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FACULDADE DE LETRAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO INTERDISCIPLINAR EM
LINGUÍSTICA APLICADA
2015
O BOM LUGAR, O FUTURO CATASTRÓFICO, FICÇÃO CIENTÍFICA
E ALGUMAS DISTOPIAS BRASILEIRAS
Rio de Janeiro
Março de 2015
O BOM LUGAR, O FUTURO CATASTRÓFICO, FICÇÃO CIENTÍFICA
E ALGUNS DISTOPIAS BRASILEIRAS
Linguística Aplicada da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos
Aprovada por:
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Presidente, Prof.
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Prof.
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Prof.
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Prof.
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Prof.
Rio de Janeiro
Março de 2015
VIEIRA FERREIRA, Vítor
O bom lugar, o futuro catastrófico, Ficção Científica e
algumas distopias brasileiras / Vítor Vieira Ferreira. Rio de Janeiro:
UFRJ / Faculdade de Letras / Programa Interdisciplinar de Pós-
Graduação em Linguística Aplicada, 2015, 195 p.
Em primeiro lugar, e não poderia deixar de sê-lo, serei eternamente grato por todo o
esforço, cuidado, carinho e atenção dedicados a mim por minha mãe, a quem tudo,
absolutamente tudo, devo e cujo corpo já não se encontra mais presente entre nós, resultado de
uma longa batalha contra uma agressiva doença e que teve fim durante a realização deste
trabalho. Suas memórias e ensinamentos permanecerão em mim e seguramente em meus
descendentes por longas datas. Ich danke Dir, meiner Mutter.
Não poderia deixar de expressar também os meus mais sinceros agradecimentos àquele
que já nos primeiros anos de minha trajetória acadêmica acreditou em meu trabalho e dedicou
a mim especial atenção, não somente na esfera acadêmica e profissional, como, de modo ainda
mais especial, na esfera pessoal. Para além de um orientador, tenho o Professor Luiz Barros
Montez como um grande amigo e conselheiro. Agradeço-lhe ainda por ter refinado minhas
inclinações humanísticas com um direcionamento intelectual crítico que lhes fosse devidamente
apropriado – sem o que este trabalho não apresentaria o mesmo tom.
Agradeço pela companhia e dedicação de Raquel Garcia D’Avila ao longo de boa parte
deste trabalho. Cito também, de modo bastante especial, todos os anos de amizade com Flora
de Almeida, inseparável amiga desde os primeiros momentos da graduação, Jéssica Muniz pelo
apoio e Thiago Ferreira, ambos sempre próximos e disponíveis para qualquer problema,
especialmente após o falecimento de minha mãe.
Declaro também minha gratidão especial por minha tia Maria da Glória por todo o
carinho e atenção dedicados a mim e a minha mãe desde sempre, bem como por todo o apoio
que tenho e sempre tive de meus familiares.
São merecedores também de agradecimentos todos os amigos, colegas e conhecidos da
Faculdade de Letras da UFRJ, especialmente Kairon Santos, Virginia Granadeiro (e suas
traduções), Paula Vieira, Julio Henrique e outros com quem tive e tenho momentos agradáveis,
dentro e fora da universidade. Aos amigos do bairro com quem costumo aproveitar meu pouco
tempo livre, especialmente Diego (Recruta), aquele salve!
Devo dizer ainda que este trabalho teria se tornado muito mais árduo e não contaria com
boa parte de seus fundamentos, não fosse o espírito compartilhador de muitos anônimos no
ambiente virtual que me possibilitaram o acesso a um imenso acervo de leituras e fontes que,
de outro modo, permaneceriam indisponíveis. A todos estes, meus agradecimentos.
Por fim, agradeço ao CNPq pelo auxílio financeiro, com o qual me vi em possibilidades
de dedicar boa parte de meu tempo à realização deste trabalho.
A minha mãe Rosana Maria Vieira
(in memoriam)
[...] a esperança, este afeto expectante contrário à
angústia e ao medo, é a mais humana de todas as
emoções e acessível apenas a seres humanos. Ela
tem como referência, ao mesmo tempo, o horizonte
mais amplo e mais claro. Ela representa aquele
appetitus no ânimo que não só o sujeito tem, mas
no qual ele ainda consiste essencialmente, como
sujeito não plenificado
Ernst Bloch
RESUMO
ABSTRACT
The dystopic science fiction (SF) is a quite recent literary phenomenal and its consumption can
be perceived without difficulty here in Brazil as well in other countries. This type of literature
make us reflect about the future of the humanity in a world where the scientific and technologic
knowledge increase ever faster. Besides the reflections concerning our hopes and fears about
the coming times, science fiction works invite us to discover the genre's development through
the history, as well as the relationship it has established with the utopian texts and its tradition,
initiated with the publication of Thomas More's masterpiece “Utopia”. Without considering the
concept of utopia, one cannot understand the transition from the "good place" to the catastrophic
futures which keep being fictionally represented until nowadays. The present study is the result
of a research about the history of utopia, dystopia and SF. Its relationship with them is also
considered as well as a conceptual discussion about these subjects. Based on a theoretical
perspective which consider the literary text not only in terms of its aesthetic value but as a
special form of discourse, where the social, politics and cultural aspects play an effective role,
we present a critical discoursive analysis of André Carneiro's “A espingarda” (1966), H. P.
Flory's “Feliz Natal, 20 Bilhões!” (1989) and Ubiratan Peleteiro's “O trainee” (2010).
5.2. O Brasil pós-ditadura: Feliz Natal, 20 bilhões (1989) de H. V. Flory ..................... 138
Robôs que se rebelam contra os seres humanos que os criaram, paisagens naturais
representadas em tons de cinza e negro como efeito de uma catástrofe ambiental, grupos
corporativos em que uma superclasse de executivos cercados de seguranças mercenários com
alto poder de fogo ditam as regras do jogo político e social para além de qualquer controle por
parte do Estado ou da população, complexos urbanos em que marginalidade, poluição e
criminalidade dão o tom dos mais inocentes passeios pela cidade – não nos são de todo
desconhecidas representações simbólicas centradas na produção de um clima de desastre que
nos cerque, sejam quais forem as causas, sejam quais forem seus efeitos. Não fossem
suficientemente cruéis e aterradores muitos dos elementos que constituem a nossa realidade –
marcadamente em seus aspectos sociais – há ainda espaço para as extrapolações negativas por
parte de artistas e escritores acerca de nosso presente ou de nosso futuro.
Como em qualquer pesquisa científica, eis o nosso momento inicial de inquietação,
graças à considerável quantidade de representações de futuros catastróficos (geralmente
próximos) através de suportes verbais literários e de outros como cinema, histórias em
quadrinhos ou letras de música. O que fez com que nos colocássemos diante da seguinte
questão: o que possibilita que essas produções simbólicas sejam produzidas e consumidas? Ou
ainda, dito de modo mais disciplinar, considerando o campo dos Estudos do Discurso no qual
se insere nosso trabalho: que discursos se veem representados ou legitimados nestas produções
simbólicas e que circunstâncias sócio-históricas as engendram? Mais do que isto, em que
medida estas produções, para além de refletirem tais circunstâncias, acabam também por
transformá-las, entendido aqui o componente simbólico não somente como um espelho que
reflete a realidade, mas que, em sua instância de prática social, também a refrata?
Ao nos lançarmos a estas questões, percebemos que estas representações, inicialmente
dispersas, recebiam comumente a classificação de obras de Ficção Científica (doravante FC)
ou de literatura distópica. O que era dito de modo mais superficial, aparentemente uma mera
categorização, colocou-se diante de nós como um dado a ser verificado: em que medida
justifica-se o rótulo de "ficção científica distópica" para esta ou aquela obra? Com um trabalho
inicial de pesquisa, verificamos que, anterior a todas as outras formas de semiose através das
quais as representações de futuros catastróficos tinham seu suporte, encontrava-se a literatura
de FC, que apropriava-se a posteriori do conceito de distopia em suas narrativas. Portanto, a
despeito das especificidades do cinema, da música ou das histórias em quadrinhos, por exemplo,
12
havia uma influência inicial em comum. Eis então a primeira delimitação de nosso objeto de
estudo: a FC distópica.
Torna-se evidente que este objeto divide-se em duas partes: FC e distopia; caberia a nós
estudá-las num primeiro momento separadamente. Partindo do mais específico, voltamos
nossos olhares inicialmente para o conceito de distopia. Na quase totalidade dos textos que
tratavam deste, estabelecia-se uma relação de contraposição entre distopia e utopia, cabendo a
este último uma anterioridade cronológica. Portanto, não poderíamos deixar de lado um
aprofundamento sobre o conceito de utopia, à qual, em princípio, a distopia se opunha. Com
nossa atenção voltada para o conceito, realizamos dois movimentos de exposição com base na
pesquisa realizada: em primeiro lugar buscamos determinar as categoriais mais centrais que
dessem conta das especificidades do conceito de utopia para, em seguida, verificar como este
conceito materializava-se concretamente ao longo da história. Temos aqui, por um lado, um
eixo conceitual e, do outro, um histórico. Sem que um se sobreponha ao outro, pressupomos
uma relação dialética entre ambos, na medida em que o universal do conceito se justifica pelos
seus singulares históricos. Procedemos com o mesmo duplo movimento no que diz respeito ao
conceito da distopia, cuja caracterização enquanto conceito é neste trabalho apresentada após
os apontamentos de ordem histórica, antecedidos estes por outros de igual teor acerca da utopia
– o que, ao nosso olhar, tornaria a leitura mais fluída. Dito de modo resumido, será apresentada
aqui inicialmente uma reflexão conceitual acerca do conceito de utopia, precedida de suas
materializações discursivas ao longo da história; para, em seguida, apresentar o contexto
histórico em que a distopia ganha suas primeiras materializações literárias e somente então
estabelecer as categorias que caracterizam o conceito. Eis o que se verifica ao longo do capítulo
3 deste trabalho, onde traçaremos o trajeto ao longo dos tempos do bom lugar (utopia) ao futuro
catastrófico (distopia).
Já no que diz respeito à FC, como qualquer outro "conjunto de enunciados relativamente
estáveis", esta apresentava características próprias. Partindo da teoria bakhtiniana, que nos
parece ser a mais adequada para proceder com um trabalho analítico e de categorização de
acordo com os preceitos de uma filosofia materialista da linguagem – perspectiva em alguma
medida já consolidada anteriormente por nós a despeito da pesquisa em questão –
estabelecemos que a FC é um gênero discursivo, com conteúdos temáticos, construção
composicional e estilo próprios. Para definir estes componentes, realizamos um levantamento
bibliográfico prosseguido de um trabalho crítico de cotejamento entre obras que se debruçavam
teoricamente sobre a FC, para que então, com base nestas, pudéssemos caracterizá-la com
alguma profundidade – o mesmo procedimento que utilizamos quanto aos conceitos de utopia
13
período de pós-ditadura em que o país começou a sentir os efeitos de uma modernização tardia
levada a cabo pelas políticas econômicas do regime militar, e, por fim, nossa
contemporaneidade, com a adoção em nível global do sistema capitalista e seu modelo
econômico neoliberal. O resultado do processo de análise realizado será apresentado no capítulo
5 de nosso trabalho.
Restava-nos então os instrumentos analíticos que estivessem de acordo com a percepção
do fenômeno da linguagem que anteriormente já determinava em grande medida os princípios
epistemológicos mais fundamentais quanto a nosso trabalho de apreciação dos discursos e de
suas formas literárias. Optamos assim pela Análise Crítica do Discurso – ou, simplesmente, por
uma “perspectiva discursiva” – por julgarmos ser esta a mais adequada aos princípios
linguísticos que nos parecem ser dos mais fundamentais quando de um olhar científico e
racional sobre a linguagem verbal. Estes princípios constituem a filosofia materialista da
linguagem que optamos por apresentar em nosso trabalho, na seção 2.1, com alguma extensão
– princípios estes que, ainda que tácitos, encontram-se por detrás de cada linha aqui a ser
apresentada. Considerando ainda a escolha por textos literários, não poderíamos deixar de
apresentar alguns apontamentos epistemológicos que dessem conta das especificidades deste
tipo de texto; o que nos levou a uma reflexão acerca dos conceitos de narração, literatura e
ficção. Para tanto, partimos novamente de um trabalho comparativo entre autores que pudessem
contribuir com suas perspectivas para então chegarmos às nossas conclusões, considerando as
concepções filosóficas a elas inevitavelmente subjacentes. Assim, teremos no capítulo 2 a
apresentação do bloco teórico – desta vez, a ciência não ao lado da ficção – que sustenta nosso
trabalho.
Realizadas as etapas 1) de seleção de nossos objetos, 2) de escolha do arcabouço teórico
adequado para estes, com base nas posturas filosóficas e epistemológicas anteriores ao trabalho
da pesquisa, 3) de estabelecimento de categorias que definam tais objetos e da apresentação dos
percursos históricos que estes realizam ao longo do tempo, 4) da análise textual em que se
verificassem a) a validade das categorias anteriormente definidas, b) a relação que as obras
estabelecem com o gênero e seu respectivo momento histórico, e c) a instância da prática social
que elas representam enquanto suportes verbais de posicionamentos por parte do autor diante
de sua realidade histórica; caberá então apresentarmos nossas conclusões face à análise
desenvolvida entendida em sua totalidade para além das especificidades de cada conto
selecionado – o que se verifica no capítulo 6; para, enfim, no capítulo 7, encerramos nosso
trabalho com comentários finais.
16
conclusões às quais se chegou acerca dos conceitos de utopia, distopia e FC. O instrumento
analítico aqui escolhido corresponde a uma perspectiva discursiva acerca do objeto linguístico
e que, em termos mais disciplinares, dizem respeito à Análise Crítica do Discurso (doravante
ACD), cujos marcos teóricos principais serão apresentados na última seção deste trabalho.
Entendidos estes três níveis intrinsecamente imbricados, estaremos então em condições
de prosseguirmos com o devido aprofundamento acerca de nossos objetos de estudo e com o
exercício analítico a ser desenvolvido sobre os contos selecionados.
Althusser (1976) aponta para um conceito que nos parece fundamental para refletirmos,
ainda que de forma breve, sobre as relações entre o pesquisador e sua prática científica. Trata-
se da filosofia espontânea do cientista e que pode ser definida, de um modo bastante geral, como
sendo o conjunto de pressupostos filosóficos que todo cientista traz consigo e que, em alguma
medida, condicionam o trabalho por eles realizado, e se dá de forma inconsciente, daí o termo
“espontânea”. A reflexão do pensador francês se insere em um questionamento acerca da
neutralidade por parte do pesquisador diante de seu objeto. O que, como já há muito endossado,
nos parece questionável, ao menos de modo mais absoluto. Parece-nos inegável que já desde a
escolha de um objeto foram operados elementos “extra-científicos”; isto é, por razões sociais,
políticas, ideológicas, psicológicas etc. preferiu-se um objeto a outro. A escolha de um
determinado arcabouço teórico em função de outro pode também atender a objetivos que não
dizem respeito exclusivamente à natureza do objeto pesquisado. Isto é, se, por um lado, são as
especificidades deste último que nos levariam à escolha de uma teoria ou outra, por outro,
podemos dizer também que a escolha anterior de uma teoria nos levaria a optar por um
determinado aspecto do objeto em função de outro. Neste sentido, não caberia falar aqui em
uma neutralidade absoluta por parte do cientista.
Mikhail Mikhailovich Bakhtin1, pensador russo que se debruçou sobre o fenômeno da
linguagem, contribuiu de modo relevante para esta nossa discussão. Pois, antes mesmo de nos
questionarmos acerca de escolhas teóricas, metodológicas ou de objeto, é no nível mais
elementar da linguagem que há a suspensão da neutralidade, dada sua natureza axiológica. Já
1
Como se sabe, é controversa a questão da autoria referente às obras publicadas por Bakhtin. Não entraremos aqui
nestas questões. Utilizaremos também o termo “círculo bakhtiniano” quando se tratar de obras publicadas sob a
alcunha de V.N. Voloshinov.
18
na esfera do signo linguístico – menor unidade conceitual de análise linguística2 – isto pode ser
verificado. Bakhtin (2009), em seu Marxismo e Filosofia da Linguagem, nos apresenta um
duplo caráter do signo linguístico: o de refletir e de refratar a realidade. Em suas palavras:
Os signos também são objetos naturais, específicos, e, como vimos, todo produto
natural, tecnológico ou de consumo pode tornar-se signo e adquirir, assim, um sentido
que ultrapasse suas próprias particularidades. Um signo não existe apenas como parte
de uma realidade; ele também reflete e refrata uma outra. Ele pode distorcer essa
realidade, ser-lhe fiel, ou apreendê-la de um ponto de vista específico, etc. Todo signo
está sujeito aos critérios de avaliação ideológica (isto é: se é verdadeiro, falso, correto,
justificado, bom, etc.). O domínio do ideológico coincide com o domínio dos signos:
são mutuamente correspondentes. Ali onde o signo se encontra, encontra-se também
o ideológico. Tudo que é ideológico possui um valor semiótico (Ibid:32-3) [grifo do
autor].
Em seu texto de título Os gêneros do discurso, o autor nos apresenta o conceito de atitude
responsiva, ao refletir sobre o processo de compreensão entre falantes em um momento de
interação linguística:
Depreendemos assim que desde a esfera do signo até o momento de sua compreensão, ocorre
inexoravelmente por parte de qualquer indivíduo a adoção de uma postura axiológica. Neste
sentido, nenhuma interação permeada pela linguagem verbal pressupõe qualquer tipo de
neutralidade por parte dos participantes envolvidos.
Ao falarmos de neutralidade, não estamos com isto propondo a sua completa negação
para embarcar assim, declaradamente, naquilo que Demo (1995:84) chamaria de “ativismo
barato”, no qual “destrói-se o compromisso com a objetivação, tornando a ciência
excessivamente subserviente a ideologias, por mais que julguemos serem estas nobres” e
acabamos por “superdimensionar as condições subjetivas de mudança social, como se a
excitação política, sozinha, fizesse o milagre da multiplicação dos pães”. Se, por um lado, não
podemos dizer que o cientista se aliena integralmente de seus aspectos subjetivos, por outro,
não podemos dizer que um tratamento objetivo de empírico de um determinado fenômeno se
torne por isso impossibilitado, ou que uma pesquisa se reduza aos aspectos subjetivos do
2
Tratamos como menor unidade linguística em um contexto de análise que se atenha à parole saussuriana, dado
que quando tratamos da langue o signo pode ser decomposto em unidades ainda menores.
19
Nos dois últimos capítulos de seu texto, Lecercle nos apresenta suas seis teses, divididas
em uma tese principal, quatro outras teses positivas e uma tese conclusiva, que fundamentam
sua filosofia da linguagem e que serão aqui expostas de modo sucinto. A tese principal afirma
que a linguagem é uma forma de práxis. Isto significa que consideraremos a linguagem
enquanto processo, não como produto, não sendo ela tão somente um receptáculo de regras
gramaticais e acervo lexical, mas sim um complexo sistema de variações. Estas variações se
dão em confluência com a história dos seres humanos e suas sociedades, sendo a história da
linguagem ela mesma perpassada em sua dinâmica própria por alterações sociais, econômicas,
culturais, políticas etc. Este sistema deve ser compreendido de forma não fetichizada, mas sim
inserida indissociavelmente em uma totalidade social, não sendo com isso sua origem redutível
ao indivíduo; o sujeito apropria-se sempre de algo que lhe é anterior. Tem-se assim a primazia
da interação social em função de um falante individual.
A primeira tese positiva afirma que a linguagem é um fenômeno histórico. Lecercle
considera que a língua é uma formação linguística instável de tensões e contradições em um
dado contexto histórico específico e que, tal como a história, como também comentamos
anteriormente, mantém-se em constante mudança. A invenção linguística é, portanto, não
somente resultado da criatividade genial de um poeta, mas de todo um complexo de interações
dialéticas entre, para utilizar termos marxistas, infraestrutura e superestrutura. O autor propõe
ainda a noção de conjuntura linguística e que se sobrepõe à dicotomia entre sincronia e
diacronia, correspondendo a tal conjuntura o contexto em que os significados se associam às
práticas sociais dos falantes e reificam-se em formações maiores de sentido. Deve-se considerar
ainda o momento específico desta conjuntura, visto manter-se a linguagem num estado de
variação ininterrupta.
A segunda tese positiva afirma que a linguagem é um fenômeno social. Os sujeitos são
os produtos da linguagem e são por ela falados, isto é, trata-se de linguagem entendida como
práxis que constitui os sujeitos, que concede-lhes um lugar. Temos assim uma ideia de
intersubjetividade enquanto um efeito de interlocução de sujeitos falantes, o que depende
inexoravelmente de uma forma de sociedade já estabelecida. Ademais, compreende-se este
sujeito não como algo já constituído em função apenas de uma de suas faculdades, a da
linguagem, mas sim como inserido em uma totalidade social maior. Essa, entendida enquanto
forma de práxis, o subjetifica. Lecercle nesta sua segunda tese tenta ainda estabelecer uma
relação entre linguagem e ideologia, em que não nos aprofundaremos. Trataremos dela
especificamente ao apresentar o modelo teórico de Norman Fairclough, que, ao nosso ver, trata
22
3
Cabem aqui as palavras de Bakhtin (2009:37) quanto à materialidade semiótica da palavra e suas implicações:
“Há uma outra propriedade da palavra que é da maior importância e que a torna o primeiro meio da consciência
individual. Embora a realidade da palavra, como a de qualquer signo, resulte do consenso entre os indivíduos, uma
palavra é, ao mesmo tempo, produzida pelos próprios meios do organismo individual, sem nenhum recurso a uma
aparelhagem qualquer ou a alguma outra espécie de material extracorporal. Isso determinou o papel da palavra
como material semiótico da vida interior, da consciência (discurso interior). Na verdade, a consciência não poderia
se desenvolver se não dispusesse de um material flexível, veiculável pelo corpo. E a palavra constitui exatamente
esse tipo de material”.
4
Ver Austin (1990).
5
Devemos aqui fazer referência à dita virada somática, uma nova forma de se apreender o corpo nas ciências
sociais. Ver Pennycook (2008:77 et seq.).
6
Fenomenologia é uma escola filosófica iniciada na Alemanha por volta do final do século XIX e foi desenvolvida
por Edmund Husserl. Em linhas iniciais, trata-se de uma “reflexão sobre um fenômeno ou sobre aquilo que se
mostra (ALES BELLO, 2006:18)”. O corpo fenomenológico, no sentido em que Lecercle trata da questão, diz
respeito à forma como ele se relaciona com o mundo, como ele o percebe, relacionando-se isto a uma forma de
apreensão da realidade objetiva sendo realizada pela linguagem.
7
No original em inglês: “[…] it is not only the agent of a social praxis, but also the product of the processes that
constitute this praxis”. Ao longo de nosso trabalho, nos vimos por vezes impossibilitados de termos acesso a
versões em português das obras que consultamos, ou mesmo, não raramente, não haviam versões traduzidas.
Optamos por realizar traduções próprias em todos os momentos em que transcrevemos passagens de outros autores
em língua estrangeira, inserindo ainda nas notas de pé de página ao final de cada fragmento a passagem
23
Gramsci e seu conceito de intelectual orgânico também nos apresenta subsídios teóricos para
pensar a relevância social do trabalho do pesquisador. Para o pensador marxista italiano,
[c]ada grupo social, nascendo no terreno originário de uma função essencial no mundo
da produção econômica, cria para si, ao mesmo tempo, de um modo orgânico, uma ou
mais camadas de intelectuais que lhe dão homogeneidade e consciência da própria
função, não apenas no campo econômico, mas também no social e no político: o
empresário capitalista cria consigo o técnico da indústria, o cientista da economia
política, o organizador de uma nova cultura, de um novo direito, etc., etc. (GRAMSCI,
1982:3).
É graças à sua organicidade que este tipo de intelectual goza então de um relevante poder social,
tendo eles de se posicionarem diante de questões sociais e políticas de seu tempo. Tendo o
capitalismo se consolidado como a organização política hegemônica em um nível global nunca
dantes visto, não lhe faltará, certamente, um corpo social de intelectuais que se proponham a
correspondente na versão consultada. Isto permite que o leitor, com algum domínio na língua estrangeira em
questão, verifique de modo mais facilitado se a tradução trouxe algum problema de interpretação ou se não foi
totalmente clara.
24
Nossos corpora são formados por textos narrativos ficcionais literários. Dito de modo
superficial e meramente classificatório, tratam-se de textos verbais, organizados em uma
estrutura narrativa, que não se propõem a representar objetivamente a realidade fidedignamente
e que se apresentam e são lidos como textos pertencentes a um conjunto de textos que
atualmente são considerados como pertencendo ao grupo dos literários. É preciso, porém, que
discorramos em alguma medida sobre os três conceitos que norteiam esta classificação, e que
dão título a esta nossa seção. Trataremos agora de estabelecer aqui um diálogo com alguns
autores vinculados à disciplina da Teoria Literária, ou mesmo dos ED, e que julgamos
apresentarem reflexões teóricas relevantes para que compreendamos melhor a natureza dos
textos que compõem o objeto de estudo de nossa pesquisa.
Em primeiro lugar, tratemos da narração.
Usualmente, insere-se a narrativa como sendo um dos tipos textuais, em conjunto com
os textos descritivos, dissertativos, argumentativos e injuntivos8. Em tal classificação está
presente o critério da forma textual, a despeito de seu caráter discursivo e que, por sua vez, nos
faria levar em conta aspectos extratextuais. Conforme aponta Gancho (1991:9), há cinco
elementos fundamentais sem os quais não se pode haver narrativa: enredo, personagens, tempo,
espaço e narrador. Será então uma narrativa todo texto que apresente uma determinada sucessão
de acontecimentos na qual figurem personagens, em um determinado momento da história e
em um determinado espaço físico (estejam ele explícitos ou não), sendo isto apresentado
textualmente através de um narrador.
Charaudeau (2014) nos apresenta ainda a narrativa como sendo um dos modos de
organização de discurso (junto aos modos enunciativo, descritivo e argumentativo) que
constituem os “princípios de organização da matéria linguística” (cf. id., ibid.:68)9. Este modo
8
Não pretendemos aqui entrar em questões acerca de tipologia textual e quais seriam os critérios para uma
classificação adequada de textos verbais. Destacamos apenas a composição linguística dos textos em suas
estruturas verbais mais elementares, a despeito de aspectos extralinguísticos.
9
Nesta mesma passagem, Charaudeau afirma que tais princípios dependem da finalidade comunicativa do sujeito
que fala. No capítulo dedicado ao modo narrativo, diz o autor, no que concerne à finalidade do contar: “Contar
representa uma busca constante e infinita; a da resposta às perguntas fundamentais que o homem se faz: ‘Quem
somos? qual é a nossa origem? qual é nosso destino?’ Dito de outro modo: ‘qual a verdade de nosso ser’
(ibid.:154)”. Cremos que a opção pelo narrar extrapola estas questões existenciais (até certo ponto clichês) e que
tentar entender os motivos pelos quais o sujeito falante do ato de comunicação, utilizando a terminologia do autor
26
dispõe de uma lógica narrativa própria constituída a partir de três componentes: os actantes,
aqueles que “desempenham papéis relacionados à ação da qual dependem”; os processos, que
“unem os actantes entre si” e as sequências, que “integram processos e actantes numa finalidade
narrativa” (cf. id., ibid.:160). O autor francês esmiúça diferentes características de cada um
destes elementos, às quais não nos deteremos aqui.
O que nos interessa é entender o conceito de narrativa como sendo uma classificação
estritamente textual e que depende tão somente das formas linguísticas presentes no texto. Não
se trata assim de algo que dependa de uma avaliação por parte do leitor, ou de qualquer forma
de convenção social de ordem extralinguística. Isto se tornará relevante quando verificarmos
que o mesmo não ocorre com o conceito de ficção e de literatura.
Dissemos anteriormente que o narrador é um dos elementos indispensáveis à narrativa.
Charaudeau (ibid.:153) o corrobora ao dizer que “[p]ara que haja narrativa, é necessário um
‘contador’ (que se poderá chamar de narrador, escritor, testemunha, etc.), investido de uma
intencionalidade, isto é, de querer transmitir alguma coisa” [grifos do autor]. Faz-se necessário
também que comentemos, ainda que de forma breve, sobre a já conhecida distinção entre autor
e narrador.
Conforme vimos anteriormente, para o autor francês há uma lógica própria do texto
narrativo, e que conta com alguns elementos já citados. Esta lógica corresponde a um dos pontos
de uma articulação dupla que caracteriza o modo de organização narrativo. O outro ponto é a
encenação narrativa, na qual se “constrói o universo narrado (ou contado) propriamente dito,
sob a responsabilidade de um sujeito narrante que se acha ligado por um contrato de
comunicação ao destinatário da narrativa (id., ibid.:158)”. Sem este dispositivo da encenação
narrativa, não há narração. Este dispositivo, por sua vez, articula dois distintos espaços de
significação: um espaço externo ao texto e outro interno ao texto. Estes espaços são relevantes
para que se diferenciem aqui o autor do narrador e o leitor destinatário do leitor real. Segundo
o esquema teórico de Charaudeau, encontram-se neste espaço extratextual o autor e o leitor real,
correspondendo estes ao sujeito falante e ao sujeito-receptor-interpretante do dispositivo geral
da comunicação e dispondo de identidades sociais. Já no espaço intratextual, encontram-se
narrador e leitor-destinatário, correspondendo estes aos enunciador e destinatário do dispositivo
geral da comunicação e dispondo de identidades discursivas. Dentro desta perspectiva teórica,
francês, se vale de um modo narrativo em função de outras formas de comunicação é uma das questões centrais
para qualquer análise discursiva, especialmente a que se depara com objetos literários.
27
há então “quatro sujeitos ligados dois a dois de maneira não simétrica, mas ligados igualmente
entre si de um espaço a outro (id., ibid.:184)”10.
Pode-se ainda estabelecer a distinção entre o autor-indivíduo e o autor-escritor, na
medida em que somente este último desempenha socialmente o papel social particular de
escritor – “[o] nome do autor não é, pois, exatamente um nome próprio como os outros”, diria
Foucault (2009:273). Isto implica, segundo o autor, um projeto de escritura, um determinado
saber escrever do escritor – ou estilo – e uma ideologia socioartística; elementos estes de
reconhecida influência em termos de recepção\consumo dos textos. Charaudeau distingue
também o narrador-historiador do narrador-contador, estabelecendo o contraponto entre uma
história contada “da maneira mais objetiva possível, mais próxima dos fatos da realidade,
utilizando arquivos, testemunhos e documentos” e outra “contada como pertencente a um
mundo inventado, criado por seu organizador, em relação com todos os outros mundos
inventados; um mundo que não aceita outros códigos e outras leis além daqueles da ficção
(CHARAUDEAU, op. cit.:187)”. Em nosso trabalho, podemos dizer que todos os autores dos
três contos analisados podem ser classificados como autores-escritores e narradores-contadores.
Tendo sido feita esta classificação, é necessário ainda que voltemos um pouco nossa atenção
para a noção de autor e de que forma ela será funcionalizada em nossas análises.
Conforme aponta Barthes (2004:58),
[o] autor é uma personagem moderna, produzida sem dúvida pela nossa sociedade, na
medida em que, ao sair da idade Média, com o empirismo inglês, o racionalismo
francês e a fé pessoal da Reforma, ela descobriu o prestigio do indivíduo, ou como se
diz mais nobremente, da «pessoa humana».
[...] o escritor moderno nasce ao mesmo tempo que o seu texto; não é de forma alguma
dotado de um ser que precedesse ou excedesse a sua escrita, não é em nada o sujeito
de que o seu livro fosse o predicado; outro tempo não há senão o da enunciação, e.
todo o texto é escrito eternamente aqui e agora (id., ibid.:61).
10
A distinção feita por Charaudeau entre autor e narrador, mutatis mutandis, verifica-se também em Bakhtin
(2010) em sua contraposição entre autor-criador e autor-pessoa, bem como em Barthes (op. cit.:60), quando este
afirma que o autor (narrador, para Charaudeau) é tão somente um sujeito vazio da enunciação, pela qual a
linguagem se realiza.
28
11
Tradução de Carlos Alberto Faraco e Cristovão Tezza para uso didático e disponível em
www.uesb.br/ppgcel/Discurso-Na-Vida-Discurso-Na-Arte.pdf ou https://pt.scribd.com/doc/96529004/M-
Bakhtin-Discurso-Na-Vida-Discurso-Na-Arte.
29
sujeito enunciadores do espaço interno do texto narrativo, verificar quais discursos se fazem
(ou se permitem fazer) manifestos e sob que perspectiva axiológica. Trata-se muito mais de
“quais avaliações acerca de quais discursos correntes ao contexto sócio-histórico podem ser
verificados?” do que “o que o autor quis dizer?” ou ainda “que elementos sócio-históricos se
veem aqui refletidos?”. Isto se vincula diretamente à perspectiva materialista da linguagem que
abordamos na seção anterior, na medida em que os produtos simbólicos são aqui entendidos em
sua inserção dentro de uma totalidade mais ampla, cujos constituintes de ordem extralinguística
ao mesmo tempo que os engendram são também por eles modificados, entendido aqui o texto
literário em sua instância de prática social.
Consideradas estas reflexões acerca do texto narrativo, tratemos agora do conceito de
literatura. Obviamente, não há qualquer pretensão de que se estabeleçam aqui critérios
definitivos para dar conta do fenômeno literário ou de sua definição mais precisa. Gostaríamos,
entretanto, de apontar para algumas questões que nos parecem relevantes e nos posicionarmos
quanto a elas, considerando com isso as implicações decorrentes deste posicionamento para
nosso trabalho.
