade entre a consciência verdadeira e os interesses
do proletariado.
Em Dialética do Iluminismo (1947), escrito em colaboração com Horkheimer
durante a guerra, Adorno faz uma forte crítica à razão instrumental, à civilização
técnica, à cultura do sistema capitalista (a «indústria cultural») e à sociedade de

7
mercado que não procura outro fim que não seja o progresso técnico. Dentro dos
sistemas totalizantes, as particularidades e as contradições na natureza e na sociedade
são erradicadas pelas categorias da razão centrada no homem e na separação sujeito-
objeto entendida como neutral. A dicotomia sujeito-objeto começa com a cisão entre
homem e natureza com o fim de controlar e submeter esta última a partir da negação da
natureza no homem. Os resultados aporéticos desta razão podem ser vistos nas
referências ao papel ideológico e representacional desempenhado pelas mulheres na
história que, de certa forma, ilustram a dicotomia sujeito-objeto.
A análise do sujeito é também uma análise da representação. O indivíduo só
emerge dentro de um sistema de representação que não pode controlar. A dialética da
subjetivação está precisamente na necessidade de o sujeito se subjugar para se tornar
sujeito, o que acontece não só ao nível da psique como ao nível da própria relação com
o poder da representação: «o poder não é simplesmente representado – o poder é
dominação como representação» (Hewitt, 1992: 152). No discurso filosófico e literário,
notam Adorno e Horkheimer, é comum a identificação da mulher com a natureza. Esta
aparece, assim, como o sujeito reprimido do sujeito burguês masculino que a identifica
com a natureza, dando corpo a uma dupla função: representar o lugar da exploração e
uma utopia potencial. A utopia é concebida como uma reunificação entre o seu corpo e
o sujeito burguês, o que significaria uma reconciliação com a «natureza». Segundo esta
lógica, o sujeito burguês é sempre masculino, e a «mulher» uma projeção masculina.
A questão do feminino está presente em outros pontos dispersos do trabalho de
Adorno. Em Minima Moralia Adorno sugere que permitir a igualdade das mulheres não
é admiti-las a lugares onde antes se verificou a sua exclusão num processo que conduz à
sua emancipação, mas é apenas uma forma de nivelar homens e mulheres na
oportunidade de desumanização: «a admissão das mulheres a todas as atividades
supervisionadas esconde uma continuada desumanização. Nos grandes negócios, elas
mantêm-se o que eram na família, objetos» (Adorno, 1951: 92). Como refere Lisa Yun
Lee (2006), este «nivelamento» da experiência de homens e mulheres não significa que
Adorno não esteja consciente da experiência feminina na sociedade burguesa, mas não
querendo reificar qualquer noção de feminilidade, esta é colocada como um resultado da
opressão das mulheres4. Apesar destas referências, os autores parecem incapazes de
pensar a categoria de mulher fora da lógica identitária (masculina) que criticam, ficando

4
Diz Adorno: «A feminilidade que apela ao instinto é sempre exactamente o que cada mulher tem
de forçar sobre si própria - pela violência – a ser: um homem» (Adorno, 1951: 95).

8
prisioneiros da contradição performativa dos seus próprios termos. Como «se pode
afirmar que a honra da individualização é negada à mulher sem, nessa mesma
afirmação, se negar a sua individualização, forçando-a a uma categoria singular e
simultaneamente genérica de “mulher”»? (Hewitt, 1992: 148).
Mais profícuas para a compreensão das representações nos media é a sua profunda
crítica das formas mediáticas e a análise de como a lógica de marketing guia a
programação e a distribuição estandardizada pelas convenções narrativas mediáticas
estende a influência do capital sobre a experiência quotidiana. Neste contexto, os
estereótipos têm uma função essencial: na cultura de massas, a perpetuação dos
estereótipos de sexualidade, feminilidade, moral, heroísmo e romance estabiliza e torna
previsíveis os desejos das massas, impondo-lhe uma «falsa identidade» e fazendo de
toda a subjetividade psíquica, social e existencial objetivo dos poderes reificadores do
capital.
Para os autores, todos os produtos mediáticos mostram, de uma forma ou outra, as
influências estandardizadoras da produção comercial. Quando as pessoas ouvem rádio,
vão ao cinema, ou leem jornais, encontram um mundo estandardizado de imagens
mediáticas e são inevitavelmente atraídos para elas. Como resultado, as suas
experiências mentais e emocionais tornam-se também estandardizadas através de um
efeito ideológico dos «hieróglifos da cultura de massas» (Hansen, 1992). Este efeito não
se constitui tanto como uma questão de impor modelos positivos (ou negativos), mas de
impedir os seres humanos de mudarem, de serem diferentes, de distinguir os seus
próprios desejos e necessidades dos que lhes são impostos pela distribuição. Os
«hieróglifos da cultura de massas» exercem uma atracão regressiva não porque reflitam
o estado geral de reificação, mas pelo contrário, porque mascaram esse estado,
disfarçando um guião como imagem pura, uma presença natural e humanizada (Hansen,
1992).
Em «Prólogo sobre a televisão», Adorno dá ao imperativo hieroglífico da
identidade uma determinada versão, ao classificá-lo como a recomendação cínica da
indústria da cultura para cada um se «tornar o que se é» – «a indústria da cultura sorri
ironicamente: sê o que és, e a sua mentira reside precisamente na repetida ratificação e
reforço do simples ser assim, daqueles a quem o andar do mundo fez como são»
(Adorno, 1953: 169).
Nessas condições, a vida real torna-se indistinguível das representações
comerciais, circunscrevendo todas as possíveis ideias diversas e alternativas que as

9
pessoas pudessem ter, através dos seus mecanismos próprios que incluem os
estereótipos:
«Em lugar de conferir a honra de o elevar à consciência e assim lhe permitir
satisfazer os seus impulsos e pacificar a sua força destruidora, a indústria da
cultura, com a televisão como seu cume, reduz os seres humanos cada vez
mais aos seus comportamentos inconscientes, quando as condições fazem
surgir uma existência que ameaça com o sofrimento quem vê através dela e
promete recompensa a quem a idolatrar. Os vocábulos da linguagem
iconográfica são os estereótipos» (Adorno, 1953: 169).

Em «How to look at television» (1954) Adorno identifica a questão dos


estereótipos como fundamentais para perceber a reificação da experiência:
«Quanto mais os estereótipos se reificam e tornam rígidos na indústria
cultural tal qual esta é hoje, menos as pessoas são capazes de modificar as
suas ideias preconcebidas em função da evolução da sua experiência. As
pessoas podem não só perder de vista a verdadeira realidade, mas em última
análise a sua própria capacidade de experienciar a vida pode ser obscurecida
pelo desgaste constante dos programas azul e cor-de-rosa» (Adorno, 1954:
171).

Relembrando os dois lados do fenómeno psicodinâmico (o inconsciente e a


racionalização), Adorno faz ver que as mensagens estereotipadas, dirigidas a certos
sectores da população, podem ser compreendidas como perfeitamente legítimas.
Os estereótipos são, assim, fundamentais para se perceber como as formas
objetivas dos media funcionam na estruturação da experiência das pessoas que se
encontram a vários níveis, simultaneamente. A um nível, que ele designa «a estrutura
multicamadas da história», a televisão serve como um «meio tecnológico» para a
indústria da cultura «lidar» com a audiência porque, diz Adorno, a forma como a
história retrata as pessoas e as suas ações sociais torna-se a própria forma como o
espectador compreende as pessoas e as suas ações sociais (Adorno, 1954: 222). A um
segundo nível, Adorno vê a estrutura de formulação narrativa da televisão como
estabelecendo um padrão de atitude do espectador, mesmo antes de lhe ser apresentado
qualquer conteúdo específico. Dada a repetição da fórmula, o espectador pode sentir-se
confortável e antecipar a forma como a história acaba. Estes dois níveis constituem o
poder da ideologia em Acão.
A função social e cognitiva de um estereótipo na indústria da cultura serve como
meio de nos orientar naquilo que não compreendemos, que pensamos conhecer ou ainda
como um «atalho» para aquilo que de facto compreendemos. Adorno estava,
naturalmente, sobretudo interessado na forma como a televisão cria espectadores, mas
reconhecia a necessidade parcial de utilizar os estereótipos. Estava igualmente

10
consciente, no entanto, de que o resultado de todo um modo de comunicação
determinado dos estereótipos resultava na reificação da própria consciência:
«Uma vez que os estereótipos são um elemento indispensável da organização
e antecipação da experiência, impedindo-nos de cair na desorganização e no
caos, nenhuma arte os pode dispensar. Uma vez mais, o que nos preocupa é a
mudança funcional. Quanto mais os estereótipos se tornam reificados e
rígidos no presente estabelecido pela indústria cultural, mais pessoas são
tentadas a agarrar-se desesperadamente aos chichés que parecem trazer
alguma ordem ao que é, de outra forma, incompreensível» (Adorno, 1954:
147).

Ao simular a individualidade e a intimidade, as personagens da cultura de massas


estabelecem normas de comportamento social – formas de ser, de sorrir e de estabelecer
relações:
«os estereótipos da televisão, até na entoação e no dialeto, parecem-se
exteriormente com o Zé da Esquina e, ao mesmo tempo, não só propagam
slogans como, por exemplo, o de que todos os estrangeiros são suspeitos, ou
que o êxito é a coisa melhor que se pode esperar da vida, mas também,
através do comportamento das suas personagens, dão esses slogans por
emanados de Deus e fixados uma vez por todas, mesmo que depois, por
vezes, se deduza uma moral que até quer dizer o contrário» (Adorno, 1953:
169-170).

