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A DESBIBLIATIZAÇÃO DOS BÍBLIAS

Há algum tempo atrás, no Brasil, aqueles que professavam a fé hoje conhecida


como evangélica recebiam a alcunha de “Bíblias”. Conquanto, para alguns, o termo
citado tivesse uma conotação pejorativa, evidenciava a característica mais marcante dos
crentes: o estudo da Bíblia. Isto porque, a igreja de antanho via as Escrituras Sagradas
como única regra de fé e prática. Naquela época, até a experiência tinha de passar pelo
crivo da Palavra de Deus.
Atualmente, entretanto, o que contemplamos é a total inversão desses princípios.
Isto porque, agora a regra de outrora perdeu a primazia; quem ocupa o lugar de destaque
é a experiência, a qual reina soberana, inquestionável, constituindo-se na nova ortodoxia
evangélica, cujo objetivo principal é alcançar as benesses do tempo presente, e não o
gozo do porvir. Por conta disso, temos assistido uma completa deturpação do Evangelho
de Jesus Cristo, uma inversão dos princípios da reforma protestante, de modo que pode-
se dizer que o evangelicalismo contemporâneo baseia-se em cinco pontos totalmente
contrários aos princípios da reforma, quais sejam: 1º Só a palavra do homem (confissão
positiva); 2º Só a unção de objetos; 3º Só o ungido do Senhor (ditador intocável); 4º Só
os bens materiais; 5º Só ao ego glória. Infelizmente, isto não se limita às searas
pentecostais e neopentecostais. Também muitas igrejas históricas têm cedido ante a
pressão do capitalismo gospel e da magicização neopentecostal.
Sem dúvida, dois elementos alavancaram a proliferação desse ensino pernicioso,
a saber: a omissão dos líderes das igrejas históricas e a inclinação da religiosidade
popular à magia e à superstição. Porquanto, o silêncio daqueles que possuíam a doutrina
verdadeira deu espaço para a expansão das heresias que enchem a Igreja moderna.
Muitos pastores começaram a achar que uma abordagem frequente dos temas referentes
aos pilares da nossa fé não era apropriada à igreja moderna. Preferiram enveredar pelas
sendas da psicanálise e da psicologia, buscando atender as necessidades emocionais de
suas ovelhas, esquecendo-se das espirituais.
Outro ponto que viabilizou o avanço das doutrinas neopentecostais foi a
tendência moderna de rejeitar tudo que é tradicional, conservador. Isto somado à
insatisfação da juventude cristã com os costumes arcaicos observados em suas igrejas
desembocou numa busca incessante pelo novo. Contudo, esse “novo” passou a vir, em
grande parte, da experiência religiosa. Assim, as propostas religiosas menos
racionalizadas, cujo culto era caracterizado pelo extravasamento das emoções e pela
centralidade do indivíduo, e não de Deus, obtiveram destaque. O abandono do
compromisso institucional tornou mais fácil a adesão dos fiéis, que não eram mais
“obrigados” a exercer cargos ou dar satisfações de suas vidas aos líderes.
Diante do crescimento dos grupos neopentecostais e da estagnação das igrejas
históricas, muitos pastores decidiram abraçar aquilo que “dava certo” nas novas
“comunidades” de fé, ou seja, o que atraía as pessoas, permitindo, assim, que doutrinas
extra bíblicas adentrassem nossas searas sem nunca criticá-las. Esse entendimento
acerca do crescimento eclesiástico foi mais danoso do que benéfico, pois conferiu um
caráter cristão a doutrinas oriundas da religiosidade popular, impregnadas de
misticismo. Isto transformou os defensores da ortodoxia em hereges e a heresia em
ortodoxia.
Por isso, hoje em dia é necessário muito mais coragem para ensinar as doutrinas
que sempre defendemos e, consequentemente, criticar as doutrinas neopentecostais, do
que para pregar as heresias desse movimento, visto que são facilmente aceitas. Quem as
contraria é brutalmente atacado, apontado, inclusive, como ferramenta de Satanás.
Diante dessa imensa oposição, muitos pastores preferem, para não criar polêmica, nem
tocar no assunto, deixando a critério dos membros qual doutrina devem seguir,
argumentando que o mais importante é anunciarmos o Evangelho.
É óbvio que nossa prioridade é anunciar as boas novas, mas a questão por trás
disso é: será que, de fato, temos pregado o mesmo Evangelho de Jesus Cristo? Será que
Jesus ensinou a profetizar sobre a vida dos outros, a ungir objetos, e colocar a