Em primeiro lugar, é preciso dizer que o conceito de literatura, da forma como
entendemos, é algo relativamente recente. A ideia de uma “arte peculiar, uma específica
categoria da criação artística e um conjunto de textos resultantes desta actividade [sic] criadora
(SILVA, 2007:10)” nem sempre foi a única acepção do termo. Literatura já significou erudição,
conjunto de textos seculares, saber gramático e científico em geral, dentre outros (cf. id., ibid.:1
et seq.). Não se trata aqui de traçar a evolução histórica do termo. O que nos interessa é entender
que nossos corpora constituem-se como textos literários, pertencendo ao grupo de produções
simbólicas assim classificados socialmente. Não poderíamos, naturalmente, nos embasarmos
tão somente nesta denominação comum; é preciso que levantemos aqui alguns aspectos para
verificarmos se tal classificação dispõe de subsídios suficientes que a justifiquem.
Dito de modo bastante objetivo, dizer que um texto é literário nos coloca diante da
grande questão entre: a) dispor um texto de aspectos estruturais suficientes para ser assim
classificado e b) estarmos diante de uma questão de convenção, recaindo esta classificação mais
a elementos extrínsecos do que intrínsecos ao texto. Estes são os dois extremos em que se
encontraria o estatuto de literariedade de um texto. Há quem posicione-se de ambos os lados.
Foucault, por exemplo, remetendo-se à sua preocupação peculiar presente em muitas de
suas obras quanto às condições de existência dos enunciados no campo discursivo, mais do que
quanto à sua materialidade linguística em si, aponta:
30
O que faz com que a literatura seja literatura, que a linguagem escrita em um livro
seja literatura, é uma espécie de ritual prévio que traça o espaço da consagração das
palavras. Por conseguinte, quando a página em branco começa a ser preenchida,
quando se começa a transcrever palavras nessa superfície virgem, cada palavra se
torna de certo modo absolutamente decepcionante com relação à literatura, pois não
há nenhuma palavra que pertença por essência, por direito de natureza, à literatura
(FOUCAULT, 2000:142).
Interessante percebermos a concessão feita pelo autor ao final da passagem. Searle entende que
há propriedades do discurso que não sejam totalmente arbitrárias e que, em alguma medida,
12
Tradução de Vítor Guerreiro disponível em http://criticanarede.com/logicaficcional.html. Ela será utilizada em
todos os momentos nos quais a obra tiver seus fragmentos transcritos neste trabalho.
31
justificam o conjunto de atitudes tomadas para que um determinado segmento do discurso seja
considerado literário. O que nos coloca agora do outro lado da questão.
Conforme aponta Silva (2007: 14 et seq.), da necessidade metodológica de se
estabelecer um conceito de literatura enquanto fenômeno estético específico, surgem
movimentos que defenderão haver características estruturais próprias aos textos literários e que
os diferenciam dos textos não-literários; como o formalismo russo, o novo criticismo anglo-
norte-americano e a estilística. Constituía-se assim, prossegue o autor, ao longo da história dos
estudos literários uma ciência da literatura que tivesse como objeto os elementos fundadores da
literariedade dos textos literários, e não somente eles isoladamente.
Tomando como ponto de partida a existência destas características estruturais próprias,
convém citar aqui Jonathan Culler (1999), que em sua Introdução à Teoria Literária tenta
elencar algumas destas características. Tentando superar a postura tautológica de dizer que
“literatura é aquilo que uma sociedade define como tal” – o que só nos remeteria à questão “o
que leva uma sociedade a definir o que é literatura” – Culler apresenta cinco aspectos
fundamentais, não hierarquizados, e que justificam a classificação de literário dada a um texto.
São eles: 1) a literatura como “colocação em primeiro plano” da linguagem – diz respeito a
processos de seleção quanto à forma de um texto que se diferem de produções linguísticas mais
comuns, 2) literatura como integração da linguagem – o texto literário goza de uma estruturação
interna própria onde seus diversos elementos estabelecem uma relação complexa entre si, não
podendo ser tal texto lido como expressão da psique do autor ou reflexo de sua sociedade, 3)
literatura como ficção – desconsiderado o compromisso do discurso literário com a
representação fiel da realidade, sua relação com o mundo está sempre submetida a uma questão
de interpretação, 4) literatura como objeto estético – no discurso literário o texto não se propõe
a informar, persuadir, ou a atingir algum fim específico; há uma inter-relação entre forma e
conteúdo, de modo que suas partes se relacionem para um efeito do todo e 5) literatura como
construção intertextual ou auto-reflexiva – o discurso literário estabelece um meta-discurso na
medida em que a literatura se constitui como uma prática de reflexão sobre ela própria.
Poderíamos aqui mencionar ainda outros autores e suas contribuições para nossa
questão. Temos aqui por objetivo, entretanto, apenas apresentar alguns pressupostos mais
basilares acerca do fenômeno literário e que contribuam para um melhor entendimento do tipo
de olhar que lançamos sobre eles. Portanto, cabe agora sintetizarmos nossos pressupostos com
base nos autores e ideias apresentadas.
Acreditamos que a literariedade de um texto se justifica tanto por suas características
estruturais e usos linguísticos específicos – ainda que estes não sejam de utilização exclusiva
32
por parte dos textos literários – quanto pelas convenções institucionais e pela relação que se
estabelece entre leitor e obra. Uma obra literária deve tanto apresentar marcas textuais de
literariedade quanto ser lida enquanto literatura. O que é endossado por Silva (2007:33): “a obra
literária só adquire efectiva [sic] existência como obra literária, como objecto [sic] estético,
quando é lida e interpretada por um leitor, em conformidade com determinados conhecimentos,
determinadas convenções e práticas institucionais”.
Há três implicações em termos da análise que desenvolvemos na presente dissertação
quando falamos de textos literários.
Em primeiro lugar, é preciso que haja uma atenção especial aos recursos linguísticos,
conforme mencionados por Culler, que se encontram nas obras literárias, de modo que, numa
análise discursiva que leve em conta as avaliações expressas na narrativa diante do mundo
sócio-histórico do autor, o texto literário não se resuma a seu aspecto documental. Pois é
precisamente através da organização linguística própria dos textos literários que poderão ser
verificados os diferentes horizontes axiológicos tornados manifestos. Em segundo lugar, não se
questiona aqui o estatuto de literariedade dos textos que compõem o corpus de análise de nosso
trabalho. Todos eles atendem aos pressupostos textuais – elementos intrínsecos ao texto em
termos de suas estruturas linguísticas – e convencionais – aspectos de ordem extralinguística e
que dizem respeito aos pactos que se estabelecem entre o leitor e o texto, motivados por
convenções socialmente compartilhadas – para que sejam considerados textos literários. Por
fim, não apresenta grande relevância para nós estabelecer critérios de diferenciação entre aquilo
que seria uma boa ou ruim literatura. Interessa-nos muito mais, reafirmemos, as posições
avaliativas expressas textualmente, isto é, em que medida se verifica não somente um reflexo
do contexto histórico do autor, mas a refração deste contexto realizada pela instância da prática
social do texto literário. Uma valoração positiva ou negativa acerca de estilo, criatividade,
originalidade e aspectos semelhantes não se colocam aqui como objetivo de nossa análise.
Para enfim adentrarmos no conceito de ficção, devemos antes mencionar a estreita
relação que esta estabelece com o texto narrativo. Conforme visto anteriormente, Culler
pressupõe a ficção como sendo um dos componentes do texto literário e isto pode ser verificado
ainda em outros autores. O já citado Searle nos diz que é possível confundir uma definição de
ficção com uma literatura – apresentando, porém, como contra-argumento, o fato de ser possível
haver tantas formas de literatura que não são ficcionais, como textos ficcionais que não são
literários (como as anedotas, por exemplo). Käte Hamburger (2013) em seu A lógica da criação
literária entende o gênero ficcional como sendo um material artístico, precisamente o da
33
literatura, presente na ficção dramática e épica13. Falar, portanto, em literatura, significa falar
em ficção.
O primeiro aspecto a ser mencionado é a distinção entre ficção e mentira. Ainda que
ambos sejam formas de signos sem referentes e instaurem novas realidade, a primeira distingue-
se da segunda por haver um pacto ficcional entre os interlocutores, não havendo por parte do
autor de ficção qualquer intenção de enganar. Autor e leitor estão cientes de que o texto não
tem por objetivo representar a realidade tal qual ela se apresenta objetivamente.
Outros aspectos referentes ao conceito de ficção nos são apresentados por Wolfgang
Iser e Lubomir Doležel, cujas teorias nos parecem de grande relevância e gostaríamos aqui de
trazê-las à tona.
Partindo da já mencionada estreita relação entre o texto literário e o texto ficcional, Iser
(2002), em capítulo intitulado Os atos de fingir ou o que é fictício no texto ficcional, coloca em
xeque a oposição que comumente se estabelece entre realidade e ficção, visto que não se pode
dizer que os textos ficcionais são absolutamente isentos da realidade. Citando-o:
Em contrapartida, sugere ele uma tríade composta pelas instâncias do real, do fictício e
do imaginário. A instância do real é aquela correspondente ao mundo extratextual anterior ao
texto e que a este último fornece os campos de referência, isto é, os elementos temáticos a serem
selecionados pelo autor na composição de seu texto. Estes campos adquirem o estatuto de
fictícios na medida em que passam a representar elementos da realidade. Esta representação
não é uma pura transposição do real, mas sim uma extrapolação, uma transgressão de seus
limites – o ato de fingir é uma irrealização do real. Esta transgressão, enquanto uma
reorganização específica do real extrapolado, vincula-se à instância do imaginário que, uma vez
difuso, passa a se constituir numa configuração específica de imagens fictícias, realizando-se –
o ato de fingir é também uma realização do imaginário.
Transgressão e extrapolação só são possíveis se entendermos que elas se dão a partir de
um ato de seleção por parte do autor, visto que “a seleção é uma transgressão de limites na
medida em que os elementos acolhidos pelo texto agora se desvinculam da estruturação
13
Na obra citada, a autora argumenta haver um componente linguístico próprio à estrutura ficcional, o uso do
pretérito, cujo uso na ficção é distinto daquele do uso cotidiano. Não nos aprofundaremos neste aspecto de sua
teoria.
34
semântica ou sistemática dos sistemas de que foram tomados (id., ibid.:960-1)”. Seleção e
combinação dos elementos textuais, enquanto atos de fingir, por serem transgressões de limites,
tornam-se os elementos centrais para que se apreenda a intencionalidade de um texto.
Interessante destacarmos aqui que, como vimos no início desta seção ao discutirmos sobre a
figura do autor diante de seu texto, temos endossada por Iser a tese de que “apenas através das
qualidades que se evidenciam a seletividade do texto face a seus sistemas sociais” é que é
possível se chegar à intencionalidade do texto, não sendo “possível o conhecimento da intenção
autoral pelo que o tenha inspirado ou pelo que tenha desejado (id., ibid.:962)”.
Igualmente reafirmando a vinculação entre o texto ficcional e o literário, Doležel (1997),
por sua vez, em capítulo intitulado Mímesis e mundos possíveis, tem como ponto de partida a
crítica à ideia de que as ficções sejam derivadas da realidade ou imitações\representações de
entidades que de fato existam14. O autor apresenta aquilo que ele chama de função mimética,
um pressuposto teórico central para a interpretação dos objetos ficcionais por parte de muitos
críticos literários e historiadores: o particular ficcional P /f/ representa o particular real P /r/.
Com base nesta função, busca-se estabelecer uma correspondência, por exemplo, entre um
personagem lendário com um indivíduo histórico, ou um acontecimento ficcional com um real
(cf. id, ibid.:71).
Dada a insuficiência deste método, visto que é impossível estabelecer um particular real
para cada particular ficcional, surge então, segundo o autor, a ideia de que os tipos particulares
ficcionais representariam universais reais, como tipos psicológicos, grupos sociais ou condições
existenciais ou históricas. Ocorre então uma transformação da função mimética, tornando-se
esta universalista: o particular ficcional P /f/ representa o universal real U /r/ (cf. id., ibid.:72).
Doležel questiona que se perdem assim as características mais peculiares de cada texto literário
na medida em que estes se reduzem a exemplos deste ou daquele universal, reduzindo-se assim
o horizonte de interpretações a serem realizadas pela crítica – que não por menos se viram
insatisfeitos com tal método.
O autor apresenta, por fim, uma terceira função a partir da qual se realizaria a crítica
mimética. Trata-se de uma função pseudo-mimética: a fonte real F /r/ proporciona a
14
Frederico José Machado da Silva (2013) aponta que Doležel incorre em um erro de interpretação quanto à ideia
de mímesis em Aristóteles. Não cabe aqui, nem há espaço para tanto, nos debruçarmos sobre a obra de Aristóteles.
Questionamos, contudo, a postura adotada por Silva ao pressupor poder haver, baseando-se inicialmente no próprio
Aristóteles e mais adiante em Luiz Costa Lima, um mundo de ficção que não esteja “fiado no real”, citando como
exemplo a arte simbolista e a arte abstrata. Diferentemente, acreditamos que uma produção simbólica de referentes
reais apagados, representando supostamente tão somente a si mesma estabelece a sua estreita ligação com o real
justamente por sua ausência de referenciação. Isto, pois, citando Iser (Op. Cit:961), “os elementos presentes no
texto são reforçados pelos que se ausentaram”.
35
Acrescente-se ainda o fato de que, de modo oposto ao texto ficcional e dispondo de menos
elementos estruturais que o texto literário, o texto fictício carece de, nas palavras de Searle, um
conjunto de convenções extralinguísticas (ou pactos entre o leitor e o texto, suspensão da
descrença etc). Daí a afirmação de que “[n]ão há propriedade textual, sintáctica [sic] ou
semântica, que identifique um texto como obra de ficção (id., ibid.:65)15”.
Considerado todo o exposto, podemos então concluir com base nas contribuições dos
autores supracitados que 1) ficção não se trata de mentira por pressupor convenções
extralinguísticas em que se realiza um pacto entre texto e leitor, estando suspensa por parte
deste, conscientemente, a crença de que se trata de um texto objetivo e que representará a
realidade tal como ela se apresenta materialmente, 2) a ficção pressupõe uma alteração,
reorganização, transformação, rompimento ou qualquer equivalente semântico do mundo real
que lhe fornece os subsídios necessários para tornar o imaginário difuso em uma configuração
temática determinada, cujo suporte é linguístico-textual, 3) o processo de seleção e organização
desta configuração na composição de um mundo possível aponta para a intencionalidade do
autor, uma vez entendido que o sentido do texto se encontra nele próprio, e não na consciência
ou na vida individual do autor (que, como vimos anteriormente, não se confunde nem com
narrador, nem com seus personagens) e 4) que, numa perspectiva analítica discursiva, faz-se
necessário atentar para as motivações sócio-históricas subjacentes e anteriores ao processo de
produção do texto ficcional, qual a relação destas com a configuração do mundo fictício
construído textualmente e que discursos presentes no contexto sócio-histórico do autor se veem
através de sua criação ficcional reproduzidos, legitimados ou contestados.
Em suma, o que podemos observar é que, de um lado, encontramos o texto narrativo,
cujos elementos linguísticos que o estruturam internamente garantem de modo suficiente seu
estatuto de narrativa; do outro, encontramos o texto ficcional, cujo estatuto de ficcionalidade
depende exclusivamente do pacto que se estabelece entre leitor e texto, sendo convencionado
previamente que não se trata de uma produção linguística cujos referentes não necessariamente
se encontram na realidade objetiva material, sendo por isso válido falamos em mundos
15
É possível que se objete esta afirmação tão peremptória se considerarmos enunciados pertencentes, por exemplo,
ao campo das ciências da natureza ou da matemática. Quando digo “1 mais 1 são 5” posso tanto estar enunciando
algo logicamente falso, como estar, conotativamente, dizendo, por exemplo, que, considerado um casal com
relações afetivas estáveis, um deles possui três amantes (ou um 2 e o outro 1 e vice-versa) – há uma canção do
grupo inglês Pet Shop Boys com o exato título One and one make five. George Orwell em seu 1984 nos apresenta
o slogan “2 +2 = 5”, um dentre outros veiculados pelo Partido na narrativa e assimilado acriticamente pelo povo a
ponto de ser considerado um fato. O argumento é: a verificação lógica e empírica de um determinado enunciado
em termos de sua validade enquanto uma verdade objetiva é ela própria uma postura extralinguística, visto que,
como nos dois exemplos acima, alterada a postura do leitor\ouvinte, mesmo um enunciado logicamente falso pode
ser entendido, conotativamente, como verdadeiro.
37
ficcionais possíveis em que a esta se veja extrapolada e, por fim, há o texto literário que se
apropria das convenções subjacentes à ficcionalidade e da estrutura narrativa, acrescidos a estes
outras formas específicas de elementos linguísticos, para adquirir o seu estatuto de literariedade.
Em termos das implicações da análise desenvolvida em nosso trabalho, atentaremos tanto para
estruturas internas linguísticas próprias dos textos literários e ficcionais, como ainda será nosso
objetivo verificar em que medida estas operam as transgressões realizadas pelo autor em seu
exercício criativo literário, a partir das quais depreendem-se as atitudes responsivas
materializadas no texto.
A linguagem enquanto discurso não constitui um universo de signos que serve apenas
como instrumento de comunicação ou suporte de pensamento; a linguagem enquanto
discurso é interação, e um modo de produção social; ela não é neutra, inocente e nem
natura), por isso o lugar privilegiado de manifestação da ideologia. [...] Como
elemento de mediação necessária entre o homem e sua realidade e como forma de
engajá-lo na própria realidade, a linguagem é lugar de conflito, de confronto
ideológico, não podendo ser estudada fora da sociedade, uma vez que os processos
que a constituem são histórico-sociais. Seu estudo não pode estar desvinculado de
suas condições de produção. Esse será o enfoque a ser assumido por uma nova
tendência lingüística que irrompe na década de 60: a análise do discurso.
38
Podemos verificar nesta passagem ecos claros daquilo que expusemos ao tratar da
filosofia materialista da linguagem. Não por menos, pois a
[...] os textos são tratados como evidências para hipóteses sobre as FDs formuladas a
priori, contrariamente à tentativa pelos analistas de estudo cuidadoso daquilo que é
distintivo no texto e no evento discursivo. Há uma tendência semelhante na teoria
althusseriana de ênfase na reprodução - como os sujeitos são posicionados dentro de
formações e como a dominação ideológica é assegurada - em detrimento da
transformação - como os sujeitos podem contestar e progressivamente reestruturar a
dominação e as formações mediante a prática. [...] Conseqüentemente, há uma visão
unilateral, da posição do sujeito como um efeito; é negligenciada a capacidade dos
sujeitos de agirem como agentes, e mesmo de transformarem eles próprios as bases
da sujeição (id., ibid:55-6).
39
O autor aponta ainda em sua crítica à Foucault por haver não haver nas obras de Foucault
qualquer sistematização orientada para uma análise textual das formas discursivas; uma lacuna
que cabe à Análise do Discurso preencher. Conquanto se verifiquem estas críticas, Fairclough
não deixa de reafirmar a importância dada pelo autor francês às propriedades constitutivas dos
discursos e que dizem respeito a aspectos de ordem extralinguística, social, e que perpassam
inexoravelmente as instâncias textuais dos discursos.
Baseando-se nos autores supracitados, Althusser, Foucault e Pêcheux, reconhecendo-
lhes sua importância ou ainda aquilo que para Fairclough parece passível de crítica, propõe
então o autor a sua própria Teoria Social do Discurso, na qual se baseia nosso trabalho.
Inicialmente, apresenta-se sua seguinte definição de discurso:
Vemos sem grandes dificuldades que nesta definição estão abarcadas a primazia dos
usos concretos da linguagem numa realidade sócio-histórica determinada, sua relação dialética
com a estrutura social, seu caráter constituinte desta e sua relação com instâncias não
discursivas; em plena consonância com o que vimos em Lecercle e sua proposta de filosofia
materialista da linguagem.
O que Fairclough nos apresenta de diferente com relação às outras teorias da Análise do
Discurso é seu modelo tridimensional. A partir deste modelo, o discurso é composto por três
dimensões. Trata-se, naturalmente, de uma divisão meramente didática e para finalidades
específicas de análise. As dimensões são: texto, prática discursiva e prática social, sobrepondo-
se elas umas às outras em sua realização discursiva real. Por texto, entende-se a estrutura
interna, a materialidade linguística de um discurso, seu componente verbal. Já a prática
discursiva envolve os processos de produção, distribuição e consumo dos textos em
consonância com suas respectivas especificidades sociais e históricas. Por fim, a prática social
é a instância que se relacionam aos conceitos de ideologia, poder e hegemonia. Para cada uma
destas camadas do discurso, Fairclough sugere uma forma de análise específica,
respectivamente uma análise textual, uma discursiva e uma outra social. A primeira considera
elementos linguísticos como vocabulário, gramática, coesão, estrutura textual, polidez,
metáforas, conectivos, argumentação, controle de tópicos, tomada de turnos, dentre outros. A
segunda, a produção do texto, sua distribuição, seu consumo, interdiscursividade e
intertextualidade manifesta, cadeias intertextuais, coerência e coesão, relação com gêneros
textuais, dentre outros. Por fim, a terceira dedica-se às circunstâncias organizacionais e
institucionais, estruturas sociais, ordens do discurso, efeitos ideológicos e hegemônicos,
exercícios de poder, dentre outros.
Fairclough estabelece, como vimos, uma relação entre as formas discursivas, ideologia
e hegemonia. Quanto a este último, trata-se especificamente de um conceito gramsciano.
Antonio Gramsci (1891-1937) foi um pensador italiano de grande relevância na
retomada de problemáticas postas pelo pensamento marxista no início do século XX. Nas
primeiras décadas do século passado se observava (particularmente nas fileiras social-
democratas alemãs e austríacas) uma apropriação claramente mecanicista da obra de Marx.
Postulava-se teoricamente a transição para a sociedade socialista como um resultado quase
exclusivo das transformações na estrutura econômica da sociedade e de suas forças produtivas.
Em função do caráter determinista desta postulação, as formas superestruturais (políticas,
culturais, artísticas etc) eram postuladas teoricamente como simples reflexos da estrutura
econômica. Em oposição a isto, o pensamento de Gramsci entrevia também nestas formas
41
Portanto, o que se cabe verificar na instância da prática social do discurso é a forma através da
qual uma determinada produção simbólica contribui para a manutenção de uma determinada
estrutura social em que se verifique uma assimetria de poder – ou uma desigualdade de classe,
dito a um modo mais tradicionalmente marxista; estas, por sua vez, legitimadas, não mais como
anteriormente graças a formas imediatas de coerção, mas através de um complexo simbólico
convincente o bastante para que os próprios indivíduos reproduzam formas de consciência que
mantenham uma configuração social na qual estes se vejam, em alguma medida, subjugados.
Quanto à ideologia, Fairclough, tal como Pêcheux, apropria-se das reflexões de
Althusser ao considerá-la como dispondo de uma existência material, interpelando e
constituindo os sujeitos e materializada através dos aparelhos ideológicos do estado. Questiona-
se, contudo, a força que a ideologia possui enquanto “cimento social”, acabando por deixar de
lado, ainda que o pressuponha, as práticas discursivas transformadoras ou ainda as próprias
contradições internas da ideologia – crítica semelhante àquela direcionada a Foucault.
Fairclough admite que a ideologia contribui para a legitimação e a reprodução das relações de
dominações em uma sociedade, mas foca antes sua atenção na luta discursiva, uma vez que os
sujeitos, ainda que constituídos através da ideologia, são também criativos e podem incorporar
significações e práticas sociais e discursivas que vão de encontro às relações de poder vigentes.
O grande diferencial na Análise do Discurso, conforme proposto por Fairclough e outras
teorias precedentes, é o destaque que o autor dá para o papel transformador do sujeito, para
além das determinações sociais e ideológicas que são inexoravelmente impressas em seus
42
discursos e práticas, mas que podem, ao mesmo tempo, ser por estas questionadas. Nas próprias
palavras do autor:
[...] os sujeitos são posicionados ideologicamente, mas são também capazes de agir
criativamente no sentido de realizar suas próprias conexões entre as diversas práticas
e ideologias a que são expostos e de reestruturar as práticas e as estruturas
posicionadoras (ibid:121).
Não por menos o próprio título de sua obra Discurso e Mudança Social. A questão da
mudança é um tópico extremamente caro ao autor, que diz:
A primeira consideração a ser feita sobre o conceito de utopia diz respeito às suas
utilizações mais comuns e que, naturalmente, nem de longe se aproximam de seus traços mais
característicos e de todas as reflexões dele decorrentes. Referimo-nos à apreciação pejorativa
do termo, que se tornou sinônimo de fantasia, em seu sentido negativo, entendido como mera
ilusão ou como algo irrealizável concretamente. “Utopia” se tornou uma etiqueta de fácil uso
para a rotulação mais gratuita de qualquer ideia ou conjunto de ideias que vejam o mundo como
algo a ser transformado, que proponham algum tipo de mudança concreta. Esta recusa em se
pensar o para além do aqui e agora, como veremos adiante de modo mais aprofundado, deve
ser entendida como uma atitude consciente ou inconsciente de manutenção do estado de coisas
tal qual elas se encontram; uma legitimação, intencional ou cínica, do status quo.
Considerado isto, verifiquemos isoladamente a palavra utopia. Em termos cronológicos,
temos em Thomas More o primeiro de seus usos, com o título de sua principal obra A Utopia,
publicada em 1516 (retornaremos a ela na próxima seção deste capítulo). O neologismo, como
sabido, tem sua origem como a junção dos termos gregos οὐ (significando não, negação e que
44
se reduz a “u”) e τόπος (lugar, região) acrescida do sufixo –ia, também indicando lugar.
Conforme aponta Vieira (2010:4), o termo em si apresenta um duplo movimento de afirmação
e negação – afirmação por conta do acréscimo final –ia e negação por conta de seu prefixo.
Entendida a sua forma, é preciso que nos atenhamos ao conceito. Para tanto, nosso texto
se apropria a partir de agora das reflexões realizadas por alguns dos principais autores que
lançaram seus olhares sobre a utopia e que julgamos poderem contribuir com elementos
fundamentais para uma compreensão mais ampla sobre esta. Consideradas as perspectivas de
cada autor em particular, apresentaremos ao final uma síntese própria de nosso trabalho, a qual
esperamos que contribua para os estudos sobre a utopia.
Vieira (ibid.), além de ressaltar o duplo movimento mencionado acima, destaca a tensão
existente entre os dois termos cunhados por More à época da publicação de sua obra: eutopia e
utopia. A primeira, também um neologismo, pode ser traduzida como o bom lugar,
considerando o prefixo eu- (do grego, feliz, bom) e figura em um poema publicado ao final do
texto d’A Utopia16, remetendo-se à ilha. Concebendo estes dois conceitos, More estabelece
assim que o “bom lugar” é, a um só tempo, o “não lugar”. Instaura-se assim uma contradição
fundamental ao conceito da utopia – se More consegue, utilizando seu potencial imaginário,
conceber, sob a forma literária, um ambiente em que as expectativas de uma vida melhor se
vissem realizadas, esta superação positiva assenta suas fundações precisamente no nível da
ficção.
Considerado isto, Vieira (ibid.:6) aponta para a existência de quatro características para
o conceito de utopia: 1) a utopia apresenta o conteúdo de uma determinada sociedade cuja
organização é superior ou mais desejada do que aquela presente à época do autor, 2) constituída
enquanto gênero literário, trata-se da forma através da qual a imaginação utópica se vê
cristalizada, 3) a utopia dispõe de uma função utópica, na medida em que haja um impacto a
ser causado nos leitores que os instigue à ação17 e 4) o desejo por uma vida melhor, causado
por um descontentamento face à sociedade em que se vive.
Esta organização superior, imaginada e motivada pela esperança de tempos melhores,
não se realiza a partir de forças divinas atuando em nome da transformação terrena. Como
destaca a autora, as sociedades utópicas são frutos da ação humana e concebidas para os
16
Nem todas as edições da obra trazem consigo este poema. Sugerimos a da Cambridge University Press de George
M. Logan e Robert M. Adams.
17
Cabe aqui a citação de Lacroix (1996:98), quando afirma que “[...] a realização projetada de um conceito pensado
como imagem estimula a ação real. E então Utopia, da qual dissemos que é paradigma da ação, é também o que
pode desencadear uma ação”.
45
humanos – o que não é qualquer surpresa considerando o humanismo renascentista que cercava
More.
Tomada em sua aparente perfeição, a utopia pressupõe por parte daquele que a
materializa textualmente a observação dos aspectos sociais a serem transformados e uma
capacidade criativa tal para organizar, sob a égide da força imaginária, um lugar em que estes
aspectos sociais deficientes se vejam superados. Para tanto, afirma a autora (op. cit.:6), é
preciso, entretanto, que a ficção utópica não desafie os limites da lógica, devendo ser gradual a
passagem do mundo real para o ficcional. Relevante percebermos aqui que, no texto utópico,
não somente deve o leitor estabelecer com o texto o pacto da suspensão da descrença (como
vimos no capítulo anterior quando tratamos do texto ficcional) para que o mundo descrito se
lhe torne plausível, como também é esperado por parte do autor que o leitor compartilhe com
ele a esperança de que, de alguma forma, aquela sociedade ideal possa ser atingida –
reafirmando-se com isto a função utópica anteriormente citada.
Um segundo autor que não poderia deixar de ser mencionado em nosso texto é Karl
Mannheim, um dos maiores nomes da chamada Escola de Frankfurt, composta por cientistas
sociais, cujo maior legado foi ter ampliado a discussão de temas contemporâneos a partir de
uma atualização, se podemos assim dizer, das teorias marxistas que, em suas formas mais
tradicionais, pareciam não mais dar conta de um mundo que em muitos aspectos já não mais
correspondia àquele de Marx.
Mannheim é o autor de Ideologie und Utopie, obra publicada em 1929 e da qual
tomaremos tão somente as ideias que julgamos mais relevantes para a discussão aqui
apresentada18.
O autor alemão (1954:173) nos apresenta a definição do que seria um estado de espírito
utópico: trata-se daquele que é incongruente com a realidade objetiva na qual ele ocorre e que
se orienta para elementos que não existem nesta. Esta orientação, porém, só se torna utópica
quando, por meio dela, tenciona-se romper com os limites da ordem das coisas existentes. Entre
esta ordem e a utopia estabelece-se uma relação dialética, na medida em que
[...] toda era permite que surja (situada em diferentes grupos sociais) aquelas ideias e
valores nas quais estejam contidas de modo condensado as tendências não realizadas
ou satisfeitas que representam as suas necessidades. Estes elementos intelectuais
18
Mannheim estabelece uma diferenciação entre a ideologia e a utopia. Dito de modo sucinto, tanto a utopia quanto
a ideologia são formas de pensamento que compartilham uma forma transcendental em comparação com a
realidade que as engendra. Entretanto, cabe à primeira a tarefa de transformar a realidade histórica existente em
uma outra que esteja mais de acordo com seus pressupostos (cf. MANNHEIM, op. cit.:176). Não nos
aprofundaremos neste ponto visto que seria necessário discorrer mais amplamente sobre o conceito de ideologia
não somente em Mannheim como em Marx e outros autores que se apropriaram do termo.
46
Neste sentido, uma compreensão plena da utopia requer que se compreenda também a situação
estrutural do estrato social que vocaliza um determinado desejo utópico. Por conta disto, ocorre
que, para o autor, é sempre o grupo dominante em uma dada formação social que caracterizará
um determinado conjunto de ideias como sendo utópica, isto é, o caráter irreal destas ideias ou
ainda seus traços transformadores é salientado por aqueles a quem interesse ou não tal
transformação. Assim, “[q]uando um grupo em ascensão percebe a possibilidade de romper
com a ordem social que os oprime, tem-se aí um terreno fértil para o surgimento de uma
mentalidade que buscará romper com tal ordem” (MAZUCATO, 2013:194).
Fredric Jameson também traz apontamentos relevantes acerca do conceito de utopia.
Também vinculado à tradição marxista, Jameson tornou-se um renomado teórico dos chamados
estudos culturais e um forte nome dentro da crítica literária. Uma de suas obras que nos é central
é Archaeologies of the Future – The Desire Called Utopia and Other Science Fictions,
publicada em 2005 e cujo título saltaria aos olhos de qualquer pesquisador que se debruçasse
sobre utopia e\ou FC – precisamente nosso caso. O tema da utopia, repetidamente analisado por
Jameson, não se limita, a esta obra e nos remeteremos também a outros escritos do autor.
O primeiro aspecto levantado pelo americano e que gostaríamos de apontar aqui é a
distinção por ele feita entre um programa utópico e o impulso utópico (JAMESON, 2005:3).
Quanto ao primeiro, esse coloca como tarefa a transformação social concreta, cujos resultados
são imaginados como ideais por parte daqueles que compartilhem deste programa. Trata-se de
uma proposta de transformação de caráter totalizante e que se realiza partir de um confronto
com a realidade que se realiza com limites próprios e estabelecendo sempre uma distinção entre
o utópico e o não-utópico. Já o impulso utópico, enquanto alegoria, não corresponde a uma
práxis utópica determinada e materializa-se sob a forma de fragmentos dispersos, expressando
a satisfação do desejo por um estado de coisas melhor. Chega-se a este impulso pela via
hermenêutica, através de um exercício interpretativo em que sejam decifrados pistas e traços de
um desejo utópico tornado manifesto através de uma determinada produção textual (cf. id.,
2010:25-6).
