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PARA ALÉM DA LEGALIDADE: A CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO DIREITO

ADMINISTRATIVO ATRAVÉS DO PRINCÍPIO DA JURIDICIDADE

I. Introdução: o marco inicial da teoria política

A revolução francesa será sempre lembrada como um marco histórico


na luta contra a tirania e a opressão dos povos. Mas é por outra razão que se remete a este
ponto histórico. É que se trata de momento privilegiado no plano das idéias políticas: nele
ocorre o feliz encontro de diferentes doutrinas a respeito do arranjo político-social e das
relações entre cidadão e Estado, as quais ganham espaço na arena pública e finalmente são
implementadas após a derrocada do ancien régime1. Com a ascensão dos revolucionários
franceses ao poder, tem início a primeira experiência histórica consciente da filosofia política
liberal, fundada na tradição iluminista, reflexo das aspirações da ascendente burguesia2. Ditos
princípios estão sistematicamente expressos na famosa Declaração Universal dos Direitos do
Homem e do Cidadão, editada pela Convenção Nacional em 02 de outubro de 1789, que ora
se toma por referência. De interesse para o trabalho, cabe citar uma destas idéias que, por sua
importância, segue até hoje na ordem do dia.
Talvez a mais importante contribuição dos teóricos para a formulação
da teoria do governo limitado seja o chamado princípio da legalidade, também fruto da
concepção de Estado de Direito que passa a vigorar a partir da Revolução Francesa. É bem
verdade que a edição de leis de cunho abstrato e geral, válidas para todos os habitantes de
determinado espaço territorial, é bastante anterior à revolução francesa, e já estava presente
mesmo nas antigas codificações3. A grande virada, neste momento histórico, consiste na
submissão do próprio Estado ao direito que cria, e na exigência de que a atividade estatal que
restrinja os direitos dos particulares esteja fundada em previsão legal. O artigo 4º. da
Declaração explicita o conteúdo da legalidade: “A lei só tem direito de proibir as ações

1
Danilo Marcondes, Iniciação à história da filosofia, 2002, p. 197: “No início do período moderno, a dissolução
da ordem feudal, a contestação do poder temporal da Igreja, o combate à monarquia absoluta e ao estado
centralizado, surgido principalmente na França do séc. XVII, criam a necessidade da busca e discussão de um
novo modelo de ordem social, de organização política de legitimação do exercício do poder, representado pelas
teses dos téoricos do liberalismo”.
2
Sem embargo, os ingleses já haviam promovido a sua própria reforma liberal-burguesa, o que se deu através da
revolução gloriosa, que culminou com a coroação de Guilherme de Orange e a assinatura do Bill of Rights inglês
em 1689. Contudo, a revolução gloriosa e a independência das XIII colônias foram processos locais, sem
pretensão universalista que marcou a revolução na França.
3
Cf. Paulo Nader, Introdução ao estudo do direito, 2001, p. 201.

1
prejudiciais à sociedade. Tudo quanto não é proibido pela lei não pode ser impedido e
ninguém pode ser obrigado a fazer o que ela não ordena”.
No modelo pretérito a reunião de poderes nas mãos do soberano
implicava na sua insubmissão às próprias regras que criava. O postulado da irresponsabilidade
do monarca – the king can do no wrong, le roi ne peut mal faire – trazia em si a evidência de
que o direito comum, destinado aos súditos, não se aplicava ao Estado4. Outros abusos ainda
eram identificados, como a criação de tributos e figuras criminais ex post facto. Era contra
este estado de coisas que os franceses revolucionários, e os teóricos deste tempo, se
insurgiram.
Enfim, esse conceito, aliado aos princípios da soberania popular
(democracia) e separação de poderes, quando aplicados na prática e devidamente
resguardados por mecanismos jurídicos, consistem na engrenagem básica de funcionamento
das democracias liberais. Por outro lado, a invenção do constitucionalismo daria ao modelo o
toque final: a limitação do Estado por uma norma jurídica que o precede, editada pelo povo
em assembléia – titular do poder constituinte originário – e intangível às maiorias ocasionais.
Desde a obra inaugural de Sieyès, muita tinta seria vertida na defesa do poder constituinte.
Por ora, basta dizer que o constitucionalismo liberal democrático submeteu-se ao julgamento
da história, e foi bem sucedido. Enfim, no crepúsculo do século XVIII, funda-se o Estado
Democrático de Direito e tem início o constitucionalismo e sua trajetória de sucesso. Os
ideários ainda estariam sujeitos a muitas vicissitudes, mas as promessas seminais de
participação popular na formação da vontade política, uso racional da força pública e
contenção do arbítrio estavam lançadas. Deste momento em diante, nada mais seria igual.
Brasil, 2008. Duzentos e dezenove anos se passaram desde a queda da
Bastilha. Os ideais da Revolução Francesa, princípios basilares do Estado de Direito,
encontram-se definitivamente incorporados ao direito positivo. A Constituição Federal de
1988 – marco do retorno à normalidade democrática após 24 anos de ditadura militar –
consagra a soberania popular (art. 1º., parágrafo único), a separação de poderes (art. 2º.) e a
legalidade (art. 5º., II, e 37). O texto constitucional não é mais semântico5, pois se incorporou
definitivamente ao discurso político. Todas as grandes questões sociais levam em
consideração o que diz a Constituição e o seu intérprete principal: o Tribunal Constitucional.

4
Celso Antônio Bandeira de Mello, Curso de direito administrativo, 2007, p. 975.
5
Nos termos da classificação ontológica de Karl Loewenstein, há constituições normativas, nominais e
semánticas, escalonadas em grau decrescente de efetividade. V. Teoria de la Constitución, 1964, pp. 205 e ss..

2
Pode-se afirmar, com segurança, que somos o resultado da revolução
implementada, legítimos representantes do triunfo do liberalismo político. Mas nem tudo é
motivo para comemorações, pois os problemas já são outros, e demandam soluções urgentes.
O conjunto de idéias acima mencionadas, oriundo de pensadores liberais como Rousseau,
Locke e Montesquieu, estavam voltadas para um Estado despótico e centralizado, que já não
existe mais. O Estado contemporâneo, fundado sobre as bases da paz de Westfalia, está em
crise. As soluções liberais já não mais se ajustam com perfeição a este novo Estado, sujeito a
novos questionamentos e novas demandas, como se verá.