A efetividade dos guiões de identidade da cultura de massas reside na própria


solicitação dos espectadores como peritos, como leitores ativos. A identificação com o
estereótipo é avançada pelo apelo a um tipo particular de conhecimento assente na
repetição: a identificação de um rosto ou de um gesto ou de uma convenção narrativa
familiar que assume o lugar da cognição genuína.
Apontando para a natureza «multiestruturada» da televisão, Adorno apresenta a
utilização da «psicologia em profundidade» como o meio que melhor permite
compreender a televisão. Fazendo frequentes referências aos níveis visíveis e
escondidos a que a televisão funciona, procura indagar da forma como esses níveis se
dirigem ao consciente e inconsciente dos espectadores. A aplicação da psicologia não
serve tanto programas televisivos específicos, mas a sua dinâmica5. Devem-se assim
evitar os critérios padrão de avaliação a favor de uma perspetival que receba os
contributos da psicologia:

5
Na verdade, o que interessa a Adorno é a relação extremamente complexa entre as audiências e a
televisão: «Toda esta interacção a vários níveis (...) aponta em algum sentido: a tendência para canalizar a
reacção da audiência. Isto entra em linha com a suspeita por muitos partilhada, ainda que difícil de
corroborar com dados exactos, de que a maior parte dos programas de televisão hoje procura produzir a
própria facilidade e passividade intelectual que parece encaixar nos credos totalitários, mesmo que à
superfície a mensagem explícita dos programas possa ser anti-totalitária» (Adorno, 1954: 142).

11
«Os efeitos da televisão não podem ser adequadamente expressos em termos
de êxito ou fracasso, gostos ou aversões, aprovação ou desaprovação. Deve
fazer-se uma tentativa, com a ajuda de categorias da psicologia e o
conhecimento anterior dos media, de cristalizar uma série de conceitos
teóricos a partir dos quais se possa estudar o efeito potencial da televisão, isto
é, o seu impacto sobre as várias camadas da personalidade do espectador»
(Adorno, 1954: 136)6.

A partir deste trajeto que procurou unir referências no trabalho de Adorno,


podemos concluir com a sua contribuição para uma compreensão das questões de
género. A tarefa de reunir as suas dispersas e muitas vezes laterais observações sobre as
mulheres e sobre o feminismo moderno, numa leitura feminista, é árdua. No entanto,
essa tarefa ganha sentido nas (poucas) tentativas de o compreender pela lente do
feminino.
Havia pelo menos um ponto em comum no pensamento das feministas dos anos
70 (do «feminismo de segunda vaga») e no pensamento de Adorno: o facto de este
considerar que a dominação ocorre ao nível do consciente, sendo assim, de facto,
constitutiva do sujeito – «porque os sujeitos são obrigados a sujeitarem-se à sua própria
dominação através das formas culturais e epistemológicas da sociedade, tanto Adorno
como o feminismo focaram as suas análises na cultura e na cognição» (Rothenberg,
2006: 38).
As críticas feministas da ciência e da filosofia, ainda que raramente se dirijam ao
trabalho de Adorno e Horkheimer têm, na verdade, vários elementos em comum ao
nível do quadro filosófico de compreensão da identidade feminina, como a rejeição do
androcentrismo do sujeito racional universal, do impulso masculino de domínio e
controlo, e da natureza especificamente masculina das normas de distanciamento e
objetividade que caracterizaram a filosofia ocidental. Adorno reconhece as distorções
patriarcais e androcentristas da razão instrumental, concluindo que a única redenção da
razão reside na sua reconfiguração radical em termos da dialética sujeito/objeto, sem
enraizar essa possibilidade nas práticas sociais, políticas ou cognitivas já existentes. A
homologação do genérico humano com o masculino estabeleceu uma ordem que
cristalizou as diferenças, atribuindo-lhes o valor de verdade imutável – uma ordem onde
a diferença é negada, estabelecendo analogias, comparações hierarquizadas, oposições

6
Curiosamente, Adorno defende aqui o que poderíamos considerar uma «teoria da recepção» da
televisão baseada na psicanálise crítica da ideologia, ainda que ele próprio fosse relativamente
ambivalente quanto a essa mesma teoria: «estudar a televisão em termos da psicologia dos autores seria
quase tão difícil como estudar os carros Ford em termos da psicologia do falecido Sr. Ford» (1954: 145).

12
dicotómicas. As categorias para pensar a diferença estruturam-se à volta de uma lógica
em que o outro se constrói pela falta ou a negação. O idealismo negativo toma assim
conta do potencial transformador da crítica da razão centrada no sujeito. Já o
pensamento feminista, ao explorar os aspetos de género do objeto da sua crítica,
«oferece uma série de estratégias para reconfigurar as práticas epistemológicas baseadas
nas relações diferenciais com a materialidade, o outro e a totalidade social»
(Rothenberg, 2006: 43).

Imagens de Mulher
Na psicologia social, muitas outras investigações procuraram documentar a
existência de crenças estereotipadas em determinadas populações. Nesses estudos, com
frequência, os estereótipos foram tidos como simples falsidades, ignorando-se a sua
dimensão ideológica. Esse problema estendeu-se também de uma forma particular aos
estudos das mulheres7. Para compreender esse enraizamento, no entanto, é preciso
recuar às ligações históricas entre a teoria social desenvolvida em torno de conceitos
como «sexo» e «género», o ativismo feminino e os estudos de comunicação. Lana F.
Rakow mostra como as cientistas sociais feministas, partilhando a preocupação das
feministas da segunda metade do século XX com o conteúdo e efeitos dos media e as
desvantagens das mulheres a nível da linguagem e em situações discursivas, levaram a
cabo a sua pesquisa dentro de uma tradição positivista que determinava como a
comunicação e o género eram conceptualizados (Rakow, 1986: 14). Duas grandes áreas
de investigação se desenvolveram nesta tradição: a investigação das diferenças sexuais
na sociolinguística, na comunicação discursiva e nas imagens dos media e a pesquisa
dos efeitos dos media. Assim, em meados de 1970, muitos académicos – linguistas,
sociólogos, antropólogos e psicólogos – tinham já começado a explorar as inúmeras
formas de ligação entre a linguagem e a representação dos sexos.
Obedecendo a uma visão funcionalista dos media (como cumprindo funções) e da
sociedade (onde os indivíduos são vistos como desempenhando papéis funcionais de
integração na sociedade), a par da investigação das imagens, os media foram então
questionados no seu papel de agentes de socialização do género. Podendo ser definidos

7
Inspirando-se no título de um conjunto de ensaios de 1972 reunidos sob o título Images of Women
in Fiction: Feminist Perspective, Toril Moi (1985) chama precisamente “crítica das imagens de
mulheres” à primeira fase da crítica feminista literária anglo-americana, que se ocupou da representação
das mulheres nas obras literárias de escritores famosos. Nesses trabalhos, dominados por um impulso
empiricista, argumenta Moi, os modos ficcionais de representação são julgados em função de uma
concepção essencialista do que as mulheres na realidade são.

13
«como a constelação de traços psicológicos geralmente atribuídos a homens e mulheres,
respetivamente» (Brown apud Seiter, 1986: 18), os estereótipos, no interior da
psicologia social, mantiveram-se uma questão importante, podendo ser estudados
através de métodos como a aplicação da «Lista de Adjetivos»8.
O problema desta formulação dos estereótipos nos media é não só a visão
funcionalista destes últimos que pressupõe, mas o facto de se realçarem sobretudo
aspetos psicologistas, relegando para segundo plano questões de enraizamento na
estrutura social. O próprio termo «papéis sexuais» que lhe está associado foi rejeitado
por algumas feministas, que viram nele uma forma de obscurecer as questões de poder e
desigualdade, e um centramento nos indivíduos, em detrimento da estrutura social e das
questões históricas, económicas e políticas da relação entre os sexos.
Foi, pois, no cruzamento de todas estas influências, mas sob forte Acão política
dos grupos ativistas das décadas de 60 e 70, que ganhou especial relevo a ideia de
«estereótipo» (como retrato negativo) – não só das mulheres, mas também dos negros,
latinos, americanos, gays, lésbicas. A eles estava também associada a ideia de
subordinação legitimada pelos media, pelo que a sua denúncia era um objetivo político
importante. As análises tendiam a concentrar-se nas «imagens negativas» dos grupos
sociais e na necessidade de as substituir por imagens mais construtivas ou «positivas»,
que seriam também as «verdadeiras». Estas primeiras intervenções nas políticas da
representação tinham, assim, subjacente, a ideia de uma identidade essencialista
tipicamente distorcida pelos media. Desta forma, como referem Meenakshi Gigi
Durham e Douglas Kellner, «as narrativas da cultura foram então escrutinadas para ver
como certas forças (normalmente socialmente dominantes) eram representadas de forma
mais afirmativa que os grupos subordinados» (Durham e Kellner, 2006: xxxii). A
estratégia era, por um lado, denunciar as distorções e, por outro, criar novas leituras para
marcas identitárias até então denegridas. O dictum «Black is beautiful», por exemplo,
continha a ideia de que o conceito de «negro» podia ter outros significados, se lido de
outra forma «positiva».
O estereótipo tornou-se, desta forma, um dos «novos temas» do feminismo (Van
Zoonen, 1994). No entanto, ainda que as análises dos «estereótipos e distorções»
colocassem questões legítimas sobre a plausibilidade identitária, assentavam muitas