19
No original em inglês: “(…) every age allows to arise (in differently located social groups) those ideas and
values in which contained in condensed form the unrealized and the unfulfilled tendencies which represent the
needs of each age. These intellectual elements then become the explosive material for bursting the limits of the
existing order. The existing order gives birth to Utopias which in turn break the bonds of the existing order, leaving
it free to develop in the direction of the next order of existence”.
47
20
No original, em inglês: “[…] reality seems malleable, but not the system; and it is that very distance of the
unchangeable system from the turbulent restlessness of the real world that seems to open up a moment of ideational
and utopian-creative free play in the mind itself or in the political imagination”.
48
com o máximo de autores possíveis, restará para as próximas linhas apenas centelhas das
reflexões proposta por Bloch em sua obra.
Logo em seu prefácio, Bloch (2005, I:14) atesta que “[n]enhum ser humano jamais viveu
sem sonhos diurnos”. Diz-nos o autor, que
[...] os seres humanos de forma alguma sonham apenas à noite. Também o dia possui
bordas crepusculares, também ali os desejos se saciam. Diferentemente do sonho
noturno, o sonho diurno desenha no ar repetíveis vultos de livre escolha, e pode se
entusiasmar e delirar, mas também ponderar e planejar. De maneira ociosa (que,
contudo, pode ser muito semelhante à da Musa e de Minerva), ele persegue idéias
políticas, artísticas, científicas. O sonho diurno pode proporcionar idéias que não
podem interpretação, e sim elaboração – ele constrói castelos de vento com as plantas
já desenhadas e nem sempre meramente fictícias (ibid.:88).
Assim, é inerente ao homem não somente contemplar a realidade que o cerca, mas ser capaz de
transformá-la, melhorá-la, superá-la. Um olhar à frente é sempre lançado, um novum mantém-
se sempre como possível: “[...] a essência mesma do mundo situa-se na linha de frente (id.,
ibid.:28)”. E é por nos situarmos na linha de frente que a imaginação pode então operar.
Vislumbrando-se algo melhor que aquilo do que dispomos, ocorre então um desejar. Desejando
o imaginado, o que antes era tão somente imaginação torna-se um ideal, e quanto mais essa o
for, tanto mais o imaginado será desejado. Assim ocorre à esperança, um afeto expectante, com
uma “intenção pulsional de amplo alcance, cujo objeto pulsional não está disponível na
respectiva acessibilidade individual e tampouco no mundo ao alcance da mão, tendo lugar,
assim, ainda na dúvida de sua finalização ou de sua ocorrência (id., ibid.:76-7)”. A esperança,
enquanto afeto, “[...] é a mais humana de todas as emoções e acessível apenas a seres humanos.
Ela tem como referência, ao mesmo tempo, o horizonte mais amplo e mais claro. Ela representa
aquele appetitus no ânimo que não só o sujeito tem, mas no qual ele ainda consiste
essencialmente, como sujeito não plenificado (id., ibid.:77)”.
E quanto mais consciente estivermos daquilo que, estando à frente de nós, olhamos,
tanto mais aguçado este olhar se torna. É aí que a esperança adquire a sua função utópica, cuja
fantasia distingue-se da fantasia quimérica. Pois só a primeira é capaz de forjar para si um ainda-
não-ser que pode ser esperado (cf. id., ibid.:144). Surge então o conceito de utópico-concreto,
que não se confunde com o sonhar utópico-abstrato – ecoa aqui a ideia de uma práxis
transformadora sintetizada por Marx em sua décima primeira tese a Feuerbach21. E não por
menos. Para Bloch (ibid.:20),
21
Eis a célebre frase de Marx: “Os filósofos limitaram-se a interpretar o mundo de modos diferentes; o que
importa, porém, é transformá-lo”.
49
[a] filosofia marxista, como aquela que finalmente se comporta de modo adequado
frente ao devir e ao que está por surgir, conhece igualmente todo o passado em sua
amplitude criativa, porque ela não conhece nenhum outro passado a não ser o ainda
vivo, a ainda não liquidado. A filosofia marxista é a do futuro, portanto também a do
futuro no passado. Ela é, assim, nessa consciência de linhas de frente unidas, teoria-
práxis viva da tendência compreendida, teoria-práxis afeita ao evento, conjurada com
o novum.
utopia se encontra em estreita relação com a esperança, entendida aqui enquanto componente
ontológico do ser humano que nunca se abstém de pensar o futuro como algo melhor que o
presente e que, motivado por este olhar à frente, dispondo do impulso utópico que lhe é
intrínseco, é capaz de gerar formas utópicas.
Nesta seção, apresentaremos de forma resumida algumas das obras que, ao longo da
história, podem ser consideradas como materializações verbais do impulso utópico. Não se trata
aqui, devemos dizer, de fazer uma historiografia da utopia, para o que já existe literatura
recomendável22. Estabeleceremos neste momento uma relação entre a obra Genealogia
dialética da utopia de Carlos Lima – recorrendo a outras sempre que julgarmos necessário – e
o conceito de modernidade apresentado por Koselleck para então, a partir desta, apresentarmos
nossa leitura acerca do desenvolvimento do discurso utópico ao longo da história. Nossa
perspectiva, seja dito novamente, não se propõe a ser conclusiva nem pôde ser exaustivamente
colocada à prova ao longo do trabalho dada sua extensão; ela servirá, porém, de ponto de partida
para a reflexão desenvolvida na próxima seção e que nos permitirá inserir a ideia de utopia em
uma continuidade histórica mais ampla.
Como apontamos anteriormente, a utopia, enquanto termo específico nomeando um
determinado conceito, tem seu surgimento com a publicação d’A Utopia de Thomas More em
1516. Nela, o escritor constrói ficcionalmente a ilha de Utopia, situada em algum lugar
desconhecido do planeta onde os assuntos políticos são discutidos às claras em assembleias,
onde todos possuiriam um trabalho – de modo que assim não caberia a um mais trabalho por
conta do outro não dispor de nenhum, onde não há propriedade privada; enfim, boa parte dos
problemas sociais e suas origens à época do autor viam-se superados em seu texto literário. Sem
querermos nos aprofundar na obra, a qual já foi e continua sendo objeto de estudos de inúmeros
autores, o que cabe ser destacado aqui é a tensão presente entre o mundo ficcional literário e a
realidade objetiva. Entre estes dois elementos, estabelece-se uma tensão presente já desde o
título da obra, conforme vimos na seção anterior. Cabe aqui citarmos Coelho (1980:18):
Se Thomas More escolheu a fabricação desta palavra foi porque a Inglaterra de seu
tempo era um lugar onde não apenas inexistia a liberdade de expressão como também
22
Ver The Story of Utopias de Lewis Mumford, Utopian Thought in the Western World de Frank E. Manuel e
Fritzie P. Manuel, além das mencionadas por Carlos Lima, a cuja obra nos remetemos neste trabalho, L’Utopie et
les utopies de Raymond Ruyer e Historie de l’utopie de Jean Servier.
51
Podemos falar aqui em uma impossibilidade histórica para que as ideias de More pudessem ser
transpostas em um programa de ações políticas mais específico 23, cabendo ao impulso utópico
do autor ter se convertido exclusivamente em uma forma literária; o que, por outro lado,
instaurou-se como a fundação da utopia enquanto um gênero literário específico, influenciando
a posteriori outras formas textuais literárias semelhantes, proporcionando assim um formato
válido e digno de ser reproduzido para que se tornassem manifestas ideias utópicas.
Contudo, o autor inglês não se coloca historicamente como a origem do pensamento
utópico. Será na cultura grega e em suas produções literárias que poderemos localizar aquela
que pode ser considerada a primeira obra com traços utópicos de que se tem registro; trata-se
do poema Trabalhos e dias de Hesíodo, que teria vivido durante o século VIII a.c. (cf.
LAURIOLA, 2009, p.93; JACOBY, 2007, p. 73). Em sua obra, o poeta grego discorre sobre a
“Idade do Ouro”, uma época em que não havia entre os homens qualquer tipo de conflito ou
preocupações, onde predominavam a paz e a justiça. Não obstante, é com “A República” de
Platão que teremos a primeira obra dedicada exclusivamente à reflexão sobre a cidade ideal, e
com considerável nível de sistematicidade. A obra pode ser entendida como uma reação do
autor grego às transformações causadas pela guerra do Peloponeso e que resultaram na derrota
de Atenas, dando início a seu declínio. Platão concebe, então, sua república a partir de sua
divisão em classes sociais, nas quais os homens seriam distribuídos com base em suas funções.
São separados aqui governantes, auxiliares e o resto da população. Mais especificamente, e
como pertencente à primeira destas classes, Platão entende a figura do filósofo como aquele
que estaria em condições de dirigir seu estado perfeito. Conforme sintetizado por Petitfils
(1977:14):
[...] Platão pretende propor um modelo de cidade capaz de tornar os seres humanos
perfeitamente virtuosos. Para atingir este louvável objetivo, considera indispensável
separar o poder político do poder econômico. É por essa razão que retoma a divisão
em três categorias, feita por Hipódamo: os guardiães do Estado, os militares e os
trabalhadores, que se recrutariam por seleção natural e por cooptação. Todas as
23
Muito se fala de sua obra, mas não são muitas as vezes em que os olhares se voltam para o indivíduo Thomas
More. Em sua trajetória biográfica mesma podemos novamente ver a tensão que a sua utopia trazia consigo. Cabe
quanto a isto a passagem de Jacoby (2007:87): “O mundo muda depois de More escrever a Utopia. O luteranismo,
o anabatismo e as guerras camponesas varreram a Europa. O utopismo, que outrora parecia inócuo a More, agora
lhe parece uma especulação perigosa [...]. Na Utopia More defende, em parte com seriedade e em parte com
jocosidade, um tipo de comunismo. Mas, com a afluência da Reforma, ele passa a atacar o comunismo dos
anabatistas como uma heresia horrível – e a defender os ricos proprietários”.
52
Pela primeira vez na história, a utopia emerge dos estratos oprimidos da sociedade.
Não é mais um filósofo que pensa a cidade perfeita em nenhum lugar ou nas regiões
supracelestes: são as condições concretas da sociedade da época que levam um gripo
social a se rebelar contra a opressão.
24
Para um estudo mais aprofundado acerca destes socialistas, suas vidas e obras, ver o texto integral de Os
socialismos utópicos de Jean-Christian Petitfils, citado aqui repetidas vezes.
54
homens através de relações comerciais e econômicas que tenham como finalidade maior uma
sociedade sem luta de classes e pautada na ciência da produção. Para Engels (1987:195), porém,
o projeto possuía suas debilidades:
25
No original em alemão: “Wer aber sollte leiten und herrschen? Nach Saint-Simon die Wissenschaft und die
Industrie, beide zusammengehalten durch ein neues religiöses Band, bestimmt, die seit der Reformation gesprengte
Einheit der religiösen Anschauungen wiederherzustellen, ein notwendig mystisches und streng hierarchisches
„neues Christentum" . Aber die Wissenschaft, das waren die Schulgelehrten, und die Industrie, das waren in erster
Linie die aktiven Bourgeois, Fabrikanten, Kaufleute, Bankiers. Diese Bourgeois sollten sich zwar in eine Art
öffentlicher Beamten, gesellschaftlicher Vertrauensleute, verwandeln, aber doch gegenüber den Arbeitern eine
gebietende und auch ökonomisch bevorzugte Stellung behalten”. Todas as passagens aqui transcritas de Engels
(1987) tiveram suas correspondentes traduções extraídas da versão digital em Português da obra disponível em
http://www.marxists.org/portugues/marx/1880/socialismo/index.htm.
26
No original em alemão: “Alle gesellschaftlichen Bewegungen, alle wirklichen Fortschritte, die in England im
Interesse der Arbeiter zustande gekommen, knüpfen sich an den Namen Owen”.
55
somente isto. Citemos o que Engels (ibid.:196) diz a seu respeito, em extensa, porém relevante
passagem:
Fourier pega a burguesia pela palavra, por seus inflamados profetas de antes e seus
Interesseiros aduladores de depois da revolução. Põe a nu, impiedosamente, a miséria
material e moral do mundo burguês, e a compara com as fascinantes promessas dos
velhos enciclopedistas, com a imagem que eles faziam da sociedade em que a razão
reinaria sozinha, de urna civilização que faria felizes todos os homens e de uma
ilimitada capacidade humana de perfeição. Desmascara as brilhantes frases dos
ideólogos burgueses da época, demonstra como a essas frases grandiloqüentes
corresponde, por toda parte, a mais cruel das realidades e derrama sua sátira mordaz
sobre esse ruidoso fracasso da fraseologia. Fourier não é apenas um crítico; seu
espírito sempre jovial faz dele um satírico, um dos maiores satíricos de todos os
tempos27.
O nome de Fourier ganhou ainda mais destaque com a criação de seu falanstério, a célula
elementar da sociedade em que poderão se ver concretizadas as ideias do socialista francês.
Nela, a economia é predominantemente agrícola e tudo se compartilha. Em seu programa
libertário esvanece a instituição da família e os indivíduos se encontram livres para saciarem
seus prazeres sensuais; sem que contudo o amor seja posto de lado, mantendo-se esse como
uma “combinação de sentimento e de inclinação sensual, tudo isso levando a uma religião
orgiástica que cultua o deus Eros (PETITFILS, op. cit.:103)”.
Discorremos brevemente sobre estes três nomes apresentando sistematicamente as
respectivas leituras feitas por Engels em seu Die Entwicklung des Sozialismus von der Utopie
zur Wissenschaft não de modo gratuito. Estes três socialistas, a despeito das especificidades dos
projetos de cada um, constituem a etapa histórica específica na qual o impulso utópico,
manifesto através de discursos proferidos nas obras dos três, adquire um programa utópico
concreto de transformação social objetiva e engajada, de ação política efetiva. Estes três
homens, cada um a seu modo, posicionaram-se diante de uma Europa em que efervescia a
Revolução Industrial e na qual o modo capitalista de produção já imprimia seus efeitos sociais,
especialmente visíveis nas grandes cidades e em meio a uma quantidade cada vez maior de
indivíduos pertencentes à classe proletária.
27
No original em alemão: “Fourier nimmt die Bourgeoisie, ihre begeisterten Propheten von vor und ihre
interessierten Lobhudler von nach der Revolution beim Wort. Er deckt die materielle und moralische Misere der
bürgerlichen Welt unbarmherzig auf; er hält daneben sowohl die gleißenden Versprechungen der frühern
Aufklärer von der Gesellschaft, in der nur die Vernunft herrschen werde, von der alles beglückenden Zivilisation,
von der grenzenlosen menschlichen Vervollkommnungsfähigkeit, wie auch die schönfärbenden Redensarten der
gleichzeitigen Bourgeois-Ideologen; er weist nach, wie der hochtönendsten Phrase überall die erbärmlichste
Wirklichkeit entspricht, und überschüttet dies rettungslose Fiasko der Phrase mit beißendem Spott. Fourier ist
nicht nur Kritiker, seine ewig heitre Natur macht ihn zum Satiriker, und zwar zu einem der größten Satiriker aller
Zeiten.”
56
28
O milenarismo é uma doutrina religiosa que tem por fundamento, baseando-se em leituras dos textos sagrados,
o regresso de Jesus Cristo para a formação do Reino de Deus sobre a Terra, com duração de mil anos, o que
justifica o termo.
57
programa utópico voltado para a ação política concreta, historicamente situada a ser realizada
pelo proletariado, entendido como o sujeito histórico revolucionário a quem cabia, segundo
Marx em seu tempo, as rédeas da revolução.
A este “lançar-se na história”, conforme apresentamos aqui, vincula-se estreitamente o
conceito de modernidade conforme caracterizado por Reinhart Koselleck.
Para o historiador alemão, até o século XVI predominava, por forte influência do
cristianismo e do poder do qual gozava a instituição da Igreja católica, uma perspectiva de
futuro relacionada à ideia do fim do mundo. Nas palavras do autor:
O final dos tempos, permanentemente sendo adiado pela Igreja, transformando a sua história
na história mesma da salvação, foi, por diversos fatores, paulatinamente perdendo espaço para
uma nova configuração de futuro. Ao longo do século XVII o Estado passou a intervir mais
ativamente frente a movimentos proféticos que adquiriam cada vez mais um caráter de ação
política mais efetiva; além de ter se desenvolvido um “antagonismo literário entre os espíritos
humanístico e cético contra os oráculos e outras superstições do mesmo tipo (id., ibid.:30)”.
Neste contexto, o futuro passa a se mostrar como um campo de possibilidades, no qual
o homem passa a ser agente de sua própria história. Isto se dá, segundo o autor, especialmente
em razão de dois aspectos: os prognósticos racionais e a filosofia da história. Relacionado com
a situação política, o prognóstico racional, partindo dos acontecimentos temporais e mundanos,
atuou como um fato de integração do Estado, ao qual passou a caber o cálculo político de
possibilidades de ações. Estas ações políticas do Estado diante dos tempos vindouros baseada
em prognósticos racionais, porém, não o tornava totalmente desprendido de seu tempo. Como
afirma Koselleck (ibid.:36):
[...] o prognóstico político tinha uma estrutura temporal estática, enquanto operasse
com grandezas naturais, cuja capacidade potencial de repetição constituía o caráter
circular de sua história. O prognóstico implica um diagnóstico capaz de inscrever o
passado no futuro. Por essa qualidade futura continuamente garantida ao passado é
possível tanto assegurar quanto limitar o espaço de manobra do Estado. À medida que
o passado só pode ser experimentado porque ele mesmo contém um elemento de
futuridade — e vice-versa —, a existência política do Estado é tributária de uma
estrutura temporal que pode ser entendida como uma capacidade estática de
movimentação
58
Seria preciso então que surgisse a filosofia da história para tornar a modernidade desligada de
seu próprio passado, projetando para si uma perspectiva de futuro inédito. Este pensamento
filosófico, produto do século XVIII de espírito iluminista, passou a entender a história como
processo e a ela se liga a noção de progresso:
Tomadas estas transformações, Koselleck (ibid.:314) apresenta então a sua tese de que
“só se pode conceber a modernidade como um tempo novo a partir do momento em que as
expectativas passam a distanciar-se cada vez mais das experiências feitas até então”. Para tanto,
o historiador alemão se vale da aplicação à história de dois conceitos por ele cunhados: o espaço
de experiência e o horizonte de expectativa. Quanto ao espaço de experiência, trata-se do
passado atual em que, a partir tanto de uma elaboração racional quanto de formas inconscientes
de comportamento, incorporam-se acontecimentos e experiências que são compartilhadas na
vida social concreta e historicamente situada. Já quanto ao horizonte de expectativa, trata-se do
futuro presente que se lança ao futuro enquanto aquilo que ainda não foi experimentado e
realizado, podendo tão somente ser previsto e imaginado. Nas palavras do autor: “[h]orizonte
quer dizer aquela linha por trás da qual se abre no futuro um novo espaço de experiência, mas
um espaço que ainda não pode ser contemplado (ibid.:311)”. Caracteriza-se, portanto, a
modernidade pelo distanciamento entre o experienciado e o esperado, adquirindo este último
um coeficiente de mudança que se desenvolve com o tempo (cf. id., ibid.:317).
Tendo sido exposta uma apresentação mais abrangente do discurso utópico ao longo da
história e as reflexões de Koselleck acerca da modernidade, eis então a síntese de nosso
argumento: o desenvolvimento do pensamento utópico ao longo da história relaciona-se
homologamente ao processo de descortinamento de um tempo futuro no qual a ação divina é
substituída pela ação do homem, centrado enquanto sujeito de sua própria história, e que,
impelido por uma noção de progresso, se lança à transformação da natureza e da sociedade29.
29
O mesmo argumento pode ser visto em Ianni (2006:12): “[...] no seio da modernidade, juntamente com o
empenho em conhecer, explicar e redimir o indivíduo e o povo, está presente ou subjacente a intenção de projetar
o que pode ser o futuro, a sociedade ideal, a comunidade por excelência, a utopia; em geral, com o empenho de
exorcizar os males do presente, sublimando o que poderia ser desejável, realizando imaginariamente o que se
revela impossível no presente”.
59
Como pretendemos sustentar, a modernidade foi o seio para o florescimento das utopias
que, ao longo de seu percurso histórico, lançou o homem à transformação da realidade que o
cercava, situando a si próprio enquanto sujeito histórico. Defendemos também que o ápice deste
movimento se deu com a filosofia marxista e seu respectivo projeto emancipatório e
revolucionário. Contudo, desde algumas décadas, a utopia vem sendo esmaecida e dando lugar
a um espírito de conformismo, onde pensar um amanhã superior ao hoje parece não passar de
uma fantasia que não se deve ser levada a sério. Isto se verifica nos mais diversos autores. Para
Jameson (2010:23), “(…) a bandeira da utopia foi deixada para os críticos e inimigos da
globalização do livre mercado e se tornou o grito de guerra unificador ou o significante vazio
de todas aquelas forças políticas que estejam tentando imaginar como um outro mundo poderia
ser possível” [tradução própria]30. Hayden White (2007:17), conhecido historiador, também
constata:
Numa palavra, em nosso tempo, o discurso utópico, o discurso daquilo que poderia e
deveria ser - em contraste com o discurso do que é, de qual é o caso, realidade, o real,
as coisas como elas são, etc. - este discurso não é mais desejável, não é, do ponto de
vista da razão instrumental que prevalece em nossas ciências sociais, sequer possível
[tradução própria]31.
Lacroix (op. cit.:21) se questiona: “O tempo das utopias não acabou”? E prossegue: “A época
é de duro realismo, para não dizer desesperança. Os povos parecem não ter mais projetos
grandiosos, que são até mesmo rejeitados”. E como deixar de mencionar aqui Herbert Marcuse,
que em 1967 proferiu na Freie Universität Berlin a palestra de título Das Ende der Utopie (O
fim da utopia), vindo a ser publicada em livro com o mesmo título junto a outras conferências
no mesmo ano. E as transcrições e menções a autores aqui poderiam se multiplicar.
Se por um lado pensadores apontaram para o enfraquecimento da utopia – ou mesmo
seu fim – e os “utopistas evitam dar-nos a visão de um futuro maravilhoso (PETITFILS, op.
cit.:182)” – por outro, podemos verificar a formação de um conjunto de obras literárias que
30
No original em inglês: “(…) the banner of utopia has been passed to the critics and the enemies of free- market
globalization and has become the unifying rallying cry or “empty signifier” of all those varied new political forces
who are trying to imagine how another world might be possible”.
31
No original em inglês: “In a word, in our time, utopian discourse, the discourse of “what might be” and “what
ought to be” – in contrast to the discourse of “what is”, “what is the case”, reality, the real, things as they are,
etc. – this discourse we are told is not only no longer desirable, it is not, from the standpoint of that instrumental
reason which prevails in our social sciences, even possible”.
60
passaram a situar no futuro não mais o bom lugar, mas um lugar de caos, com ares pessimistas
e fustigado com catástrofes. Eis o que a história nos mostra: o impulso utópico, manifesto
anteriormente em ficções literárias ricas em detalhes sobre a organização social perfeita, cede
espaço para a representação de futuros distópicos, manifestos igualmente em formas literárias.
Voltemos nossos olhares para o início do século XXI. “What’s behind the boom in
dystopian fiction for young readers? (MILLER, 2010)” pergunta-se aqui. “Why is Teen
Dystopian Literature on the Rise? (MEINZER, 2011)” pergunta-se acolá. Ou ainda, “Why do
apocalyptic portrayals of existence dominate teen shelves? (SARNER, 2014)”. Tantas outras
perguntas similares poderiam ser aqui transcritas. Elas figuram em seções de crítica cultural e
literária de diversas revistas norte-americanas contemporâneas. No Brasil, há também quem o
diga: “Comum no início do século XX, livros com governos controladores e falta de liberdade
voltaram às livrarias e conquistaram o gosto dos jovens que, céticos, não se identificam mais
com finais felizes (CARNEIRO, 2013)”. A despeito da incerta credibilidade do site, se
examinarmos o artigo List of dystopian literature da Wikipédia em inglês, veremos que, ao
menos à época da produção do presente artigo, a seção correspondente à produção literária
distópica das primeiras décadas do século XXI conta com quase 90 títulos; já no que diz respeito
à produção de todo o século XX, verificamos que o total das obras não chega a 130. Estes são
apenas indícios concernentes ao fenômeno do expressivo aumento no século XXI da produção
e do consumo de obras de literatura32 que trazem em suas construções narrativas o elemento da
distopia33. Eis aqui apresentados apenas alguns dos exemplos reais daquilo que, à introdução,
apresentamos como sendo a inquietação inicial de nossa pesquisa, precisamente a presença
contemporânea de uma série de produções simbólicas nas quais se vê funcionalizado o conceito
de distopia.
Registrado pela primeira vez em 1868 por John Stuart Mill em um discurso parlamentar,
o conceito de distopia poderia ser simplesmente definido por meio de sua simples contraposição
ao conceito de “utopia”, o que não nos parece um procedimento adequado 34. Um método mais
válido para esta definição parece-nos ser o que confronta eutopia e distopia. Ou seja, trata-se
da oposição entre o “bom lugar” e o “lugar ruim”, com o prefixo dis- instaurando a avaliação
32
Referimo-nos aqui a obras literárias, mas não devemos deixar de mencionar que estas narrativas ganharam suas
versões em outras formas de produção artística como o cinema, histórias em quadrinhos, séries de televisão, e
mesmo em jogos eletrônicos.
33
Quanto à produção nacional, convém citar, inclusive para fins de divulgação, as obras Cyberbrasiliana (2010)
de Richard Diegues, Admirável Brasil Novo (2011) de Ruy Tapioca, A ilha dos dissidentes (2013) de Bárbara
Morais e A torre acima do véu (2014) de Roberta Spindler.
34
Como por exemplo George Mann (2001:477) em The Mammoth Encyclopedia of Science Fiction, que afirma
ser uma distopia o oposto de uma utopia.
61
35
No original em inglês: “[…] writers like Jonathan Swift were already warning of the potential dangers
(especially spiritual) of an overreliance on scientific and technological methods of thought and problem solving”.
62
nele o espírito distópico se impõe como motivo em diversas obras. Se anteriormente a crítica e
a descrença quanto ao progresso surgiam como discursos periféricos, neste momento elas
passam a ganhar força, e seu lócus principal será a literatura. Consideramos aqui como os
principais romances distópicos do século XX: Nós de Yevgeny Zamyatin (1924); Admirável
Mundo Novo de Aldous Huxley (1932), 1984 de George Orwell (1949); Fahrenheit 451 de Ray
Bradbury (1953); Laranja Mecânica de Anthony Burgess (1962) e ainda O caçador de
androides de Philip K. Dick (1968). E isso se selecionarmos apenas os romances, que, pela
extensão própria do formato, transformaram-se em clássicos absolutos que influenciaram e
influenciam consideravelmente a produção de obras similares. Portanto, falarmos aqui em
virada distópica significa apontar para a profusão de obras de literatura distópica acompanhadas
– e com o que estabelece uma relação dialética – do esmaecimento das representações literárias
utópicas ou mesmo do impulso utópico per se, conforme apresentamos ao início desta seção.
Caberia então nos questionarmos: que fatores teriam condicionado esta virada?
Apresentaremos aqueles que se nos apresentam como os mais relevantes.
Em primeiro lugar, há que se considerar o impacto que a desilusão com as promessas
do socialismo teve no pensamento utópico. Conforme apontamos anteriormente, o ideal de uma
sociedade sem pobreza e exploração atingiu o seu ápice de concretude em Marx e sua
perspectiva revolucionária. Porém, conforme aponta Alexander (1990:23), “a desilusão
intelectual com as progressivas promessas do socialismo e do comunismo é um dos mais
distintivos elementos que se desenvolvem ao final do século XX” [tradução própria]36. Portanto,
na mesma medida em que o socialismo foi o componente central da utopia moderna, a sua
derrocada implica a derrocada da utopia. Conquanto houvesse uma distinção entre a utopia
ficcional e as formas das teorias sociais utópicas, o descrédito quanto às últimas corresponderia
também a um descrédito quanto às primeiras (cf. KUMAR, 1993). Este argumento é endossado
por Zaki (1984:124), quando afirma que o desaparecimento do pensamento utópico coincide
com a consolidação do poder da burguesia sem que houvesse qualquer força equivalente que se
colocasse como alternativa à sua hegemonia.
Em segundo lugar, e estes são os aspectos mais evidentes, há ao longo da história do
século XX uma série de eventos nos quais a humanidade se deparou com o potencial destrutivo
da tecnologia, fruto da utilização da ciência para fins militares. Poderíamos aqui listar uma série
de conflitos armados de menores proporções, mas basta que nos lembremos dos impactos das
duas grandes Guerras Mundiais, dos regimes totalitários nelas envolvidos, e do período da
36
No original em inglês: “Certainly intellectual disillusionment with the progressive promises of socialism and
communism is one of the most distinctive developments of the late twentieth century”.
63
Guerra Fria. Nesta, o temor de uma catástrofe nuclear rememorava sempre o lançamento das
bombas em Hiroshima e Nagasaki. Gerações se desenvolveram com o temor diário e cada vez
mais latente de que um confronto ocorreria a qualquer momento (cf. HOBSBAWN, 2012:224).
Segundo Feenberg (1995:41), “desde a segunda guerra [...] profecias do fim do mundo se
tornaram clichês na boca de qualquer um” [tradução própria]. Deve ser aqui mencionado ainda
o conceito de Big Science (REYNOLDS, 2012:378), ideia central para a década de 60 e que
denota a combinação de investimentos, equipamentos e capital humano em áreas de atividades
científicas, tecnológicas e industriais, que faz surgir o que podemos chamar de um complexo
governamental-industrial-acadêmico. Tem-se assim a noção de que a ciência e a tecnologia
poderiam ser apropriadas por grupos sociais em conflito para causar um ao outro nada além de
destruição e morte. Assim, o conhecimento no qual outrora se depositava a esperança de um
mundo melhor e mais justo para os homens, passou a se tornar um instrumento bélico e de
subjugo do homem pelo próprio homem.
Em terceiro lugar, podemos destacar na história do pensamento intelectual alguns nomes
que puseram em xeque a hegemonia do pensamento científico e racional, elementos
fundamentais do projeto iluminista. Trata-se, conforme aponta Marcondes (2004), da ruptura
com a tradição racionalista que se dá com o pensamento alemão pós-kantiano, com a tradição
romântica e especialmente através das figuras de Schopenhauer, Kierkegaard e, com maior
destaque, Nietzsche. Ou ainda, segundo Booker (1994:9), a figura de Freud, que, quando da
publicação de seu A Civilização e seus descontentes, sugere que a busca pela felicidade, por
mais que inerente ao homem, não poderia ser ela integralmente saciada, dado que uma
organização social civilizada pressupõe ela mesma uma contraposição a impulsos humanos
básicos. Mais do que isto, é com Freud que se perceberá que o homem não age em todos os
momentos de sua vida tão somente por conta de intenções racionais, dispondo ele de um
componente de irracionalidade que o constitui e que afeta em grande medida boa parte de sua
consciência. Portanto, podemos dizer que ao longo do século XIX e no início do século XX
com Freud, desenvolveu-se um complexo de ideias filosóficas que questionaram a centralidade
da razão no pensamento humano, o que, por conseguinte, converteu em desconfiança a crença
aqui já mencionada de que a razão e o progresso trariam inevitavelmente tão somente benefícios
para a humanidade.
Portanto, a apropriação concreta e efetiva de engenhos humanos proporcionados pelo
desenvolvimento dos conhecimentos científicos e tecnológicos que tiveram como resultado
mortes e destruições, somado a um corpo filosófico de autores que trouxeram questionamentos
acerca do papel do pensamento racional para a humanidade, forneceram os subsídios suficientes
64
para que a crença em um futuro melhor, ao qual se chegaria precisamente através da razão, do
progresso, da ciência e da tecnologia, desse lugar a uma perspectiva de futuro mais pessimista
e soturna, ocorrendo assim a profusão de obras de literatura distópica ao longo do século XX e
que se mantém nas primeiras décadas do século XXI.
Conforme dito anteriormente, não podemos dizer que a distopia é o oposto da utopia e
devemos falar agora de uma forma de pensamento antiutópica que se desenvolve a partir da
segunda metade do século XX, conforme nos aponta Jacoby (op. cit.:89), a partir da publicação
de algumas obras em meados do século XX que tiveram grande repercussão nos campos
intelectuais. São elas Na senda do milênio (1957) de Norman Cohn, A sociedade aberta e seus
inimigos (1945) de Karl Popper, The Origins of Totalitarian Democracy (1951) de J. L. Talmon,
As origens do totalitarismo (1951) de Hannah Arendt, além de alguns ensaios de Isaiah Berlin.
Desconsiderando suas especificidades37, sobre o que não há espaço para discutirmos aqui, estas
obras se prestam a expor os perigos do pensamento utópico. Em comum, a ideia era de que a
tentativa de realização de um ideal totalizante a partir de profecias salvacionistas acabaria
necessariamente por levar a formas ditatoriais. Com a estreita relação entre o pensamento
utópico e a perspectiva revolucionária presente no pensamento de Marx, não demoraria muito
para que este antiutopismo ganhasse traços antimarxistas\antissocialistas\anticomunistas na
crítica destes autores à experiência socialista em sua época.