II. O novo paradigma: neoconstitucionalismo e direitos fundamentais

Antes de seguir à análise de como as modificações do Estado


contemporâneo afetam o princípio da legalidade, faz-se necessário empreender uma nota a
respeito da compreensão contemporânea do fenômeno jurídico, e especialmente do papel que
se confere ao direito público. Isto porque ditos fundamentos, por nós herdados e
desenvolvidos, não bastasse terem sido criados para fazer frente ao Estado absoluto, que já
não existe mais, foram cunhados sob o paradigma positivista e legicêntrico6, ou seja,
frutificaram na vigência de uma outra teoria do direito, cujas bases teóricas encontram-se em
vias de substituição.
“Eu não conheço o Direito Civil, não ensino mais do que o Código
Napoleão” asseverava Bugnet, um dos componentes da escola da exegese7, em passagem que
se tornaria célebre. A afirmação do jurista francês bem sintetiza este momento inicial da era
das codificações. O racionalismo livrou os juristas da tradição vigente, difundindo a crença de
que o direito deveria ser cunhado pelo uso da razão. O princípio da separação de poderes
consolidou o poder de criar normas nas mãos das assembléias representativas do povo, e a lei
era a expressão da vontade geral. Estes dois elementos somados levaram à rejeição do direito
baseado em glosas romanísticas e no costume8. O projeto científico dos juristas de então era

6
Eduardo García de Enterría, “La constitución española de 1978 como pacto social y como norma jurídica”,
Revista de Direito do Estado 1:3-23, 2006, p. 8: “Ello hará que la Constitución sea vista como el instrumento
que articula esos complicados equilibrios orgánicos. No existe en su teoria y en su práctica ninguna
preocupación por definirla como una norma jurídica que presida y ordene, a través del orden jurídico, del que
formaría parte, como norma preferente, la vida social. Las únicas normas jurídicas relevantes son las leyes“.
7
Sobre a citação e a escola da exegese, v. Orlando Gomes, "A evolução no direito privado e o atraso da técnica
jurídica", Revista de Direito da Fundação Getúlio Vargas 1:121, 2005, p. 123.
8
Margarida Maria Lacombe Camargo, Hermenêutica e argumentação, 2003, pp. 65-66: “A criação de um corpo
sistemático de normas capaz de uniformizar o direito, suprimindo a obscuridade, a ambigüidade, a
incompatibilidade e a redundância entre os vários preceitos normativos regionais e setoriais, objetivando sua
aplicação, revela uma vitória da razão sobre outras formas espontâneas de expressão cultural”.

3
editar códigos capazes de unificar as regras do direito, guiados pela razão pura. No pano de
fundo dos trabalhos, predominava a insurgente ideologia burguesa: patrimonialista e
voluntarista9.
Neste passo, o legicentrismo significou a centralidade do Direito nas
leis formais, e não em outras figuras jurídicas, tal como a Constituição. O século XIX assistiu
ao auge da era das codificações, com a edição de monumentos legislativos com milhares de
artigos regulando minuciosamente as relações jurídicas entre os cidadãos. Destes, os mais
notáveis foram o Código Napoleão e o BGB, editados, respectivamente, em 1804 e 1896, os
quais influenciaram largamente as codificações ao redor do mundo10. No ápice da era,
chegou-se a crer no dogma da completude do código; na sua capacidade para prever soluções
de todos os problemas sociais. De fato, em um ambiente de pouca complexidade social e
vagaroso avanço tecnológico, os códigos ainda puderam usufruir forte prestígio por longo
tempo.
Por sua vez, as relações jurídicas travadas entre a Administração
Pública e os particulares eram remetidas ao direito administrativo, escapando completamente
ao direito constitucional, cuja função era outra, e à disciplina do direito civil11. As regras
administrativas destacam-se como ramo do direito público em razão do conhecido trabalho do
Conselho de Estado francês12. É neste ambiente, de total divórcio entre o direito público e o
privado, de constitucionalismo insulado, que surge o positivismo legalista – identificado com
a escola da exegese –, cuja metodologia era formalista.
A pretexto de defender o Código Napoleônico, a escola da exegese
procurou reduzir o papel do intérprete na obtenção do direito. O formalismo jurídico,
contemporâneo ao legicentrismo, possui duas teses centrais, quais sejam, “o direito é um
sistema fechado do qual se pode deduzir soluções para todos os casos individuais”, e a
segunda, “a atividade do órgão encarregado de aplicar o direito consiste unicamente em
decobrir a regra geral que revolve o caso concreto apresentado; todo material necessário

9
Gustavo Tepedino, “Premissas metodológicas para a constitucionalização do Direito Civil”. In: Temas de
direito civil, 2004, p. 2.
10
Cf. Paulo Nader, Introdução ao estudo do direito, 2001, p. 209.
11
Curiosamente, no direito inglês prevaleceu compreensão diversa, pois entendeu-se que a igualdade de regimes
seria resultado direto da aplicação do rule of law. David Stott, Alexandra Felix, Principles of administrative law,
1997, p. 345: “For Dicey, the fact that public bodies were liable in civil actions in the same way as any private
individual was a fundamental tenet of the rule of law. One aspect of this theory is that no one is above the law;
that is, that the law applies equally, regardless of wheter actions are brought against the government or an
individual”.
12
V., a propósito, Caio Tácito, “Evolução histórica do direito administrativo”. In: Temas de direito público, v. 1,
1997.

4
para a solução do caso está dado pelo próprio ordenamento jurídico”13. Em síntese, seus
postulados são a completude do ordenamento jurídico e neutralidade do intérprete, que não
opera atividade criativa ao aplicar o direito, mas realiza simples subsunção14. Neste sistema, o
intérprete é meramente a boca da lei.
Por outro lado, o constitucionalismo europeu, como já bastante
difundido15, inicialmente conferiu à Constituição um papel secundário, de norma-política,
cujo único escopo era organizar o Estado e as relações entre os poderes estatais. Não havia
qualquer interação entre constitucionalismo e cidadania. O cotidiano dos indivíduos –
personalidade, bens, família, sucessão – deveria ser tratado pelo Código Civil; as relações
comerciais eram objeto do Código Comercial. É verdade que o direito constitucional norte-
americano, desde o primeiro momento, teve sorte diversa, e que também exerceu forte
influência na construção do direito público brasileiro, especialmente após a proclamação da
República. Mas esta (boa) influência foi mitigada por dois aspectos.
Em primeiro lugar, o direito administrativo brasileiro sempre teve sua
matriz na França e na Alemanha, i.e., no direito continental Europeu. As categorias oriundas
do Conselho de Estado, como a noção de mérito administrativo, poder de polícia e o princípio
da supremacia do interesse público sobre o particular atendiam à lógica da autoridade, criando
espaços completamente insulados do direito16. A existência na Europa de um contencioso
administrativo, distinto das vias judiciais ordinárias, colaborou em tais construções jurídicas,
as quais restaram importadas de maneira acrítica. Diferentemente, no direito anglo-saxão o
Estado se submetia à common law, de modo que não havia um direito especial – e
privilegiado – para regular suas relações com os particulares. Some-se a isso a doutrina dos
atos políticos e as chamadas razões de Estado, e conclui-se que não havia meios de se tomar a
sério a experiência norte-americana no Brasil, ainda que mimetizado o modelo institucional.
Em segundo lugar, e este é um problema crônico de um país ainda à
procura da maturidade política, era a constância com que as soluções para as crises políticas

13
Noel Struchiner, Direito e linguagem, 2002, p. 130.
14
Tratava-se aqui de defender o direito revolucionário dos juízes, os quais ainda eram vistos com desconfiança
em razão de sua vinculação ao antigo regime. V. Margarida Maria Lacombe Camargo, Hermenêutica e
argumentação, 2003, p. 66.
15
Eduardo García de Enterría, “La constitución española de 1978 como pacto social y como norma jurídica”,
Revista de Direito do Estado 1:3-23, 2006, p. 10.
16
Gustavo Binenbojm, Uma teoria de direito administrativo, 2007, p. 11: “O surgimento do direito
administrativo, e de suas categorias jurídicas peculiares (supremacia do interesse público, prerrogativas da
Administração, discricionariedade, insindicabilidade do mérito administrativo, dentre outras), representou antes
uma forma de reprodução e sobrevivência das práticas administrativas do Antigo Regima que a sua superação. A
juridicização embrionária da Administração Pública não logrou subordiná-la ao direito; ao revés, serviu-lhe
apenas de revestimento e aparato retórico para sua perpetuação fora da esfera de controle dos cidadãos”.