8
Método que consiste em apresentar a uma amostra de sujeitos um conjunto de adjectivos
equivalentes a traços de personalidade de grupos étnicos, pedindo-lhe que façam equivaler esses
adjectivos a certos grupos (ver, por exemplo, Cabecinhas, 2004)

14
vezes numa compreensão limitada das identidades, como se elas existissem de forma
autónoma e «verdadeira», podendo depois ser representadas com exatidão para fazer
justiça aos grupos representados. Utilizando quase sempre o estrito método da análise
de conteúdo, estas análises focalizavam apenas o texto e sugeriam que este deveria
representar os sujeitos nele retratados de uma forma mais exata e de acordo com «a»
realidade.
É nesse sentido que Kevin Williams (2003: 131) identificou três direções da
pesquisa em torno da relação entre os estereótipos e os media: o processo de criação dos
estereótipos como distorção da presença «real» de um grupo na sociedade, distorção
essa que pode ser por sub-representação, sobrerepresentação ou falsa representação; a
deslegitimação de um grupo, com referência a um ideal normativo de comportamento
maioritário; e o processo de produção de uma representação fixa e estreita de um grupo
na sociedade, como é o caso dos estereótipos de género. Esse quadro limitado de
representação de género, por exemplo, remetia as mulheres para um espaço doméstico e
da esfera privada, contrapondo-as aos homens que são representados num leque muito
mais vasto de papéis e no espaço público.
Como já se referiu, é preciso entender estes trabalhos, dos finais dos anos 60,
sobre os estereótipos de género, como sendo produzidos na continuidade do emergente
«feminismo de segunda vaga». É nesse contexto que aparece A Mística Feminina de
Betty Friedan, onde se faz uma análise de conteúdo das revistas femininas que inspirará
todo um trabalho de denúncia, baseado na ideia de que «as imagens das mulheres nos
media têm algum tipo de impacto prejudicial, quer sobre a consciência individual, quer
sobre a vida social coletiva» (Tuchman, 1979: 530).
Foi, portanto, neste espírito que, por exemplo, a organização feminista americana
National Organization for Women (NOW), fundada precisamente também por Betty
Friedan, analisou o conteúdo de 1.241 anúncios de televisão ao longo de um ano e meio.
Televisão, revistas femininas e, em menor quantidade, os jornais foram perscrutados
pelas suas imagens das mulheres e pelos papéis sexuais aí representados, apontando
todos os resultados para conclusões semelhantes. Como resume Linda Busby «uma
conclusão definitiva se pode tirar destas análises de conteúdo: os papéis sexuais nos
media são tradicionais e não refletem ainda o impacte do recente movimento das
mulheres» (1975: 122).
A marcar de forma decisiva as análises feministas dos media, está também o
trabalho de Gaye Tuchman (1978) que não só se preocupou com a questão mais

15
imediata do estereótipo, como ligou esta noção à de «aniquilamento simbólico das
mulheres», referindo-se à forma como a produção cultural e as representações dos
media ignoram, excluem, marginalizam ou trivializam as mulheres e os seus interesses.
As representações culturais das mulheres nos meios de comunicação são vistas como
funcionando de forma a manter a prevalecente divisão sexual do trabalho, e uma
conceptualização ortodoxa dos papéis de género. Baseada na ideia de Gerbner de que «a
ausência significa aniquilamento simbólico», a autora procurou ainda aprofundar esta
ideia através da «hipótese do reflexo», que sugere que os meios de comunicação de
massas refletem os valores sociais dominantes numa sociedade, constituindo-se
simultaneamente como agentes «empresariais» de socialização: projetando valores que
os programadores assumem como fazendo apelo à mais vasta maioria da audiência (com
vista à obtenção de resultados em termos de publicidade), constroem determinados
valores que são tidos como adquiridos. Dado que os anunciantes veem as mulheres
como um «determinado» mercado e assim perpetuam um processo estereotipado e
cíclico, quando eles condenam, trivializam ou omitem as mulheres, mais não fazem do
que proceder ao seu «aniquilamento simbólico». Confirma-se, dessa forma, que os
papéis de mãe, esposa, noiva, dona de casa, são o destino das mulheres numa sociedade
patriarcal. Na televisão e nas revistas, as mulheres eram tratadas basicamente como
vítimas, objetos sexuais, dependentes dos homens, submissas, e/ou domésticas.
Gaye Tuchman, no entanto, nunca se limitou a argumentar que estas imagens eram
falsas, ou uma distorção da realidade. O seu argumento era mais profundo e procurava
compreender por que processos tais imagens se formavam, numa lógica mediática, e o
que traduziam. Na verdade, ela própria é bastante cética das perspetival que limitam a
ver o problema da representação como sendo um de «distorção»9:
«Com demasiada frequência, o termo usado para caracterizar estes resultados
é “distorção”. Sendo político e pejorativo, o termo parece derivar da teoria
literária do realismo. A ideia de que a literatura reflete a sua sociedade é
transformada na afirmação de que os media devem refletir a sociedade e na
acusação de que os media contemporâneos não refletem devidamente a
posição das mulheres (…). Mas a própria sub-representação das mulheres,
incluindo o seu retrato estereotipado, pode simbolicamente traduzir a posição

9
Numa poderosa crítica dos estudos que se limitaram à empiria e que simplesmente procuravam
“respostas práticas para questões aparentemente práticas” (Tuchman 1979: 528-529) a autora aponta a
ingenuidade de muitos destes estudos tomados por um funcionalismo que não oferecia contributos
analíticos ou algum tipo de crítica substancial. Se queremos realmente compreender como as imagens de
mulheres operam, precisamos de compreender, a partir de uma base teoricamente mais sustentada, o que é
o trabalho das imagens, o seu funcionamento dentro dos textos mediáticos, a sua relação com formas de
ver o mundo e de nos vermos a nós próprios, com o poder e a estrutura – semelhante à de uma linguagem
– dos “enquadramentos inerentes aos media” (Tuchman, 1979: 541).

16
das mulheres na sociedade americana – a sua falta de poder real» (Tuchman,
1979: 532-533).

Era, então, necessário perceber «porque é que os media são sexistas». Pelo menos
uma parte da resposta encontra-se na organização socioeconómica dos media, bem
como no facto de estes se organizarem como uma «comunidade de discurso», regida por
procedimentos profissionais e organizacionais, onde os «enquadramentos», projetando
mitos que encontram eco nas audiências, têm um papel fundamental. Só recolhendo
mais informação sobre o sexismo nos media se poderia intervir mudando as imagens
das mulheres.
Naturalmente que, já nos anos 70, os media haviam compreendido que as
mulheres eram potenciais alvos de informação e constituíam um não-desprezível
«nicho» de mercado. Em Portugal, o suplemento semanal Modas & Bordados do jornal
O Século era um exemplo dessa tendência de crescimento das «páginas femininas» na
imprensa de grande circulação, que contava ainda com outras publicações como a
revista Eva ou a Crónica Feminina. Se essas revistas constituem, só por si, interessante
matéria de análise (Vilas-Boas e Alvim, 2005; Bebiano e Silva, 2004), é também
fundamental compreender a relação delas com o jornalismo de grande divulgação.
Discutindo o processo seletivo dos «temas femininos» nos jornais, Harvey L.
Motoch concluía que essa seleção culminava num sentido masculino do mundo:
«Os jornais não cobrem os acontecimentos da vida quotidiana com que as
mulheres tradicionalmente tiveram de lidar. Das páginas de notícias é
omitido o mundo da experiência imediata, os processos da vida e da morte
que envolvem fraldas e sofrimento, vómitos e sujidade, intimidades sérias e
horrores pessoais. As descrições e considerações sobre esses tópicos, a serem
colocadas, são-no noutro lado – nas páginas femininas, se é que são
colocadas (…) Mas a definição desses temas como triviais é o que predomina
nos media e, portanto, as notícias que lhes são referentes são relegadas, de
forma separada e desigual, para as páginas das mulheres» (Molotch, 1978:
181, itálicos no original).

A análise dos estereótipos, no entanto, tendeu a centrar-se em produtos mediáticos


como a publicidade, tida como lugar privilegiado de sexismo nos media. Sendo difícil
dar conta resumidamente do grande número de trabalhos nesta área, pode dizer-se que
desde o seu início,
«a análise da publicidade sugere que o género é habitualmente retratado de
acordo com estereótipos culturais tradicionais: as mulheres são representadas
como muito femininas, como “objetos sexuais”, como donas de casa, mães,
fadas do lar; e os homens em situações de autoridade e domínio sobre as
mulheres» (Dyer, 1982: 97-98).