A virada distópica e o pensamento antiutópico não se deixam reduzir um ao outro, e
mesmo uma relação de complementaridade ou homologia carece de bases mais sólidas, visto
que uma representação literária distópica não necessariamente trata o pensamento utópico como
algo a ser posto de lado. “Distopias que não deixam espaço para a esperança falham de fato em
sua missão” [tradução própria]38, afirma Vieira (2010:17). Fato é que algumas das principais
obras distópicas aqui citadas como paradigmáticas para o gênero partiram das experiências reais
soviéticas, a mais concreta das realizações de um projeto utópico revolucionário. Porém, estas
não se resumem a uma crítica do socialismo. Mesmo o modo de organização política e
econômica capitalista se tornou ele próprio matéria para extrapolações distópicas – como
podemos perceber em O caçador de androides de Philip K. Dick; apenas para nos remetermos
a uma das obras aqui citadas. Para além do sonho socialista posto em prática e os caminhos
tortuosos que este tenha tomado ao longo da história, a antiutopia é uma defesa explícita ou
implícita do status quo (cf. FITTING, 2010:141). O que podemos dizer, sem qualquer sombra
de dúvida, é que tanto o antiutopismo quanto o pensamento distópico dispuseram a um mesmo
37
Para um aprofundamento nos aspectos de cada obra em especial, ver o capítulo 2 em Jacoby (op. cit.).
38
No original em inglês: “Dystopias that leave no room for hope do in fact fail in their mission”.
65
39
Em todos os momentos nos quais ocorra o termo “pós-modernismo” neste trabalho, não estaremos nos referindo
ao movimento estético, e sim a um corpo heterogêneo de posturas intelectuais que se veem reverberadas ao longo
das mais diferentes áreas do saber e de diferentes produções simbólicas e culturais.
67
das últimas décadas cada vez mais complexas e atomizadas, acabam por ter seu caráter
totalizante compreendido como algo totalitário, que fere as liberdades individuais e as
peculiaridades de cada luta política em particular destes grupos. Mais do que isto, posta de lado
a racionalidade humana, a realidade passa então a ser vista como algo difuso e sem qualquer
elemento unificador que nos permita compreendê-la em seus funcionamentos internos mais
amplos e o singular toma o espaço do universal. Cada qual, por sua vez, a interpreta do jeito
que mais o apetece, sejam estas interpretações condizentes com a realidade de fato ou não. Tudo
se torna um joguete político onde toda e qualquer opinião se resume tão somente à legitimação
de um saber racional que atende unicamente a fins da manutenção da assimetria de poder entre
“aqueles que sabem” e “aqueles que não sabem”.
Há quem diga que aprendemos sobre a história para não cometermos os erros do passado.
Erros ou acertos ao longo do tempo, eles estão sempre, antes de suas realizações, situados num
futuro mais ou menos distante. Mas se “o centro de gravidade temporal de nossas sociedades
se deslocou do futuro para o presente (LIPOVETSKTY, 2004:59)”, de que nos serve o passado?
Passado e futuro perdem sua importância, o presente se cristaliza. O termo utopia atrofia-se e
passa a denotar a impossibilidade de qualquer transformação social mais radical. As
experiências do passado parecem apenas reafirmá-lo. Deveríamos porém nos perguntarmos:
não seriam precisamente estas experiências, necessariamente falhas e lacunares, que poderiam
nos apontar para uma via de aprimoramento? Sob a égide de um discurso silenciador, o homem
é visto como sendo incorrigível, e traz em si uma natureza tal que qualquer organização social
livre de exploração e de desigualdades sociais se apresenta como algo impensável. Decretado
assim o fim da história, o individualismo burguês atinge o seu ápice em uma total ruptura entre
as esferas da vida privada e pública. Em consequência, somos sistematicamente levados a
fechar os olhos para o mundo. Um mundo em que crises econômicas têm recorrência cíclica,
em que os Estados se veem submetidos ao controle da iniciativa privada e das megacorporações,
em que a lógica do lucro se sobrepõe às questões ecológicas e sociais, em que a desigualdade
social mantém-se em níveis elevados mesmo em países desenvolvidos. Renunciar ao futuro é
uma aceitação tácita – ou cínica – de todas as tendências nocivas que o sistema capitalista
apresenta em sua essência. Não se infira aqui que neste breve texto se trate de uma defesa
tacanha e ortodoxa deste ou daquele sistema político, mas da defesa e da revalorização da
imaginação utópica. É urgente que reconheçamos no presente a necessidade de transformações
sociais que nos aproximem de um ideal humanista, em cuja concepção postulamos a meta
libertária de sermos, e não de termos, de consumirmos, ou, simplesmente, de parecermos.
69
Não é possível, porém, que olhemos para o amanhã sem buscarmos no presente os
subsídios suficientes para desejemos o porvir. Querer o ainda-não-ser é, antes de mais nada,
conhecer aquilo que se é. Neste sentido, somente uma forma de pensamento que se debruce
sobre a realidade e tente compreendê-la em seus princípios universais, princípios que estejam
para além das subjetividades, pode pôr-nos em condições de transformar essa realidade. Para
tal, é imprescindível que nos valhamos de métodos rigorosos e de uma observação empírica, a
despeito de qualquer inclinação política – seja ela qual for.
É curioso que se inflamem certos discursos contra o conhecimento científico em tantos
casos, mas que recorramos imediatamente a ele quando nos vemos assolados por enfermidades
– ou ainda quando desejamos fazer valer o nosso ponto de vista. O que propomos aqui é,
portanto, uma ética mais responsável na avaliação axiológica do conhecimento científico –
indispensavelmente vinculado a qualquer programa utópico que se queira efetivo. Assim, à
guisa de conclusão, para uma defesa da utopia como contraposição ética ao pós-modernismo,
apresentamos as seguintes teses: a) a negação do futuro utópico é uma legitimação do status
quo capitalista contemporâneo e de todos os seus malefícios, b) o fracasso das experiências
alternativas a este status quo não o tornam mais desejável, c) o relativismo pós-moderno nos
ausenta de uma reflexão crítica em que se considerem os fenômenos em sua materialidade
objetiva, o que abre margens, inclusive, para a apropriação política de “verdades” que não
condizem com a realidade empírica e verificável, d) o materialismo, enquanto base
epistemológica presente em uma filosofia da práxis não contemplativa, se apresenta como a
devida alternativa a este relativismo, e) há uma confusão entre dois elementos de ordem
distintas: o pensamento racional e científico e a apropriação política destes conhecimentos; o
primeiro não deve ser recusado em função do segundo, f) questões que nos parecem centrais
em nossa contemporaneidade como a exploração, a luta de classes, os fenômenos da alienação
e da reificação, dentre outros, são sistematicamente postas de lado, e somente uma aproximação
com a filosofia marxista (de Marx a Žižek, com todas as suas contradições e aporias) pode nos
fazer refletir sobre elas, sem o que só nos resta fechar os olhos para males que afligem
diariamente milhares de indivíduos. Não nos iludimos com a ideia de que somente uma filosofia
da práxis, não contemplativa e materialista, nos ponha em condição de superarmos as mazelas
de nossa contemporaneidade. Acreditamos, porém, que sem ela renunciamos a um arsenal
crítico valioso para a constituição de nosso espírito utópico vivo e atuante.
40
A utilização dos termos impulso utópico em contraste com discurso utópico não é gratuita. Se o impulso utópico
pode se materializar sob a forma de um complexo textual discursivo, não podemos dizer que o complexo textual
discursivo distópico parta de um impulso distópico. Em termos de categorias, não há razão para falarmos em
“impulso distópico”.
41
Sargent, frequentemente citado em obras que tratem de distopia e utopia, resolve o problema de modo distinto.
Para o autor (1994:9) a utopia classifica-se em positiva e negativa – a primeira corresponde à eutopia e a segunda
à distopia. Não há, para o autor, a possibilidade de uma distopia anti-utópica, o que nos parece questionável. Já
Baccolini & Moylan (2003:7) partem do pressuposto de que os textos distópicos críticos mantém o impulso
utópico; o que nos levaria então a separar as distopias críticas das distopias não-críticas. Isto nos levaria a um
elemento distintivo de caráter, ao nosso ver, excessivamente subjetivo. Em uma perspectiva mais conservadora,
por exemplo, uma distopia anti-utópica poderia ser crítica no sentido de apontar as aporias dos projetos utópicos;
ao passo que aos olhos mais revolucionários ela de crítica nada teria.
72
O primeiro aspecto que aqui destacamos diz respeito ao protagonista – que pode ou não
ser narrador – comum nas narrativas distópicas. Diferentemente das utopias, não se trata mais
aqui de um indivíduo que, seja através de relatos ou de uma viagem, pôde estar em contato com
uma configuração social outra e superior em comparação àquela sua, e então para esta retorna
maravilhado e ansioso para apresentar ao resto do mundo o quão aquele lugar outro era melhor.
Conforme apontam Baccolini & Moylan (2003:5) e Moylan (op. cit.:148), se na terra utópica o
protagonista tende a ser um visitante, na distópica o protagonista se encontra já nela, como um
de seus habitantes, completamente imerso na sociedade que o cerca. Isto se torna fundamental
para a narrativa distópica, visto que esta imersão do protagonista é precisamente o que garantirá
a apreensão por parte do leitor da experiência do personagem em meio a seu caótico mundo (cf.
VARSAM, 2003:205). A descrição de um estrangeiro, típica da literatura utópica, converte-se
no relato biográfico de um habitante, e isto torna a representação do mundo ficcional distópico
ainda mais “verdadeira” para o leitor.
Em segundo lugar, destacamos aqui a posição de Varsam (op. cit.:206) e Booker (op.
cit.:19) ao afirmarem que a desfamiliarização42 é uma das principais técnicas exercidas pela
ficção distópica. Apoiando-se nesta aproximação entre leitor e protagonista, considerando a
reflexão do parágrafo anterior, o leitor se torna capaz de experienciar através do personagem as
contradições presentes no mundo distópico apresentado ficcionalmente. Estas contradições, por
sua vez, apresentam-se para o leitor enquanto extrapolações de sua própria realidade, e, uma
vez com elas confrontadas através da ficção, o seu olhar enquanto indivíduo (e não como
leitor43) passa a se deparar não mais diante de uma mesma realidade, mas de uma realidade
tornada outra, que se lhe tornou estranha. Com isso, estabelece-se aqui uma tensão entre aquilo
que o mundo de fato é e aquilo que ele poderia vir a ser.
Considerando que os elementos negativos representados em suas formas hiperbólicas
nas narrativas distópicas já se encontram potencialmente disponíveis na realidade do leitor,
decorre daí o terceiro aspecto que gostaríamos de mencionar aqui, e que diz respeito àquilo que
Vieira (op. cit.:17) denomina como sendo o caráter didático e moralista da narrativa distópica.
As imagens negativas do futuro nela presentes servem como um aviso para o leitor de que a
extrapolação ficcional pode vir a se tornar uma realidade concreta caso algo não seja feito para
42
Varsam utiliza o termo conforme proposto pelo formalista russo Viktor Chklovski (1999:82), para quem “[a]
finalidade da arte é dar uma sensação do objecto como visão e não como reconhecimento; o processo da arte é o
processo de singularização ostranenie - (estranhamento) dos objectos e o processo que consiste em obscurecer a
forma, em aumentar a dificuldade e a duração da percepção. O acto de percepção em arte é um fim em si e deve
ser prolongado; a arte é um meio de sentir o devir do objecto, aquilo que já se ‘tornou’ não interessa à arte.”
43
Ver seção 2.2.
73
que se o evite. Desta forma, propõe-se, em tese, que o leitor se sinta impelido a agir de algum
modo para que a representação catastrófica ficcional não encontre um equivalente em sua
própria realidade. Podemos ver esta característica da distopia no verbete “distopias” da
Encyclopedia of Science Fiction, segundo a qual as imagens distópicas proporcionam uma
“urgente propaganda de mudança de direção” (cf. STABLEFORD, 2015).
Devemos atentar para o fato de que estes três elementos apresentados – o protagonista
em in loco distópico, a desfamiliarização como técnica da literatura distópica e a função didática
desta – estabelecem entre si uma relação de complementariedade e juntos operam um processo
maior, o qual gostaríamos de chamar aqui de efeito de aproximação ou de familiarização.
Posicionamo-nos aqui de modo distinto a Booker e Varsam, pois ao nosso ver é este efeito que
se comporta como uma das marcas mais próprias da literatura distópica. Dissemos isto, pois o
que está em jogo nesta forma específica de fazer literário não é um estranhamento por parte do
leitor diante da sua realidade ou daquela ficcional; trata-se justamente do contrário. Este
processo de aproximação está presente a) na relação que se estabelece entre o leitor e a realidade
do mundo ficcional distópico, na medida em que este passa a observá-la com os olhos alguém
pertencente a este mundo; dito de outro modo, familiarizado com ele; b) na relação que se
estabelece entre o leitor e as contradições representadas hiperbolicamente, na medida em que a
distorção ficcional não se realiza sem um objeto primeiro a ser distorcido, objeto este
pertencente ao mundo real do leitor, àquele ao qual ele está familiarizado; confrontar-se com a
contradição extrapolada ficcionalmente é confrontar-se também com a própria realidade e c)
na relação que se estabelece entre o leitor e sua própria realidade, compreendida, a partir de
então, não mais somente em termos da realidade aparente, mas também em termos de realidades
possíveis, tornadas realizadas ficcionalmente através da literatura distópica. Neste sentido, o
leitor se familiariza com o protagonista; (especialmente em função disto) o leitor se familiariza
com a realidade ficcional do personagem, aproximando assim de sua própria realidade objetiva;
e, por fim, esta aproximação última se torna ainda mais intensa quando é acrescida à forma do
mundo tal como de fato ele é, formas potenciais de como o mundo pode vir a ser.
Por fim, para concluirmos este capítulo, a partir do exposto nesta seção podemos então
enumerar os elementos que nos parecem os mais fundamentais para uma definição do conceito
de distopia. Manteremos o mesmo formato de apresentação utilizado quando da definição do
conceito de utopia, de modo a realçar os contrastes entre os dois, estando implicitamente
contrapostos, quando possível, cada um dos pontos de cada conceito44. São então as
44
Ver final da seção 3.1.
74
45
Ver seção 2.3.
76
46
Não cabe aqui a tradução de “Verfremdung” como “alienação”, como se costuma ver em alguns lugares,
correspondendo esta à “Entfremdung” alemã; conceito, por sua vez, central na obra de Marx.
78
Para Chklovski, por outro lado, há uma relação entre o seu conceito de estranhamento e
a situação de automatização à qual ele se relaciona. Para o formalista russo, o ser humano tende
a transformar aquilo que lhe é habitual em algo automático, tanto em termos de suas ações
quanto em termos de seus próprios discursos. A arte, por sua vez, é justamente o momento em
que o natural, o automático, se torna estranho, desautomatizado47; o processo de percepção e
apreensão do objeto artístico é prolongado para que este seja sentido, e não simplesmente
reconhecido (cf. ROBINSON, 2008:79 et seq.).
Estes matizes de sentido quanto ao termo estranhamento, inseridos cada um em um
conjunto maior de ideias e perspectivas de cada autor, não somente não se faz presente como
Suvin comete ainda o equívoco, conforme aponta Spiegel (op. cit.:371), de confundir aspectos
ontológicos do texto ficcional per se com procedimentos formais de um gênero específico.
Como vimos na seção 2.2 do segundo capítulo deste trabalho, o texto ficcional pressupõe uma
alteração, reorganização, transformação ou rompimento da realidade objetiva do autor; não
seria descabido falar também em estranhamento desta realidade. O termo em Suvin se vê ainda
abrangendo a um mesmo tempo tanto um aspecto formal do gênero, quanto um efeito de
recepção por parte do leitor, na medida em que o novum ficcional permite com que este retorne
a sua realidade objetiva com uma nova perspectiva adquirida (cf. SUVIN, op. cit.:71).
Por fim, no que tange ao conceito de estranhamento, há, segundo Spiegel, uma inversão
de conceitos. Para Suvin, a FC se constitui narrativamente a partir do novum que concede à
realidade ficcional a qualidade de “estranhada”. Porém, o que ocorre é precisamente o contrário.
Quando, por exemplo, um personagem viaja no tempo através de uma máquina ou quando uma
bruxa de conto de fadas transforma um ser humano em um animal com sua vara de condão, não
se pode dizer que o primeiro é mais realista que o segundo. Porém, diferentemente do conto de
fadas, na FC há a expectativa por parte do leitor de que o mecanismo seja em alguma medida
racionalmente justificado, mesmo partindo de premissas que não se verificam empiricamente –
expectativa que é atendida por parte dos autores. Por isso afirma Spiegel (op. cit.:372) que na
FC “não é o familiar que é tornado estranho, mas sim o estranho é tornado familiar”.
Gregory Renault em seu artigo Science Fiction as Cognitive Estrangement: Darko Suvin
and the Marxist Critique of Mass culture também apresenta críticas à definição de Suvin, e nos
limitaremos aqui a apontar para a questão da cognição nela presente. Conforme Renault
(1980:131) aponta, o termo em Suvin apresenta um significado ambíguo, na medida em que,
vinculado às ideias de razão e de pensamento científico, são precisas o bastante para distinguir
47
A obra de arte, opondo-se ao habitual, é entendida sempre como algo singular – o que justifica a tradução de
ostranenie por singularização.
79
a FC do mito e das histórias fantásticas, mas, ao mesmo tempo, permite criaturas imaginárias e
eventos de textos utópicos – entendidos por Suvin como o subgênero sociopolítico da utopia.
Nesse sentido, o aspecto diferenciador do gênero acabar por se tornar amplo demais e perde sua
razão de ser.
Portanto, vemos que uma das definições mais correntes para a FC apresenta algumas
deficiências, conforme apontaram os autores supracitados. Não podemos, portanto, partir
exclusivamente de Darko Suvin para chegarmos aos três elementos que mencionamos
anteriormente (ciência\tecnologia, futuro como meio e não como fim e extrapolação) e que são,
ao nosso ver, as categorias centrais da FC. Considerando isto, tomemos aqui algumas
definições, apenas para fins de exemplificação, para que possamos então trazer de volta a
atenção para o elemento da extrapolação que apresentamos acima. Segundo L. David Allen
(1974:213), a FC é
[...] um subgênero da ficção em prosa que é distinguida de outros tipos de ficção pela
presença de uma extrapolação dos efeitos humanos de uma ciência extrapolada,
definida em termos gerais, assim como pela presença de “engenhos” produzidos pela
tecnologia resultante de ciências extrapoladas.
Tomemos agora uma passagem de Leo Godoy Otero em sua Introdução a uma história da
Ficção Científica:
Por fim, como um último exemplo, citamos aqui a definição de George Mann em sua The
Mammoth Encyclopedia of Science Fiction, outra obra de considerável porte para o estudo do
gênero e não pouco citada:
48
Parece-nos questionável associar o gênero da FC com a da literatura fantástica, ao menos se consideramos os
escritos de Tzvetan Todorov em sua Introdução à Literatura Fantástica. Há dois momentos em que baseamos
nossa argumentação. Todorov afirma que “[o] fantástico é a hesitação experimentada por um ser que só conhece
as leis naturais, face a um acontecimento aparentemente sobrenatural (2010:30-1)”; para em seguida dizer que na
FC “o sobrenatural é explicado de uma maneira racional mas a partir de leis que a ciência contemporânea não
reconhece. [...] a partir de premissas irracionais, os fatos se encadeiam de uma maneira perfeitamente lógica
(ibid.:63). Consideramos inadequado falar em “sobrenatural” ou em “premissas irracionais”. Ainda que
ficcionalmente não se possa colocar em níveis diferentes, aproveitando o exemplo já utilizado aqui, uma vara de
80
obstante, mostrar-se ciente acerca das questões à época de sua produção e apresentar
comentários implícitos acerca da sociedade contemporânea, explorando os efeitos,
materiais e psicológicos que qualquer nova tecnologia pode ter sobre ela. Quaisquer
mudanças futuras que ocorram nesta sociedade, assim como quaisquer ocorrências ou
eventos futuros extrapolados serão avaliadas teoricamente, cientificamente ou de
outro modo. Autores de FC terão em seus mundos imaginativos e desfamiliarizados
[strange] um local de testes para novas ideias, considerando de modo pleno as
implicações de qualquer noção que seja proposta (MANN, 2001:6) [tradução
própria]49.
condão e uma máquina do tempo não se vinculam de igual com a temática da ciência; nem no que diz respeito às
suas funções diegéticas imaginadas pelo autor, nem às expectativas por parte do leitor. Poderíamos ainda citar
Amis (1976), quando afirma que o fantástico tende a abandonar a verossimilhança, enquanto que a FC tende a
preservá-la.
49
No original em inglês: “SF is a form of fantastic literature that attempts to portray, in rational and realistic
terms, future times and environments that are different from our own. It will nevertheless show an awareness of
the concerns of the times in which it is written and provide implicit commentary on contemporary society,
exploring the effects, material and psychological, that any new technologies may have upon it. Any further changes
that take place in this society, as well as any extrapolated future events or occurrences, will have their basis in
measured and considered theory, scientific or otherwise. SF authors will use their strange and imaginative
environments as a testing ground for new ideas, considering in full the implications of any notion they propose”.
81
50
No original em inglês: “[…] technology-practice is thus the application of scientific and other knowledge to
practical tasks by ordered systems that involve people and organizations, living things and machines”.
51
O que não significa dizer que não haja cientistas entre leitores e autores. Também não podemos apresentar aqui
qualquer estatística ou dado mais preciso; considerando porém que muitas obras de FC figuram entre best-sellers
– especialmente nos E.U.A. – há de se imaginar que não somente este ou aquele grupo de acadêmicos as leia.
82
O autor aponta ainda, em uma perspectiva que não isola a ciência em seus princípios estruturais
internos, que no século XX, pontualmente à época da Segunda Guerra Mundial, a ciência, que
antes ocupava tão somente o lugar central do racionalismo de origem iluminista e estava voltada
exclusivamente para o bem da humanidade, acaba por vincular-se institucionalmente ao Estado
e seus militares e aos grupos sociais vinculados à atividade industrial52. Assim, o poder político
apropriou-se dos conhecimentos científicos para desenvolver aplicações militares-industriais e
já não se tornava mais possível separar a pesquisa civil da pesquisa militar – do que o Projeto
Manhattan foi o maior e mais desastroso exemplo. Salomon fala de um processo contínuo de
“fertilização cruzada” entre ciência e tecnologia, afirmando que
[m]uito poucas atividades científicas podem doravante ser dissociadas do apoio que
lhes é concedido pelo Estado ou pela indústria: o estatuto tradicionalmente autónomo
– ou que era reivindicado como tal – da ciência dentro das universidades é cada vez
mais contestado pelos laços de dependência que ela mantém em relação a instituições
que já não tem nada a ver com o sistema «acadêmico» (id., ibid.:141).
52
Ver conceito de Big Science mencionado na seção 3.3 do capítulo 3 deste trabalho.
83
do mercado no contexto da lógica econômica capitalista voltada para o lucro máximo e para o
consumo desenfreado de bens e serviços. Dito de modo bastante breve, dado que não se trata
aqui de investigar este problema mais a fundo – o que não impede que eles se vejam
representados em alguma medida nas narrativas de FC – pode-se destacar como aspectos
problemáticos da relação entre a produção científica e seus usos por parte do mercado e das
empresas, conforme aponta Vanderbeeken (2011:xi et seq.), o uso abusivo da “aura” da ciência
em ações de marketing (como quando se usa expressões do tipo “pesquisas mostram” ou “está
provado cientificamente que...”), a adoção de uma economia de publicações, em que a
produtividade científica é determinada muito mais pela quantidade do que pela qualidade, e,
por fim, a pressão exercida pelas patentes e pelas licenças no que diz respeito às descobertas
científicas53.
Em suma, ciência e tecnologia são práticas sociais complexas e imbricadas com valores,
instituições e pressões sociais, econômicas e políticas, não se encerrando no método científico,
na postura epistemológica racionalista que lhe é indispensável ou na aplicação prática do
conhecimento única e exclusivamente para resolver um determinado problema que aflige a
humanidade. Por outro lado, e é bom que isto seja deixado bastante claro, como apontamos na
seção 3.3 de nosso trabalho, não estamos aqui nos posicionando contra o conhecimento racional
ou descartando os princípios mais fundamentais da prática científica e que a distinguem de
outras formas de conhecimento que prescindem da verificação empírica de seus conteúdos,
usando a autoridade de certos homens ou de instâncias divinas como meio de legitimação
destes. No gênero da FC, estas duas perspectivas se veem presentes: a ciência pode tanto se ver
representada em função de suas corrupções e apropriações indevidas por parte de um grupo
social ou de todo um sistema, quanto pode ser justamente através dela junto a uma invenção
tecnológica que a tensão promovida pela narrativa seja resolvida. Como aponta Huntington
(1975:348), “[o]s dois polos ideológicos da FC diferem quanto às atitudes do público que eles
despertam: a FC pessimista apela para as inquietações da audiência acerca da ciência; a
otimista, para suas esperanças” [tradução própria]54.
Entendidas aqui ciência e tecnologia como os conteúdos temáticos a serem
ficcionalmente extrapolados, desfaz-se então o aparente paradoxo presente no próprio termo
53
Recomendamos aqui a leitura de toda a primeira parte do aqui citado Drunk on Capitalism – An Interdisciplinary
Reflection on Market, Economy, Art and Science para reflexões mais aprofundadas e dados acerca dos efeitos
nefastos que o capitalismo pode provocar à prática científica. Ver também The Perils, Rewards, and Delusions of
Campus Capitalism de Daniel S. Greenberg (2007).
54
No original em inglês: “The two ideological poles of SF differ in what public attitudes they engage: pessimistic
SF appeals to the audience’s anxieties about science, optimistic to its audience’s hopes for science”.
84
ficção científica. Pois, como aponta Suvin (op. cit.:65), se a FC requer e permite algum tipo de
explicação científica ou racional, não faria sentido esperar que esta se desse em um meio
ficcional. A ideia de extrapolação, porém, permite que a base temática científica seja mantida,
mas sem ser levada às últimas consequências.
A importância do eixo temático ciência\tecnologia também se verifica nas definições
que apontamos anteriormente e poderíamos dizer ainda que, para além do fato de o autor
preocupar-se em dar um tom racional aos elementos do mundo ficcional criado e de o leitor ter
a expectativa de se deparar com situações e inovações que, ainda que extrapoladas, justifiquem-
se racionalmente em alguma medida, a inovação tecnológica, o gadget ou a máquina dispõe de
uma importância especial para a própria narrativa enquanto elemento central de um problema
e/ou de sua solução ou ainda como aspecto caraterístico do cenário ficcional criado pelo autor.
Portanto, a FC apropria-se do binômio ciência\ tecnologia em suas formas extrapoladas e por
torná-lo um dos elementos temáticos central é que se distingue dos outros gêneros literários.
Resta-nos agora voltar nossos olhares para o elemento temático do futuro.
Fitting (2010:138) afirma que a característica que funda a FC é sua “habilidade em
refletir ou expressar nossas esperanças e medos quanto ao futuro, e mais especificamente de
vincular estes medos e esperanças à ciência e à tecnologia” [tradução própria]55. Nas definições
supracitadas também se verifica a ideia de futuro bem como em outras aqui não mencionadas.
Mais do que atestar a importância desta ideia para a FC, o que parece estar para além de
questionamentos, devemos dizer aqui que o futuro vincula-se muito mais ao tempo presente do
autor e do leitor do que a um exercício de previsão dos tempos vindouros, podendo apresentar
um tom profético e dispor de um caráter didático, o que pode ser entendido como um impulso
que surge na esfera do ficcional e que pode vir a se converter em uma ação concreta.
Esta vinculação com o presente apresenta-se descrito de modo bastante apropriado em
Huntington (op. cit.:345):
55
No original em inglês: “[…] the foundational characteristic of science fiction, namely its ability to reflect or
express our hopes and fears about the future, and more specifically to link those hopes and fears to science and
technology”.
56
No original em inglês: “Though SF often gives us a sense of facing the unknown, its true insights are generally
into the known, and its primary value lies not in its ability to train us for the future but in its ability to engage a
particular set of problems to which science itself gives rise and which belong, not to the future, but to the present”.
85
É neste sentido que Suvin (op. cit.:76) considera o futuro como tendo uma função secundária,
na medida em que ele se vincula muito mais ao presente do que ao futuro em si. Na FC, há de
fato um impulso que lança a imaginação do autor para o tempo vindouro, desconhecido, para
aquilo que ainda não é. Porém, considerada a própria maneira como apreendemos o tempo
cognitivamente, sendo impossível falar no presente do que ainda não se é, bem como a
impossibilidade de se desvincular a criação de um mundo ficcional da realidade objetiva do
autor, por mais a-histórico que este se proponha a ser57, não se pode dizer que se trata de um
futuro alheio ao presente.
Mais do que isto, considerada a materialidade da ciência e das inovações tecnológicas e
todas as implicações sociais que elas apresentam, o futuro serve como projeção de um ainda-
não-ser que de algum modo já se é – extrapolar a ciência e a tecnologia da sociedade do hoje é
percorrer imaginativamente os caminhos desta mesma sociedade no amanhã. É neste sentido
que se fala em um caráter profético do qual dispõe a FC e que faz com que ela ganhe uma
dimensão didática – uma forma literária de “aviso” quanto à permanência no futuro das
contradições do presente. Isto já se podia verificar em uma das primeiras e mais importantes
revistas de divulgação do gênero, a Amazing Stories de Hugo Gernsback, o qual, em sua
primeira edição, em abril de 1926, caracterizava a “scientifiction” (o termo “science fiction”
ainda não era utilizado para nomear o gênero) como “um atraente romance que mistura fato
científico e visão profética” [tradução própria]58. Com isso, sustentamos aqui que se trata de
uma ideia do futuro enquanto meio – de se repensar o presente – e não como fim – de se
representar um futuro por si mesmo desvinculado da realidade histórica do autor. Devem,
portanto, ser deixada de lado a ideia de que o gênero apresente uma perspectiva “futorológica”,
no sentido de tentar representar do modo o mais preciso o possível aspectos e elementos dos
tempos vindouros. Na FC, trata-se mais, como aponta Moylan (2000:25), de uma “negociação
dialética da tensão histórica entre o que foi, o que é e o que virá a ser” [tradução própria]59.
Assim, prever problemas – preocupação central para toda e qualquer forma de
pensamento racional quando de um evento em que ele se veja requerido – é uma forma de
possibilitar uma perspectiva de atitudes a serem tomadas justamente para se evitá-los; e recai
sobre a produção ficcional extrapolá-los para apresentar ao leitor a sua possível iminência,
convocando-o a agir. Por isso, afirma Parrinder (2003:72), que a FC, “idealmente, [...] não
57
Ver seção 2.2 do capítulo.
58
No original em inglês: “[...] a charming romance intermingled with scientific fact and prophetic vision”. Original
disponível para leitura em http://archive.org/details/AmazingStoriesVolume01Number01.
59
No original em inglês: “[…] diatectical negotiation of the historical tension between what was, what is, and
what is coming to be”.
86
somente facilita uma fuga imaginativa ou transcendente de uma determinada realidade social,
mas planta as sementes da insatisfação com esta e a determinação e habilidade para mudá-la”
[tradução própria]60.
Soma-se ainda à nossa reflexão quanto ao futuro e sua apropriação pela FC nossa leitura
de Formas de tempo e de cronotopo no romance de Bakhtin. Neste texto, o autor apresenta o
cronotopo (tempo-espaço) como sendo uma categoria conteudístico-formal da literatura através
da qual a percepção do tempo se torna visível através da forma artística. Partindo
declaradamente da teoria da relatividade de Einstein, Bakhtin entende o tempo não como sendo
uma “idealidade abstrata, mas como sendo representação da realidade material imediata
(CABRAL, 2012:17)”. Esta assimilação do tempo e do espaço por parte do homem pode ser
verificada na literatura, por isso o interesse do pensador russo no “modo como essa imagem do
mundo representado pelo texto literário deixa de ser uma consciência abstrata para se tornar
consciência concreta, adquirindo determinidade geográfica e inteligibilidade histórica (id.,
ibid.:22)”.
Portanto, verificar em que medida o tempo se vê representado na obra literária significa
dispor de vestígios sobre como esta obra materializa em sua forma artística uma determinada
percepção de tempo e espaço em um dado momento histórico. O que se torna especialmente
relevante para a FC e a centralidade do conteúdo temático do futuro para o gênero.
Especialmente se considerarmos duas passagens em específico do texto de Bakhtin. São elas:
Em Apuleio, o próprio mundo do cotidiano é, em si, estático, nele não há porvir (por
isso não há um tempo único da vida cotidiana), entretanto, revela-se nele uma
multiformidade social. Nessa multiformidade ainda não surgiram contradições
sociais, mas ela está prenhe delas. Se tais contradições se revelassem, o mundo
entraria em movimento, receberia um impulso para o futuro, o tempo receberia
plenitude e historicidade. Porém, na Antigüidade, particularmente em Apuleio, esse
processo não se concluiu (BAKHTIN, 1998:248-9) [grifo nosso].
E, mais adiante:
60
No original em inglês: “Ideally, a literature of cognitive estrangement not only facilitates an imaginative
‘escape’ from or transcendence of the given social environment, but sows the seeds of dissatisfaction with that
environment, and of the determination and ability to change it”. O autor utiliza a expressão de Suvin, a qual
omitimos aqui pelas razões apresentadas ao início desta seção.
87
Ao longo de seu texto, Bakhtin faz uma leitura de diferentes romances publicados em diferentes
momentos históricos, tomando como elemento central de análise o conceito de cronotopo. Daí
as menções ao romance antigo, na segunda citação e Apuleio, escritor da Roma Antiga. Não se
trata aqui de nem mesmo mencionarmos autores, obras e fases às quais Bakhtin se dedica. O
que importa para nós é a associação que se verifica nestas passagens entre as contradições
sociais e a projeção para o futuro que adquire uma representação ficcional, entendida aqui como
um indício de que aos tempos vindouros caberia não talvez a superação destas contradições,
mas ao menos alguma espécie de confrontação com estas.
Tomemos outro momento da obra bakhtiniana.