experiência acima da Escritura? Isso não é Evangelho. Parece mais um Kakoangelho
(do grego Kakós = mau, maligno; Angelía = mensagem, notícia), uma má notícia. Isto é,
uma doutrina que provoca medo de palavras, objetos e símbolos, aprisionando, e não
libertando o indivíduo. Um ensino que concita as pessoas a encaixarem suas vivências
no texto bíblico, esquecendo que devemos fazer justamente o contrário, pois a Palavra
de Deus é “lâmpada para os nossos pés e luz para os nossos caminhos”. Por conta desse
Kakoangelho, a sã doutrina passou a ser vista como heresia. Aquilo que ao longo de
muitos séculos foi a pregação protestante, hoje é visto por aqueles que, teoricamente,
professam a mesma fé que nós, como absurdo.
A própria concepção de fé sofreu uma mudança radical. Atualmente, ter fé é
acreditar com muita convicção que algo vai acontecer. De acordo com os propagadores
dessa crença, basta querer que algo aconteça, pensar positivamente, além de falar e agir
como se já tivesse acontecido, que o desejo (normalmente, bens materiais) é atendido.
Esse benefício material recebido é geralmente chamado de bênção. Basicamente, é a
doutrina do pensamento positivo. Logo, conforme esse pensamento, falar que algo que
não aconteceu já aconteceu, ou seja, mentir, também é visto como ato de fé. Por isso,
vemos pessoas dizendo que não estão mais enfermos quando estão nitidamente doentes.
É a confissão positiva (ou mentira consoladora), que afirma que nossas palavras têm
poder. Lado a lado com essa heresia caminha a ideia de que objetos podem ser
revestidos de energia do bem (ungido) ou do mal (amaldiçoado). Nesse contexto, isto
também é visto como evidência de fé.
Crer que Deus pode ser manipulado por líderes religiosos, de modo que irá curar
quando eles determinarem, na perspectiva neopentecostal, também é uma manifestação
de fé, que é incentivada pelos cultos temáticos (culto de libertação, do descarrego, do
impossível, do milagre urgente), bem como pelas diversas campanhas que ocorrem
nesses locais.
Outra atitude de fé no imaginário neopentecostal é ver os líderes carismáticos
como homens sagrados e superpoderosos. Tudo o que eles tocam é abençoado. Por isso,
segui-los e fazer tudo o que mandarem é de suma importância para os fiéis, pois, do
contrário, a maldição virá sobre suas vidas. Daí brota os maiores absurdos, desde a
imitação dos trejeitos e da voz, até a utilização de seus objetos pessoais (lenços, toalhas,
etc).
Essa nova ortodoxia também apregoa que para ser cheio do Espírito Santo é
necessário saltitar, ficar se tremendo como se estivesse tomando um choque elétrico,
falar com voz tremida ou com um timbre teatral, além de cair no poder. Todavia,
quando olho para Jesus e seus apóstolos não vejo nenhuma dessas manifestações ou
crenças. Nunca vi um só texto que narrasse o Mestre ou um apóstolo tendo tremiliques e
afirmando que isso era evidência da presença do Espírito Santo. Será que eles não
tinham fé? Eles não possuíam carruagens nem mansões, eram açoitados, perseguidos.
Acho que eles tinham que fazer um cursinho de Batalha espiritual para aprender que não
se pode apenas expulsar um demônio, como fez Paulo em Atos 16.18. É necessário
amarrá-lo, aprender suas estratégias, identificar qual a sua área de atuação. Talvez Jesus
precisasse aprender com os adeptos da confissão positiva que não basta apenas pedir
(Mt 7.7), tem que profetizar. É possível que o escritor aos hebreus precisasse se
converter, visto que apresenta a fé como uma confiança, uma convicção que permanece
mesmo nas adversidades, uma certeza que torna alguém capaz de enfrentar as aflições
do mundo, mas não realiza desejos. É... acho que eles eram tradicionais demais, o que
na linguagem contemporânea é sinônimo de frio.
Você percebe o absurdo dessas doutrinas? Como são antibíblicas! Não entendo
como alguém em sã consciência pode abraçá-las! Precisamos, urgentemente, voltarmos
às Escrituras! Temos de deixar de lado a falácia neopentecostal e sermos “bíblias”
novamente. Cristo é plenamente suficiente, não precisamos de substitutos humanos. A
Palavra de Deus é o alimento que necessitamos. Portanto, abandonemos a subnutrição
espiritual proporcionada por essa teologia intoxicada e voltemos à sã doutrina!

Pr. Cremilson Meirelles

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