17
Ao longo dos anos, as análises apontam para as mesmas conclusões, ainda que
dando conta da forma como, por vezes, os anúncios criam uma aparência de
feminilidade emancipada para responder à pressão social, não sendo isso, no entanto,
mais do que tentativas para «atingir um alvo em movimento» (Ford e LaTour, 1996:
82). Entre nós, um estudo dos anos 90 indicava que «os anúncios da televisão
portuguesa seguem os padrões gerais das televisões ocidentais e apresentam uma
representação altamente estereotipada de homens e mulheres, apesar das pressões
governamentais e profissionais no sentido de uma sociedade mais igualitária» (Neto e
Pinto, 1998). Também Silvana Mota-Ribeiro reafirma a aparência das mudanças: «as
representações do género feminino na publicidade continuam imersas em ideologias e
modos tradicionais de feminilidade, havendo uma continuidade ao nível do discurso
visual acerca das mulheres» (2005: 188).
A forma de estudar essas continuidades entre representação e ideologias, no
entanto, já não se pode limitar à questão das «imagens de mulher» e dos
correspondentes estereótipos. Mesmo que, por vezes, as análises dos anos 70 fossem
relativamente complexas e extensivas no alcance das suas implicações teóricas, estavam
limitadas na sua capacidade de compreensão por três fatores: a utilização exclusiva das
análises de conteúdo como sua metodologia de trabalho, o modelo de comunicação
pressuposto e a relação com a realidade igualmente pressuposta (Hollows, 2000). Com
efeito, concentravam-se mais em «o que os media mostravam» em vez de «como
produziam significado» (MacDonald, 1995: 5; Hollows, 2000: 23). Certamente que
isolar certas características do texto para de seguida as tratar quantitativamente (sob a
forma de frequências de imagens, de palavras ou de papéis) permite lidar com corpus
alargados, compará-los e estudá-los no tempo. No entanto, a identificação dessas
categorias implica não só tratar as mulheres como categorias homogéneas como extraí-
las do seu contexto, tomando-as como categorias autoevidentes e transparentes e,
portanto, sujeitas a uma única interpretação possível (a derivada dos números). Nesta
visão, está ainda patente uma certa ideia de efeitos mediáticos diretos (que, na melhor
das hipóteses, não serão comportamentais, mas cognitivos) e independentes de qualquer
capacidade interlocutiva e de significação. Por outro lado, desta crítica aos estereótipos
ainda fica pressuposto que existe «uma» realidade, independente de todos os processos
comunicativos, que pode ser relatada, devendo os media ser um simples reflexo dessa
realidade.

18
Trabalhos como os de Gaye Tuchman ou de Harvey Molotch mostram já um
quadro de pensamento mais complexo do que a simples linearidade dos efeitos,
pressupondo a ideia de construção social da realidade. Hoje, a realidade do jornalismo é
questionada de formas mais sofisticadas, procurando, por exemplo, perceber o papel das
rotinas produtivas na produção de estereótipos (Gallego, 2004), ou a forma como as
imagens inseridas na produção informativa traduzem desigualdades estruturais e
profissionais (Pinto-Coelho e Mota-Ribeiro, 2006). No trabalho de final dos anos 70, no
entanto, é ainda incipiente a tentativa de compreender como o sentido é organizado
dentro dos textos mediáticos, traduzindo também um tratamento das mulheres como
uma categoria homogénea: as mulheres unidas sob a mesma opressão masculina,
comum a todas elas e a todas as áreas da sua vida.
Nem todo o trabalho feminista, no entanto, perseguia esta linha de investigação.
Autores como Lacan e Foucault deixaram a sua marca profunda na literatura feminista
desta época. Mais em geral, duas ideias começaram a ser trabalhadas no domínio do
pensamento feminista e na investigação da cultura ainda nos anos 70: a crescente
consciência de que há diferenças que atravessam o sujeito feminino e a ideia que «as
representações não eram expressivas de qualquer realidade anterior, mas eram
ativamente constitutivas da própria realidade» (McRobbie, 1997: 172). É o cruzamento
destas duas ideias que marca o estudo das representações como uma questão que não se
pode resumir aos estereótipos. Isso mesmo podemos observar de forma muito clara
numa linha dos Estudos Culturais Britânicos, desenvolvida a partir do final dos anos de
1970.

Das Representações no Circuito da Cultura


No final da década de 70 parecia claro que a importância de estudar as imagens do
feminino não residia tanto na questão do estereótipo como modelo simplificado e falso
das mulheres, mas no facto de estas imagens terem inscrita uma dimensão cultural
destinada a fazer crer que elas representam o que as mulheres são ou deveriam ser. A
forma do significado desse «são ou deveriam ser» deixava de ser matéria de intervenção
apenas dos movimentos feministas, para se constituir, progressivamente, como campo
de análise dos emergentes Estudos sobre as Mulheres. Importava agora não só combater
o sexismo e a invisibilidade, mas compreendê-los.
Como vimos, ainda que a investigação tivesse interesse pela natureza ideológica
dos media, raramente o procurou enquadrar num campo mais amplo que partisse

19
simultaneamente da cultura e dos estudos sobre mulheres. Essa dificuldade ficou
historicamente bem documentada no trabalho inicial dos estudos culturais feministas
britânicos, em particular do Center for Contemporary Cultural Studies de Birmingham
(CCCS), onde se procurou articular muito particularmente a cultura popular e as
questões da representação cultural10.
Influências vindas do estruturalismo, da psicanálise e dos escritos de Gramsci
sobre o trabalho deste Centro na década de 1970 – coincidindo com a entrada de Stuart
Hall –, originaram novas abordagens à questão da ideologia. A atenção ao marxismo
althusseriano para compreender a relação entre a base económica do capitalismo e
superstrutura cultural-ideológica, a partir de elaborações resultantes da articulação
interna da própria superstrutura, combinada com o que Gramsci chamou de
«hegemonia», permitiu analisar a cultura sob novos prismas. O objeto de estudo era,
agora, a ideologia construída pela cultura popular e vivida pelos sujeitos. Recorde-se
que, para Gramsci,
«o exercício “normal” da hegemonia é caracterizado por uma combinação de
força e consentimento que se equilibram, por forma a que a força não exceda
o consentimento, mas apareça entre parêntesis pelo consentimento da
maioria, expresso pelos chamados órgãos de opinião pública» (Gramsci,
1975: 155-156)11.

Hegemonia não significa dominação impositiva, mas sobretudo aprovação e


consentimento, constituindo-se como um processo ativo, contínuo, temporário e sempre
aberto a contestação.

10
Dada a sua heterogeneidade, os estudos culturais, tal como os estudos feministas, são de difícil
definição, mas parece-nos útil a forma como Douglas Kellner os caracteriza: «os estudos culturais
insistem que a cultura tem de ser estudada dentro das relações e sistemas sociais através dos quais é
produzida e consumida, o seu estudo está, pois, intimamente ligado ao estudo da sociedade, da política e
da economia (...) os estudos culturais também subvertem as distinções entre “cultura de elite” e “cultura
popular” considerando um vasto continuum de artefactos culturais (..). Abrem-se a valorizações mais
diferenciadas da cultura, políticas, mais do que estéticas (em que se procura distinguir momentos críticos
e oposicionais dos momentos de conformismo e conservadores no que respeita à relação com os
artefactos culturais» (Kellner, 1995: 6-7).
11
O pensamento de Antonio Gramsci tem algum paralelo com o dos autores da Teoria Critica
desenvolvida na Alemanha nos anos 30, ainda que provavelmente nunca se tenham encontrado ou lido
reciprocamente. Nos escritos anteriores à sua prisão, e durante esta, as referências de Gramsci à cultura
popular e à linguagem revelam a sua consciência da importância dos textos culturais. A sua aguda
preocupação com os intelectuais e com o poder revela também que, tal como a Escola de Frankfurt, ele
reconhecia a importância da indústria da cultura burguesa como um problema central do capitalismo
moderno. Tal como Adorno, Gramsci tinha consciência dos aspectos da cultura de massas característicos
do fascismo. E também o «popular» gramsciniano, onde a cultura é compreendida como um lugar de
disputa hegemónica, tem paralelo com a «indústria da cultura» de Adorno (Cfr. Ives, 2004).

20
Dois contributos para a análise da cultura e dos seus sujeitos comunicativos
podem ser deduzidos da influência gramsciniana. Por um lado, a sociedade deixa de ser
concebida como uma totalidade unificada para passar a ser uma
«formação social que é necessariamente constituída por totalidades
complexamente estruturadas, com níveis diferentes de articulação entre si (o
económico, o político, as instâncias ideológicas), em combinações diferentes,
[onde] cada combinação dá lugar a uma configuração diferente de forças
sociais e, consequentemente, a um tipo diferente de desenvolvimento social»
(Hall, 1996a: 421).

Por outro lado, tornam-se especialmente relevantes as especificidades históricas


que moldam as várias formas de representação, não de um modo estanque e
perfeitamente estruturado, como em Althusser, mas de uma forma móvel e aberta a
contestação12. Também o conceito gramsciniano de «articulação», desenvolvido por
Laclau, permitia explicar como é que as formações culturais são relativamente
autónomas e como as elites usam a cultura para manter a sua hegemonia. A ideologia
surge, a esta luz, não como uma falsa representação da realidade, mas como uma
ligação entre as experiências da realidade e a sua interpretação. A hegemonia consegue-
se não pela imposição de uma única visão do mundo, mas através de uma certa relação
entre as condições socio-económicas e a filosofia da classe dominante. Para esta exercer
o seu poder, no entanto, a ideologia e a experiência têm constantemente de se
rearticular.
Numa sociedade compreendida como totalidade complexa, a ideologia apenas
pode ser entendida em relação aos diferentes níveis de articulação social (por exemplo,
os níveis económico, político, cultural). O ponto de partida dos estudos culturais não
pode, pois, ser o dos valores, expectativas e comportamentos de um qualquer sujeito
social em particular, mas o dos dispositivos a partir dos quais os «bens simbólicos» são
produzidos e oferecidos ao público, sob a forma de mercadoria.
Esta compreensão da estrutura ideológica da cultura, em conjunção com outras
fontes teóricas igualmente importantes, como a psicanálise, viria a ser uma poderosa
ferramenta para a análise das representações do género nos media. Abandonavam-se,

12
Neste sentido, a partir de Althusser, Hall procura construir uma teoria da ideologia que supera
aquilo a que ele chama um «funcionalismo marxista»: «Contrariamente à ênfase no argumento de
Althusser, a ideologia não tem portanto a função de “reproduzir as relações sociais da produção”. A
ideologia também estabelece os limites à forma como uma sociedade-no-poder pode facilmente e
funcionalmente reproduzir-se. A noção de que as ideologias estão já sempre inscritas não nos permite
pensar adequadamente as mudanças de acentuação na linguagem e ideologia» (Hall, 1985: 113). O
conceito de «hegemonia» de Gramsci permite, pelo contrário, teorizar os pontos fracos e as contradições
da ideologia dominante. As ideologias são sempre historicamente contingentes e abertas a contestação.