Em seu O romance de educação e sua importância na história do realismo, Bakhtin
argumentará que é precisamente no romance de educação (Bildungsroman) do tipo realista, do
qual Gargântua e Pantagruel de François Rabelais, O Aventuroso Simplicissimus de Jacob
Christoffel von Grimmelshausen e Os Anos de Aprendizado de Wilhelm Meister de Goethe são
exemplos mencionados pelo autor. Nestes,
Mais à frente, ao discorrer sobre Goethe, Bakhtin afirma que o autor alemão representou um
dos maiores pontos da visão do tempo histórico em toda a literatura, um produto do período do
Iluminismo. Isto, pois
[o] século XVIII se revela como uma época de pontente despertar do sentimento do
tempo, antes de tudo do sentimento do tempo na natureza e na vida humana. Até o
último terço do século predominam os tempos cíclicos, mas também estes, a despeito
de todas as suas limitações, revolvem com o arado do tempo o mundo imóvel das
épocas antecedentes. E nesse solo revolvido pelos tempos cíclicos começam a revelar-
se também os sinais do tempo histórico. As contradições da atualidade, quando
perdem seu caráter eterno e absoluto, dado por Deus, revelam na atualidade a
heterogeneidade temporal – os remanescentes e embriões do passado, as tendências
do futuro (id., ibid.:226-7).
Estas prolongadas citações tem por objetivo tão somente dar ainda mais fundamento para a
reflexão sobre o futuro e cujas sementes já se viram lançadas na seção 3.2, quando nos
remetíamos à história do discurso utópico à luz das reflexões de Koselleck. Vemos aqui em
88
Bakhtin endossada a ideia de um lançamento do homem à história que pode ser verificada a
partir das obras utópicas. Mas mais do que isto, e aí nos remetemos novamente à relação entre
contradição social e tempo futuro, se o homem se lança ao futuro tanto maiores forem as
contradições sociais, o que podemos então dizer de um gênero que tem no futuro um de seus
componentes temáticos fundamentais? Ora, não se trata aqui de uma pretensão em comparar o
gênero com os Bildungsromane mencionados por Bakhtin, mas sim sugerir a reflexão de que,
à luz das reflexões bakhtinianas, a FC enquanto um gênero que se consolida no século XX
(como veremos mais detalhadamente na seção a seguir) tem justificada a centralidade do futuro
enquanto seu componente temático por conta de uma apreensão histórica de um tempo em que
as contradições sociais são tão centrais e relevantes quanto. Dito de outro modo, verifica-se em
Bakhtin a ideia de que as representações do futuro se tornam cada vez mais possíveis e presentes
na medida em que se tornam reveladas as contradições sociais. Portanto, a representação
distópica do futuro é a reafirmação destas contradições, e a própria noção do futuro em si tem
suas representações justificadas na medida em que estas se revelem e se coloquem
potencialmente como passíveis de serem superadas, em um movimento, como já dizemos, de
lançamento do homem na história rumo a tempos vindouros melhores.
Portanto, para encerrarmos esta seção, sintetizemos nosso pensamento. O gênero da FC
tem como condições de produção uma sociedade fortemente marcada pelo conhecimento
científico e tecnológico, que não se limita a um conjunto de conhecimentos e aplicações, mas
que dispõe de uma materialidade social e institucional, perpassada por elementos de ordem
econômica, política e cultural, na qual os indivíduos se veem diante tanto de contradições
sociais herdadas do passado, quanto de outras novas promovidas pelo progresso levado a cabo
por estas mesmas ciência e tecnologia. Por conseguinte, é através da FC (não exclusivamente,
naturalmente), cujo elemento central de sua construção composicional é a extrapolação de seus
conteúdos temáticos ciência\tecnologia e futuro, que as posturas avaliativas diante destes
elementos se veem representadas e materializadas.
não se propõe a produzir uma historiografia do gênero, para o que há obras específicas61.
Também não caberia nas circunstâncias de nossa pesquisa fazer uma análise da literatura
primária à qual os manuais e as obras introdutórias do gênero se remetem. Coube a nós,
entretanto, partir de textos dedicados especialmente à história da FC para então cotejá-los,
considerando ainda conhecimentos e leituras prévias próprias. Apresentaremos aqui o resultado
deste trabalho comparativo em que tentamos preservar o que há de mais consensual entre os
autores; ou ainda mencionar vez ou outros aspectos ainda não resolvidos. Os apontamentos aqui
feitos terão sua relevância para a apreciação da FC no Brasil, sendo esta de grande valor para
as análises desenvolvidas no capítulo 5 deste trabalho.
Adotar aqui um ponto de partida para a trajetória histórica da FC não é tarefa das mais
simples. Há diversos nomes, obras, estilos e gêneros que, dependendo de cada autor, podem ser
entendidos como precursores da FC. Há ainda a questão acerca do próprio termo ficção
científica (em inglês, originalmente). Ainda que tivesse surgido pela primeira vez já em 1851
no capítulo 10 intitulado Science-Fiction – R.M. Horne's Poor Artist – Notice of the Same (A
Foot Note) – The Modern Discoveries and Application of Science – The Electric Telegraph –
Phrenology do livro A Little Earnest Book upon a Great Old Subject: With the Story of the
Poet-Lover de William Wilson (1826-1886), poeta inglês, o termo só foi se tornar popular na
década de 30 com seu uso mais recorrente pelas revistas dedicadas ao gênero – a primeira ao
utilizar a expressão science fiction foi a Amazing Stories de Hugo Gernsback, figura central
para a divulgação da FC, como veremos mais adiante. Ou seja, há um aspecto institucional que
deve ser levado em consideração para a rubrica do gênero: é somente na década de 30 do século
XX que ele passa a designar um conjunto de obras específicas e que compartilham determinadas
características. Neste sentido, pode-se dizer que não caberia falar em obras de FC anteriores a
este momento no sentido estrito do termo. Naturalmente, ao lidarmos com fenômenos culturais,
não podemos simplesmente apontar uma data específica para que então surja toda uma nova
gama de produções simbólicas produzidas e consumidas a partir de um mesmo padrão. Há que
se considerar, portanto, que a consolidação do gênero distinto enquanto tal não pôde ocorrer
sem obras precedentes das quais ele se apropriava e que lhes servia de influência. Isto, porém,
nos leva a campos mais líquidos de interpretação, na medida em que qualquer obra de qualquer
tempo pode ser entendida como influenciando um determinado texto literário – e essa, aliás, é
uma das riquezas mais fundamentais da obra literária, a capacidade de estabelecer relações
intertextuais e interdiscursivas de infinitas maneiras. Para um crítico, uma obra de FC do século
61
Sugerimos aqui The history of Science Fiction de Adam Roberts, publicada em 2006.
90
XXI pode evocar desde aspectos bíblicos até elementos mais contemporâneos. E há mais. Se
entendemos que a técnica, entendida como um conjunto de conhecimentos práticos com os
quais o homem transforma a natureza ao seu redor, vincula-se estreitamente com a ciência,
determinados engenhos antigos com um funcionamento que veio a ser explicado posteriormente
podem ser entendidos como pertencentes a um conjunto de saberes – ainda não
sistematicamente organizados num corpo disciplinar científico – como pré-científicos. Uma vez
representados ficcionalmente, estas técnicas justificariam então seu pertencimento àquelas
obras que constituiriam “as origens da FC”. Neste sentido, iremos preferir esta expressão a
rotular de FC obras cronologicamente anteriores ao gênero institucionalmente já minimamente
consolidado. Endossamos aqui a ideia de que “[...] nada do que foi escrito, anterior ao século
XIX, mesmo no que se refere à literatura utópica, pode ou deve ser considerado, de modo
estrito, ficção científica, pela suprema razão de ela não existir, i.e., inexistir quanto à sua
sistemática, quanto às suas bases (OTERO, 1987:23)”.
Considerado isto, podemos dizer que as obras centrais que constituiriam as origens da
FC no século XIX tem como autores Mary Shelley, Júlio Verne e H. G. Wells.
Frankenstein (1818), a maior obra de Mary Shelley, pode ser considerada como a grande
primeira obra de FC. A história apresenta a criação por meios técnicos e científicos de um ser,
com características humanas, pelo Dr. Victor Frankenstein. A criatura é renegada por seu
criador por conta de seu terrível aspecto e se revolta contra ele – tem início aí o que mais tarde
veio a ser chamado de complexo de Frankenstein, um tema recorrente na FC e que denota o
temor que se pode ter diante das criações tecnológicas do homem, especialmente robôs e
autômatos. Muito influenciada pelos estilos do gótico e do horror, a história, porém, deixa de
lado explicações da ordem do fantástico, mitológico ou religioso para a criação do Dr.
Frankenstein, dotando-a de traços que se propõem científicos, o que pode ser entendido como
a diferença central entre a obra e suas contemporâneas. Seja dito, a obra teve sua recepção muito
mais em função das características do romance gótico que ela incorporava do que propriamente
no desenvolvimento do gênero da FC (cf. MANN, 2001:9).
Júlio Verne registra também seu nome na história da FC com sua produção literária que
misturava elementos das histórias de viagens e literatura fantástica com um otimismo diante da
ciência e tecnologia e que se tornaram um elemento central em suas narrativas; dentre as quais
se destacam Cinco semanas em balão e Viagem ao centro da terra, ambas de 1867 e Vinte mil
léguas submarinas, de 1870. A notabilíssima recepção de sua obra lhe rendeu o título de escritor
mais traduzido em toda a história. Verne não somente colocou cientistas atuando como
personagens centrais em sua obra, como também preocupou-se em dosá-las com um senso de
91
62
No original em inglês: “[…] the first real attempt to put SF before the reading public as a distinct genre in its
own right”.
93
63 No original em inglês: “[…] when some of the great writers of modern American sf began to appear, when new
ideas about what sf actually should be began to emerge, when new motifs and ideas which were to dominate sf for
a long time began to be explored in detail, when standards of writing began to improve, when the level of scientific
accuracy increased […]”.
94
Durante estes anos, a FC se viu amadurecida e ampliou suas temáticas ficcionais para questões
sociais mais amplas, considerando o impacto de um progresso tecnológico vertiginoso que se
desenvolvia à época. Conforme aponta Otero (op. cit.:108), em comparação à temática
predominante anterior à dita Golden Age,
Neste momento publicam suas histórias nomes como Heinlein, Van Vogt e, um dos mais
conhecidos autores do gênero, Isaac Asimov. Nas décadas de 30 e 40, convém citar, publicavam
os britânicos Huxley e Orwell em seu país suas maiores obras: Admirável Mundo Novo (1932)
e 1984 (1949), com apropriações de temas da FC.
Com o fim da Segunda Guerra Mundial e o impacto causado pelo lançamento da bomba
atômica sob a cidade de Hiroshima em 6 de agosto de 1945, a FC passou a adotar um tom mais
soturno. Nas palavras de Otero (op. cit.115), “[a] descrença, o pessimismo e a autodestruição
vão campear quase toda uma subsequente produção literária desvairada, fabulando o
inescrupuloso uso da energia termonuclear”. Mantendo a tendência de inícios da década de 40,
a FC vai ampliar seus campos para tematizar de modo ainda mais profundo questões sociais e
o futuro já não apresentará mais o mesmo brilho, até certo ponto inocente, de outrora. Isto
ocorre paralelamente a uma mudança de olhar também por parte dos leitores, para quem a
década de 50 foi um momento de consternação por conta das perdas e dos traumas trazidos pela
guerra. Conforme aponta Mann (op. cit.16), “não havia mais espaço para a satisfação de desejos
nas histórias deste período, não havia tempo para grandes aventuras ou para bater em monstros.
As pessoas queriam apenas entender o mundo ao redor que se transformava” [tradução
própria]64.
Não foi somente o impacto da bomba que marcou o período. Durante a década de 50, a
sociedade americana se viu diante de uma enfática campanha anticomunista, que tinha no
senador Joe McCarthy seu principal porta-voz. Criou-se uma atmosfera de paranoia pautada
pela polarização entre os “valores americanos” e os comunistas. Esta polarização era um dos
elementos centrais da Guerra Fria, onde os países vitoriosos da Segunda Guerra se viram numa
64
No original em inglês: “There is no room for wish-fulfilment in the stories of this period, no time for high
adventure or monster-bashing. People only wanted to make sense of the changing world around them”.
95
percepções também passará a ser questionada e a FC se voltará cada vez mais para questões de
ordem subjetiva – as fronteiras entre a realidade e nossa percepção se tornarão imprecisas
especialmente se considerarmos o uso crescente à época das drogas psicodélicas. Um dos
principais nomes que explorarão esta temática de questionamento da realidade será o
consagrado Philip K. Dick; ainda que este, por sua vez, nunca tenha declarado ter se identificado
ou associado com a New Wave. Convém ainda mencionar que, ao longo da década de 60,
permaneceram os anseios de um conflito bélico de proporções atômicas envolvendo Estados
Unidos e URSS, ainda mais quando da crise dos mísseis de Cuba em 62.
Se o movimento na Inglaterra ficou marcado pela atuação literária e editorial de
Moorcock, ou ainda considerando as antologias England Swings SF (1968) organizada por
Judith Merril e Dangerous Visions (1967) por Harlan Ellison, que traziam textos que certamente
não seriam aceitos pelas revistas tradicionais do gênero, nos Estados Unidos não podemos dizer
que houve algum tipo de organização mais coesa em torno de um ideal específico a ser seguido
pelos escritores – ainda que houvesse ocorrido “a um mesmo tempo uma concatenação de
talentos, trazendo novas ideias e novos padrões para FC (JAMES, op. cit.:132)” [tradução
própria]65.
É preciso entendermos ainda que a década de 60 foi marcada, tanto nos Estados Unidos
quanto no resto do mundo por muitas preocupações e novos movimentos sociais; destruição
ecológica, superpopulação, envolvimento dos Estados Unidos no Sudeste Asiático em ações
bélicas amplamente divulgadas nos media, auge do terrorismo organizado, revolução sexual,
movimentos estudantis de 68 ou ainda o movimento hippie (cf. CARDOSO, 1998:24). A FC
não poderia ficar alheia a todas estas mudanças e transformações. E, desta vez, já como um
fenômeno de cultura popular.
O processo de renovação na FC ao longo da década de 60 tornou o gênero ainda mais
respeitado e consumido, com temáticas cada vez mais heterogêneas, indo desde a manutenção
dos clássicos de space opera a visões pessimistas do futuro, passando por romances explorando
os efeitos psicológicos da vida militar. Isto se estendeu pela década de 70 e o período trouxe
ainda para o gênero alguns novos traços. Em primeiro lugar, as mulheres passaram a ter suas
representantes no gênero, destacadamente Ursula Le Guin e Octavia Butler – o que não seria
nenhuma surpresa considerando a ascensão do movimento feminista à época. Em segundo
lugar, é na década de 70 que começa a ganhar corpo uma crítica acadêmica especializada em
FC; o que começara já nos anos 60 com Kingsley Amis, da Universidade de Princeton e seu
65
No original em inglês: “[…] a concatenation of talent occurring at the same time, and bringing new ideas and
new standards to the writing of sf”.
97
estudo New Maps of Hell (1960) e que ganhou ainda mais vigor com os periódicos Foundation
na Inglaterra e Science-Fiction Studies nos Estados Unidos. Por fim, foi também na década de
70 que a FC saiu das páginas de livros e revistas para se lançar nas telas do cinema. Como
aponta James (op. cit.:145), alguns dos maiores líderes de bilheteria à época foram de filmes de
FC: Star Wars (1977) de George Lucas, Close Encounters of the Third Kind (1977) de Steven
Spielberg e Alien (1979) de Ridley Scott.
Na primeira metade dos anos 80 duas obras marcarão a FC: o filme Blade Runner (1982)
de Ridley Scott – adaptação para cinema de Do Androids Dream of Electric Sheep? (1968) de
Philip K. Dick – e o romance Neuromancer (1984) de William Gibson. Estas obras se destacam
das demais em meio ao surgimento de um público de leitores que, entusiasmados pelas
produções cinematográficas com marcada influência da FC, como citamos anteriormente,
passam a buscar na literatura aventuras similares àquelas experienciadas através das grandes
telas. O gênero acabou com isso tendo boa parte das suas publicações muito mais marcadas
pelos imperativos comerciais de um mercado em crescimento, apropriando-se especialmente
dos temas mais tradicionais e das convenções da Golden Age do que dos avanços estéticos da
New Wave (cf. ROBERTS, 2006:302).
Nos anos 80, a forma como se representavam as interações entre sociedade e uma
tecnologia que se via cada vez mais como algo cotidiano, especialmente graças ao
desenvolvimento da computação, acabaram por se tornar um paradigma para um gênero que se
formava: o cyberpunk. Com sua estética noir e realista, suas obras apresentavam uma
preocupação tanto com a forma quanto com o conteúdo. Seus protagonistas não eram heróis
com habilidades ou inteligência especiais, mas homens comuns, citadinos e cercados por um
ambiente tecnológico; que, se por um lado oferecia uma série de gadgets, por outro, era descrito
em termos distópicos, em meio à criminalidade, pobreza e corrupção, tanto por parte de
corporações quanto por parte do governo (cf. MANN, op. cit.:22-3). Clute e Nicholls (1995),
em verbete sobre o gênero, partem do termo e suas unidades para caracterizar o movimento:
66
No original em inglês: “The ‘cyber’ part of the word relates to CYBERNETICS: to a future where industrial and
political blocs may be global (or centered in SPACE HABITATS) rather than national, and controlled through
information networks; a future in which machine augmentations of the human body are commonplace, as are mind
and body changes brought about by DRUGS and biological engineering”.
98
Já a expressão punk vem da terminologia do rock'n'roll dos anos 70: “neste contexto jovem”
conota “conhecimento da vida das ruas, agressivo, alienado e ofensivo ao Establishment (id.,
ibid.)” [tradução própria]67. Considerando as palavras de Morano (2010:9), pode-se dizer ainda
que muitas obras cyberpunks “dramatizam, exploram ou reagem contra o capitalismo
multinacional, construindo uma atmosfera distópica e paranoica de opressão, degradação do
meio ambiente e enfraquecimento dos ideais humanistas nas democracias ocidentais”.
Há ainda que se considerar que na década de 80 a FC continuou a imprimir
crescentemente suas marcas em produções simbólicas mais populares e em diferentes diversos
suportes. Não somente a produção cinematográfica continuou a assimilar as temáticas do
gênero, como também o fizeram séries de TV, histórias em quadrinhos e outros. E isto, como
aponta Cardoso (op. cit.:26), sem levar em conta também que todo este mercado em torno do
gênero envolve ainda bonecos, camisetas e outros produtos que movimentam um grande
montante financeiro em ações de marketing68.
Podemos dizer, de modo bastante abrangente, que o cyberpunk é, ao menos para a
historiografia da FC, o último grande marco ao longo de seu percurso em que um conjunto de
temas e características minimamente distintas daqueles de seus contemporâneos se destacou.
Isto é, não cabe falarmos aqui de uma tendência mais específica ao longo das últimas décadas
do século XX e nem estamos cronologicamente distantes o suficiente das primeiras do século
XXI para verificar suas especificidades. Pode-se dizer, não obstante, como apontam Clute
(2003:64) e Roberts (op. cit.:295), que o formato romance já não apresenta o mesmo vigor de
antigamente e não é mais o suporte semiótico central para a FC, que, nos últimos tempos, como
já destacamos, estendeu-se para as salas de cinema, televisão, e, mais recentemente, para a
internet e jogos de computador, dentre outros já mencionados. Caberia ainda falar aqui em uma
popularidade crescente da narrativa distópica – conforme apontamos na seção 3.3 – e que, como
veremos mais à frente, estabelece grandes vínculos com a FC, sendo, portanto, um equívoco
dizer que a FC tenha perdido seu vigor na contemporaneidade.
Dito de modo sintetizado e para que encerremos esta seção, pudemos verificar a) que a
FC finca suas raízes precisamente no século XX, quando tendências já presentes em outras
formas literárias anteriores são apropriadas por um gênero que aos poucos consolida-se como
67
No original em inglês: “The ‘punk’ part of the word comes from the rock'n'roll terminology of the 1970s, ‘punk’
meaning in this context young, streetwise, aggressive, alienated and offensive to the Establishment”.
68
Tomando o gênero cyberpunk como objeto de pesquisa, Amaral o decompõe a partir de quatro “ordens distintas:
literária (o movimento cyberpunk como subgênero da Ficção Científica), tecnológica e cultural (como elemento
estético da cibercultura), social (enquanto subcultura) e cinematográfica (AMARAL, 2006:17)”. Isto endossa a
caracterização feita na seção 4.1 da FC dispondo de um suporte multi-semiótico.
99
algo distinto, b) que a FC se coloca diante de seu público inicialmente através de revistas, em
seguida através de livros, para ao final da segunda metade do século XX fazer-se presente em
filmes, na TV e em outros suportes semióticos, sendo assimilada em termos mercadológicos e
c) que a FC não se absteve das transformações políticas e sociais ao longo de sua história, sendo
por ela fortemente influenciada, o que se verifica em suas obras.
Por fim, cabe aqui reconhecermos, criticamente, que boa parte das obras sobre a história
do gênero concentra boa parte de seus esforços de pesquisa e análise em obras de língua inglesa
e mais especificamente naquelas escritas e publicadas nos Estados Unidos – com alguma
menção, de maior ou menor destaque para a versão inglesa do gênero. Neste sentido, falar em
percurso histórico do gênero significa falar em percurso histórico do gênero nos Estados
Unidos. O que, se por um lado, acaba por dar menos relevância à FC produzida na Rússia, no
Japão ou na América Latina – sobre o que podemos, com algum esforço, encontrar literatura
adequada – justifica-se, por outro, por concentrar-se nos Estados Unidos o maior público
consumidor do gênero, cujas idas e vindas ao longo da história, escritores e obras serviram de
referência para a literatura produzida em outros países; cada qual, naturalmente, a seu modo,
abordando questões e contradições pertinentes às suas configurações sociais e a seu percurso
histórico.
Falar de Ficção Científica Brasileira (doravante FCB) significa percorrer por caminhos
para muitos ainda desconhecidos. E nos referimos aqui não somente em termos de um público
específico que seja mais facilmente identificável, como também em termos de crítica
especializada, acadêmica ou não. Se há algo que parece ser inquestionável acerca da FCB é a
sua discreta presença. Não obstante, passados mais de um século desde as publicações das
primeiras obras a tematizar elementos da FC, podemos hoje dizer que, a despeito desta
discrição, há uma rica e prolífica história do gênero em terras brasileiras. Tal como fizemos na
seção anterior, o que será apresentado nas linhas a seguir corresponde a um trabalho de
cotejamento de textos voltados direta ou indiretamente para a história da FCB. Diferentemente
da FC produzida em língua inglesa, é escassa a produção de obras voltadas exclusivamente para
uma História da FCB – cabendo aqui, porém, mencionar Ficção Científica, Fantasia e Horror
no Brasil (2003) de Roberto Sousa Causo e Ficção Científica Brasileira – Mitos culturais e
Nacionalidade no País do Futuro (2005) de M. Elizabeth Ginway, professora da Universidade
da Florida; cuja obra é uma das de maior referência em literatura secundária de FCB.
100
Naturalmente, o que apresentamos aqui é tão somente um breve esboço historiográfico da FCB,
tanto para fins de contextualização do gênero no Brasil quanto para fins analíticos,
compreendido o fato de que cada obra apresentada no capítulo 5 relaciona-se com o momento
histórico da FCB de seu tempo.
Falando inicialmente dos precursores, ou de uma “proto-FCB”, o gênero tem seus
primeiros marcos na segunda metade do século XIX com as publicações do conto O imortal e
a novela O alienista, ambos publicados em 1882, do livro O Doutor Benignus (1875) do
português naturalizado brasileiro Augusto Emílio Zaluar e ainda Páginas da História do Brasil,
Escritas no ano 2000, publicada como folhetim de 1868 a 1872 no jornal O Jequitinhonha por
seu próprio dirigente, o jornalista Joaquim Felício dos Santos (cf. CAUSO, 2006). Em termos
estritos, não cabe dizer que neste período havia uma FCB consolidada, com um círculo de
produção ciente do gênero que estivesse consolidando. Podemos dizer, contudo, que uma
reflexão sobre o futuro, ciência e tecnologia já se via presente em autores brasileiros.
Isto ficou ainda mais latente durante as primeiras décadas do século XX, em que foram
publicados São Paulo no Ano 2000, ou Reneração Nacional (1909) de Godofredo E. Barnsley,
A Amazônia misteriosa (1925) de Gastão Cruls, o controverso O presidente negro69 (1926) de
Monteiro Lobato, A república 3000 (1930) de Menotti Del Picchia, o pouquíssimo conhecido
O outro mundo (1934) de Epaminondas Martins (cf. OTERO, op. cit.:188), Viagem à aurora
do mundo (1939) de Erico Veríssimo, dentre outros. No período, verificam-se influências dos
chamados romances científicos de Verne e Wells, termo que, como vimos anteriormente,
designava as primeiras obras de FC antes da consolidação do gênero e da utilização do termo
science fiction.
Destacam-se ainda os nomes de Berilo Neves e Jerônymo Monteiro, este de São Paulo
e aquele do Rio de Janeiro e que, enquanto pioneiros da FCB, “trouxeram uma sensibilidade
pulp” ao gênero (CAUSO, 2009:16). Berilo Neves foi o autor de várias publicações em revistas
e jornais nas décadas de 20 e 30, tendo feito bastante sucesso a seu tempo. Por sua vez,
Jerônymo Monteiro foi autor de 3 Meses no Século 81 (1947), A cidade perdida (1948), Fuga
69
Em sua narrativa, Lobato apresenta a invenção “porviscópio”, de um de seus personagens, através da qual era
possível ver o futuro. Neste futuro, conforme apresentado na obra, há uma vitória eleitoral dos negros nos Estados
Unidos, no ano de 2228. Inconformados, os brancos criam então um método para deixar os cabelos lisos – o que,
na narrativa, como esperado se tornou desejo dos negros. Entretanto, este método não se limitava a uma mudança
visual simples; através deles os negros se tornavam estéreis – eis a represália dos brancos por conta de sua derrota
nas urnas. A obra teve sua publicação recusada por editoras nos Estados Unidos, certamente por seu teor racista e
no Brasil, trata-se de uma obra pouquíssimo conhecida e ofuscada pelos outros clássicos de Monteiro Lobato. Vale
mencionar ainda o caso de tentativa de censura a algumas passagens dos livros Caçadas de Pedrinho e (1933) e
Negrinha (1920) por apresentarem um teor racista. Em 2012, o Instituto de Advocacia Racial e Ambiental (Iara)
levou à Secretaria de Promoção da Igualdade Racial a denúncia que foi levada ao Supremo Tribunal Federal. O
processo, ao que consta, ainda não foi concluído.
101
para parte alguma (1961), além de diversos outros contos e romances. Jerônymo ainda fundou
a Sociedade Brasileira de Ficção Científica, em 1964, trabalhou como editor da Magazine de
Ficção Científica (edição brasileira da revista norte-americana The Magazine of Fantasy and
Science Fiction), foi o criador do personagem Dick Peter, surgido em de radionovelas, gibis e
outros formatos, editou a antologia O Conto Fantástico e por muito tempo escreveu para o
jornal A tribuna, de Santos, sobre FC (cf. BOURGUIGNON, 2015).
Em 1958, foi publicada a primeira antologia de FC no Brasil, Maravilhas da Ficção
Científica, pela editora Cultrix, e que contava apenas com autores internacionais. Neste mesmo
ano, Rubens Teixeira Scavone publicou O Homem que Viu o Disco-Voador, e que, ao lado de
Jerônymo Monteiro, irá se associar a Gumercindo Rocha Dorea, editor responsável pela coleção
Ficção Científica GRD, um conjunto de publicações entre 1960 e 1965 que impulsionou o
mercado editorial da FCB e se tornou um marco para o gênero no país. Dorea representou um
dos maiores esforços para o lançamento de novos autores da FCB, além de ter incentivado
outros já consagrados a se aventurarem no gênero. Dorea foi o primeiro a reunir numa coletânea
contos nacionais de FC, publicados na Antologia Brasileira de Ficção Científica, em 1961, e,
no mesmo ano, a segunda, Histórias do Acontecerá. Diversos autores tiveram suas obras
publicadas graças a Dorea, tendo o próprio afirmado, como registrado em texto da seção
Literatura do Jornal do Brasil de 04/03/1961, página 3, que sua iniciativa “devia se converter
em obrigação moral de todos os órgãos de imprensa, visando fazer surgir novos elementos na
permanente evolução intelectual que é própria de todo e qualquer país que se preze”. Este
esforço de Dorea levou Fausto Cunha, crítico de literatura e escritor – cuja coletânea de contos
As Noites Marcianas foi publicada por Dorea em 1960 – a denominar toda a produção literária
de FCB da década de 60 de Geração GRD (cf. CUNHA, 1974:9), alcunha que se mantém até
os dias atuais e que dificilmente se ausenta de textos voltados para a história do gênero no
Brasil.
Gumercindo Rocha Dorea levanta ainda questões de ordem biográfica no mínimo
interessantes e sobre o que não costuma haver menções na literatura sobre a história da FCB.
Integralista que era, o editor, antes de aventurar-se na FC, chegou a publicar em suas Edições
GRD obras de Plínio de Salgado e outras vinculadas ao movimento integralista (cf.
CHRISTOFOLETTI, 2010:209). Mais do que isto, como registra o Jornal do Brasil em edição
de 27/06/1981, página 8, em reportagem baseada no livro 1964: a Conquista do Poder – Ação
Política, Poder e Golpe de Classe, escrito como tese de doutorado do professor uruguaio René
Armand Dreifuss, Dorea era vinculado à produção editorial do Instituto de Pesquisa e Estudos
Sociais (IPES). O instituto foi responsável por uma sistemática campanha de desestabilização
102
do governo de João Goulart pouco antes do golpe de 64, além de ter realizado uma série de
campanhas anticomunistas. O que nos chama a atenção, apenas para citar um exemplo, é a
vinculação de Dorea com Jerônymo Monteiro, que, em seu conto Copo de Cristal publicado
em sua coletânea Tangentes da Realidade pela Quatro Artes Editora em 1969, retrata a
violência sofrida pelos comunistas (e supostos comunistas). Ainda mais se levarmos em conta
o fato de que Monteiro publicou sob o selo GRD sua obra Fuga para parte alguma (1961), aqui
já mencionada. Como não se trata neste trabalho de nos aprofundarmos sobre esta questão,
deixemos registrado, entretanto, este aspecto pouco comentado e sobre o que já há um trabalho
publicado70.
Além do trabalho editorial de Dorea, a FCB contou, também década de 60, com as
publicações da Edart, dentre as quais se destaca a antologia Além do Tempo e do Espaço: 13
contos de Ciencificção, publicada em 1965; bem como outros autores que se tornaram
consagrados para a FCB através de sua coleção Ciencificção (cf. CAUSO, 2007:17).
Cabe mencionar que ainda neste período, precisamente em 1965, ocorreu em São Paulo
a primeira Convenção Brasileira de Ficção Científica, que contou também com a publicação do
primeiro fanzine de FCB, de nome O CoBra. Nela foi também fundada a Associação Brasileira
de Ficção Científica. Outro evento importante foi o Simpósio de FC, em 1969, de âmbito
internacional e no qual estiveram presentes Harry Harrison e Brian Aldiss, tratando-se do
primeiro enconto internacional da história da FC (cf. id., ibid.:20).
Como não poderia deixar de ser, a instauração da ditadura militar não tardaria a imprimir
seus efeitos na história da FCB. Se até a segunda metade da década de 60 ainda se podia
verificar uma produção consistente para o gênero, o mesmo não pode ser dito da década de 70
– não nos esqueçamos da promulgação do Ato Institucional de número 5, o mais autoritário do
regime. Dada a circunstância histórica tão peculiar, a reflexão feita por Ginway (2005) sobre o
período nos parece ser digna de menção. Tomando como centro de suas análises as obras
Fazenda Modelo (1974) de Chico Buarque de Holanda e o Fruto do Vosso Ventre (1976) de
Herberto Sales, Umbra (1977) de Plínio Cabral e O Homem que Espalhou o Deserto e Não
Verás País Nenhum, ambos de Ignácio Loyola Brandão, a autora argumenta que o tema da
distopia71 será um dos elementos que marcará a produção da FCB na década de 70. A
funcionalização literária do conceito de distopia será uma forma de crítica ao projeto militar de
70
Ver artigo completo, ao qual fizemos referência neste parágrafo, de Rodrigo Christofoletti, com o título A
controvertida trajetória das Edições GRD – entre as publicações nacionalistas de direita e o pioneirismo da
Ficção Científica no Brasil. Nele encontramos inclusive passagens do próprio Dorea sobre a questão.
71
Ver seções 3.3 e 3.4 deste trabalho.
103
72
Cabe aqui a longa, porém precisa passagem de Ferreira & Bittar (2008:335): “Os governos militares adotaram
um movimento político de duplo sentido: ao mesmo tempo em que suprimiam as liberdades democráticas e
instituíam instrumentos jurídicos de caráter autoritário e repressivo, levavam à prática os mecanismos de
modernização do Estado nacional, no sentido de acelerar o processo de modernização do capitalismo brasileiro.
Em síntese: propugnavam a criação de uma sociedade urbano-industrial na periferia do sistema capitalista mundial,
pautada pela racionalidade técnica. No lugar dos políticos, os tecnocratas; no proscênio da política nacional, as
eleições controladas e fraudadas; no âmbito do mundo do trabalho, a prevalência do arrocho salarial; na lógica do
crescimento econômico, a ausência de distribuição da renda nacional; na demanda oposicionista pela volta do
Estado de direito democrático, a atuação sistemática dos órgãos de repressão mantidos pelas Forças Armadas: eis
como a ditadura militar executou o seu modelo econômico de aceleração modernizadora e autoritária do
capitalismo no Brasil”.