5
eram encontradas contra o sistema jurídico. O cumprimento do texto constitucional era objeto
de barganha que se realizava sem nenhum tipo de pudor. Naquele tempo não existia uma
cultura de respeito às instituições, de modo que ficava severamente prejudicado qualquer
projeto de limitação do poder político por meio do Direito, já que esta barreira era
constantemente rompida e ignorada17. Este ciclo de atraso foi superado com a Constituição
Federal de 1988, sobre a qual se falará mais detidamente.
Por seu turno, o positivismo (de modo geral) foi o projeto de criação
de uma teoria do direito asséptica, isto é, livre de qualquer conotação moral ou ética.
Inspirado no método científico de Augusto Comte (positivismo científico), Hans Kelsen
escreveu sua teoria pura do direito, onde procurou criar uma teoria do direito que desse conta
do fenômeno jurídico em todas as suas manifestações culturais, dando origem ao chamado
positivismo normativista. O atributo central do direito, na visão kelseniana, é a coercibilidade
da norma, a qual deveria ser editada de acordo com uma norma fundamental de caráter
hipotético, que fundamenta o sistema jurídico como um todo, e do qual se deduz a validade
das normas inferiores. Considerações extrajurídicas ficavam de fora da ciência do direito18.
O modelo jurídico kelseniano, mais sofisticado do que aquele
sustentado pela escola da exegese, foi recepcionado com grande sucesso nos países de
tradição romano-germânica. Sua superioridade permaneceu inconteste também até o fim da
segunda guerra, quando se iniciou o processo de retorno aos valores e a reconstitucionalização
dos Estados europeus. O marco histórico para a derrocada do positivismo normativista, o qual
também gravitava em torno da figura da lei, enquanto teoria do direito prevalecente ocorreu,
portanto, nas décadas de 50 e 60 do século XX. O legicentrismo deu lugar ao
constitucionalismo. O legislador perdeu sua aura de superioridade, de legítimo representante
da vontade popular, cedendo lugar à Constituição e seus princípios abstratos, sintetizadores de
aspirações mais ambiciosas das diversas nações. O ponto ainda será objeto de estudo mais
detido, já que a derrocada da lei enquanto epicentro do sistema jurídico implica também o
declínio do princípio da legalidade.
O constitucionalismo nos países europeus teve papel meramente
coadjuvante até o fim da segunda guerra mundial, quando os Estados recém-saídos das
guerras iniciaram a criação de novas constituições voltadas à contenção da barbárie, antes
permitida e até legitimada pela lei. A instalação de diversas Cortes Constitucionais, nos

17
Sem embargo, as sucessivas Constituições brasileiras buscaram jurisdicizar o fato político, indo além dos
limites do próprio direito enquanto técnica. Neste sentido: Luís Roberto Barroso, O direito constitucional e a
efetividade de suas normas, 2002, p. 73.
18
V. Eduardo Ribeiro Moreira, Neoconstitucionalismo – a invasão da Constituição, 2008, pp. 44-45.

6
moldes da experiência austríaca, embalada pela doutrina de Hans Kelsen, teve por objetivo
assegurar a supremacia do texto constitucional, impedindo que as maiorias ocasionais
dominassem o processo político, em prejuizo às minorias. Como se sabe, o modelo de
controle de constitucionalidade kelseniano pressupõe a instalação de um Tribunal
Constitucional responsável por efetuar o controle concentrado de constitucionalidade das leis,
com poder de invalidar as decisões parlamentares que atentem contra o texto constitucional.
Em 1949, a Alemanha põe em funcionamento seu Tribunal
Constitucional, no que seria seguida por diversos países. Logo o Tribunal afirma a prevalência
dos direitos fundamentais no sistema jurídico, entendidos estes como uma ordem objetiva de
valores19. Inaugura-se uma nova fase na interpretação das constituições: muito mais do que
ser somente uma trincheira contra as maiorias ocasionais, estas passam a ter efeito irradiante
em todo o ordenamento jurídico, inspirando a releitura dos institutos antes insulados. É a
origem do que seria conhecido como constitucionalização do direito. Esta compreensão é
seguida pelas diversas cortes ao redor do mundo. O mesmo ocorreu no Brasil, mas em
momento posterior. É só com o advento da Constituição Federal de 1988 que o Brasil pode
afirmar ter superado esta fase inicial nas relações entre direito e a política, em que esta se
encontrava livre das amarras jurídicas. Portanto, o reconhecimento de que o Estado tem dever
não só de proteger os direitos fundamentais, como também de promovê-los, é uma conquista
desta nova visão do direito.
No campo da metodologia jurídica, especialmente após a obra de
Friedrich Müller20, alterou-se a compreensão do papel do intérprete na aplicação das normas
jurídicas. Com efeito, os positivistas entendiam que o intérprete não cria direito, apenas o
deduz do ordenamento jurídico por meio de um processo subsuntivo. Na premissa maior
figura a regra, na premissa menor os fatos e finalmente encontra-se a solução para o caso
concreto. Kelsen já reconhecia um certo espaço onde havia discricionariedade do intérprete21.
Segundo Karl Larenz22, a grande problemática do processo silogístico – base desta
compreensão do direito – está na obtenção das premissas, especialmente da premissa menor,
que pressupõe a avaliação valorativa sobre fatos da vida. Quanto à premissa maior, não
admite que possa ser retirada da lei em um processo autômato; pelo contrário, toda lei carece

19
Isto ocorreu através do famoso caso Lüth. O acórdão foi comentado por Daniel Sarmento, Direitos
fundamentais e relações privadas, 2004, pp. 141-143, inclusive com transcrição de trecho da decisão.
20
Friedrich Müller, Métodos de trabalho do direito constitucional, 2005, pp. 59-89.
21
Segundo Kelsen, o direito fornece ao aplicador apenas uma moldura, dentro da qual o intérprete poderá
selecionar a decisão que melhor atender ao seu senso de justiça. Cf. Teoria pura do direito, 2003, p. 388.
22
Metodologia da ciência do direito, 1997, pp. 379-387. Para outras críticas ao processo subsuntivo, v. Manual
Atienza, Cuestiones judiciales, 2001, pp. 9-23.