21
assim, as análises de imagens singulares que durante muito tempo suportaram os
estudos dos estereótipos e o foco passou a incidir no estudo dos padrões e temas mais
vastos das representações, compreendidas estas como lugares de luta e consentimento,
isto é, como formas ideológicas complexas, trabalhando a diferentes níveis.
O trabalho feminista desenvolvido no CCCS não foi, no entanto, moldado apenas
pelos debates mais vastos sobre a forma de analisar e teorizar a cultura, mas também
pelas tentativas de intervir de forma definitiva no Centro. A obra coletiva Women Take
Issue (1978), de um grupo de investigadoras do CCCS – onde se incluem, entre outras,
Charlotte Brundson, Angela McRobbie, Rosalind Coward, Janice Winship e Dorothy
Hobson –, é um dos primeiros livros a pensar explicitamente a interceção entre os
estudos culturais e o feminismo. No texto introdutório ao conjunto de trabalhos que aí
se apresenta, o Grupo Editorial revela bem os dilemas sentidos por quem iniciava este
novo campo de estudo:
«Como é que os Estudos de Mulheres ou a investigação feminista transforma
o conhecimento e a pesquisa existente? Onde devemos começar a tentativa
de analisar uma formação social como sendo estruturada tanto por
antagonismos de classe como de sexo/género? Como podemos fazer o nosso
trabalho sem ser sugadas para o campo intelectual já constituído, isto é, sem
conseguir a legitimidade à custa do nosso feminismo, sem perder de vista as
questões políticas que dão forma ao nosso trabalho? Para intervir de forma
decisiva como feministas (…), podíamo-nos concentrar no que víamos como
as áreas centrais da pesquisa dentro do Grupo de Estudos de Mulheres,
arriscando assim que as nossas preocupações se mantivessem específicas ao
género – como uma preocupação própria: a “questão da mulher” defendida
pelas mulheres e relegada para elas» (Grupo Editorial do WTI, 1978:10).

A importância destes dilemas não é apenas histórica: reflete bem o processo de


constituição de um núcleo de influências feministas no contexto de outros quadros de
leitura da cultura e da realidade vivida13. Na verdade, não estava apenas em causa,
segundo o quadro dos estudos culturais, ir além das questões do determinismo
económico e do foco no modo de produção como âmbito da contradição-chave da
sociedade, mas também, de acordo com o quadro feminista, documentar a opressão das

13
Recorde-se que num influente texto, Stuart Hall (1980), referindo-se à forma como os estudos
culturais emergiram como uma resposta à situação da Grã Bretanha nos anos 50 e à agenda da Nova
Esquerda, identificou apenas como paradigmas influentes destes mesmos estudos, o culturalismo e o
estruturalismo, omitindo o feminismo. Isso, na opinião de Anne Balsamo (1991), deve-se ao facto de o
feminismo, dento do Centro, nunca se ter constituído com unidade. Women Take Issue exemplifica bem a
forma como o feminismo se apresentou como um forte desafio às políticas institucionais e intelectuais do
CCCS, dominado pela perspectiva masculina. Contestada pelas feministas (Brunsdon, 1996), a metáfora
escolhida por Stuart Hall (deliberada como ele próprio diz) para descrever o processo de entrada do
feminismo no Centro de Estudos de Birmingham é bem ilustrativa: «como um ladrão na noite [o
feminismo] irrompeu; interrompeu, fez um barulho perturbador, agarrou o tempo, borrifou-se na mesa
dos estudos culturais» (Hall, 1996b: 269).

22
mulheres, desenvolvendo teorias explicativas de como e porquê as mulheres são
oprimidas14. Numa das primeiras análises das revistas femininas, por exemplo, Janice
Winship propunha-se «focar a revista como discurso(s) em que a ideologia, ao
posicionar a leitora dentro de si, se constrói através dos diferentes modos de
representação que constituem a revista, nas suas diferentes partes» (Winship, 1978:
139).
Mas outras influências forneceriam não só novos meios de análise, como novas
perspetival sobre a identidade feminina. Foucault, dentro da teoria pós-estruturalista,
veio desafiar a compreensão tradicional da relação entre conhecimento, poder e política,
oferecendo uma noção de «discurso» como poder-saber que colocava o sujeito como
produto do discurso do conhecimento (produto de determinadas categorias sociais
produzidas por esse mesmo discurso). Deixava, assim, de ser possível pressupor algum
conteúdo intrínseco e essencial das identidades, definido por estruturas de experiência
comum (como o género). Pelo contrário, a identidade depende da sua diferença ou
negação de um outro termo: «a identidade é uma representação estruturada que só
alcança o seu positivo através do estreito buraco da agulha do outro, antes de se poder
constituir» (Hall, 1990: 21). A ênfase passa, assim, para a multiplicidade e a diferença.
Por outro lado, as questões de representação passam a não se limitar a questões de
adequação ou distorção, da verdade ou falsidade: o centro da disputa é a própria
representação, produzida pelas práticas culturais ou linguísticas da representação. Isto
não significa que os estereótipos não tenham já lugar. Eles fazem parte da manutenção
da ordem social e simbólica, estabelecendo uma fronteira entre o «normal» e o
«desviante», o «normal» e o «patológico», o que «pertence» e o que «não pertence», o
«nós» e o «eles». Estereotipar reduz, essencializa, naturaliza e conserta as «diferenças»,
excluindo ou expelindo tudo aquilo que não se enquadra, tudo aquilo que é diferente
(Hall, 1997a). A sua compreensão, no entanto, vai muito mais além de identificar uma
distorção compreendida como uma unidade identitária reificada.

14
De forma interessante, essa mesma opressão podia ser sentida, desde logo, no trabalho do
próprio CCCS que não se constituía como um ambiente propício para os estudos culturais femininos:
«Nós [o Grupo de Estudos de Mulheres] verificámos ser extremamente difícil participar nos grupos do
CCCS e sentimos, sem ser capaz de o articular, que era um caso de dominação masculina do trabalho
intelectual e do ambiente em que estava a ser desenvolvido» (Editorial Group of WTI, 1978: 15). Angela
McRobbie desenvolvendo um trabalho sobre as sub-culturas femininas, em paralelo ao de Paul Willies e
Dick Hebdige sobre as sub-culturas masculinas, faz notar que o seu estudo sobre um clube de
Birmingham para operárias «foi despoletado pelo reconhecimento de que num espectro de disciplinas que
lidam com a juventude (...) havia toda uma dimensão ausente, nomeadamente a das raparigas»
(McRobbie, 1978: 96).

23
Outras influência importante para a análise das representações de género foi
exercida pela psicanálise de Jaques Lacan, a partir da qual se forjou o conceito de
«diferença sexual», especialmente relevante para revistas como m/f e Screen. Realçou-
se, então, a importância do inconsciente na formação da identidade e a dificuldade de
manter identidades unificadas e estáveis, surgindo com alternativa a ideia de identidades
complexas e heterogéneas. Como recordam Franklin et al «levar a noção de
inconsciente a sério significava que o anterior sujeito unificado da análise cultural era
colocado em questão» (1991: 176). Fantasia e desejo eram parte do mesmo vocabulário,
tornando-se fortemente influentes na sua conjunção com o pós-modernismo e na
desconstrução das distinções históricas binárias.
Todas estas influências permitem pensar a identidade em termos não-essencialistas
no que diz respeito à relação entre a posição do sujeito na estrutura social e aquilo em
que esse sujeito acredita, ou a forma como age. Em relação ao género, tal «significa
rejeitar a ideia de uma ligação automática entre o género do sujeito e a atitude para com
o feminismo» (Gill, 2007: 55). Dessa forma,
«asserções simplistas, como os homens serem violadores ou patriarcas,
devem ser rejeitadas, o mesmo acontecendo com outras afirmações
igualmente descabidas sobre a natural afinidade de uma mulher com o
feminismo (afirmações que não podem explicar porque é que um grande
número de mulheres não se considera feminista)» (Idem).