104
literária que o gênero apresenta no Brasil, quanto pelo fato de ter este se fixado no país em um
momento em que a FC produzida nos Estados Unidos e Inglaterra já tinha explorado uma série
de temas e experienciado diferentes tendências ao longo de sua história. Isto significa que
aqueles que porventura partissem de obras estrangeiras para obterem alguma inspiração já
dispunham de uma pluralidade de motivos para suas obras. Sem correntes definidas no Brasil,
caberia então a cada escritor se apropriar daquilo que mais se lhe adequasse para suas
composições literárias. É o que podemos verificar em Otero (op. cit.:185):
Sob outro prisma, tendências, situações, dentro dos ‘Períodos’ da história dessa
literatura, não podem ser especificadamente determinadas, pela razão ponderável de
ser a FC relativamente verde no País. Assim, de um modo geral, todas as teses são
retratadas: hibernação, Parapsicologia, Cibernética, tecnocracias futuras, atomismo,
viagens espaciais, temas ecológicos, tudo envolto por aquele sentido de cunho
nacional, onde se insere a filosofia do povo [...].
Já não cabe, porém, manter esta postura quando voltamos nossos olhares para os anos
80 e 90 na FCB. Pois, inicialmente naquela década e mantendo-se nesta, haverá uma
assimilação do gênero cyberpunk por parte de autores brasileiros – especialmente, como dito,
por conta das produções cinematográficas mais marcantes do gênero, consumidas aqui de modo
muito mais imediato do que suas obras literárias. Desenvolve-se então no Brasil, entre 1985 e
1995, utilizando o termo de Roberto de Sousa Causo, o gênero tupinipunk – fusão dos termos
tupiniquim e cyberpunk. Três obras são mencionadas pelo autor (2010:10) como sendo as mais
marcantes: os romances Silicone XXI de Alfredo Sirkis publicado em 1985 – com declarada e
notável inspiração do filme Blade Runner, aqui já mencionado – Santa Clara Poltergeist de
Fausto Fawcett publicado em 1991 e Piritas Siderais: Romance Cyberbarroco de Guilherme
Kujawski publicado em 1994. No tupinipunk, as tendências do gênero que lhe deu origem são
mantidas, com a diferença de que as produções brasileiras apresentam menos ação no
cyberespaço, concentrando suas narrativas mais nos espaços urbanos (cf. CAUSO, op. cit.:12).
Nas palavras de Ginway (op. cit.:157),
[o] cyberpunk brasileiro retrata um mundo no qual apenas os protagonistas têm corpos
fisicamente melhorados, e onde o foco está no submundo urbano de suas maiores
cidades e nas conspirações complexas, nacionais ou internacionais, em que eles estão
envolvidos, com uma ênfase na sexualidade e na violência física, ao invés de estar nos
eventos que se dão virtualmente.
O que não deve se colocar como uma surpresa, dado que nossas grandes metrópoles, assim
como em outros países desenvolvidos, mas em escala muito maior, são as grandes expositoras
de todas as contradições sociais engendradas pelo sistema capitalista ou mesmo pelo fenômeno
105
da globalização em que local e global estabelecem entre si uma relação de constante tensão; ou
ainda, se considerarmos o desenvolvimento científico nacional, cujos efeitos mesmos os mais
imediatos parecem ainda não atingir a população como um todo de modo mais efetivo.
A despeito da consideração que Fernandes (2007:74) faz acerca da década de 90, para
quem a produção de FCB foi escassa e limitada a fanzines ou “em uma ou outra coletânea
publicada às expensas de seus próprios autores e vendidas em (literalmente) menos de meia-
dúzia de livrarias em todo o Brasil, apenas pelo sistema de consignação”, a temática cyberpunk
se manteve enquanto uma tendência que se extendeu até a primeira década dos anos 2000.
Destacam-se nesta as obras Labirinto Digital de Mario Kuperman publicada em 2005, Os dias
da peste de Fábio Fernandes (o mesmo da citação anterior) publicado em 2009, Cyber
Brasiliana de Richard Diegues publicada em 2010 e a antologia Cyberpunk: Histórias de um
Futuro Extraordinário, publicada em 2010 e sendo a primeira do gênero no país – da qual,
inclusive, o conto O Trainee, que será por nós analisada no capítulo 5, faz parte. Outro sintoma
da permanência desta tendência são as obras de literatura secundária A Construção do
Imaginário Cyber: William Gibson, Criador da Cibercultura, também de Fábio Fernandes e
Visões Perigosas: Uma Arque-Genealogia do Cyberpunk de Adriana Amaral, ambas
publicadas em 2006.
Tal como fizemos ao final da seção anterior, cabe comentar que ainda não estamos em
condição de visualizar quais rumos a FCB tomará nestas primeiras décadas do século XXI. Se
anteriormente as tendências da FC de língua inglesa não eram recebidas de modo imediato por
autores e fans do gênero em solo tupiniquim, hoje já não podemos negar que as tendências dos
Estados Unidos ecoem imediatamente por aqui. Portanto, cabe aqui falarmos que o destacado
consumo de literatura distópica no exterior reverbera no Brasil; de que são exemplos as obras
anteriormente mencionadas em nota Admirável Brasil Novo (2011) de Ruy Tapioca, A ilha dos
dissidentes (2013) de Bárbara Morais e A torre acima do véu (2014) de Roberta Spindler.
Deve ainda ser levado em conta o trabalho das editoras Tarja e Devir na primeira década
do século XXI com as já mencionadas Cyberpunk: Histórias de um Futuro Extraordinário e a
antologia FcdoB: panorama 2008-2009 (2010), resultante de seleção feita através de concurso
literário, publicadas pela primeira; e Os Melhores Contos Brasileiros de Ficção Científica
(2007), Os Melhores Contos Brasileiros de Ficção Científica – fronteiras (2009) e Assembléia
Estelar: histórias de ficção científica política (2010), com contos de autores nacionais e
internacionais, publicadas pela Devir. E isto apenas para citar algumas obras. Não pecaríamos,
portanto, por excesso ao dizer que neste início do século XXI estamos experienciando um
aquecido mercado editorial para a FCB.
106
é deixado de lado em função da preferência por obras pertencentes à literatura canônica, sendo
considerada a FC uma literatura de menor prestígio.
Pereira (2005:118) destaca ainda a tradição marcadamente naturalista do cânone
brasileiro, o que levou a cultura brasileira a privilegiar “expressões estritamente realistas”73 – o
que nos parece válido se considerarmos até mesmo o pequeno espaço ocupado pela literatura
fantástica, mais ampla em termos do que a FC. Este mesmo cânone, prossegue a autora,
apropria-se das expressões populares tão somente na medida em que os mitos de nacionalidade
nelas representadas atendam a interesses das elites eruditas, que então passam a considerá-las
positivamente. Neste sentido,
73
Um mesmo argumento se encontra em Ginway (op. cit.:29): “[...] a ficção científica brasileira, eu creio, tem
sofrido duplamente, primeiro por suas associações com ‘arte baixa’ e ficção popular, e segundo, por ser um gênero
imaginativo em um país que dá um alto valor ao realismo literário. A popularização do realismo mágico e do
fantástico tão prevalente em outros países da América Latina não é um princípio dominante na literatura brasileira”.
108
além de termos feito apontamentos acerca de sua história, mais detidamente nos Estados Unidos
e no Brasil, cabe aqui apresentarmos as interseções entre estes dois conceitos, verificando em
que medida os discursos utópico e distópico têm seu lugar na FC. Dando continuidade ao modo
de exposição que temos utilizado ao longo deste trabalho, apresentaremos aqui os apontamentos
que, ao longo de nossa pesquisa, consideramos os mais relevantes para, enfim, posicionarmo-
nos diante destes e desenvolvermos nossa própria perspectiva. Não será nosso objetivo
apresentar os diferentes momentos históricos em que a utopia ou a distopia se fizeram presentes
em maior ou menor grau ao longo da história da FC; realizaremos aqui uma reflexão de ordem
conceitual, considerando o que já apresentamos até o momento.
Comecemos por simplesmente “olharmos ao nosso redor”. Sem grandes esforços,
tomemos apenas alguns títulos (alguns inclusive citados ao longo deste trabalho), resultantes
de uma pesquisa bibliográfica mais superficial: Science between Utopia and Dystopia (1984)
de Everett Mendelsohn e Helga Nowotny, Phoenix Renewed - The survival and mutation of
Utopian Thought in North American Science Fiction 1965-1982 (1984) de Hoda Moukhtar
Zaki, Escalera al cielo – Utopía y ciência ficción (1994) de Daniel Link, Scraps of the
Untainted Sky – Science Fiction, Utopia, Dystopia (2000) de Tom Moylan, Learning from
Other Worlds – Estrangement, Cognition and the Politics of Science Fiction and Utopia (2000)
de Patrick Parrinder, Political Theory, Science Fiction, and Utopian Literature (2008) de Tony
Burns, Demanding the Impossible - Utopia, Dystopia and Science Fiction (2009) de Matthew
Ryan e Simon Sellars; e a lista certamente poderia ser ampliada se considerarmos artigos em
periódicos ou publicados em coletâneas com títulos menos chamativos. O que salta aos olhos,
mesmo àquele que nunca soube de quem se tratariam Wells ou Verne, é a estreita relação que
parece haver entre a FC, a utopia e a distopia. Entretanto, a despeito da quantidade de obras
sobre esta relação, elas tendem a apresentar duas lacunas. Em primeiro lugar, até onde se
verifica, não há ainda uma obra dedicada exclusivamente a traçar a história da FC em paralelo
com a dos conceitos de distopia e utopia. Em segundo lugar, e mantendo talvez um próprio
estilo do formato, a literatura secundária tende a dedicar boa quantidade de páginas com
análises mais aprofundadas acerca das principais obras que exemplifiquem a relação. Ao passo
que, por outro lado, são poucas as linhas dedicadas a uma explanação mais sistemática e
conceitual acerca do que justificaria esta imbricação, muitas vezes mostrada como algo já dado,
previamente sabido pelo leitor e sobre o que parece não haver grandes questionamentos. Por
conta disto, considerando estas duas lacunas mencionadas, nossa tarefa aqui já se coloca de
antemão como um desafio. Ademais, não pretendemos aqui reproduzir o formato que privilegia
as singularidades desta ou daquela obra; para o que, repetimos, já há vastas fontes. De modo
109
74
Ver seção 2.3.
110
pelas transformações sociais, políticas, culturais e filosóficas levadas a cabo inicialmente pelo
Renascimento e em seguida pelo Iluminismo, o impulso utópico, que inicialmente adquiria
formas de explanação filosófica ou literária, adquire traços cada vez mais políticos e de atuação
mais concreta na realidade. Com Marx e seu projeto emancipatório, o impulso utópico ganhará
seus traços mais objetivos de transformação social, o que fará com que, como aponta Kumar
(2000:251), as utopias em suas formas literárias, que atingiram seu auge no século XVIII,
cedam lugar aos programas utópicos socialistas.
Contudo, é neste momento de profusão e obras literárias que verificaremos uma
relevante mudança de paradigma, fundamental tanto para a FC quanto para a história do
discurso utópico. Trata-se do momento em que a eutopia converte-se em eucronia, ou, dito de
outro modo, quando a utopia se torna ucronia. Isto é, trata-se de uma transformação da
imaginação utópica que, se num primeiro momento, situava o bom lugar em algum topus
distante, desconhecido, outro, passará a situar o bom lugar em um tempo distante, porém o
tempo mesmo. Se as contradições se viam superadas até então em uma ilha distante, com o
viajante acabando por voltar à sua Heimatland posteriormente, caberá ao futuro reservar esta
superação. Esta mudança de pensamento ocorre na segunda metade do século XVIII, tendo seu
marco com a publicação de L'An deux mille quatre cent quarante: Reve s'il enjut jamais,
publicado em 1771 anonimamente pelo francês Louis Sébastien Mercier (1740-1814).
Tomando as palavras de Alkon (1987:127), Mercier
[...] inicia um novo paradigma para a literatura utópica, não somente por apresentar a
ação de sua narrativa num futuro específico cronologicamente conectado com nosso
passado e presente, mas, de modo ainda mais crucial, por caracterizar este futuro como
estando vinculado à ideia de progresso, ligado imediatamente, portanto, de modo
causal ao tempo do leitor [tradução própria]75.
75
No original em inglês: “Mercier's resort to uchronia, on the other hand, initiates a new paradigm for Utopian
literature not only by setting action in a specific future chronologically connected to our past and present but even
more crucially by characterizing that future as one belonging to progress and thus linked causally if not
immediately to the reader's time”.
111
76
Segue breve resumo do caráter utópico da obra: “En 2440, le déisme raisonnable est devenu la religion
universelle, l’enseignement a dépouillé tout pédantisme, les sciences ont permis à l’homme de maîtriser la nature
et d’accroître son bien-être, la justice a été rénovée, la littérature épurée, la monarchie révisée selon le principe
de la séparation des pouvoirs, l’économie (essentiellement agricole) assure à chacun un honnête confort et la paix
universelle a fait de tous les hommes « une seule et même famille rassemblée sous l’œil du père commun »
(TROUSSSON, 1982:1)”.
112
Williams (1994:110) sustenta que as ficções utópicas podem ser classificadas em quatro
tipos: o paraíso, o mundo modificado externamente, o mundo modificado via transformação
voluntária e o mundo transformado pela tecnologia. Ora, se a noção de progresso que
possibilitou a assimilação por parte da literatura utópica da categoria do futuro, elemento
temático central da FC, está diretamente vinculada aos crescentes avanços técnicos e científicos
do século XVIII e é possível que a ficção utópica tenha ficcionalmente a sua superação positiva
do status quo por vias da ciência e da tecnologia, fica então clara a vinculação desta com o
gênero da FC.
Ainda nos baseando na tipificação de Williams, há para uma das quatro formas utópicas
anteriormente apresentadas um correspondente antagônico; basta inverter a valoração positiva
para a negativa mantendo suas especificidades. Com isto, se o mundo pode ser positivamente
transformado por vias científicas e tecnológicas, estas podem ser de igual modo um meio para
uma transformação negativa. É neste sentido que os extremos utopia x distopia são aplicados à
FC em função do tipo de valoração que a extrapolação científica\tecnológica se verifica na obra
em questão. É como sustenta Fiker (1985:53):
Portanto, não somente a utopia e a distopia (e especialmente esta última) compartilham com a
FC o componente temático do binômio ciência\tecnologia, como os discursos utópico e
distópico são formas de valoração deste mesmo componente temático extrapolado no gênero.
Mais especificamente quanto à distopia, é uma consequência quase que direta e
inevitável que esta tenha sido assimilada pela FC. Se boa parte das representações negativas do
futuro do ser humano e de seu planeta têm como razão de ser o mau uso da ciência e da
tecnologia, somente um gênero que tivesse como seus conteúdos temáticos centrais o binômio
ciência\tecnologia e a ideia de futuro poderia fornecer os subsídios mais que necessários para a
literatura distópica. Mais do que isto, historicamente verificamos que a atitude distópica
imbrica-se com a FC já em seus primórdios; lembremo-nos de Frankenstein ou da Máquina do
tempo.
Portanto, sustentamos aqui que os conteúdos temáticos da FC se tornam comuns às
literaturas de utopia e de distopia, estabelecendo estes três relações de complementariedade
entre si em termos de produções literárias específicas. Isto é, uma obra pode ser considerada
113
como sendo de FC e dispondo de elementos utópicos ou distópicos – ou ainda, por ser uma
literatura de utopia ou de distopia dispondo de elementos de FC. Em termos de classificação
das obras, isto acaba por nos levar a uma tensão entre o quão FC pode ser uma obra utópica ou
distópica, ou o quão distópica ou utópica pode ser uma obra de FC. Como argumentamos
inicialmente, cada obra apresentará em diferentes medidas os elementos mais característicos da
utopia, da distopia ou do gênero da FC, cabendo tão somente a um exercício analítico mais
preciso verificar quais destes elementos se sobressaem e quais destes não.
Há ainda três temas77, que são compartilhados, em maior ou menor grau, pela FC e pelas
ficções utópicas e distópicas, reafirmando assim a relação de proximidade que há entre as três
formas literárias. São eles a cidade, a viagem e o mundo paralelo. Tratemos deles um a um.
Conforme aponta Delgado (2011:13), a cidade é um elemento substancial para a
literatura utópica, sendo impossível dissociar esta daquela. A cidade representa a nova formação
histórica e social que caracteriza a modernidade. Nas palavras de Teixeira (2007:46):
Será a cidade o espaço no qual haverá uma crescente concentração humana, intensa
industrialização e crescimento demográfico, em um processo que se estende até o ponto em que
as áreas urbanas tendem a se tornarem maiores que as agrícolas. No século XIX, verifica-se “o
início da hegemonia urbana voltada para a industrialização, o progresso tecnológico, a ocupação
maciça dos espaços urbanos, a cultura urbana e a vida na cidade (VILLAC, 2006:1)”, resultado
de um processo que se inicia com a crise do Feudalismo. É na cidade que comércio, indústrias,
política e atividades culturais e artísticas se desenvolvem e será nela que as contradições
provocadas pelo processo de urbanização irão se ver superadas através da literatura utópica.
Na FC, a cidade pode ser representada tão somente para fins de cenário da narrativa – o
que não poderia deixar de ser, uma vez que se trata de um gênero fortemente vinculado à ideia
de progresso tecnológico e científico e suas implicações sociais. Não caberia assim dizer que a
apropriação do ícone da cidade enquanto mero plano de fundo corresponderia a uma operação
77
Atentar aqui para a distinção entre tema, entendido como assunto ou matéria para a construção da narrativa
ficcional, menos central para o gênero, e componente temático (na perspectiva bakhtiniana), determinante do
gênero.
114
distintiva do gênero. Por outro lado, porém, a cidade ganha contornos mais específicos quando
se torna um ícone vinculado à extrapolação tecnológica desenvolvida ficcionalmente, seja na
FC, seja na literatura utópica. Na medida em que são apresentados indícios de progresso
tecnológico no cenário urbano, este deixa de ser o espaço geográfico em que se passa a narrativa
para atuar como um elemento próprio do gênero. Será ainda através da cidade que
narrativamente verificaremos a valoração que a obra apresenta quanto à extrapolação
tecnológica, fazendo com que esta apresente, ainda que inicialmente como um texto pertencente
à FC, elementos utópicos ou distópicos, a boa ou a ruim cidade.
Se é no ambiente urbano que as contradições sociais serão positivamente superadas na
literatura utópica, na literatura distópica caberá a este um papel absolutamente central. Em seu
artigo Urban Spaces in Dystopian Science Fiction, Savoye (2011) argumenta que o paradigma
urbano é uma ferramenta estrutural capaz de distinguir a FC distópica de outros gêneros. É
especificamente nesta que a cidade deixa de ser um simples cenário para adquirir uma função
diegética própria, na medida em que intervém na progressão do sistema narrativo (cf. id.,
ibid.:137) e passa a se constituir como um veículo semiótico, representando valores tais como
“coletividade, progresso, industrialização ou tecnologia (id., ibid.:138)”. Verifica-se aqui um
aumento considerável de relevância e importância estrutural do ambiente urbano na ficção
distópica em comparação àquele da FC; na qual, como apontamos anteriormente, tal relevância
já se verifica. Este paradigma urbano será o motivo narrativo por excelência de todo o
sentimento de descrença quanto ao progresso que ao longo do século XX serviu de matéria para
a produção da literatura distópica. Nas palavras de Savoye (ibid.:147):
Já no que tange ao tema da viagem, na literatura utópica, onde, como vimos, se tratava
inicialmente de apresentar um lugar outro, tal tema já se apresentava como um elemento
diegético indispensável. Com a conversão da eutopia para a eucronia, ele se manteve presente
e não por menos passou a depender de um dispositivo tecnológico que o possibilitasse. Sem
78
No original em inglês: “The city, originally designed to administer the highest level of informational and human
exchange, has become an entity in itself that has taken control over the entire exchange process, dispossessing
humans from their free will and condemning them to an endless, accelerated race, reminiscent of the hard-line
imperatives of liberal capitalism, which thrives exclusively on maximum expansion and production”.
115
grandes surpresas, somente a especulação científica poderia prover aos autores o engenho
necessário para se atingir os tempos futuros; sendo assim substituído o recurso mais típico da
viagem onírica, em que o narrador acorda no futuro, sem que isto seja racionalmente explicado
na narrativa. Com isso, podemos dizer que o motivo da viagem é um ponto de interseção
temático e histórico entre a FC e a literatura utópica. Temático, pois na FC, temos a viagens no
tempo como um de seus principais temas (cf. CARNEIRO, 1968:61); e histórico pois a primeira
narrativa que apresenta um dispositivo racionalmente justificado através do qual se realiza a
viagem ao futuro – decorrência da substituição na literatura utópica da categoria do espaço pela
do tempo – é precisamente uma das obras fundadoras da FC, A máquina do tempo de H.G.
Wells. E se a viagem no tempo é uma forma de atualização tecnológica da literatura utópica, a
viagem espacial, um outro tema principal da FC, é um retorno ao motivo utópico da viagem a
um lugar outro; ainda que este outro não seja representado positivamente, dizendo respeito
muito mais a nossos medos e anseios, projetados em aliens, mutantes e outros seres
extraterrestres, do que à superação positiva de um determinado status quo, como pressupõe o
conceito da utopia.
Cabe dizer, porém, que no que tange à literatura distópica, o tema da viagem não dispõe
da mesma importância que na FC e na literatura utópica. Isto, pois como vimos anteriormente,
uma das especificidades da narrativa distópica é apresentar o personagem, narrador ou não,
como já pertencendo ao mundo ficcional. Não há, em termos diegéticos, a necessidade de um
deslocamento do personagem para o mundo distópico; o que, naturalmente, não impede que
haja uma narrativa em que se verifique o contrário.
Por último, resta-nos o tema do mundo paralelo. Beltrame (2011:49) argumenta que a
categoria do mundo paralelo está sempre presente na literatura utópica na medida em que esta
se coloca como uma contraposição ao mundo real, cujos problemas e carência são abordados
ficcionalmente. Há um traço de subversão neste procedimento, cabendo a ele despertar uma
sensação de estranhamento no leitor. Ora, se nos remetermos novamente à reflexão
desenvolvida na seção 2.2 deste trabalho, em que postulamos que o mundo ficcional pressupõe
uma transformação do mundo objetivo, tornando-se lhe outro, paralelo, parece não se justificar
o fato de que só os textos utópicos, distópicos ou da FC realizariam este procedimento.
De fato, não é possível dizer que uma narrativa centrada, por exemplo, em torno da
relação de um grupo de amigos ou de um casal seja menos ficcional do que a de um viajante a
uma ilha perdida ou um astronauta a outros planetas. Considerando que os personagens da
primeira história não tenham sido baseados em indivíduos históricos reais, cabe dizer aqui que,
enquanto ficção, operou-se uma transformação da realidade; mesmo que esta história não
116
79
Não podemos, evidentemente, dizer que esta especificidade seja elemento suficiente para caracterizar uma obra
como FC, de utopia ou de distopia. A primazia do plano objetivo deve, necessariamente, no primeiro caso estar
vinculados aos componentes temáticos e à construção composicional própria do gênero; no segundo caso, à
representação ficcional de um mundo sem as contradições do tempo de seu autor e no terceiro caso à extrapolação
negativa deste mesmo mundo.
117
status quo do autor e do leitor. Não é por menos que estas formas de literatura tenham muito
mais a contribuir com questões de ordem sociológica e política – ou mesmo da ordem das
ciências naturais – do que de ordem psicológica; ainda que este aspecto possa ser contemplado,
não obstante, em menor grau.
Considerada a centralidade do plano objetivo em função do plano subjetivo nas obras
destas três formas de literatura, não seria descabido aqui fazermos referência ao conceito de
realismo conforme apresentada por Lukács (1965:11 et seq). O termo não designa, no âmbito
da estética marxista, uma escola ou determinado movimento literário restrito a um determinado
momento histórico; trata-se mais de um certo caráter específico do qual uma obra pode dispor
em maior ou menor medida. Para Lukács, uma obra realista é aquela que consegue materializar
em termos de forma e de conteúdo as contradições sociais, adotando assim uma perspectiva
“progressista da evolução humana (id., ibid:39)”, sendo ricas por disporem “de um conjunto
complexo e englobante de relações entre homens, a natureza e a história (EAGLETON,
1976:44)”. Dentro da tradição marxista, há a questão filosófica central da relação entre o
fenômeno e a essência e que adquire contornos políticos próprios na sociedade capitalista. Isto,
pois as relações fundamentais entre os homens e seus diferentes papéis e posições de classe na
base estrutural da sociedade não se lhes coloca de modo verdadeiro. As formas simbólicas
(superestruturais), produzidas e consumidas socialmente, não expõem as relações de dominação
concretas às quais os homens são submetidos, mas sim uma realidade outra. “Na consciência
humana o mundo aparece completamente diverso daquilo que na realidade ele é: aparece
alterado na sua própria estrutura, deformado nas suas efetivas conexões (LUKÀCS, op.
cit.:20)”80. Caberia, então, a uma literatura realista expor a realidade tal como ela é, em seus
processos de funcionamento interno menos visíveis.
Digno de ser mencionado ainda é Bertold Brecht (1989-1956), considerado um dos
maiores artistas do século XX e cuja maior parte de sua produção se deu na forma de peças de
teatro. Vindo de uma formação marxista, suas visões de mundo e reflexões sobre a sociedade
capitalista ganhavam corpo mais sob a forma artística em si do que teórica e seu objetivo era
estimular seu público a refletir sobre a realidade e momento histórico que os cercava. Uma de
80
Não abordaremos neste momento questões em torno do conceito de ideologia ou de seus mais diferentes usos.
Partiremos apenas do pressuposto de que nem todas as relações de dominação e assimetrias de poder tornam-se
sempre evidentes a todos aqueles nestas envolvidos – quanto a que a literatura pode ser uma forma de tomada de
consciência acerca desta realidade.
118
suas preocupações principais era a de produzir uma arte realista, compartilhando, de certa
forma81, dos aspectos colocados por Lukács. Para Brecht,
Ser realista significa: tornar expostos os complexos causais da sociedade / relevar que
os pontos de vista dominantes são os pontos de vista dos dominantes / escrever do
ponto de vista da classe que apresenta as mais amplas soluções para as mais urgentes
dificuldades que lhe são infligidas pela sociedade / acentuar o momento do
desenvolvimento / possibilitar o concreto e a abstração (BRECHT, 1967:326)
[tradução própria]82.
Entendemos aqui que a literatura atinge um dos seus mais altos graus de humanismo
quando se verifica, em termos da estética marxista, realista. Isso é, para nós, o fenômeno
estético mais positivamente humano é aquele que torna o homem consciente de configurações
sociais nas quais suas liberdades são tolhidas, que o convida ao despertar para uma nova
realidade que se apresente como possível, que o permita sonhar diurnamente. Neste sentido, a
obra literária não deve ser programaticamente política ou conter palavras imediatas de
revolução, mas sim apropriar-se de seu potencial estético para uma reflexão despertada no leitor
de intensidades distintas daquela que se verifica quando este se depara com panfletos partidários
ou manuais científicos. Neste sentido, não é de se surpreender que alguns dos grandes
intelectuais pós-marxistas, isto é, que partem das obras de Marx, atualizando-as em função das
transformações ocorridas ao longo dos séculos XX e XXI não experienciadas pelo pensador
alemão, tenham voltado seus olhares para a literatura de FC, de utopia e de distopia – como é o
caso de Raymond Williams, Fredric Jameson e o próprio Darko Suvin, que também conta com
escritos sobre marxismo. Pois não há como deixar de estabelecer uma nítida relação entre a
primazia do plano objetivo face ao subjetivo, como apontamos anteriormente, e os pressupostos
de uma literatura realista que se volta precisamente para a realidade material objetiva. Nas três
formas literárias em questão, mesmo os elementos mais subjetivos encontram-se inseridos em
uma totalidade maior que os vincule com aspectos de ordem sociológica. Não temos aqui por
intenção dizer que toda e qualquer obra pertencentes a elas possam ser rotuladas como
pressupondo um posicionamento mais à esquerda por parte do autor, ou que isto é algo que
81
A despeito da identificação de ambos com a ideia de uma arte realista que apresente ao leitor ou ao expectador
“a integridade do homem, as contradições da ordem econômica capitalista, a problemática da civilização capitalista
(LUKÁCS, op. cit.:38)”, identificação esta que destacamos em nosso trabalho, Lukács adota uma postura mais
conservadora e considera o realismo de autores como Balzac e outros superior às produções artísticas modernistas;
dentre elas a de Brecht. Este, reagindo a Lukács, questiona sua ortodoxia ao privilegiar um determinado grupos de
autores e uma forma mais historicamente situada de se produzir uma arte realista.
82
No original em alemão: “Realistisch heißt: den gesellschaftlichen Kausalkomplex aufdeckend / die herrschenden
Gesichtspunkte als die Gesichtspunkte der Herrschenden entlarvend / vom Standpunkt der Klasse aus schreibend,
welche für die dringendsten Schwierigkeiten, in denen die menschliche Gesellschaft steckt, die breitesten Lösungen
bereit hält / das Moment der Entwicklung betonend / konkret und das Abstrahieren ermöglichend”.
119
possa interferir na avaliação estética que dela se faça. O que se valoriza em um exercício
hermenêutico dentro de uma perspectiva estética marxista é a capacidade de a obra de arte expor
a realidade de uma forma que comumente ela não se vê exposta; sendo precisamente este efeito
de velamento que atua como um dos elementos de manutenção desta realidade com todas as
assimetrias de poder e contradições sociais que ela traz consigo. Por entendermos que é através
da FC distópica especificamente que as contradições sociais de nossa contemporaneidade se
tornam as mais escancaradas o possível, é que optamos aqui por limitarmos nossas análises a
textos desta forma literária e não de outra. Não por menos, foram justamente elas as que mais
nos chamou atenção quando dos momentos iniciais em que as inquietações primeiras
começavam a determinar os rumos que nossa pesquisa viria a tomar.
Concluamos, portanto, nosso argumento. Os elementos da cidade, da viagem e do
mundo paralelo, enquanto compartilhados pelas formas literárias da FC, de utopia e de distopia,
estabelecem entre si relações de complementariedade: não se pode falar da cidade utópica sem
o tema da viagem, nem se pode falar das cidades utópica ou distópica sem que estas se insiram
em um mundo paralelo mais amplo e totalizante; ou que estas estabeleçam com tal mundo uma
relação metonímica. Ademais, entendemos aqui que, a princípio, estas três formas de literatura
tendem a apresentar um caráter realista, conforme a concepção estética marxista do termo,
graças à primazia do plano objetivo, representado ficcionalmente a partir de seus aspectos
sociais e histórico, em função do plano subjetivo, mais individualizante e com traços mais
psicológicos.
Um último aspecto deve ainda ser mencionado quanto à relação entre FC e a literatura
utópica. Cronologicamente, há a anterioridade por parte da última com relação a primeira, tendo
a FC, como vimos, se apropriado de elementos que já se encontravam presentes na literatura
utópica. Devemos, contudo, observar de igual modo que a literatura utópica, de sua parte,
também se viu aprimorada em sua relação com a FC. O resultado, como comentamos
anteriormente, é a existência de obras híbridas: textos de FC utópica – ou utopias de FC. Ou
ainda, é possível argumentar ter havido uma assimilação da utopia literária por parte da FC.
Seja como for, esta imbricação trouxe duas consequências para as obras literárias utópicas: um
“aprimoramento racional” e uma transformação em termos de forma narrativa.
Este aprimoramento racional diz respeito tanto à apropriação de elementos científicos e
tecnológicos na construção da utopia literária quanto de um posicionamento mais crítico por
parte do autor. Como aponta Freedman (2000:79), “a racionalidade cognitiva (ao menos em
termos literários) da ficção cientifica possibilita que a utopia emerja de modo mais pleno,
genuinamente crítica e transformativa”. Assim, a utopia, por sua vez mais racional, deixa de ser
120
“meramente sugerida” para ser “delineada em detalhes completos e precisos (ibid.:82)”. Por
outro lado, se torna indispensável realizar o exercício da projeção utópica sem que sejam
levados em consideração aspectos científicos e tecnológicos presentes na sociedade – o que nos
permitirá falar em utopias de transformação tecnológica, como vimos anteriormente com
Williams. Estas formas recentes de utopia terão como objetivo não mais o mundo ideal, mas
um mundo melhor. É o que argumenta James (2003:222):
Um mundo melhor pode ser alcançado pelos autores de ficção científica em grande
parte através da educação sobre a ciência, mas também através da apresentação de
possibilidades alternativas. A maior parte destas dizem respeito mais à revolução
tecnológica do que à política: a construção de arranjos políticos e constitucionais,
matéria prima da utopia clássica, pouco atrai os escritores de FC [tradução própria]83.
Vemos, portanto, especialmente através desta passagem, estabelecida uma distinção entre as
utopias clássicas e as utopias moderna. As primeiras partem de uma condição humana entendida
como um dado a priori, com a esperança de que esta atinja seu ideal utópico a partir de leis e
de educação; ao passo que últimas o almejam a partir dos progressos tecnológicos (cf. id.,
ibid.:227).