7
de interpretação, e nem toda proposição jurídica está contida na lei. Para o autor, nos casos em
que se coordena um fenômeno da vida a uma pauta carecida de preenchimento (como ocorre,
v.g., ao se afirmar que alguém agiu ou não de boa-fé) não ocorre subsunção, mas sim
coordenação valorativa.

Portanto, percebeu-se que mesmo na obtenção das premissas há


participação ativa do intérprete. Por outro lado, o reconhecimento do pluralismo político
enquanto importante valor nas democracias resultou na adoção de constituições
compromissórias, fartas em normas principiológicas contraditórias. Os choques normativos
não poderiam ser solucionados pela aplicação da técnica subsuntiva, e tampouco com recurso
aos critérios tradicionais de solução de antinomias no direito. Assim, a subsunção, típica
forma de aplicação do direito formalista, deu lugar à técnica da ponderação. A ponderação de
interesses e seu caráter fortemente subjetivo derrubou definitivamente o mito da neutralidade
do intérprete. Tudo isso, diga-se, veio acompanhado de um retorno aos valores, ou seja, a
retomada da preocupação com a ética e a moral no interior do direito positivo, antes excluídas
pela doutrina de Hans Kelsen.
Pois bem. A síntese destas modificações na compreensão do sistema
jurídico foi realizada por Luís Roberto Barroso23, segundo quem o pós-positivismo é um
rótulo provisório para um ideário ainda difuso, que consiste basicamente no reconhecimento,
no âmbito metodológico: (i) da força normativa dos princípios jurídicos; (ii) da técnica da
ponderação de interesses como mecanismo de obtenção de decisões judiciais; (iii) do papel
criativo do juiz; (iv) da mudança no papel da norma, do intérprete e do problema.
Portanto, objetivamente, a lei deixou de ser a grande vedete do
ordenamento jurídico, cedendo espaço para a Constituição, que assumiu definitivamente
caráter normativo; e o neoconstitucionalismo impôs a releitura dos ramos jurídicos, dentre
eles o direito administrativo, o qual deve se conformar aos princípios e regras estabelecidos
no texto constitucional, dentro do qual prevalecem os direitos fundamentais. No plano
metodológico, o intérprete – juiz ou administrador – teve reconhecida a sua (inevitável)
participação ativa no processo de concretização da norma, mormente nos casos em que há

23
Luís Roberto Barroso, “O começo da história. A nova interpretação constitucional e o papel dos princípios no
direito brasileiro”. In:Temas de direito constitucional, v. III, 2005, pp. 12-13: “O pós-positivismo é a designação
provisória e genérica de um ideário difuso, no qual se incluem a definição das relações entre valores, princípios e
regras, aspectos da chamada nova hermenêutica constitucional, e a teoria dos direitos fundamentais, edificada
sobre o fundamento da dignidade humana”.

8
necessidade de ponderação, mecanismo de solução de conflitos normativos entre princípios24.
O direito público oitocentista, em especial o princípio da legalidade, não poderia restar
inabalado ante tantas mudanças. É a este confronto que se dedica o próximo tópico.

III. A crise do princípio da legalidade

O princípio da legalidade é a primeira decorrência lógica do Estado de


25
Direito . A um só tempo atende aos dois valores centrais dos sistemas jurídicos: justiça e
segurança jurídica. A lei veicula justiça, pois permite que os cidadãos sejam tratados como
iguais, estipulando obrigações gerais e abstratas, válidas para todos os que estejam na mesma
situação. Além disso, o arbítrio só poderá ser contido se o Estado se vincular às normas de
conduta que produz. A separação de poderes impôs ao Estado-administração que se
subordinasse à vontade popular, encarnada na figura do Parlamento, o que deu origem ao
princípio da legalidade administrativa26. Este, portanto, é o conteúdo básico do princípio,
largamente anunciado nos manuais de direito constitucional e administrativo: os particulares
estão proibidos de fazer aquilo que a lei lhes vedar; a Administração Pública só pode agir
quando houver autorização legal. Respectivamente, vinculação negativa e vinculação positiva
à lei27.
O papel fundamental do princípio da legalidade é garantístico28. Ele
impede que os indivíduos sejam surpreendidos com ações estatais que não foram autorizadas
e/ou com exigências que não eram previamente conhecidas ou estipuladas. Como se afirmou,
seu objetivo é impedir o arbítrio por parte do administrador público. Daí porque somente se
admite que aja quando a lei o autorizar. É de conhecimento comum que mesmo atos
administrativos emitidos no exercício de competência discricionária serão sempre vinculados
quanto à finalidade, i.e., jamais poderão almejar objetivo distinto daquele previsto na lei.

24
Para uma definição do termo ponderação, v. Ana Paula de Barcellos, Ponderação, racionalidade e atividade
jurisdicional, 2005, p. 23: “Ponderação (também chamada, por influência da doutrina norte-americana, de
balancing) será entendida neste estudo como a técnica jurídica de solução de conflitos normativos que envolvem
valores ou opções políticas em tensão, insuperáveis pelas formas hermenêuticas tradicionais”.
25
Karl Larenz, Derecho justo, 1991, p. 156.
26
Patrícia Baptista, Transformações do direito administrativo, 2003, p. 96.
27
Celso Antônio Bandeira de Mello, Curso de direito administrativo, 2007, p. 98: “Michel Stassinopoulos, em
fórmula sintética e feliz, esclarece que, além de não poder atuar contra legem ou praeter legem, a Administração
só pode agir secundum legem. Aliás, no mesmo sentido é a observação de Alessi, ao averbar que a função
administrativa se subordina à legislativa não apenas porque a lei pode estabelecer proibições e vedações à
Administração, mas também porque esta só pode fazer aquilo que a lei antecipadamente autoriza. Afonso
Rodrigues Queiro afirma que a Administração ‘é a longa manus do legislador’ e que ‘a atividade administratvia
é atividade de subsunção dos fatos da vida real às categorias legais’”.
28
Alexandre Santos de Aragão, “A Concepção Pós-positivista do Princípio da Legalidade”, Revista de Direito
Administrativo 236:08, 2005