Na mesma linha, entende-se que o significado cultural não é estático ou «dado»,


como se estivesse simplesmente enraizado nas estruturas económicas ou nos textos. É,
antes, um processo onde o próprio ato da receção produz significado. Daí que, nesta
leitura, seja importante compreender como as pessoas usam os textos, abrindo assim
uma nova perspetival sobre a necessidade de estudar as audiências.
As teorias da receção desenvolvidas desde os anos 80 tomariam, no entanto, uma
direção completamente diferente da imaginada por Adorno que, como vimos, procurou
estabelecer uma alternativa aos estudos de comunicação que então se faziam. Nos
estudos feministas, a análise das audiências passou a procurar as formas pelas quais os
textos mediáticos podiam não só revelar como os pressupostos ideológicos de género
marcavam as suas narrativas, mas também o modo «genderizado» como se dirigiam às
suas audiências. Para isso, tornava-se clara a necessidade de analisar não só o conteúdo
estrito dos media, mas todo o sistema mais vasto da sua (re)produção e consumo.
Central à questão da representação num contexto de ideológico de produção de
identidades culturais, é, na verdade, a metáfora do «circuito da cultura» (du Gay et. al.,

24
1997) que, constituindo-se como uma tentativa de afastamento do determinismo e
reducionismo implícito no modelo marxista «base-superstrutura», procura articular a
produção e o consumo cultural. O «circuito» constitui-se como um processo que reúne
um conjunto de objetos e práticas (que se encaixam na definição de Raymond Williams
de cultura como um modo particular de vida que expressa certos significados e valores),
através dos quais a cultura recolhe significado em cinco momentos diferentes –
representação, identidade, produção, consumo, e regulação. O momento da
Representação refere-se à produção de significado pela linguagem – «liga significado e
linguagem à cultura» (Hall, 1997c: 15). Realça-se aqui o funcionamento simbólico da
cultura. É, afinal, o que está em causa nas análises feministas dos media. O momento da
Identidade refere-se à forma como um produto cultural — texto, objeto, prática — age
como um marcador que identifica um grupo particular, quer dizer, como os significados
criam uma identidade, nomeadamente «feminina», que pode não ser una ou sujeita a um
referente de identidade único. Na medida em que a identidade depende da diferença
para a sua construção, todas as práticas significantes envolvem relações de poder,
incluindo o poder de definir quem se inclui e quem é excluído no referente da
identidade. Os produtos culturais são codificados com significados no seu processo de
produção – são produzidos com base em formas que os fazem adquirir sentido. Estes
processos de codificação constituem o momento da Produção no circuito. O significado
é também produzido quando incorporamos produtos culturais na nossa vida quotidiana.
O momento do Consumo relaciona-se com aquilo que o produto significa para aqueles
que de facto o usam. Por fim, o circuito de cultura sugere a necessidade de examinar o
impacto que um produto cultural tem na Regulação da vida cultural, quer dizer, como
atua sobre a formação social, as suas instituições e os seus pressupostos. A Regulação
refere-se, portanto, ao momento que inclui o controlo sobre a atividade cultural, não só
formalmente, através das leis e normas institucionalizadas, mas também pelos controlos
informais que formam a cultura. É neste momento que se produzem significados sobre
aquilo que é aceitável e correto.
O Circuito da Cultura assenta nos seus pontos de articulação, onde os significados
são contestados e renegociados. A articulação tem, ela própria, um duplo significado, o
de expressar e o de reunir. Nesse sentido, vai além do determinismo das abordagens
críticas clássicas, reconhecendo que o particular de uma situação é sempre sujeito às
contingências da circunstância. Cada um dos «momentos» do circuito está encadeado
com os outros, num processo contínuo de codificação e disseminação cultural. A forma

25
como a cultura é representada afeta o modo como é identificada. Também afeta o modo
como é produzida, consumida, e regulada. O mesmo se aplica a qualquer outro
momento do circuito. Nele, o significado cultural é produzido e enraizado no conjunto
dos níveis constituintes do circuito, de modo que cada um dos níveis seja articulado
com o seguinte, sem no entanto determinar os significados que serão assumidos e
produzidos nesse nível. A cultura é, assim, autónoma, mas articulada com outras
práticas, formando um todo. A ênfase do modelo reside no carácter irredutível das
práticas culturais e, ao mesmo tempo, numa relação de determinação mútua com outras
práticas. O desafio está em compreender como cada momento dessa produção se
inscreve na representação, sem presumir que possa ser «lido» simplesmente em função
de relações económicas. A grande força deste modelo é focar a atenção, não só nestes
momentos onde o poder e a cultura se encontram, permitindo que o significado seja
partilhado, mas também nas ligações entre «momentos», onde a cultura é mediada15.
Apesar da tónica sobre a contingência na articulação e, portanto, do seu inerente
relativismo cultural, o circuito não coloca a cultura como uma atividade humana sempre
libertadora (ou sempre opressora). A sua principal vantagem está na forma como
permite compreender a comunicação mediada: não como um conjunto de funções
relativamente independentes, mas como um processo multifacetado. Mas isso, no nosso
entender, não significa que os momentos do circuito não se possam articular de formas
particularmente hegemónicas. Hall tem, aliás, o cuidado de referir que mesmo uma
articulação oposicional das formas culturais não se liga necessariamente às políticas
radicais. O seu objetivo é mostrar que não há massas passivas e silenciosas e que o
poder de contestar os significados permite encontrar formações culturais através das
quais se podem gerar e circular novos significados. Tais significados, no entanto, não
são sempre libertadores. Um texto mediático como o talk show televisivo de Oprah
Winfrey, por exemplo, constrói uma certa identidade feminista negra mainstream das
suas audiências, através de um processo mediático «terapêutico» e psicologista, que não
só tende a naturalizar os problemas das mulheres a quem se dirige, como a codificar
esses problemas como questões que podem ser resolvidas na superfície lisa de um ecrã
televisivo, longe das suas raízes mais profundas e complexas. É a sua produção, numa
lógica de conglomerados e globalização mediática, que permite que a identidade das

15
Mas, como recorda Chris Barker, o perigo do modelo está em se poder perder de vista o facto de
os seus «níveis» serem «apenas um dispositivo heurístico e não aspectos organizacionais de um “todo da
sociedade” que não é separável» (2004: 23).

26
audiências femininas americanas negras se articule com as linguagens mais vastas da
representação das mulheres em geral como públicos de talk-shows. Estes são
consumidos pelas audiências globais dos grandes canais americanos, o que constitui
uma forma de regulação do próprio feminismo que se vê, dessa forma, introduzido no
circuito do consumo mediático. Ainda que não seja, certamente, o único fator, essa
«comodificação» do feminismo ajuda, por exemplo, a construir uma certa imagem de
que vivemos uma era «pós-feminista», onde as questões das mulheres estão
«devidamente» integradas em toda a cultura popular e mediática.
Um dos processos-chave do circuito da cultura, como Hall descreve, é constituído
pelas práticas da representação que se organizam como
«a produção do significado dos conceitos na nossa mente através da
linguagem. É a ligação entre os conceitos e a linguagem que nos permite
referir ao mundo “real” dos objetos, pessoas e acontecimentos, ou mesmo aos
mundos imaginários de objetos, pessoas e acontecimentos» (1997c: 17).

A representação, por outro lado, está fortemente ligada às nossas identidades:


«o significado é o que nos dá a nossa identidade, de quem somos e a quem
“pertencemos” – por isso está ligado a questões como a de saber de que
modo a cultura é usada para marcar e manter a identidade e a diferença entre
os grupos sociais» (Hall, 1997b: 3).

Assim, ainda que não se possam desprezar as “imagens” de identidade produzidas


pela cultura mediada, uma análise das representações não se pode limitar à
quantificação de «imagens» estereotipadas. São necessários não só quadros de
pensamento mais vastos que remetam para os processos de criação de determinadas
ideologias, como outras metodologias que, não descurando os conteúdos, não se
limitem porém a contabilizá-los. As análises feministas que recorrem à semiologia, por
exemplo, há muito que identificaram alguns dos perigos dessas análises positivistas,
lembrando que «o desejo de um modelo de papel positivo parecia privilegiar um tipo de
mulher sobre outro e envolvia uma rejeição dos “papéis femininos mais tradicionais”,
de uma forma que parecia ir ao encontro do desprezo masculino pelos mesmos»
(Geraghty, 2000: 369).
Nos estudos culturais, outras direções de interesse para temas da identidade e da
subjetividade abriram-se com a introdução de metodologias mais etnográficas,
especialmente concebidas para o estudo da «cultura vivida» – nomeadamente pelas
subculturas e pelas audiências. Neste âmbito, poder-se-á dizer que a última década de
investigação em torno das representações foi marcada por uma verdadeira «viragem

27
para o prazer» (Gill, 2007: 13). A esta luz muito celebratória do poder das audiências
face às mensagens mediáticas, telenovelas, subculturas e revistas femininas foram
escrutinadas nas suas formas de apropriação. Mas ao realçar como as audiências podiam
construir leituras oposicionais, sendo ativas no seu trabalho de descodificação e não
apenas vítimas passivas de manipulação, confundiu-se com frequência resistência e
prazer, subjetividades individuais, com fantasias e desejos. Tania Modeski, uma das
primeiras autoras a trabalhar essa perspetival, reconhece hoje, no entanto, a ausência de
crítica que muitos desses trabalhos revelavam:
«Parecia importante, num dado momento histórico, enfatizar a forma como
“o povo” resiste à manipulação da cultura de massas. Hoje corremos o risco
de esquecer o facto crucial de que, tal como o resto do mundo, mesmo a
analista cultural poder por vezes ser uma “dependente cultural” – o que é,
afinal, uma forma mais feia de dizer que existimos dentro da ideologia, que
todas somos vítimas, até ao âmago dos nossos seres, de dominação política e
cultural» (Modelski, 1991: 45).