Já quanto à transformação da forma narrativa, trata-se da mudança do formato
tradicional da literatura utópica para o do romance. Como aponta James (ibid.:222), utopias
clássicas não dispunham de uma caracterização mais aprofundada de seus personagens, com
papéis previamente estabelecidos e com pouca variação (o visitante, o expositor da cidade
utópica etc.); não apresentavam qualquer tipo de conflito a ser esclarecido nas páginas finais;
limitavam-se com o estilo expositor em que predomina a descrição – em suma, aspectos
contemplados pelo formato romance.
Para concluirmos esta seção, resta apenas dizermos que, se à primeira vista a vinculação
entre a literatura de FC, de utopia e de distopia parecia se dar de modo mais imediato, uma
verificação mais aprofundada de alguns de seus temas e de seus percursos históricos justificam
suas inter-relações.
83 No original em inglês: “A better world could be achieved by ‘science-fictioneers’ mostly through education
about science, but also through the presentation of alternate possibilities. Most of those alternate possibilities are
about technological rather than political revolution: the construction of constitutions and political arrangements,
the staple of classic utopia, have little appeal for most sf writers”.
121
Chegado o presente momento de nosso texto, cabe fazermos uma breve retrospectiva.
Ao longo do capítulo 3, apresentamos uma reflexão acerca dos conceitos de utopia e de distopia,
bem como suas materializações discursivas ao longo da histórica. Verificamos que
precisamente no século XX graças a uma sensação de desencanto com o progresso e os
desenvolvimentos científico e tecnológico o impulso utópico e suas formas discursivas,
literárias ou não, foi cedendo espaço para a produção de textos literários distópicos.
Apresentamos algumas justificativas para o fenômeno, tanto de ordem factual histórica, quanto
de ordem intelectual, reafirmando a presença ainda considerável da literatura distópica no início
do século XXI. Argumentamos quanto a isto que o fenômeno do pós-modernismo, ainda que
difuso, oferece, graças à sua negação da racionalidade iluminista e da recusa a qualquer grande
narrativa de emancipação humana, uma justificativa – evidentemente não a única – para o
Zeitgeist distópico.
Nossas considerações acerca da utopia e da distopia se fizeram necessárias tendo em
vista a relação que estas estabelecem com o gênero da FC. E se falamos em FC, não poderíamos
apresentar o conceito como algo já dado, tendo sido necessário também chegarmos a categorias
que pudessem definir inicialmente esta forma de literatura, nos baseando centralmente, em
termos teóricos, no conceito bakhtiniano de gênero discursivo. Além disso, apresentamos ainda
um breve percurso histórico do gênero tanto nos Estados Unidos, país com um maior nicho de
consumidores deste tipo de literatura; bem como no Brasil, onde, a despeito do pouco
reconhecimento do gênero, a produção de obras de FC contribui para uma melhor compreensão
das contradições e especificidades de um país, cujos efeitos de uma modernização tardia se
fazem presentes até os dias de hoje.
Com base em uma pesquisa que levasse em conta as contribuições de grandes
pesquisadores sobre utopia, distopia e FC, além de um respectivo posicionamento crítico de
nossa parte acerca destas, podemos então dispor de elementos característicos suficientes para
lançarmos nossos olhares às obras literárias que serão objeto de análise em nosso trabalho.
Através delas, verificaremos como os parâmetros mais gerais da distopia e da FC se vem
materializados de modo singular nas obras – afinal, é delas que partem as reflexões teóricas
acerca do gênero.
Esta inserção das obras no gênero da FC distópica corresponde à instância da prática
discursiva conforme a teoria tridimensional do discurso apresentada na seção 2.3. Como
apontamos anteriormente, entender o texto como uma prática discursiva significa atentar para
122
os processos de produção, distribuição e consumo textual que lhe são inalienáveis. Na teoria de
Fairclough, a estas somam-se as categorias de contexto, força, coerência e intertextualidade.
Em nossas análises, utilizaremos as categorias da produção, distribuição e intertextualidade,
com dedicada atenção a esta última84. Para o autor (op. cit.114), [i]ntertextualidade é
basicamente a propriedade que tem os textos de ser cheios de fragmentos de outros textos, que
podem ser delimitados explicitamente ou mesclados e que o texto pode assimilar, contradizer,
ecoar ironicamente, e assim por diante.
As análises que apresentaremos nas próximas linhas terão como padrão a apresentação
da obra em termos de sua produção e distribuição, da relação que ela estabelece com a literatura
de FC distópica e por último, mais extensamente, em termos de sua dimensão de prática social
– quais discursos sócio-históricos à época do autor se encontram representados na obra e em
que medida isto configura uma atitude responsiva da parte deste diante destes discursos. É
válido ressaltarmos aqui, especialmente considerando as reflexões desenvolvidas na seção 2.2
deste trabalho, que não se trata de apresentarmos o “ponto de vista do autor”, mas sim de
verificarmos, baseando-nos em evidências textuais aplicadas a uma pesquisa histórica do
contexto de produção e consumo das obras, que posicionamentos nestas se fazem possíveis de
serem verificados. Por se tratar de textos literários, que representam a realidade objetiva
estética, ficcional e conotativamente, é evidente que não se trata aqui de uma interpretação
definitiva. O que, por outro lado, não equivale a dizer que toda e qualquer leitura subjetiva é
válida per se, sem que haja um exercício hermenêutico que leve em conta a totalidade social
em que a obra se encontra – precisamente o que buscamos aqui realizar.
Portanto, as análises a seguir atendem a dois objetivos específicos: a) observar em que
medida os princípios gerais do conceito da distopia e do gênero da FC se veem materializados
nas obras e b) verificar, através de um exercício de análise que leve em consideração a dimensão
da prática social da obra literária, que discursos à época dos autores das obras se viam nos
contos representados e de que maneira estas representações correspondem a posicionamentos
avaliativos por parte do autor possíveis de serem identificados textualmente.
Antes de prosseguirmos às análises, devemos ainda registrar aqui, a despeito de não
citarmos diretamente, nem fazermos menção direta a termos e conceitos nela apresentados, a
84
O fato de lidarmos com textos literários faz com que algumas das sete categorias apresentadas por Fairclough
para a prática discursiva se tornem um tanto quanto menos relevante para a análise que desenvolvemos neste
trabalho. Seremos breves em nossa justificativa: o texto literário não realiza atos de fala (força) como aqueles
ocorridos em contextos institucionais específico, em que haja assimetria de poderes entre os envolvidos; sequer há
como estabelecermos qualquer regularidade sócio-discursiva quanto aos leitores, em que contexto eles realizam
suas leituras ou que pressupostos de coesão eles trazem na instância do consumo das obras.
123
O conto A Espingarda (doravante AE) foi escrito por André Carneiro (1922-2014),
considerado um dos maiores nomes em termos de FC no Brasil e no exterior86, e que se destacou
dentre aqueles pertencentes à “Geração GRD”, e publicado no ano de 1966 em São Paulo pela
editora Edart, que, como vimos anteriormente, inseriu-se em um dos momentos mais profícuos
do gênero no país, aproveitando o impulso editorial motivado pelo trabalho de Gumercindo
Dorea Rocha. O conto figura ainda na coletânea aqui já mencionada Os Melhores Contos
Brasileiros de Ficção Científica editada por Roberto de Sousa Causo, publicada em 2007 – ano
em que André Carneiro foi agraciado com o título de “Personalidade do Ano de 2007” pelos
editores do Anuários Brasileiro de Literatura Fantástica.
AE apresenta dois personagens principais, o protagonista e seu antagonista, ambos sem
nome mencionado, e um narrador em terceira pessoa. A narrativa se desenvolve a partir de uma
errante caminhada do protagonista em meio a um cenário urbano de destruição que, por entre
cadáveres e avenidas destruídas, busca a sua sobrevivência. O clímax da narrativa se dá quando
protagonista e antagonista se encontram, em uma interação pouco amistosa com direito a troca
de tiros.
Tratemos agora de justificar a inserção da obra no gênero de FC distópica.
O primeiro elemento a ser destacado diz respeito à forma de apresentação da narrativa,
especificamente logo o primeiro parágrafo. Este goza de uma importância ímpar, sob vários
aspectos: em termos da apresentação do cenário, do clima psicológico que este imprime aos
personagens e da sua função diegética no desenrolar dos eventos da narrativa. Mais do que
satisfazer estas exigências, podemos perceber que para a economia do texto a opção de
85
Mesmo em linhas gerais, a apresentação da obra e de suas principais categorias analíticas representariam um
indesejado acréscimo quanto à extensão deste trabalho; o que nem de longe tornaria uma análise mais aprofundada
nos termos de Filho (op. cit.) menos relevante.
86
Assim registra a Encyclopedia of Science Ficition em verbete dedicado ao autor: “The best known exponent of
Brazilian sf since the 1960s and to date Brazil's most widely anthologized author”.
124
apresentar ao leitor o parágrafo tal como ele se apresenta em AE intensifica o papel que o
cenário possui na narrativa. Eis sua transcrição integral:
Silêncio. Até onde sua vista alcançava, centenas de carros parados, na avenida.
Esgueirava-se por entre eles, a mão roçando carrocerias cobertas de poeira. Pneus
murchos, manchas de óleo feitas gota a gota, no chão de asfalto. Inclinou-se sobre um
para-choque cheio de barro ressequido. Pequenas folhas cresceram ali, as raízes
descobertas se esgueirando entre a ferrugem que avançava. Continuou a andar para a
frente, parando de vez em quando. A paisagem era a mesma, de um tempo muito
diferente. Estava ao lado de um carro conversível, a chave de partida no lugar, porta
aberta, o estofamento se estragando ao vento, vidros sujos e opacos. Encostou-se em
sua frente, a carcaça fez um ruído de juntas enferrujadas. Em ambos os lados, casas
de luxo, com jardins isolados. O mato invadia as passagens, verde misturado com
folhas secas, transformando as construções em ilhas tristes e esquecidas (AE:76).
todos estes processos, de duração contínua por conta dos usos verbais do pretérito imperfeito e
do gerúndio, possuem em comum a ideia de degradação, de perecimento. Retomando a
antonímia anteriormente mencionada, trata-se aqui da natureza retomando os espaços que
foram transformados pelo homem, com seus aparatos e constructos tecnológicos abandonados.
E, mais do que isto, as ideias de degradação ou perecimento se apresentam como um processo
contínuo, correntes ao tempo narrativo do protagonista: o cenário de destruição que o cerca não
está degradado ou perecido, ele se degrada, perece. Os adjetivos também reforçam esta ideia:
[(carrocerias) cobertas de poeira \ (barro) ressequido \ (raízes) descobertas \ (vidros) sujos e
opacos \ (juntas) enferrujadas \ (jardins) isolados \ (ilhas) tristes e esquecidas].
Como argumentamos anteriormente, a cidade exerce uma função narrativa especial na
FC distópica – que é precisamente o que verificamos no conto. Não somente esta ambientação
de uma cidade destruída causa um impacto inicial no leitor, como boa parte da narrativa se
desenvolve no cenário urbano87, que a todo momento apresenta perigos ou dificuldades para o
protagonista. Na Tabela 2 do Anexo de nosso trabalho verificamos a quantidade de
substantivos, adjetivados ou não, que dizem respeito ao cenário da narrativa e que podem ser
inseridos no campo semântico maior da cidade. Mais de 25% destes substantivos constam no
primeiro parágrafo aqui mencionado, reafirmando sua importância.
Argumentamos também que na FC há uma predominância da instância objetiva em
função da subjetiva. Isto se verifica em AE de distintas maneiras. Em primeiro lugar, conforme
aponta a Tabela 1 do Anexo, há uma predominância considerável de construções qualificativas
descritivas em comparação às avaliativos88. Em segundo lugar, podemos mencionar a reduzida
quantidade de falas do protagonista antes dos diálogos travados com o antagonista no momento
de clímax do conto. Na edição que utilizamos, de cerca de 14 páginas, o personagem principal
terá uma fala própria somente na quinta: “[...] vou dormir, preciso dormir (AE:80-1)”. Por mais
uma vez sua fala será expressa pelo narrador que, ainda assim, o faz mesclando a marcação das
aspas, indicando graficamente o discurso direto, com verbos no pretérito imperfeito do
subjuntivo: “Chamou mais uma vez, gritando que ‘se ninguém aparecesse, destruiria a porta’
(ibid.:84)”. Isto pode ser entendido, por um lado, como uma escolha por parte do autor pelo não
aprofundamento psicológico do personagem, cabendo-lhe muito mais a descrição de suas ações
em meio ao cenário da narrativa. Por outro lado, pode-se sustentar que o próprio silêncio do
87
Na narrativa, o protagonista realiza um deslocamento que começa na parte alta da cidade\subúrbio e vai até o
campo\pequena cidade. Nesta última ocorre o encontro com o antagonista.
88
Utilizamos aqui a expressão “construção qualificativa” para englobar adjetivos, locuções adjetivas e sintagmas
oracionais com valor de adjetivo.
126
protagonista é seu traço psicológico central. Partindo deste ponto, parece-nos que este silêncio
se dá, em grande parte, pela ambientação que o cenário de destruição lhe imprime; não por
menos a primeira palavra do texto figura como a única de uma frase que lhe dá o tom de
desolação: silêncio.
Por último, nos resta mencionar a presença do conteúdo temático do binômio
ciência\tecnologia, que se dá de duas formas específicas em AE, em uma forma extrapolada e
outra não extrapolada. A forma extrapolada diz respeito ao cenário de destruição presente no
conto que tem como causa uma explosão nuclear. Isto, tanto pelo momento histórico em que o
texto foi publicado, como veremos mais detidamente a seguir, e pelas pistas textuais de que
neste cenário haveria água e alimentos contaminados pela radiação, a que também nos
remeteremos novamente a seguir. Já a forma não extrapolada diz respeito à importância
diegética do ícone da espingarda, que não por menos dá título ao texto. A arma é o elemento
que reafirma o caráter antagônico dos personagens. O protagonista é acusado pelo antagonista
de estar ao lado daqueles que trouxeram a “desgraça” ao local – em momento algum é dito
explicitamente que se tratou de uma explosão nuclear ou algo do tipo. Por mais que ambos já
estivessem anteriormente em lados opostos das trincheiras, é o elemento da espingarda –
protagonista e antagonista dispõem de uma – que os impede de terem uma relação minimamente
harmoniosa, ou ao menos egoistamente colaborativa.
Observada a representação distópica do conto, podemos dizer que AE é um relevante
exemplo da “desconfiança básica da ciência e da tecnologia nas mãos dos humanos, por conta
de uma falta de confiança no poder da razão em controlar os excessos das emoções humanas
(GINWAY, 2005:39)”, característica que, segundo a autora, teria marcado a FC da década de
60 produzida no Brasil.
Observada a inserção da obra no gênero da FC distópica, devemos prosseguir com a
análise na dimensão da prática social.
Considerando a data da publicação do texto, 1966, há de se imaginar que o contexto da
Guerra Fria imprima as suas marcas. Mais do que partir do fenômeno sócio-político iniciado
no pós-segunda guerra e findado em 1989 e considerá-lo como um mero pano de fundo para a
obra, é indispensável compreender sua relevância na produção de uma complexa, extensa e
penetrante gama de discursos e significações em um amplo contexto político internacional.
Conforme aponta Biagi (2001:62), a Guerra Fria representou “um novo referencial para as
sociedades dessa segunda metade do século, de uma nova condição que justificaria muitas
políticas e níveis de atuação – a Guerra Fria era uma ‘realidade’ a ser discutida e vivida pois
havia sido criada, inventada, instituída”. Nosso intuito neste trabalho não é de abarcar
127
discussões historiográficas mais profundas quanto ao desenrolar dos fatos no período histórico
em questão ou refletir sobre suas implicações, que, deve-se dizer, podem ainda ser consideradas
como latentes. Entendemos aqui a Guerra Fria como um imaginário social (cf. id., ibid.), isto é,
um complexo amálgama de significações, ideologias, imagens e discursos; ou seja, em sua
instância simbólica, dialeticamente relacionada com elementos de ordem política. Para nossa
análise, traçaremos três eixos temáticos próprios da configuração social, política e cultural à
época: a bipolaridade política, o discurso anticomunista e a ameaça nuclear.
Ao final da Segunda Guerra Mundial, temos no contexto político internacional duas
grandes potências bélicas: os Estados Unidos da América (E.U.A.) e a União das Repúblicas
Socialistas Soviéticas (U.R.S.S.), tendo ambas desempenhado um papel fundamental no
desfecho da guerra recém terminada. Estas potências divergiam uma da outra por suas
organizações políticas, sociais e econômicas: os EUA se baseavam no modelo capitalista e a
URSS teve uma estrutura de base socialista implantada a partir da Revolução bolchevique de
1917. Não se tratava somente de estruturas econômicas distintas, mas de organizações sociais
antagônicas e incompatíveis entre si. Tal tensão entre elas acabaria por promover a hegemonia
de uma em detrimento de outra. Essa tensão é vista de distintas formas pela historiografia do
período. Por um lado, considera-se o expansionismo soviético como uma ameaça ao resto do
mundo capitalista; ao passo que, por outro, a construção de um inimigo soviético foi apenas
uma justificativa para a intervenção norte americana em nações que não se dispusessem de uma
estrutura política e econômica capitalista.
Com isto, um dos motores da Guerra Fria foi a incompatibilidade entre sistemas
políticos distintos, uma bipolaridade que legitimava e sustentava o conflito,
[...] um jogo de opostos na origem, que acabou por criar um único sistema: uma
dinâmica auto-reprodutora com regras próprias. A idéia de origem comum remete a
uma reciprocidade de intenções em ambas as potências do conflito. Sua origem está
em forças militares-sociais internas em ambos os blocos, que constroem o conflito
como o seu próprio objeto. Esta é a garantia da estase da guerra, nunca levada a termo
(HEIN, 2008:9).
Esta bipolaridade pode ser identificada no texto através da utilização dos pares [esquerda x
direita] e [norte x sul] e do adjetivo “vermelho”.
Este último consta no texto qualificando os substantivos [clarão, reflexos, luz, onda]89 e
merece alguma atenção. Aqui podemos argumentar que o vermelho possui um significado
89
O adjetivo “vermelho” qualifica ainda o substantivo “chamas” ao final do conto (AE:88), tal como faz o adjetivo
“azul”. Não entendemos, porém, que este adjetivo relacione-se a uma representação mais imediata da bipolaridade
política, ainda que seja possível argumentar, com algum esforço, que a imagem das chamas vermelhas e azuis, a
128
simbólico, ou, considerando a teoria bakhtiniana, que se trata de um signo ideológico90, e que
nos remete ao polo da URSS e países a ela alinhados. Quando qualificando os substantivos
clarão e reflexo, a cor vermelha se encontra diretamente associada ao cenário da narrativa: “O
clarão vermelho destacava as fachadas, automóveis, gotas deslizando nos fios elétricos. [...]
Faróis distantes devolviam-lhe reflexos vermelhos (AE:80)”. Já quando se trata da luz
vermelha, há uma importância diegética ainda maior. Como já apontamos, o clímax da narrativa
se dá com o encontro do protagonista (sul) com o antagonista (norte), o que só ocorre pelo fato
do primeiro, em dado momento da narrativa, observar que “[a]baixo da linha do horizonte havia
uma luz vermelha (AE:82)”, motivando-o a ir em direção a esta luz na esperança de encontrar
outro ser humano vivo. Portanto, o desenrolar da narrativa depende centralmente deste símbolo
da luz vermelha. Mais do que isto, não nos parece coincidência que esta luz fosse visível da
janela esquerda na construção em que se encontrava o antagonista: “Da janela esquerda já não
filtrava nenhuma luz. O outro dormia (AE:85)” [grifo nosso].
Em “onda vermelha”, mais do que uma referência ao cenário da narrativa, temos ainda
uma referência interna àquilo que parece ter sido o impacto inicial de um ataque que, na
dimensão histórica da narrativa, causou toda a destruição nela descrita: “Lembrava-se de
histórias, homens atingidos mortalmente a correr, tombando fulminados, de repente. Seu sangue
pulsava, via a rua, as casas passando, entre a onda vermelha de raiva e desespero (AE:87)”.
Considerando o uso do adjetivo vermelho, nos parece haver fortes indícios de que o
cenário da narrativa corresponderia a um espaço geográfico alinhado à URSS – ou até mesmo
a própria URSS. Nossa interpretação tende mais para esta última possibilidade graças a uma
sutil “pista” textual, e que não nos pareceu aleatória. Tem-se no texto: “Estava bem ali, mas
tinha um continente para explorar, embora mentalmente isolado em uma ilha (AE:82)” [grifo
nosso]. Não conseguimos imaginar um uso metafórico para o termo “continente”, ainda mais
em uma época em que o conflito entre EUA e URSS e suas diferenças ideológicas tinham papel
de destaque na imprensa nacional91. Como sabido, a extensão geográfica do bloco socialista
um mesmo momento, possa se referir à ideia de que em um contexto de conflito nuclear de fato, ambos os lados
sofreriam consequências terríveis – as “chamas”, metonímia para destruição causada pelas armas nucleares,
caberiam às duas grandes potências.
90
“Em si mesmo, um instrumento não possui um sentido preciso, mas apenas uma função: desempenhar este ou
aquele papel na produção. E ele desempenha essa função sem refletir ou representar alguma outra coisa. Todavia,
um instrumento pode ser convertido em signo ideológico: é o caso, por exemplo, da foice e do martelo como
emblema da União Soviética. A foice e o martelo possuem, aqui, um sentido puramente ideológico. Todo
instrumento de produção pode, da mesma forma, se revestir de um sentido ideológico: os instrumentos utilizados
pelo homem pré-histórico eram cobertos de representações simbólicas e de ornamentos, isto é, de signos
(BAKHTIN, 2009:31-2)”.
91
Um exemplo disto pode se verificar em Cestari (2013), com seu artigo A pedagogia política anticomunista no
jornal Notícias Populares (1963-1964).
129
tinha dimensões continentais, portanto, nos parece aqui clara a sua representação em AE,
considerada ainda a dimensão simbólica da cor vermelha, também associada ao cenário da
narrativa.
No que concerne ao par [norte x sul], trata-se de mais uma forma de oposição
antagônica, uma vez que dizem respeito às origens dos dois personagens – o primeiro vindo do
sul e o segundo, do norte. Se tomarmos a fala deste último – “Vinham os do sul, morreram
todos, todos (ibid.:86)” – o que podemos pressupor é que o ataque inicial, ao qual nos
remetemos anteriormente, teria sido efeito de uma invasão por parte daqueles do sul em terras
do norte. Curiosamente, quando confrontado pelo antagonista acerca da responsabilidade do
protagonista quanto a este ataque, este afirma: “Não matamos ninguém, os culpados estão longe
(AE:87)”. Uma explicação plausível que poderíamos argumentar como possível é a de que
tratou-se previamente tanto de uma invasão militar da parte daqueles do sul, quanto de um
fulminante ataque – certamente de grandeza nuclear, como veremos mais adiante. Interessante
quanto a este ataque é não haver pistas textuais para dizermos se foram os próprios do norte
que lançaram bombas em seu território, ou se aqueles do sul é que o fizeram, mesmo cientes de
haver homens seus em terras inimigas.
Esta questão não resolvida nos impede, num primeiro momento, de verificar se em AE
temos uma valoração positiva ou negativa do bloco soviético – se liderado por forças políticas
que combateram uma ameaça, atacando-a em seu próprio território, ceifando a vida de sua
população; ou se tendo sido a vítima de um ataque externo. Ainda nos baseando nos usos dos
pares que correspondem à circunstância histórica da polarização política, tratemos de [esquerda
x direita].
Como dissemos anteriormente, o antagonista, do norte, encontrava-se em uma
construção de onde a luz vermelha era emitida, através de uma janela à esquerda. Portanto, fica
claro aqui, seguindo nossa interpretação, que o grupo [vermelho, esquerda, norte] diz respeito
ao bloco soviético. Além da referência à janela, o par [esquerdo x direito] também se faz
presente na seguinte passagem: “Era longe, podia distinguir pontos claros de construções, entre
a neblina difusa. Estavam situados entre um morro mais alto à esquerda e pedras salientes à
direita. Era um ponto de referência (AE:83)”. O narrador se refere aqui ao local de onde era
possível ver a luz vermelha, ou seja, onde se encontrava o antagonista. O que nos salta aos
olhos, porém, é que poucas linhas depois o narrador repete o uso do par: “O crepúsculo se
aproximava quando entrou na pequena cidade, costas inclinadas a barba úmida de suor. Os
passos mantinham a força. O morro à esquerda, as pedras à direita. Fora dali, não havia engano
(AE:loc. cit.)”. Não nos parece gratuita a repetição, nem menos a distinta valoração pressuposta
130
pelo par [morro (esquerda) x pedras salientes (direita)]. Aqui, para nós, trata-se uma valoração
mais positiva quanto a “morro” e menos positiva quanto a “pedras” – obviamente, em um
sentido metafórico pouco imediato.
Nosso argumento da valoração positiva subjacente à representação do polo soviético da
obra é reforçado pela ausência de uma avaliação negativa quanto a este e que poderia se fazer
presente. Especialmente se considerarmos o eixo de análise do discurso anticomunista,
elemento fundamental para o momento histórico da Guerra Fria e que se constituiu como uma
das mais diversas faces do imaginário social construído material e discursivamente. Esta
postura ganhou repercussão e aceitação não somente através de ações políticas governamentais,
mas também em diversos outros meios de comunicação no Brasil. Entendamos inicialmente,
porém, suas origens norte-americanas.
Como já dito, ao fim da Segunda Guerra Mundial, duas grandes potências figuravam no
contexto político internacional mundial: os E.U.A. e a U.R.S.S. Mais do que poderes
econômicos, ambas dispunham de forte potencial armamentista, ainda mais se considerarmos
que foi precisamente a aliança entre ambos que contribuiu de forma significativa para a derrota
da Alemanha nazista e as consideradas Potências do Eixo. Se antes lutavam ambos contra um
inimigo em comum, agora se apresentavam no plano político internacional como extremos
excludentes. Tratava-se de uma luta por influências, na qual o expansionismo de um polo
passou a ser visto como ameaça para o outro. Quanto à URSS, perspectivas de expansão
pareciam fazer pouco sentido após tudo o que haviam sofrido anteriormente: “saíra da guerra
em ruínas, exaurida e exausta, com a economia de tempo de paz em frangalhos, com o governo
desconfiado de uma população que, em grande parte fora da Grande Rússia, mostrara uma nítida
e compreensível falta de compromisso com o regime (HOBSBAWN, 2012:230)”. Já para os
EUA,
[...] o inimigo não mais era representado pelos antigos regimes autoritários de
tendência nazifascista, mas pelos governos reformistas ou pelos movimentos sociais
que pudessem pressionar por reformas políticas e sociais que implicassem a redução
da capacidade de intervenção dos EUA no continente (MUNHOZ, 2003:2).
governo diante de um inimigo externo e que atendia ainda a boa parte dos anseios populares
em um país “construído sobre o individualismo e a empresa privada, e onde a própria nação se
definia em termos exclusivamente ideológicos (“americanismo”) que podiam na prática
conceituar-se como o polo oposto do comunismo”. Discursos anticomunistas passaram então a
circular por entre revistas, jornais, programas de televisão, livros, filmes e tantos outros meios
quanto possíveis. Estes discursos tinham como origens grupos sociais distintos, mas que
compartilhavam de um mesmo temor diante da ameaça vermelha:
A primeira consideração a ser feita diz respeito às relações políticas entre os EUA e o
Brasil após a Segunda Guerra Mundial, na qual Brasil e América Latina desfrutaram de certa
importância estratégica. Esta importância acabou por ficar reduzida, devido ao país estar
geograficamente distante daqueles que pudessem sofrer algum tipo de ataque por parte dos
EUA (cf. ROLIM, 2012). Contudo, o alinhamento com os EUA se manteve na Guerra Fria:
parece-nos compreensível sua reação face à sua condição de sobrevivente, para quem o temor
parece ser uma constante. O que justificaria, por exemplo, mesmo a recusa em aceitar a
cooperação do protagonista, cuja proposta rebate: “Não quero ouvir coisa nenhuma. Estou cheio
de mentiras. Não aguento mais (AE:87)”.
O desfecho da narrativa também deve ser posto em evidência: “Estava no fim da cidade.
Havia uma estrada em direção às montanhas. Parou alguns instantes, olhando, depois seguiu
com passos cansados. A estrada levava para o norte. Para lá o homem partiu, com mantimentos
e uma espingarda (AE:89)”. Neste momento, o protagonista sai de seus limites enquanto
personagem para se tornar, metonimicamente, símbolo de toda a humanidade; trata-se agora do
destino desta. O símbolo da estrada acentua a ideia de continuidade histórica. Se não há
elementos textuais que possam sustentar esperanças quanto ao futuro, tão simplesmente que
haja a possibilidade de estas se concretizarem no “norte” (e não no sul), já nos impediria de
situar este desfecho em uma perspectiva de um discurso anticomunista.
Como se pôde observar, tanto com relação ao dito do texto quanto ao seu não-dito, não
há motivos, segundo nossa interpretação, para entendermos a obra como legitimando uma
postura anticomunista, tal como se verifica em uma série outros meios à época da Guerra Fria.
Tratemos agora do eixo de análise da ameaça nuclear.
Um dos principais elementos constituintes do imaginário da Guerra Fria foi o constante
temor de uma catástrofe nuclear, dado o grande potencial bélico do qual dispunham as duas
grandes potências à época. Conforme aponta Hobsbawn (op. cit.:224):
mais pautada pelo aperfeiçoamento tecnológico promovido pelo avanço científico, passa a se
integrar ao governo, sendo o complexo governamental-industrial-acadêmico o “motor da Big
Science para a maior parte da era da Guerra Fria (id., ibid.:379)”. Não se pode perder de vista
ainda o fato de que o poderio militar de uma potência se relaciona diretamente com o seu
respectivo poderio político. Retomando a ideia do antagonismo excludente, estar à frente em
termos bélicos era quase que uma necessidade para evitar a hegemonia do inimigo; em especial
quando falamos dos discursos anticomunistas e da tentativa de os EUA impedirem a expansão
geopolítica do bloco soviético. Investimento e produção tecnológica para fins militares tinham
assim uma justificativa no âmbito político internacional; bem como não se pode desconsiderar
a importância econômica de se manter a todo vapor a indústria militar norte-americana.
Foi à época da Guerra Fria que o ser humano se deparou diante de uma ameaça de
destruição nunca antes vista. Mais do que uma simples questão dicotômica de E.U.A. versus
U.R.S.S., o componente bélico do qual dispunham as duas grandes potências, isto é, armas
atômicas e termonucleares, não era somente “um ‘lubrificante’ espalhado nos mecanismos de
toda a “máquina” da “Guerra Fria”, mas sim, na verdade, “um elemento vital daquele
mecanismo, aquele que imprime sentido ao medo e a (sic) angústia, aos orçamentos bilionários
de defesa e ao temor seja do comunismo ou do capitalismo (ROLIM, 2012:18)”.
Outro conceito relevante presente em boa parte dos estudos sobre a ameaça nuclear à
época da Guerra Fria e que merece ser aqui citado é o da Mutual Assured Destruction (M.A.D.).
A ideia, associada à administração do presidente Dwight D. Eisenhower em meados dos anos
50 e reforçada pelo secretário de defesa Robert McNamara (cf. TUCKER, 2008:1423), pode
ser definida como uma doutrina que propagava
a noção de que cada lado tinha um mesmo poder de fogo e que, se um ataque
ocorresse, a retaliação seria em igual medida ou ainda maior que a do ataque inicial.
Daí que nenhuma das duas nações daria um primeiro golpe pois seu adversário poderia
garantir uma sobrepujante resposta imediata e automática consistindo de um sinal de
alerta, também conhecido como fail deadly. O resultado final seria a destruição de
ambos os lados (ARNOLD, 2012:147) [tradução própria]92.
O medo reforçava-se por conta da expectativa de que um ataque que seria respondido com
outro, levando à total destruição para ambos os lados. Nas palavras de Weart (2012:123): “com
92
No original: “the notion that each side had equal nuclear firepower and that if an attack occurred; retaliation
would be equal to or greater than the initial attack. It followed that neither nation would launch a first strike
because its adversary could guarantee an immediate, automatic, and overwhelming response consisting of a
launch on warning, also known as a fail deadly. The final result would be the destruction of both sides”.
135
Coloca-se, portanto, claro para nós que mesmo no Brasil a ameaça se via representada,
e que não poderíamos deixar de supor que a “desgraça” ocorrida em AE seja um exercício
especulativo ficcional, especialmente no contexto do gênero da FC em que ciência, tecnologia
e futuro se vejam extrapolados. No conto, como vimos anteriormente, antes do momento em
que se desenvolve a narrativa houve um ataque, certamente de proporções nucleares, atingindo
homens mortalmente, “fulminados, de repente”. Há ainda outro indício textual que nos leva a
deduzir que este ataque teria trazido contaminação ao ambiente – tal como as bombas lançadas
sobre as cidades de Hiroshima e Nagasaki tiveram como um de seus efeitos, além da destruição
mais imediata, o envenenamento radioativo. Seguindo nossa linha de interpretação, há dois
momentos no conto em que os efeitos radioativos se veem representados. A certa altura da
narrativa, nos diz o narrador: “Passou a mão pelo rosto barbado, recomeçou a procura. Vitrinas
e espelhos refletiam um mendigo cabeludo e sujo. Tinha medo de limpar-se com água. Fazia-o
com álcool ou perfumes, embebidos em algodão (AE:78)”. Mais adiante, diz o antagonista,
dirigindo-se ao personagem principal: “Você veio do sul, está contaminado. [...] Veja, a cidade
inteira morreu contaminada (AE:86)”. Considerando o temor plenamente justificável em
tempos de Guerra Fria, uma construção ficcional como a de AE legitima não somente que a
93
No original: “[…] with the coming of hydrogen bombs, citizens began to suspect that the end of humanity was
not a science-fiction story, but an imminent possibility”.