9
Portanto, legalidade é garantia de que, em última instância, são os próprios cidadãos que
definirão como a Administração Pública irá agir no trato com a sociedade.
Porém a legalidade encontra-se debaixo de fogo29. Historicamente, a
lei começa a perder sua majestade em meados do século XX, quando é utilizada a serviço dos
projetos totalitários, dentre os quais sobressaem o nazismo e o fascismo. A crença na assepsia
do direito e na obediência cega à lei fez com que os carrascos nazistas alegassem estrito
cumprimento do dever legal ao serem julgados por seus crimes de guerra. Portanto, este é o
marco temporal da falência da lei: perde-se a mística em torna do ato parlamentar,
consubstanciada na velha crença de que a lei era veículo da razão, tal como pensado por
Rousseau e Montesquieu.
De outro lado, o Estado-providência fez surgir a necessidade de
edição de dezenas de leis de intervenção da economia, provocando um fenômeno que seria
conhecido por inflação legislativa. Com a ampliação de suas tarefas, o Estado se avoluma, e a
idéia positivista de vinculação positiva à lei fará com que o legislador tente acompanhar estas
necessidades. Aliás, a pressão por habilitação legal levará ao fenômeno da delegação
legislativa, ou seja, a transferência de competências legislativas para o âmbito interno da
Administração Pública. Enfim, a Administração passa a emitir preceitos normativos em
caráter primário, vinculando diretamente os indivíduos.
Os parlamentos modernos assistem, ainda, ao declínio de sua
capacidade normativa, não só pela ascensão do constitucionalismo – mudança de paradigma
sobre a qual já se falou – mas também pelo crescimento da participação do executivo na
propositura de projetos de lei e na edição de atos com força de lei. A Constituição Federal de
1988 é farta na estipulação de matérias com iniciativas reservadas, de modo que o exercício
da discricionariedade legislativa encontra-se bastante tolhido. Não bastasse isso, dita
Constituição manteve o poder de legislar anômalo na Presidência, antes possível através da
figura do decreto-lei, e agora pelas medidas provisórias. Em conseqüência, é de conhecimento
comum que a Presidência da República edita medidas provisórias de maneira febril, bem
como condiciona a agenda do legislativo a sua própria pauta de interesses.
Enfim, tecnocracia, orgia legiferante, deslegalização, supremacia do
executivo, constitucionalização do direito, tudo isso cooperou para a decadência da lei.
Acrescente-se, ainda, a constatação do papel criativo do intérprete, e a utilização da técnica

29
Para duas apreciações profundas que seviram de fonte sobre o tema, v. Gustavo Binenbojm, Uma teoria de
direito administrativo, 2007, pp. 125 e ss. e Patrícia Baptista, “Transformações do direito administrativo”, pp. 98
e ss.

10
dos conceitos jurídicos indeterminados, os quais importam, por via de conseqüência, no
reconhecimento de que a prática administrativa supera a mera legalidade estrita. Constata-se,
de maneira solene, que o Estado que serviu de inspiração para as primeiras reflexões liberais
já não existe mais – e há muito tempo. A lei – veículo da razão e da vontade geral, mecanismo
de justiça e garantia – já não se presta aos mesmos fins. Emerge daí a necessidade de
readequar estes antigos conceitos às necessidades do Estado moderno. É o que se propõe no
tópico seguinte.

IV. A proposta de superação: a constitucionalização da administração pública através do


princípio da juridicidade.

Na primeira parte deste trabalho, procurou-se fornecer ao leitor uma


descrição do ápice e decadência do princípio da legalidade, importante viga do direito público
contemporâneo. A solução provisória, ora proposta, está na substituição do fundamento da
atividade administrativa pelos próprios princípios e regras inseridos no texto constitucional,
especialmente os que cuidam de direitos fundamentais. Permitir que a Administração Pública
paute sua atividade pela normatividade constitucional pode atuar como mecanismo de redução
do déficit de operatividade do princípio mencionado. E isto acontece através do chamado
princípio da juridicidade. Dito princípio, também chamado de princípio da
constitucionalidade (em contraposição à legalidade, muito embora jamais se negue a
vinculação do Estado ao direito como um todo), confere à Administração Pública, como
parâmetro de atuação, não apenas a lei, mas também a própria Constituição, subvertendo o
conhecimento convencional sobre o tema, enunciado no tópico anterior.
O fundamento do princípio da juridicidade pode ser extraído, sem
maiores dificuldades, de dois outros princípios constitucionais, a saber: o princípio da
supremacia da constituição30, o qual impõe a diferenciação hierárquica entre os princípios e
regras de índole constitucional e os que não estão nesta categoria. Assim, havendo choque
entre eles, deve prevalecer o texto constitucional. A supremacia constitucional também obriga
que, na interpretação das normas que lhe sejam hierarquicamente inferiores, seja considerado

30
Luís Roberto Barroso, Interpretação e aplicação da Constituição, 2003, p. 161: “Toda interpretação
constitucional se assenta no pressuposto da superioridade jurídica da Constituição sobre os demais atos
normativos no âmbito do Estado. Por força da supremacia constitucional, nenhum ato jurídico, nenhuma
manifestação de vontade pode subsistir validamente se for incompatível com a Lei Fundamental”.

11
o conteúdo da Constituição. E também o princípio da efetividade da constituição31, que exige
a concretização do texto constitucional, ou seja, a sua realização no mundo dos fatos.
Conjugadas, supremacia e efetividade, impõem ao legislador, ao magistrado e ao
administrador que observem e concretizem o texto constitucional no exercício de suas
funções. O princípio da juridicidade é resultado lógico desta imposição.
A primeira vantagem resultante da adoção do princípio da juridicidade
cuida-se exatamente de se poder pautar a ação administrativa por um critério jurídico
efetivo, e não meramente fantasioso. A subsunção da atividade administrativa em toda a sua
extensão à lei simplesmente não ocorre no mundo dos fatos, como reclama o princípio da
legalidade. E isto não apenas porque toda interpretação é forçosamente criativa, tal como visto
no tópico II, mas também porque as demandas que recaem sobre o Estado contemporâneo
estão muito além da capacidade normativa do legislador ordinário. Portanto, a escolha que se
impõe ao administrador público é esta: negar pretensões (e deixar de lado toda a exigência
social, de fundamento constitucional) ou realizar atividade para além da legalidade. Em se
optando pela segunda via, o novo fundamento de legitimidade da Administração Pública terá
de ser a Constituição. Evidentemente, o princípio da legalidade não deve ser simplesmente
ultrapassado, já que a lei segue como importante instrumento de controle administrativo, mas
o reconhecimento da sua incapacidade impõe sua imediata releitura. A legalidade pura e
simples, como enunciada nos manuais de direito administrativo, retrata conceito jurídico
oitocentista, que já não serve mais.
Em segundo lugar, uma outra vantagem decorrente da adoção do
princípio da juridicidade consiste no fornecimento de um novo parâmetro de legitimidade
material para a Administração Pública, que poderá ser aplicado em conjunto com os
parâmetros procedimentais32. Isto porque a excessiva procedimentalização do direito pode dar
margem a soluções ad hoc, não-sistemáticas e potencialmente não-isonômicas, uma vez que
os órgãos administrativos e judiciais não estão obrigados a manter a coerência entre decisões
passadas e futuras, o que não ocorre nos países da common law. A delegação legislativa aos
órgãos administrativos não deve ser feita sem um critério capaz de possibilitar o conteúdo das
decisões, i.e., sem a presença de standards. A Constituição Federal, portanto, pode exercer a

31
Luís Roberto Barroso, Interpretação e aplicação da Constituição, 2003, p. 248: “A efetividade significa,
portanto, a realização do Direito, o desempenho concreto de sua função social. Ela representa a materialização,
no mundo dos fatos, dos preceitos legais e simboliza a aproximação, tão íntima quanto possível, entre o dever-
ser normativo e o ser da realidade social”.
32
A procedimentalização do direito administrativo, como forma de legitimação de sua atividade, vem sendo
defendida com base na obra de Nicklas Luhmann, Legitimação pelo procedimento, 1980. Para o ponto, v.
Patrícia Baptista, Transformações do direito administrativo, 2003.