Conclusão
Compreender a questão das identidades nos media pela ótica da representação não
implica necessariamente um afastamento das ideias em torno do estereótipo como
desenvolvido por Lippmann. No quadro de experiência da modernidade, ele mapeou as
nossas identidades nos media por cartografias de inclusão e exclusão, como formas de
apreender uma realidade fugidia e como afirmação de tradição e poder. Nesse processo,
deu conta dos dilemas dos media na representação e estabeleceu uma visão clássica do
estereótipo que as análises de conteúdo, maioritariamente forjadas por modelos lineares
de comunicação, retomaram ao longo do século XX. Em alternativa, no entanto, a
Escola de Frankfurt reconheceu as distorções patriarcais e androcentristas da razão
instrumental, e o facto de o genérico humano ser identificado com o masculino ter
estabelecido uma ordem que cristalizou as diferenças, atribuindo-lhes valor de verdade
imutável – uma ordem onde a diferença é negada e substituída por analogias,
comparações hierarquizadas, oposições dicotómicas. A lógica mediática, neste contexto,
impede o desenvolvimento de indivíduos autónomos e independentes que julgam e
decidem de forma consciente, acabando por adotar uma visão estereotipada dos grupos
em que não se sentem incluídos.
Muita da investigação feita, desde então, em torno da representação das
identidades nos media foi no sentido de proceder a uma «correção» das representações
mediáticas, isto é, devotada a mostrar que estas têm, de uma forma ou outra, qualquer
coisa de errado, em termos históricos, biográficos, sociais ou sob qualquer outra base de

28
exatidão. No entanto, como refere Myra McDonald, «caçar estereótipos pode ser um
passatempo interessante e em última análise não compensador. Pode também ser
perigoso, se não dermos conta do jogo entre estereótipos, cada vez mais presente nos
media» (McDonald, 1995: 14). Compreender esse jogo, no entanto, passa por colocar as
mulheres não apenas como derivados, mas como ponto de partida das disciplinas
sociais, literárias, históricas, políticas ou culturais. Dada a grande pluralidade destas
disciplinas, a tentativa de compreender como as imagens e as construções culturais
estão ligadas a padrões de desigualdade, dominação e opressão tem-se tornado
progressivamente mais vasta, mais diversa e mais heterogénea. Múltiplas abordagens e
perspetival, diferentes metodologias e compromissos epistemológicos ligados à
compreensão do sujeito (sexual, de género, de raça e de classe), do poder, ou mesmo da
forma como o sentido individual da identidade e da subjetividade constitui um elemento
na produção do significado das representações tornaram mais difícil a unidade de um
campo em torno das questões da representação. A própria sociologia da comunicação
passou a dispor de novas metodologias, novas linguagens teóricas e também de
diferentes conceções da natureza e modelos de comunicação mediática. E, naturalmente,
o próprio campo dos media também foi mudando, adotando novas estratégias e lógicas
comunicativas.
Neste quadro, andar atrás de imagens estereotipadas pode não ser muito produtivo
do ponto de vista da investigação. O problema das visões simplificadas e
unidimensionais mantém-se no entanto, podendo não residir tanto nas imagens em si,
mas nas suas concentrações, na sua frequência e nas omissões que se tornam parte da
nossa memória.
Num caminho de teorização que se fez ao longo do século, e à medida que os
media se tornaram uma força cada vez mais global e ponderosa na extensão e
penetração das suas imagens, a influência dos media fez-se sentir. Na tentativa da sua
compreensão, a experiência do fascismo marcou profundamente as análises políticas e
culturais. O centro da pesquisa sobre a representação foi cada vez mais focado na
questão de como os media representam, reapresentam e constituem as identidades
sociais. A cultura mediática aparecia, assim, como uma das forças que atuam sobre a
perceção que temos de nós e dos outros, estendendo-se pelas diversas heranças da
ideologia marxista entre os anos 30 e 50, associando-se às lutas pela representação
cultural dos anos 60, até à viragem linguística na teoria cultural a partir dos anos 80.

29
O historicismo da experiência deslocou o essencialismo identitário. Como disse
Hall, «as identidades culturais vêm de algum lado, têm histórias. Mas, como tudo o que
é histórico, passam por uma constante transformação. Longe de serem fixas em algum
passado essencializado, são sujeitas ao “jogo” contínuo da história, da cultura e do
poder» (Hall, 1990: 225). O nosso papel na história depende de como fomos
representados e da forma com isso afeta o poder de nos representarmos.
A contribuição dos estudos feministas dos media sobre o papel de reforço dos
estereótipos como representações inadequadas que ignoram, marginalizam e distorcem
muitos aspetos da vida social, da experiência e da identidade é, desde o seu início,
importante, mesmo que limitada em determinados aspetos. Como refere Margaret
Gallagher, a propósito da importância da monitorização dos media em questões de
género, as análises dos estereótipos
«são inestimáveis para marcar os grandes parâmetros do retrato dos géneros.
Fornecem uma prova irrefutável no desequilíbrio das representações dos
media de mulheres e homens – em termos de status e autoridade e mesmo em
simples números (…). Estudos deste tipo continuarão sempre a ser
necessários, para dar conta das grandes tendências e padrões. Mas não são
suficientes para mudar as representações dos media» (Gallagher, 2004: 157).

Ainda que continue a ser fundamental contestar essas representações mediáticas,


na verdade, não é suficiente focar toda a atenção na falsidade, desajuste ou erro dessas
representações estabelecido por comparações empíricas com «a realidade», como se
esta existisse de forma prévia e objetiva. Não existe um caminho linear e direto entre as
imagens estereotipadas e uma qualquer realidade transparente e mensurável (Pickering,
1995). É preciso compreender e traçar os caminhos que levam a essa representação,
tendo em conta forças ideológicas, padrões de aculturação, produção de formas
discursivas dos media e apropriação das mesmas. Como refere Seiter,
«Nem todos os estereótipos nascem iguais. Não podemos ver os estereótipos
mediáticos definidos em termos psicológicos ou politicamente neutros, nem
os podemos ver como um mero sintoma da nossa degradada vida cultural.
Precisamos especialmente de ter em conta a relação entre os seus aspetos
descritivos e avaliativos, analisando a sua história e o seu conteúdo, bem
como a sua frequência. Por fim, precisamos de nos interrogar sobre como
diferentes grupos compreenderão os estereótipos, acreditarão neles, rirão
deles, abraçá-los-ão ou desdenhá-los-ão» (1986: 25).

Há já uns anos que Tessa Perkins (1979) chamou a nossa atenção para a forma
como os estereótipos estão habitualmente presentes no senso comum – uma das áreas
privilegiadas da ideologia – e também para o facto de ser precisamente através da
ideologia que eles funcionam. Mais do que serem meramente «falsos», a sua força

30
reside na combinação de validade e distorção: são «válidos» na medida em que as
pessoas se definem em termos de estereótipos, reforçando-os estruturalmente, e são
«falsos» não só porque apresentam interpretações dos grupos que escondem a causa
«real» dos atributos desses mesmos grupos, confirmando a sua posição oprimida, mas
também porque exageram áreas particularmente problemáticas. Sendo descrições
seletivas, representam, na verdade, as características do significado ideológico que
fazem sentido numa sociedade que projeta como válidos determinados valores
hegemónicos. Por isso, os estereótipos com frequência apresentam os atributos
identitários como se eles fossem «naturais», mas isto não resulta tanto do processo de
estereotipização per se, como do facto de os estereótipos serem conceitos ideológicos
(Perkins, 1979).
Dada a complexidade dos estereótipos e das representações em geral, não é numa
suposta objetividade da realidade e no apelo a uma verdade empírica existente fora dos
circuitos da comunicação mediática, nem em análises celebratórias do poder das
audiências, que reside a justiça da representação nos media. É na luta em torno dos
significados que essa justiça deve ser procurada e estabelecida. Compreender as
representações das mulheres nos media implica não só procurar conhecer o modo de
funcionamento destes, mas estabelecer um profundo engajamento com a teoria
feminista relativamente ao que é, ou podem ser, as «identidades femininas» e as suas
construções por práticas simbólicas e discursivas. Mudar as representações nos media
implica agir sobre os diferentes momentos do «circuito da cultura», sem curto-circuitar
a dimensão política da representação, isto é, sem perder de vista os elementos
ideológicos que afetam toda a construção identitária – nomeadamente os cristalizados
sob a forma de estereótipos nos media. Só a partir de uma melhor compreensão do que
está em causa na representação mediada poderemos promover a produção de discursos e
vozes alternativas e contra-hegemónicas.

Bibliografia
ADORNO, Theodor W. e HORKHEIMER, Max (1947), Dialectic of Enlightenment (trad. J.
Cumming), London e New York: Verso, 1979
ADORNO, Theodor W. (1951), Minima moralia. Reflections from damaged life (trad. E.F.N.
Jephcott), London: Verso, 1974.
ADORNO, Theodor W. (1953), Prólogo Sobre a Televisão. In Sobre a Indústria da Cultura,
Coimbra: Angelus Novus, 2003.