12
necessária junção entre participação e controle de conteúdo, conferindo legitimidade e justiça
às decisões administrativas.
Pois bem. Enunciando de maneira singela e direta, o princípio da
juridicidade permite que a Administração Pública: (i) negue vigência à lei inconstitucional, já
que toda aplicação do direito envolve, como pressuposto lógico, um juízo de compatibilidade
entre a norma produzida e o texto constitucional. Daí se dizer que toda interpretação é
interpretação conforme a Constituição. Em outras palavras, dito princípio admite atividade
administrativa contra legem, desde que fundada em norma constitucional; (ii) exerça
atividades praeter legem, i.e., onde não houver lei permissiva, mediante vinculação direta ao
texto constitucional; (iii) utilize os métodos e técnicas específicos da interpretação
constitucional, tais como a ponderação de interesses e a interpretação conforme à
Constituição, para a resolução de problemas administrativos; e (iv) assuma definitivamente
seu compromisso com a efetividade dos direitos fundamentais, na esteira do
neoconstitucionalismo, mesmo nos casos em que o exercício deles seja obstado pela mora
legislativa inconstitucional. Cabe analisar cada uma destas propostas.
A primeira, e mais antiga, manifestação do princípio da juridicidade,
segundo entendemos, deu-se com o reconhecimento da possibilidade de a Administração
Pública negar execução às leis que reputar inconstitucionais33. Tal capacidade já era
reconhecida sob os regimes constitucionais anteriores ao de 1988, por força da supremacia
constitucional, na qual os Governadores e prefeitos não tinham legitimidade ativa para a
proposição de ação direta de inconstitucionalidade (ADIn) no Supremo Tribunal Federal, o
que justificaria este poder. Na impossibilidade de deflagrar o controle abstrato de
constitucionalidade, reconhecia-se a possibilidade do titular da cúpula do poder executivo
negar vigência à lei nula. Veja-se que tal situação não se confundia com a declaração de
inconstitucionalidade com eficácia erga omnes e efeito vinculante, já que tal atividade é
privativa do Poder Judiciário.
Permanece certa controvérsia, ante a inexistência de expressa
manifestação jurisprudencial, a respeito da possibilidade de se exercer tal prerrogativa sob a
égide da Constituição Federal de 1988. Isto porque o novo texto conferiu aos Governadores
de Estado e ao Presidente da República a legitimidade para a propositura da ação direta de
inconstitucionalidade, com possibilidade de obtenção de liminar. Contudo, há argumentos em

33
Regra geral, os doutrinadores e a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal sustentavam tal posição com
base no princípio da supremacia da Constituição (do qual é corolário lógico o princípio da juricidade) e a idéia
de que a lei inconstitucional é nula. Para um sumário de fontes e defesa consistente da tese, v. Gustavo
Binembojm, A nova jurisdição constitucional brasileira, 2004, p. 232 e ss..

13
favor da manutenção do entendimento passado. Primeiro, as duas atividades não se
confundem. Negar aplicação à lei inconstitucional não tem o condão de retirá-la do
ordenamento jurídico, de modo que a propositura de ação direta junto ao Poder Judiciário
pode se fazer necessária. Segundo, a atribuição de tal poder se deve à adoção da teoria da
nulidade das leis inconstitucionais, é dizer: a norma inconstitucional não é apta à produção de
efeitos. De todo modo, a adoção do princípio da juridicidade, com base na supremacia
constitucional, da qual é decorrência, parece vedar solução diversa. Constatada a
incompatibilidade, material ou formal, da lei com a Constituição, deve a Administração
Pública, através de manifestação expressa e fundamentada34 do titular do órgão de cúpula,
negar-lhe eficácia.
Em segundo lugar, a juridicidade permite que a Administração Pública
exerça atividades onde não houver lei, bastando vincular-se ao texto constitucional. Neste
ponto há evidente superação da doutrina clássica acerca do princípio da legalidade, entendido
como vinculação positiva à lei. Com efeito, a Constituição Federal de 1988 é rica em normas
programáticas e em competências materiais-administrativas, tornando praticamente
impossível que o legislador seja capaz de acompanhar todas as demandas por prestações
estatais potencialmente exigíveis com base no texto da Constituição. Exemplo disso são as
demandas recentes por prestações de saúde pública, fundamentadas diretamente no art. 196 da
Constituição Federal35.
Uma observação se faz importante neste ponto. O princípio da
juridicidade encontra limite onde a Constituição expressamente impôs reservas de lei. Onde o
constituinte exigiu lei formal, não pode o administrador simplesmente imiscuir-se neste
campo. Portanto, a Administração Pública não pode superar a reserva legal em matéria
tributária (art. 150, I, CF88), orçamentária (art. 165, III, CF88) e penal (art. 5º., XXXIV,
CF88) sem violar literalmente a Constituição. A relação entre reservas de lei e direitos
fundamentais merece uma nota à parte, a ser empreendida ainda neste tópico, mas em
momento posterior.
Uma terceira eficácia do princípio da juridicidade consiste na
autorização para que o administrador público utilize os métodos e técnicas específicos da

34
O dever de motivação aqui encontra especial importância, já que negar vigência à lei regularmente aprovada
pelo legislativo é atividade que deve estar atrelada a fortes razões jurídicas, e não pode se transmudar em uma
competência política discricionária do administrador público.
35
Veja-se, a propósito do tema, Marcos Maselli Gouvêa. “O direito ao fornecimento estatal de medicamentos”.
In: Emerson Garcia. A efetividade dos direitos sociais, 2004, p. 199; e Luís Roberto Barroso, “Da falta de
efetividade à judicialização excessiva: Direito à saúde, fornecimento gratuito de medicamentos e parâmetros
para a atuação judicial”, mimeo., 2008.

14
interpretação constitucional para a resolução de questões concretas. Isto ocorre, e.g., nos
casos em que a nulidade do ato administrativo não é declarada em razão de considerações de
segurança jurídica. Situação semelhante pode ser verificada nos casos em que, por iniciativa
da Administração Pública, são reconhecidos direitos decorrrentes de uniões homoafetivas, e
aqui a problemática é ainda mais sutil. A legislação infraconstitucional prevê expressamente
que a união estável é entre homem e mulher, repetindo o texto constitucional. Por uma
delicada ponderação de princípios e considerações morais, é possível chegar à conclusão de
que as uniões homoafetivas merecem igual respeito e consideração por parte do Estado, sendo
forçoso que este deve conferir efeitos jurídicos a tais relações familiares36. Deste modo, após
este processo, e contra muitas decisões judiciais, pode a Administração Pública reconhecer
benefícios em favor dos companheiros, como tem feito em alguns casos concretos37.
Em quarto lugar, mas não menos importante, o princípio da
juridicidade expressa o compromisso último da Administração Pública com a plena
efetividade dos direitos fundamentais. O retorno aos valores ocorrido após as grandes guerras
significou um compromisso do direito positivo com a concretização dos direitos
fundamentais, os quais figuram no ápice da tábua axiológica instaurada pela Constituição
Federal de 1988. E a Administração Pública tem papel relevante na adjudicação dos direitos
fundamentais. No que concerne aos direitos dependentes de políticas públicas – ditos
positivos ou prestacionais38 –, estes serão fruídos de acordo com as possibilidades fáticas e as
decisões administrativas em larga medida discricionárias, segundo preconiza o conhecimento
convencional. E caso se entenda que ditas políticas estão compreendidas na chamada reserva
de administração, então é indubitável que o Estado-administrador tem função relevante no
que concerne aos direitos fundamentais.
Há mais, contudo. Haverá ocasiões em que os direitos não poderão ser
fruídos por total ausência de lei, e neste caso a doutrina tradicional presta um desserviço à
efetividade constitucional. Desta maneira, a proposta se expande para um objetivo mais
elevado: a Administração Pública pode (e deve) atuar de maneira a concretizar tais direitos
fundamentais, mesmo nos casos em que dependente de lei por expressa disposição

36
A esta conclusão chegou Gustavo Tepedino em parecer proferido no âmbito do Instituto de Direito Civil, em
atenção à consulta efetuada pelo Procurador Regional da República Dr. Daniel Sarmento, mimeo., s.d.
37
Nada impede que, objetivando maior segurança jurídica em sua decisão, o ente administrativo procure o
reconhecimento judicial do direito. É o que fez o Estado do Rio de Janeiro, na recém-ajuizada Argüição de
Descumprimento de Preceito Fundamental nº. 132, que provavelmente será um leading case na matéria.
38
Não se desconhece a obra de Cass Sunstein e Stephen Holmes, entre nós divulgada por Flávio Galdino, a
respeito do custo dos direitos. Porém, se todo direito tem o custo (do que não se duvida), parece-nos que alguns
deles demandarão mais do erário público. É a estes que o rótulo se destina.

15
constitucional. Essa é a idéia de adjudicação administrativa de direitos fundamentais que se
defende neste ponto.
Como visto acima, o princípio da juridicidade abre a possibilidade de
a Administração Pública extrair seu fundamento de agir diretamente do texto constitucional,
sem intermediação do legislador ordinário. Tal compreensão do fenômeno já supera o que
havia acerca do princípio da legalidade, mas ainda se pode ir além. Abrindo-se a possibilidade
de atividade praeter legem, as omissões legislativas inconstitucionais já podem ser superadas
pela simples remissão ao texto constitucional39. Há casos, contudo, que a omissão legislativa
impede que a Administração conceda determinado direito fundamental, eis que esta esbarraria
em uma reserva de lei. A Constituição consagra inúmersa remissões à lei, as quais
pressupõem intenso trabalho legislativo, e nem sempre isso é possível. Algumas delas, é bem
verdade, têm feição nitidamente garantística (como as reservas tributária e penal), mas em
outros casos isto não ocorre.
Dois exemplos ajudarão a explicitar o que se vem de afirmar, um mais
singelo e outro mais complexo. O art. 37, VII, da Constituição garante aos servidores públicos
civis o direito de greve, reconhecidamente um direito fundamental social (também dito de
segunda geração), mas o condiciona à disciplina legal. Durante muitos anos, em razão do
natural impasse político gerado por uma categoria de tal importância para o país, os projetos
de lei regulando o direito de greve dos servidores sequer tramitaram no Congresso Nacional.
Foram impetrados diversos mandados de injunção e ação direta de inconstitucionalidade por
omissão, ocasiões em que o Supremo Tribunal Federal declarou a omissão inconstitucional,
notificou o Congresso Nacional a respeito de sua mora, o que em nada alterou a situação
jurídica, até decisão recente40. Em contrapartida, o mundo dos fatos não espera o direito: não
há brasileiro que não tenha ciência das muitas greves de servidores desde a promulgação da
Constituição de 1988 até a presente data.
Diante da situação de expressa declaração de inconstitucionalidade
por omissão do Poder Legislativo, a primeira solução em que se poderia pensar consiste na
impossibilidade fática de qualquer greve no serviço público. É a solução que o direito dá, sob

39
Alguém poderá dizer que o método defendido no texto acaba por esvaziar, por exemplo, o mandado de
injunção. Não procede tal argumentação. Isto porque a regra é que a Administração se recuse a adjudicar
determinado direito constitucional por ausência de regra legal. Para estes casos, a ação judicial será útil. Além
disso, nem sempre será possível tal injunção pela via administrativa. O ponto será abordado com mais
profundidade no correr do texto.
40
A mudança ocorreu no julgamento do MI 670/ES, Rel. Min. Maurício Corrêa, Rel. para acórdão Min. Gilmar
Mendes, em que o Supremo Tribunal Federal determinou a aplicação das regras da CLT enquanto perdurar a
mora do Congresso Nacional, de toda sorte já reconhecida desde 1994, por ocasião do julgamento do MI 20/DF,
Rel. Min. Celso de Mello.

16
pena de inconstitucionalidade por violação à reserva legal. Em outras palavras, cuida-se da
declaração de total inefetividade de dito direito social. Ocorre que há diversas decisões
judiciais que determinam o não-desconto dos salários dos grevistas. Parece razoável que os
vencimentos dos servidores, que possuem caráter alimentar, não devem ser totalmente
suprimidos, a despeito da ausência do trabalho, pois esta foi motivada pelo exercício de um
direito constitucional fundamental, ainda que ineficaz do ponto de vista jurídico. Portanto,
nestes casos, a solução que se advoga é a possibilidade de a Administração, por ato próprio,
reconhecer o direito e não efetuar o corte integral de vencimentos, inclusive aplicando
analogicamente o regime da Lei nº. 7.783/89.
Eis o segundo exemplo: o art. 40, §4º., da Constituição Federal de
1988 proíbe a discriminação na contagem de tempo de serviço, ressalvadas situações
especiais, definidas em lei complementar, as quais compreendem os portadores de deficiência,
os servidores que atuem em situações de risco (periculosidade) e os que tenham contato com
materiais que causem danos à saúde ou à integridade física (insalubridade). Tal lei
complementar ainda não existe para os servidores civis, de modo que a prática administrativa
tem sido denegar qualquer pretensão de aposentadoria fundada em tal regra, o mesmo valendo
para o Poder Judiciário, bastando aplicar o conhecimento convencional para fundamentar tal
indeferimento41.
Ora, os trabalhos insalubres e perigosos existem, não podem ser
simplesmente vedados por lei, pois há claro interesse social em que sejam exercidos, mas nem
por isso todos os seus ônus devem recair sobre os indivíduos que os exercem. Deste modo, o
regime geral de previdência social estatui contagem especial de tempo para ditas categorias,
conforme previsto no art. 57 da Lei nº. 8.213/91. Porém o regime geral não se aplica aos
servidores com previdência própria. Diante de tal situação, o que deve o administrador
público fazer? Parece claro que dita situação viola outros direitos constitucionais de natureza
fundamental, dentre os quais o direito à integridade física e o princípio da isonomia, já que
outros trabalhadores, em idêntica situação, são tratados de forma diferenciada. Assim, mesmo