31
ADORNO, Theodor W. (1954), How to Look at Television. In The Culture Industry: Selected
Essays on Mass Culture, J. M. Bernstein, (ed.), London: Routledge, 1991.
ADORNO, Theodor W., Else FRENKEL-BRUNSWIK, Daniel J. LEVISON, e R. Nevitt
SANFORD, (1950), The Authoritarian Personality, New York: Harper and Row.
BALSAMO, Anne (1991) Feminism and Cultural Studies, The Journal of the Midwest Modern
Language Association, vol. 24, n.º. 1, pp. 50-73
BARKER, Chris (2004), The Sage Dictionary of Cultural Studies, London e Thousand Oaks:
Sage.
BEBIANO, Rui e SILVA, Alexandra (2004), A Reidentificação do Feminino e a Polémica
Sobre a «Carta a uma Jovem Portuguesa», Revista de História das Ideias, n.º 25.
BRUNSDON, Charlotte (1996), A Thief in the Night: Stories of Feminism in the 1970s at
CCCS. In Stuart Hall: critical dialogues in cultural studies, ed.s David Morley e Kuan-
Hsing Chen, London: Rouledge.
BUSBY, Linda J. (1975), Sex-Role Research on the Mass Media, Journal of Communication,
n.º 25 (4).
CABECINHAS, Rosa (2004), Processos Cognitivos, Cultura e Estereótipos Sociais. Actas do II
Congresso Ibérico de Ciências da Comunicação, UBI, Covilhã, 21-24 de Abril.
Du GAY, Paul; HALL, Stuart; JANES, Linda; MACKAY, Hugh; NEGUS, Keith (1997), Doing
Cultural Studies: the story of the Sony Walkman, Keynes: The Open University.
DURHAM , Meenakshi Gigi e KELLNER, Douglas (2006) Adventures in Media and Cultural
Studies: introducing the key works. In Media and Cultural Studies: Key Works, ed.s
Meenakshi Gigi Durham e Douglas Kellner, London: Blackwell.
DYER, Gillian (1982), Advertising as Communication, London: Methuen.
EDITORIAL GROUP of WTI (1978), Women’s Studies Group: trying to do feminist
intellectual work. In Women Take Issue, Women’s Study Group, London: Hutchinson.
FORD, John B e Michael S. LaTOUR (1996), Contemporary Female Perspectives of Female
Role Portrayals in Advertising, Journal of Current Issues & Research in Advertising, vol.
XVIII, n.º 1.
FRANKLIN, Sarah; LURY, Celia; STACEY, Jackie (1991), Feminism and Cultural Studies:
pasts, presents, futures, Media, Culture & Society, n.º 13 (2).
GALLEGO, Juana (2004), Produção informativa e transmissão de estereótipos de género. In As
mulheres e os media, ed.s Maria João Silveirinha, Lisboa: Livros Horizonte, pp. 55-68.
GALLAGHER, Margaret (2004), The Impact of Monitoring Media Images of Women. In
Critical Readings: media and gender, ed.s Cynthia Carter and Linda Steiner,
Maidenhead: Open University Press.
GERAGTHY, Christine (2000), Representation and Popular Culture. In, Mass Media and
Society (3ª ed.), ed.s James Curran and Michael Gurevitch, London: Arnold, pp. 362-375

32
GILL, Rosalind (2007), Gender and the Media, Cambridge: Polity Press.
GRAMSCI, Antonio (1975), Prison Notebooks – Vol. 1 (ed. J. A. Buttigieg; trad. J. A. Buttigieg
e A. Collari), New York: Columbia University Press.
HALL, Stuart (1980), Cultural Studies: two paradigms, Media, Culture and Society, n.º 2.
HALL, Stuart (1985), Signification, Representation, Ideology: Althusser and the post-
structuralist debates. Critical Studies in Mass Communication, n.º 2(2).
HALL, Stuart (1990), Cultural Identity and Diaspora. In Identity: Community, Culture,
Difference, ed. Jonathan Rutherford, London: Lawrence and Wishart.
HALL, Stuart (1996a), Gramsci’s Relevance for the Study of Race and Ethnicity. In Stuart Hall:
Critical Dialogues in Cultural Studies, ed.s David Morley and Kuan-Hsing Chen, eds.,
London: Routledge.
HALL, Stuart (1996b), Cultural Studies and its Theoretical Legacies. In Stuart Hall: critical
dialogues in cultural studies, ed.s David Morley and Kuan-Hsing Chen, London:
Routledge.
HALL, Stuart (1997a), The Spectacle of the «Other». In Representation: Cultural
Representations and Signifying Practices, ed. Stuart Hall, London: Sage/The Open
University.
HALL, Stuart (1997b), Introduction. In Representation: Cultural Representations and Signifying
Practices, ed. Stuart Hall, London: Sage/The Open University.
HALL, Stuart (1997c), The Work of Representation. In Representation: cultural representations
and signifying practices, ed. Stuart Hall, London: Sage/The Open University.
HANSEN, Miriam (1992), Mass Culture as Hieroglyphic Writing: Adorno, Derrida, Kracauer,
New German Critique, n.º 56.
HEBERLE , Renée (2006), Feminist Interpretations of Theodor Adorno, University Park, PA:
The Pennsylvania State University Press.
HEWITT, Andrew (1992), A Feminine Dialectic of Enlightenment? Horkheimer and Adorno
revisited, New German Critique, n.º 56 (special issue on Theodor W. Adorno).
HOLLINGER, David A. (1977), Science and Anarchy: Walter Lippmann's drift and mastery,
American Quarterly, vol. 29, n.º 5 (special issue: Reassesing Twentieth Century
Documents).
HOLLOWS, Joanne (2000), Feminism, Femininity and Popular Culture, Manchester:
Manchester University Press
IVES, Peter (2004), Gramsci's Politics of Language: engaging the Bakhtin Circle and the
Frankfurt School, Toronto: The University of Toronto Press.
KELLNER, Douglas (1995), Media Culture: cultural studies, identity, and politics between the
modern and the postmodern, London/New York: Routledge.

33
LEE, Lisa Yun (2006), The Bared Breasts Incident. In Feminist Interpretations of Theodor
Adorno, ed. Renée J. Heberle, University Park, PA: The Pennsylvania State University
Press.
LIPPMANN, Walter (1914), A Note on the Woman's Movement. In Drift and Mastery,
disponível em
http://www.podmonkeyx.com/Walter_Lippmann/article.asp?articleID=60
LIPPMANN, Walter (1922), Public Opinion, New York: Macmillan, 1960.
MacDONALD, Myra (1995), Representing Women: myths of femininity in the popular media,
London: Arnold.
McROBBIE, Angela (1997), The Es and the Anti-Es: new questions for feminism and cultural
studies. In Cultural Studies in Question, ed.s Marjorie Ferguson e Peter Golding, London:
Sage.
McROBBIE, Angela, (1978), Working Class Girls and the Culture of Femininity. In Women
Take Issue, Women’s Study Group, London: Hutchinson.
MOI, Toril (1985), Images of Women’ Criticism. In Sexual/Textual Politics: Feminist Literary
Theory, London: Routledge, pp. 42-48
MOLOTOCH, Harvey (1979), The News of Women and the Work of Men. In Hearth & Home:
images of women in the mass media, ed.s Gaye Tuchman; Arlene Kaplan Daniels; James
Benet, New York: Oxford University Press.
MODLESKI, Tania (1991), Feminism Without Women, New York: Routledge.
MOTA-RIBEIRO, Silvana (2005), Retratos de Mulher: construções sociais e representações
visuais no feminino, Porto: Campo das Letras.
NETO, Félix e PINTO, Isabel (1998), Gender Stereotypes in Portuguese Television
Advertisements, Sex Roles, vol. 39, n.ºs 1/2.
PERKINS, Tessa E. (1979), Rethinking Stereotypes. In Ideology and Cultural Production, ed.s
Michèle Barrett, Philip Corrigan, Annette Kuhn e Janet Wolff, London: Croom Helm.
PICKERING, Michael (1995), The Politics and Psychology of Stereotyping, Media Culture
Society, n.º17 (4).
PICKERING, Michael (2001), Stereotypes: the politics of representation, Hampshire: Palgrave.
PINTO-COELHO, Zara e Silvana MOTA-RIBEIRO (2006), Access of women and construction
of femininity in the discourse of the Portuguese press. In Proceedings of Breaking the
Glass Ceiling, 2nd International Conference on Women’s Studies, 26-28 April, Turkish
Republic of Northern Cyprus.
RAKOW, Lana F. (1986), Rethinking Gender Research in Communication, Journal of
Communication, n.º 36 (4).
ROTHENBERG, Julia (2006), Form, Utopia, and Feminist Performance Art: toward a
rehabilitation of Adorno’s aesthetic theory, Telos, n.º 137.

34
SCHLIPPHACKE, Heidi M. (2001), A Hidden Agenda: gender in selected writings by Theodor
Adorno and Max Horkheimer, Orbis Litterarum, n.º 56 (4).
SEITER, Ellen (1986), Stereotypes and the Media: a re-evaluation, Journal of Communication,
n.º 36 (2).
TUCHMAN, Gaye (1978), O Aniquilamento Simbólico das Mulheres pelos Meios de
Comunicação de Massas. In As Mulheres e os Media, org. Maria João Silveirinha, Lisboa:
Livros Horizonte, 2004.
TUCHMAN, Gaye (1979), Women’s Depiction by the Mass Media, Signs, vol. 4, n.º 3.
VAN ZOONEN, Lisbeth (1994), Feminist Media Studies, London: Sage.
VILAS-BOAS e ALVIM, Maria Helena (2005), Do Tempo e da Moda: a moda e a beleza
feminina através das páginas de um jornal (Modas & Bordados – 1912-1926), Lisboa:
Livros Horizonte.
WILLIAMS, Kevin (2003), Understanding Media Theory, London: Arnold.
WINSHIP, Janice (1978), A Woman’s World: «woman» – an ideology of femininity. In Women
Take Issue, Women’s Study Group, London: Hutchinson.

35

Você também pode gostar