41
Por muitos, veja-se: STF, DJ 30.nov.2007, AI-ED 335979/SP, Rel. Min. Gilmar Mendes: "Embargos de
declaração em agravo de instrumento. 2. Militares do Estado de São Paulo. Lei Complementar nº. 432, de 1985.
Atividades insalubres. Vantagem funcional. Inativos e pensionistas. Inaplicabilidade do art. 40, § 4º., da CF/88.
Precedentes. 3. Embargos de declaração rejeitados". Tal como ocorreu com o direito de greve do servidor, o
Supremo Tribunal Federal também determinou a aplicação da Lei nº. 8.213/91 enquanto não for editada a lei
complementar em questão, cf. DJ 30.nov.2007, MI 721/DF, Rel. Min. Marco Aurélio: MANDADO DE
INJUNÇÃO - NATUREZA. (...). APOSENTADORIA - TRABALHO EM CONDIÇÕES ESPECIAIS -
PREJUÍZO À SAÚDE DO SERVIDOR - INEXISTÊNCIA DE LEI COMPLEMENTAR - ARTIGO 40, § 4º.,
DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. Inexistente a disciplina específica da aposentadoria especial do servidor,
impõe-se a adoção, via pronunciamento judicial, daquela própria aos trabalhadores em geral - artigo 57, § 1º., da
Lei nº. 8.213/91”.

17
na ausência da lei complementar, a Administração deve estender, também por decisão própria,
as vantagens previstas no RGPS, observada a proporcionalidade instituída após a EC 41/03.
De modo geral, defende-se que haverá casos em que a Administração
Pública estará autorizada a superar a reserva de lei: nas ocasiões em que a mora
inconstitucional do legislador for declarada pelo Poder Judiciário, sem que disto tenha
resultado qualquer modificação no status jurídico da questão após decurso de prazo razoável.
Na realidade, a solução aventada promove um choque de inconstitucionalidades: do
legislativo, em não editar a norma reclamada pelo texto constitucional; da administração, por
não respeitar a reserva legal. Entre duas inconstitucionalidades mutuamente excludentes, as
quais proporcionam ao intérprete uma escolha disjuntiva, parece claro que deve prevalecer
aquela que prestigia os direitos fundamentais e a concretização constitucional, a despeito de
superada certa exigência formal. Por outro lado, a reserva de lei formal jamais poderá ser
ultrapassada quando tiver feição garantística, isto é, vinculada ao valor segurança jurídica
(uma vez mais, nos casos penal, tributário, orçamentário, etc.).
A defesa do princípio da juridicidade parte do pressuposto de que é
inadmissível tornar o aplicador do direito refém de uma metodologia anacrônica, incapaz de
atender às necessidades para as quais deveria servir, ou de uma constitucionalização
deficiente, que consagra os direitos sem dar ao indivíduo os meios necessários ao seu
exercício. Em termos breves, estes são os fundamentos, as vantagens teóricas e as
modalidades de eficácia do princípio da juridicidade, o que não exclui a necessidade de um
estudo mais aprofundado sobre o tema.

VI. Proposições objetivas

1. Os princípios jurídicos do direito público moderno ganharam o espaço


público com a revolução francesa. Os teóricos daquele tempo, responsáveis pela pioneira
formulação teórica, voltaram-se especialmente contra o arbítrio concentrado nas mãos do
monarca, fruto do Estado absoluto. O princípio da legalidade, como primeira decorrência
lógica do Estado de Direito, impôs a autovinculação do Estado ao direito que produzia, que
também passou a ser fundamento para o seu agir, bem como salvaguardou os particulares
contra exigências caprichosas e destituídas de fundamento.
2. O Estado monárquico e absolutista, contudo, deixou de existir, tendo
sido substituído pelo Estado prestador de serviços públicos e artífice de transformações
sociais. O novo Estado surge com o new deal nos Estados Unidos, na década de 30 do século

18
XX, e consolida-se, no Brasil, com a edição da Constituição Federal de 1988, de feição
marcadamente dirigente. Ao lado destas modificações, ocorreram mudanças na metodologia
do direito e, em especial, no papel conferido ao direito público. Quanto à primeira, deixou-se
de lado o legicentrismo, i.e., a hermenêutica centrada na aplicação da lei, passando-se à
centralidade da Constituição. De outra banda, o neoconstitucionalismo impôs a prevalência
dos direitos fundamentais, e reconheceu, do ponto de vista metodológico, que não há
interpretação sem participação criativa do intérprete. Enfim, de todas estas mudanças, o
Estado recebeu a finalidade especial de conferir efetividade aos direitos fundamentais, que
agora ocupam espaço central no sistema jurídico.
3. O princípio da legalidade restou diretamente afetado em razão de todos
estes elementos. Historicamente, a lei perdeu sua majestade, pois legitimou as atrocidades
cometidas na segunda guerra mundial. Por outro lado, o agigantamento da função executiva
levou a fenômenos como a deslegalização e a invasão do executivo no processo de produção
de leis. O Estado multifacetado tem afetado o monopólio da criação normativa gerando, como
uma de suas conseqüências, a crise do princípio da legalidade. Reconhece-se que o
administrador, que também é intérprete do direito, assume papel decisivo na criação da norma
no caso concreto. Deste modo, o princípio da legalidade, calcado essencialmente na
subsunção da atividade administrativa à lei, já não fornece um relato adequado da realidade,
perdendo sua função garantística, e também não serve mais como ideal regulativo a ser
seguido.
4. Como solução para o déficit de operatividade do princípio da legalidade
propõe-se a emergência do princípio da juridicidade, a partir do qual a Administração Pública
encontra-se vinculada não apenas à lei, mas também – e especialmente – às regras e princípios
estabelecidos na Constituição, pondo em relevo os direitos fundamentais. Sendo assim, pode a
Administração negar vigência às leis inconstitucionais, bem como exercer atividade praeter
legem, onde puder buscar autorização no próprio texto constitucional. Além disso, faculta-se à
Administração Pública o uso da hermêneutica constitucional e, ainda, reconhece-se nela o
dever de efetivar os direitos fundamentais, mesmo nos casos em que sujeita a reservas legais,
desde que reconhecida a mora legislativa inconstitucional. Excetuando-se os casos em que as
reservas atendam o valor segurança jurídica, estando ligadas diretamente aos direitos
fundamentais.
5. O compromisso da Administração Pública com a efetividade dos
direitos fundamentais deve ir além da mera retórica. A aplicação cega de princípio de direito
público decalcado em outra época, voltados à solução de outros problemas, pode consistir em

19
denegação de justiça, em contraposição à clara opção feita pela constituinte de 1988. Cabe ao
jurista fornecer o instrumental teórico que seja capaz de atender a demanda por direitos sem
violar a metodologia jurídica e os avanços já alcançados.

20

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