136
ameaça poderia se concretizar como forja, literariamente, uma antecipação do caos, destruição
e desolação da raça humana; consequências de seu próprio agir.
A destruição representada no conto supera ainda as relações antagônicas que se travam
metonimicamente através das figuras do protagonista e antagonista. Se tomarmos o momento
em que aquele afirma “Não há sul nem norte. Tudo é a mesma coisa. Não existem fronteiras,
só gente morta e toda parte [...] (AE:87)”, fica claro, retomando o conceito da M.A.D., que
independe de que lado cada personagem se encontre no conflito, assim como independe qual
potência global atacaria primeiro: a destruição atingirá a humanidade como um todo,
igualmente. Nem mesmo os verdadeiros culpados – lembremo-nos de quando o protagonista
afirma “Não matamos ninguém, os culpados estão longe, talvez mortos (AE:loc. cit.)” – se
viram livres de terem sua morte ceifada pela “desgraça”. O que se pretende destacar aqui é o
elevado nível de risco concreto que o potencial bélico das potências oferecia ao ser humano de
um modo geral, o que se aplicava tanto aos E.U.A. quanto à U.R.S.S.
Não se trata, contudo, de neutralizar um direcionamento por parte do autor, não ao
menos a partir de nossas linhas interpretativas. Na narrativa, o protagonista tenta se aproximar
duas vezes do antagonista de modo pacífico, inclusive mandando uma mensagem escrita à mão
dizendo que queria apenas cooperar com o outro personagem, sendo em ambas as vezes
recebido a tiros. Porém, nos dois momentos em que os disparos foram efetuados, estes foram
precedidos de avisos por parte do antagonista – que, como argumentamos, parecia dispor de
motivos suficientes para não confiar ou temer o outro personagem94. Além disso, ao invés de
tão somente ignorar o outro personagem, cujo espaço, se respeitado, o tornava inofensivo, opta
o personagem principal por confrontá-lo, evocando um direito que, segundo o próprio, lhe
cabia: “Se somos dois vivos, metade me pertence [...]. Tenho direito de entrar nessa fortaleza
de mentiras. E vou trazer o argumento que você entende, a espingarda (AE:loc. cit.)”.
Não cabe aqui fazermos uma transposição automática da dualidade histórica política
para a dualidade ficcional dos personagens [EUA x URSS = protagonista x antagonista]. Há
diversas nuances que tornam esta operação mais complexa. Dada as circunstâncias históricas
da massiva propagação do discurso anticomunista, uma ausência deste mesmo discurso na
representação ficcional é uma opção responsiva ativa, ainda que se realize pela ausência. Há
aqui dois traços psicológicos distintos: de um lado o personagem do norte, desconfiado, e com
94
O primeiro tiro disparado pelo antagonista não foi precedido de qualquer aviso. Este disparo, porém, foi em
resposta à ameaça por parte do protagonista que, tendo tentado se comunicar com o outro personagem, mas sem
sucesso, ameaçou que “se ninguém aparecesse, destruiria a porta (AE:84)”. Mais do que isto, este primeiro disparo
parece não ter sido realizado com a intenção de matar, dado que, imediatamente após a ele, adverte o antagonista:
“Desapareça daqui senão eu mato (ibid.)”.
137
alguma razão; e, do outro, o do sul, que, ainda que buscasse cooperação, acabou por optar pelo
confronto direto. Em termos diegéticos, a narrativa depende do clímax do encontro, e é
precisamente por isso que não poderíamos dizer que o protagonista poderia ter tomado outro
caminho: as motivações e a maneira beligerante através da qual ele resolve o conflito já estão
presentes, virtualmente, desde o primeiro momento da narrativa; do contrário, ela não ocorreria
e uma outra possibilidade de desenrolar de eventos só seria imaginável com outro personagem.
Por esse motivo, não cabe aqui entendermos os elementos dos pares [EUA x URSS] e
[protagonista x antagonista] como recebendo, na narrativa, valorações iguais – cabendo aos
últimos as mais positivas. O que, seja dito, nos parece muito mais coerente com a verdadeira
situação política da U.R.S.S., cujos interesses em uma guerra de tais proporções são pouco
factíveis. Como vimos anteriormente, nenhuma pretensão de expansionismo por parte do bloco
soviético se sustentava. Este saíra da Segunda Guerra Mundial “quase aniquilado, sangrando
profusamente por todas as feridas” e era esse “colosso branco sangrante, quase aniquilado, que
se supunha criar uma grande ameaça militar para a Europa (DEUTSCHER, 1969:15)”. O que
se vê endossado pelas palavras do próprio Kruschiov, secretário-geral do Partido Comunista da
União Soviética (PCUS) entre 1953 e 1964:
[...] se existe uma ameaça à coexistência pacífica dos países com diferentes sistemas
político-sociais, essa ameaça não parte de forma alguma da União Soviética, do campo
socialista. Tem o Estado socialista o menor motivo para desencadear uma guerra
agressiva? Existem, por acaso, em nosso país classes e grupos interessados na guerra
como um meio de enriquecimento? Não. Foram há muito suprimidos em nosso país.
Teremos nós pouca terra e riquezas naturais, carecemos de fontes de matérias-primas
ou mercados de venda para nossas mercadorias? Não, temos tudo isso de sobra. Para
que necessitamos, então, da guerra? Não precisamos da guerra, rechaçamos por
princípio a política que arrasta à guerra milhões de seres em holocausto aos interesses
egoístas de um punhado de multimilionários. Sabem de tudo isto os que gritam sobre
os "propósitos agressivos" da URSS? Sim. Naturalmente o sabem. Para que
continuam, então, com sua velha flauta rachada, o estribilho da suposta "agressão
comunista"? Unicamente para turvar as águas, para encobrir seus planos de
dominação mundial, de "cruzada" contra a paz, a democracia e o socialismo
(KRUSCHIOV, 1956).
Portanto, sustentamos aqui que a criação de um inimigo comunista em vias de expansão por
parte dos E.U.A. teve justificativas muito mais de ordem retórica e política do que militares.
Em suma, verificamos, a partir dos eixos analíticos selecionados e considerando a
interpretação que desenvolvemos, que AE consegue, com grande qualidade estética, seja dito,
representar em suas obras questões à ordem do dia da época e diante das quais é possível
verificar um claro posicionamento por parte do autor, considerando exclusivamente o conto em
sua forma e seu conteúdo.
138
O conto Feliz Natal, 20 bilhões (doravante FN) foi escrito por Henrique V. Flory,
nascido em 1968 e ex-aluno do Instituto Tecnológico da Aeronáutica, e figura na coletânea
Enquanto houver natal – oito estórias de ficção científica, publicada em 1989 pelas Edições
GRD, do editor aqui por vezes citado Gumercindo Dorea Rocha. Três das obras de Flory, Só
sei que não vou por aí (1989), Projeto Evolução (1990) e A pedra que canta (1991)95, chegaram
a ganhar destaque ao serem resenhadas nas colunas de Jorge Luiz Calife, romancista de FC e
redator da editoria de ciência no Jornal do Brasil, respectivamente nas edições deste de
20/05/1989, 14/07/1990 e 04/05/1991. FN se insere em um momento de ressurgimento da FC
brasileira após o hiato da década de 70 por conta dos anos de ditadura. Com a publicação da
obra Padrões de Contato (1985), do mesmo Jorge Luiz Calife, resenhada inclusive pela revista
Veja, ocorreu um o aumento de visibilidade da FC produzida no Brasil, tanto no cenário
nacional quanto no internacional (cf. GINWAY, op. cit.:142); do que a coletânea em que figura
FN é exemplo.
FN, assim como todos os outros contos presentes na coletânea, tem, a princípio, o Natal
como elemento temático central e certamente, também como os outros, foi escrito
exclusivamente para esta publicação. Os eventos da narrativa ocorrem, precisamente, como
aponta um narrador em terceira pessoa, entre as 21 horas do dia 24 de dezembro (de um ano
não mencionado) e poucos minutos antes da 1 da manhã do dia 25. Em FN, Alê, o personagem
principal, é requisitado por uma organização intitulada de “Agência” para cometer o assassinato
de um político – algo que se supõe que ele faça com alguma frequência através de outros
serviços para a tal Agência. O crime deveria ser levado a cabo pelo protagonista graças a seu
disfarce de Papai Noel e uma vez infiltrado na casa de seu “alvo”. No último momento, porém,
após ter liquidado com todos na casa, Alê poupa o político por ter se identificado com suas
ideias, anteriormente expressas em diálogos.
A obra se insere no gênero de FC distópica por diferentes motivos, que apresentaremos
agora.
Em primeiro lugar, podemos destacar a relação entre o cenário apresentado na narrativa
e a ideia extrapolada da superpopulação, central para a narrativa, como sugere o título. Neste
95
FN foi posteriormente publicado nesta coletânea.
139
sentido, cabe uma das falas do político – apresentado apenas como “Careca” – que deveria ser
morto por Alê, em meio a uma discussão sobre o tema com os outros personagens:
A humanidade atingiu hoje um ponto que beira o colapso populacional puro e simples.
É o fenômeno da reversão do caráter gregário da espécie, com o aparecimento de
‘elementos de controle social’, psicopatas homicidas, desesperados com a falta de
espaço mínimo que um ser humano necessita para ser psicologicamente saudável. Isso
acontece nas experiências com ratos (FN:62).
O elemento central para o caráter distópico da narrativa é a extrapolação demográfica, que traz
consigo uma série de implicações, como violência e desigualdade social, e sobre o que
lançaremos nossos olhares mais à frente do texto, situando esta especificidade narrativa na
realidade social do Brasil à época. É ainda relevante mencionar a precisão da cifra de 20 bilhões
presente no título – à época da publicação de FN, segundo documento da Organização das
Nações Unidas (ONU)96, a população mundial estimada era de cerca de 5 milhões e 320 mil
pessoas. Não seria descabido imaginar que o autor não tenha chegado aleatoriamente ao número
de 20 bilhões. Seja como for, mesmo para os dias atuais, em que há acesso facilitado a
informações de organizações mundialmente reconhecidas, trata-se de um número bastante
exagerado – segundo o mesmo documento, a população mundial em 2010 era de mais de 6
bilhões e 900 mil pessoas.
Um outro aspecto que justifica a inserção da obra no paradigma da FC é o nível de
cientificidade, se podemos assim dizer, da explicação que o “Careca” dá ao fenômeno da
população:
Assim, o elemento narrativo central – cuja extrapolação dá o tom distópico ao texto – apresenta-
se justificado em termos científicos.
96
Disponível em: http://esa.un.org/wpp/Excel-
Data/EXCEL_FILES/1_Population/WPP2012_POP_F01_1_TOTAL_POPULATION_BOTH_SEXES.XLS.
140
Ainda que não haja qualquer menção ao ano em que se passa a história, podemos
verificar o mesmo recurso da extrapolação sendo aplicado ao nível de desenvolvimento
tecnológico presente à época dos eventos da narrativa, o que leva o leitor a considerá-la como
se passando no futuro. Logo nas primeiras passagens do conto é feita menção à “Estação Orbital
Hohm”, com três mil habitantes, sendo ficcionalmente representado, portanto, o tema da
colonização de outros planetas. Remetendo-nos ao percurso histórico da FC, como vimos na
seção 4.2 deste trabalho, se antes as histórias de space opera apresentavam aventuras
intergalácticas em que um dos motivos centrais era o contato do ser humano com o outro (com
sua própria alteridade) representado na figura do alienígena, no contexto do movimento
cyberpunk os outros planetas perderam sua característica de “território desconhecido a ser
desbravado” para ganharem o estatuto de “lugar a ser colonizado” e precisamente em função
das contradições sociais latentes no planeta Terra. Houve uma mudança da ideia da “exploração
intergaláctica” para a de “fuga da Terra”. Isto ganhou notoriedade com o já citado filme Blade
Runner (1982), também famoso no Brasil, que apresentava, ainda que não centralmente, a
temática da colonização extraterrestre. Verifica-se em FN a influência da vertente cyberpunk
que ao longo dos anos 80 desenvolveu-se nos Estados Unidos e pouco a pouco veio sendo
assimilada por autores brasileiros.
Vários gadgets tecnologicamente mais desenvolvidos do que os da época do autor,
também ajudam na composição dos cenários da narrativa: uma TV que se conecta diretamente
ao cérebro através de um neuroconector que permitia ao usuário “receber as imagens, sons e
cheiros diretamente no cérebro (FN:53)”, um cartão inteligente que registrava as compras em
estabelecimentos – algo como nossos atuais cartões de crédito e\ou débito97, uma máquina de
armazenamento de cocaína governamental (e certamente de outras substâncias estimulantes
e\ou psicotrópicas comumente rotuladas de “drogas”), um super-ônibus elétrico com
capacidade para cerca de cento e cinquenta pessoas, carros autodirigidos com motoristas
eletrônicos, portas automáticas e semiautomáticas98, um dispositivo emissor de ruídos
eletromagnéticos (para evitar o acionamento de redes de alarmes antirroubo presentes na casa
do político), patinhos-robô (dado como presente de Natal a uma criança presente na casa do
político) e pistolas de altíssima pressão municiadas com pequenas setas metálicas que poderiam
perfurar “até um centímetro de aço-titânio 35N (FN:64)”.
97
Leitores mais atentos quanto à plausibilidade dos gadgets apresentados em obras de FC poderão verificar que
há uma “falha técnica” em FN. Em dado momento da narrativa (FLORY, op. cit.:57), Alê pergunta ao garçom se
sua máquina não possui “timer” – o que é tecnicamente impossível se considerarmos nossas máquinas atuais que,
uma vez conectadas à internet, possuem inexoravelmente registros de todas as transações realizadas.
98
Na narrativa, estas portas se encontram em residências, o que mesmo atualmente seria algo incomum.
141
Destaca-se ainda a importância do cenário urbano como lócus central das contradições
sociais oriundas da superpopulação. A cidade em FN não serve tão somente de plano de fundo
para os eventos – ela própria, como seus personagens, é expressão do conflito maior para a
narrativa. Como sistematizamos nas Tabelas 3 e 4 do Anexo, há uma clara relação antitética
entre o cenário externo dos bairros pobres e a padaria situada em um deles, e o cenário externo
dos bairros ricos, em um dos quais se situa a casa do político. Mesmo a apresentação dos
cenários, internos e externos, se dá de modo em certa medida simétrico, com a seguinte
sequência: [espaço interno do bairro pobre > bairro pobre > bairro rico > espaço interno do
bairro rico]99. Esta importância da cidade reafirma a validade da inserção de FN no gênero da
FC distópica, para além da razão editorial mais imediata de ela figurar numa coletânea de
“estórias de ficção científica”.
Como apresentado anteriormente, as décadas de 80 e 90 foram momentos para a FC,
tanto no Brasil quanto nos EUA, de florescimento da vertente cyberpunk, em que as
contradições sociais passam a ser mais exploradas pelos autores e a presença dos engenhos
tecnológicos se tornam parte da realidade cotidiana. Podemos dizer que ambos os elementos se
verificam em FN e faz jus à tendência que se desenvolvia à época. Devemos, contudo, reafirmar
que o cyberpunk no Brasil – ou o tupinipunk, como vimos anteriormente, “não tenta mostrar
uma versão brasileira do ciberespaço, mas, ao invés disso, enfatiza conspirações em seu próprio
meio (GINWAY, 2010:36)”. O que pode ser entendido se levarmos em conta o elevado grau
das contradições sociais brasileira, bem como o desenvolvimento tecnológico tardio,
considerando que somente a partir dos anos 2000 computadores pessoais com acesso à internet
passaram a fazer parte do cotidiano dos brasileiros – e, ainda assim, não necessariamente do de
todos (até hoje...).
Voltemos nossos olhares a partir de agora para a dimensão da prática social de FN.
Pautaremos nossa análise, tal como fizemos anteriormente, em eixos temáticos centrais,
relacionados à configuração histórica do Brasil pós-ditadura. Em FN, consideraremos a crise
econômica da década de 80 e a superpopulação100.
99
Podemos dizer que há um espaço interno entre o bairro pobre e o bairro rico. Antes de chegar a este último, Alê
recebe as coordenadas de seu serviço diretamente na “Agência”, “uma simples biblioteca de software de aparência
bastante inocente (AE:59)”. Para chegar até ela, foi necessário que o personagem tomasse uma condução, o que
nos leva a pressupor que a tal biblioteca se localizasse na região do centro da cidade ficcional. Omitimos nas
tabelas 3 e 4 do Anexo o espaço interno da “Agência” não somente por não haver qualquer adjetivo a ela
relacionado – com exceção de “simples” e “inocente” presentes na transcrição anterior – como por termos
priorizados nelas o caráter antagônico dos bairros pobres e ricos. Ademais, não há como afirmar se a “Agência”
se localizaria nestes ou naqueles.
100
Há dois outros tópicos presentes no conto que mereceriam um exercício analítico tal como o que realizamos
com os três eixos temáticos escolhidos. São eles a AIDS e as drogas. Dentre outras referências quanto aos dois
primeiros, em FN há uma determinada passagem em que um Arcebispo, em uma transmissão de TV, menciona o
142
fato de ter sido a Igreja responsável por ter salvado “a humanidade do flagelo da AIDS reafirmando os valores
fundamentais e imutáveis da sacralidade do Casamento e da Família (AE:53)”. Quanto ao tema das drogas, no
futuro ficcional do autor, estas teriam seu consumo liberado em determinadas quantidades previstas pelo governo.
Mesmo o consumo de tais substâncias não ausenta trazer consigo a questão da desigualdade social. Isto se verifica
em dois momentos: na padaria da narrativa, diz o narrador, não se poderia encontrar a cocaína americana, de
melhor qualidade; e na casa do político alguns personagens fazem uso do “‘paraíso vermelho’, droga sensual de
custo extremamente elevado e inexistente nos bairros pobres (AE:64)”. Por não tratarmos deste tema, o que
tornaria a parte dedicada a FN maior do que a desejada em nosso trabalho, omitimos os termos [bandeja de drogas],
presente textualmente, da coluna “casa do político” na tabela 4 do Anexo.
143
Esta contextualização histórica, ainda que absolutamente breve, parece nos dar
subsídios para que possamos entender os elementos objetivos dos quais o autor de FN parte em
seu exercício ficcional de extrapolação. Não será por menos que teremos no conto, como
apresentamos anteriormente, uma apresentação extremada – ou talvez nem tanto – da
desigualdade social através dos espaços interno e externo, por um lado, da padaria e de um
bairro pobre, e, do outro, da casa do político e de um bairro rico. Considerando as construções
qualificativas presentes na Tabela 3 do Anexo, podemos verificar que o bairro rico não somente
conta com duas construções positivamente avaliativas [de civilização / suaves e agradáveis],
como o bairro pobre dispõe tão somente de construções meramente descritivas. Ademais, salta
aos olhos o cuidado descritivo do qual dispõe o autor para apresentar as ruas do bairro rico:
[cortadas por duas faixas cintilantes, de aproximadamente um palmo de largura e profundidade,
feitas de material acrílico e fibras ópticas que auxiliavam os carros autodirigidos]. Como se
pode ver também na Tabela 4, repete-se nos espaços internos da padaria e da casa do político a
desigualdade aguda verificada nos externos, onde podemos perceber quase que uma mesma
quantidade de referências espaciais para ambos os extremos sociais representados pelos dois
espaços interno. Ademais, há ainda o efeito da violência por conta da desigualdade, quando o
narrador menciona a existência de “gangues de marginais que infestavam a cidade (FN:56)”,
quando este se encontrava em um dos bairros pobres – certamente tais gangues encontrariam
mais dificuldades para agirem nos bairros ricos, onde havia, por exemplo, as guaritas de
segurança.
Algo que deve ser mencionado é a distribuição em semelhante medida, em termos da
economia do texto, de termos que fazem referência aos dois espaços internos e aos dois espaços
externos. Disto conclui-se que o conto não apresenta uma preferência pelo extremo mais rico
144
ou pelo extremo mais pobre – trata-se, ao contrário, de uma semelhante quantidade de material
linguístico para a apresentação de cada um destes, o que pode ser entendido como um efeito de
ênfase na contradição social extrapolada no conto, e que dispões de referências objetivas
bastante claras, considerado o momento histórico da produção do texto.
É válido ainda percebermos que boa parte dos elementos referentes ao espaço interno
do bairro rico corresponde aos objetos que compõem o cenário da casa do político, em
contraposição aos elementos da padaria que em grande parte correspondem às pessoas do
ambiente. Ou ainda, observa-se o antagonismo entre o conjunto de itens tecnológicos versus o
[copo engordurado]. Isto reafirma a ideia de que o desenvolvimento tecnológico não
necessariamente chega a todas as pessoas de modo igual, uma vez que estão subjugados à lógica
econômica do mercado, na qual dispõem de certos bens de consumo aqueles que se encontram
em estamentos econômicos mais elevados da sociedade e dispondo de um poder aquisitivo
maior.
Verificamos algo similar em outro momento. Se observarmos novamente a Tabela 4, há
uma considerável parte dos termos referentes ao bairro pobre que diz respeito ao “super ônibus
elétrico do transporte popular gratuito (FN:57)”. Trata-se aqui de uma extrapolação a princípio
positiva, precisamente graças ao efeito do adjetivo “super”; ou mesmo se atentarmos aqui para
a válida previsão por parte do autor do uso de fontes alternativas ao diesel no futuro da narrativa.
O que se verifica, porém, é que mesmo a aparente qualidade do veículo não é capaz de superar
as contradições sociais. No conto, cerca de duas páginas são dedicadas ao trajeto de Alê até a
“Agência” no super ônibus, correspondendo, por assim dizer, a uma cena da narrativa.
Tratemos, por enquanto, de seu momento mais descritivo (voltaremos a ela mais à frente):
Algumas pessoas já haviam morrido naquelas condições em que os ônibus dos bairros
pobres circulavam. A maioria caindo do carro, mas algumas literalmente asfixiadas e
outras pisoteadas. Depois de alguns minutos sendo comprimidas, empurradas e
machucadas, mesmo as pessoas mais calmas já queriam se morder umas as outras.
Recomendava-se aos velhos e crianças pequenas não viajarem em ônibus muito
lotados, mas não lhes davam quaisquer outras alternativas (FN:58).
Três pontos devem ser destacados. Em primeiro lugar, tem-se o recurso da extrapolação por
conta das mortes – algo, felizmente, consideravelmente extremado. Em segundo lugar,
podemos identificar, especialmente por conta do verbo “morder”, uma relação com a explicação
em tons científicos que posteriormente será apresentada no texto através do personagem do
político, transcrita aqui anteriormente. Por fim, a despeito da qualidade tecnológica do tal super
145
ônibus, presume-se aqui uma deficiência em termos quantitativos para que outros pudessem dar
conta da quantidade de pessoas que desses dependessem.
Retomando nossos apontamentos iniciais de ordem econômica, não poderíamos deixar
de mencionar a referência explícita à crise financeira que assolou o país ao longo da década de
80. Como apontamos anteriormente, um dos elementos tecnológicos que nos dão a ideia de
futuro no conto é a Estação Orbital “Hohm”, mencionada uma única vez, mas o bastante para
que se fizesse registrado no conto um dos principais problemas econômicos que o país possuía
à época:
Cabe aqui dizermos que nem mesmo num futuro em que a colonização espacial tenha se tornado
uma realidade colocou-se para o autor uma perspectiva de liquidação da dívida externa
brasileira – o que só reafirma o quão presente se fazia à época os efeitos da crise econômica. E,
seja dito, com reflexos até os dias atuais.
Verificamos até o presente momento que a crise econômica vincula-se estreitamente à
desigualdade social e que o crescimento demográfico das grandes cidades do país propicia em
grande medida uma reflexão sobre a capacidade destas de suportarem uma grande quantidade
de indivíduos. Esta questão se vê representada em FN através do tema da superpopulação, que,
como vimos, constitui o elemento extrapolado central para o conto. Vimos também que esta
superpopulação assimila os problemas da desigualdade social, representadas no conto através,
especialmente, dos espaços internos e externos onde decorrem os eventos da narrativa. Há,
porém, outros aspectos a serem considerados.
Como dissemos anteriormente, o personagem Alê opta por poupar a vida do “Careca”
por ter simpatizado com as ideias do político, cujas falas durante a conversa em sua casa
parecem verbalizar grande parte das opiniões de Alê. Mais do que apresentar uma explicação
em tons científicos, como vimos anteriormente, o político ainda relaciona o contexto de uma
população em excesso com o interesse da Igreja, dos “políticos tradicionais” e dos “países
ricos”. Tomemos o fragmento a seguir:
O fato é que nem os políticos tradicionais nem a Igreja querem dar melhores condições
de vida à grande massa; eles precisam, politicamente, que elas cresçam e se
estupidifiquem cada vez mais. [...] Mesmo o Arcebispo, vocês devem ter notado, se
viram o debate de hoje, está cego quanto à inexorabilidade do culposo, se mantido o
146
crescimento populacional. Eles todos só pensam em ter mais e mais massa votante,
para aproximar a média das previsões estatísticas – ou fractais, se preferirem – e assim
trabalharem com mais precisão. Não aceitam que, mesmo sem falta de comida, há
uma população limite. E a sociedade está provando que há! [...] Mesmo que
objetivássemos a tingir uma população estável de cinquenta bilhões de habitantes,
deveríamos iniciar um controle demográfico já. Mas nem isso a Igreja se preocupa em
fazer, pela simples razão, de que não querem parar o crescimento. E pior, nem os
países ricos desejam que os pobres controlem seu crescimento; é uma segurança e
estabilidade a mais para eles. (FN:61-2)
Outra referência presente no texto quanto à perspectiva que o político possui acerca do
problema é a presença de dois discos ópticos separados em seu quarto; ao que parece, uma
espécie de e-book em dois volumes, com o título de “A Explosão Demográfica: Mais Causas
Políticas do que Culturais” – que foram, inclusive, coletados por Alê.
De modo mais impulsivo, se podemos assim dizer – “Os religiosos lhe inspiravam
repulsa, ódio quase incontido (FN:53)” – Alê, tal como o político, percebe o vínculo existente
entre a questão da manutenção retórica da superpopulação com a instituição da Igreja. Quanto
ao debate televisivo ao qual o político fez referência, o narrador nos diz: “Alê excitou-se. Aquilo
prometia. Ele esperava que alguém defendesse a eutanásia e o aborto discriminados e usados
como método de controle populacional (FN:loc. cit.)”. É relevante percebermos aqui que FN
toca em temas considerados tabus e que mesmo contemporaneamente ainda não foram
totalmente esclarecidos, não tendo ainda chegado a sociedade a uma postura definitiva a se
adotar diante deles. Atualmente, falar em aborto ou eutanásia significa inserir-se em um
fervoroso debate no qual atrás de uma das trincheiras encontram-se em grande quantidade
segmentos religiosos, não somente católicos como também especialmente evangélicos, que
correspondem hoje a uma parcela da população maior do que há 20 ou 30 anos. Em nossa
interpretação, parece válido dizer que há uma atitude responsiva por parte do autor (considerado
exclusivamente o conto em questão) de se criticar a postura da Igreja em impor barreiras a
controles mais efetivos de natalidade, aproveitando-se de um número de pessoas pobres cada
vez maior, proporcionando-lhes um ganho político. Crítica esta, aliás, extremamente pertinente
aos dias atuais, em que uma grande quantidade de pessoas chega a dedicar boa parte de seus
rendimentos a instituições religiosas em troca da realização de bênçãos e milagres em suas
duras vidas.
Como vimos, foi através de uma emissão televisiva que o arcebispo e o político
“Careca” travaram um debate. Voltemos agora nossa atenção à representação da força dos
meios de comunicação em massa, à qual cabe especial destaque no conto. Ao longo das duas
primeiras páginas do texto, o autor cria um efeito de intertextualidade manifesta (recorrência
explícita em um texto a outro específico (cf. FAIRCLOUGH, op. cit.:114)) ao “transcrever”
147
integralmente o que é veiculado pela televisão. Isto se verifica ao longo de seis parágrafos, o
que corresponde, em termos econômicos do texto, a uma considerável parcela do conto. Mais
do que isto, houve ainda o cuidado em se grafar em negrito o que era dito, e em itálico,
informações extra-verbais sobre a transmissão; do que a passagem a seguir é exemplo:
101
Para além de um exemplo textual, nos salta aos olhos a atualidade daquilo que se vê representado na transcrição,
face à grande audiência que possuem programas policialescos de TV nos dias atuais, cujo formato é a apresentação
sistemática e contínua de ocorrências criminais ou infortúnios de terceiros que causem comoção no expectador.
Seu efeito mais nefasto é o reducionismo quanto às questões sociais subjacentes à violência e a criminalidade
marginal e a construção de uma atmosfera de constante temor diante destes. Destaque para “os sons de tiros e
gritos” e o “cheiro de sangue e pólvora” e seu efeito de nos remetermos quase que imediatamente a imagens de
programas do tipo.
148
Mais do que isto, devemos ainda nos lembrar do poderio político e econômico centrado na mão
de alguns poucos grupos empresariais do ramo, bem como a capacidade de os programas de
TV em suas produções simbólicas, com destaque para as telenovelas (e sobre o que há uma
considerável literatura), em legitimar e reproduzir matizes de desigualdade e discriminação (cf.
HAMBURGER, 1998:441). Neste sentido, coloca-se como um dos grandes desafios da
atualidade fazer com que um número cada vez maior de pessoas possam ter acesso a todo um
complexo cultural de costumes, opiniões, visões de mundo etc. alternativos àqueles oferecidos
pelas grandes corporações midiáticas, cujos tentáculos se estendem por outros suportes
semióticos para além da televisão, como revistas, jornais e, mais recentemente, a internet.
No conto, além da menção ao uso do espaço televisivo para a propagação das ideias da
Igreja – ainda que tão somente ao nível do debate, dado que Flory não poderia ter tido contato
à sua época com as transmissões de cultos religiosos durante boa parte da grade de programação
de algumas emissoras – pode ainda ser identificada, de modo bastante jocoso, uma referência
aos programas de auditório, que fizeram grande sucesso nos anos 80 e 90. Tomaremos a
liberdade de transcrever o extenso fragmento:
Um pequeno detalhe deve aqui ser mencionado: esta é a única passagem em que se verifica a
transmissão de uma “TV Tela”, correspondendo todas as outras à transmissão da “TV
neuroconectada” graças ao neuroconector de Alê – o único a possuir um no espaço interno da
padaria onde se encontrava a “TV Tela” tradicional. Portanto, não somente o nível tecnológico
do gadget é um indicador socioeconômico como, pode-se ainda argumentar, há um sutil
contraste entre a programação da TV tradicional e daquela que Alê portava: com aquela
149
102
Para sermos exatos, das seis passagens com a transcrição da transmissão, três delas correspondem ao debate
com o arcebispo e o político “careca”, uma ao jornal internacional, uma ao programa de auditório e uma àquilo
que parece ser um programa policialesco. A que se refere a este último foi a primeira citada neste trabalho e com
características que em nada devem aos mesmos programas policialescos que temos atualmente, com todos os
efeitos culturais e sociais que eles causam; desde a reprodução sistemática de discursos que tendem a ridicularizar
criminosos marginais (não os que vestem fardas ou paletós) justificando seus atos a partir da má índole que estes
parecem apresentar desde o nascimento, até a extrapolação dos usos da coerção por parte dos agentes do Estado –
um complexo de revanchismo e “justiçamento” que recebe o apoio de boa parte da população.
103
“A mais-valia é a parte do trabalho excedente e não pago ao trabalhador que, na sociedade capitalista, aparece
sob a forma mistificada de lucro. Portanto, a mais-valia é retirada do sobretrabalho, trabalho abstrato e não trabalho
concreto. Marx vai revelar esta relação apontando os seus elementos constitutivos. Para ele, a produção de mais-
valia é a razão de ser da produção capitalista. Mas esta não aparece revelada, pois, na aparência, o capitalista paga
ao trabalhador o valor diário do seu trabalho. Mas, na essência, este valor diário da força de trabalho não é o valor
necessariamente pago, pois o capitalista toma horas de trabalho excedentes e que não são pagas ao trabalhador,
permitindo obter daí uma lucratividade maior. Para acrescer lucratividade, o capitalista busca extrair o máximo de
produtividade do trabalhador (OLIVEIRA, 2010:277)”.
150
Para que o crime parecesse obra de um assaltante maníaco homicida e não um atentado
político, como a “Agência” queria que fosse, Alê passou a revirar a casa. Retirou as
jóias das mulheres, atravessou a sala e revisitou os quartos (com todo o cuidado para
não acionar os alarmes anti-roubo, é lógico), coletando tudo o que tivesse algum valor
e jogando-os no saco do Papai Noel (FN:66).
O que se percebe é que se trata de uma organização com intenções políticas, mas com um modus
operandi nem um pouco politicamente ortodoxo. Consideradas a valoração negativa com a qual
são representados os “políticos tradicionais” e os meios através dos quais a Agência crê atingir
seus objetivos políticos, não expressos em momento algum, sustentamos aqui que em FN se faz
representada a chamada crise de representatividade política. Com isto, queremos dizer que
contemporaneamente há uma descrença cada vez maior por parte dos indivíduos no poder
político exercido de fato por seus representantes através dos meios democráticos
151
104
Seja dito, não reproduziremos aqui a ingênua e comum ideia, sistematicamente reproduzida em nosso país, de
que a corrupção política é a raiz de todos os males sociais ou de que o mau uso da máquina pública por parte de
representantes que dela se apropriam para multiplicar seus patrimônios corresponda a uma ineficácia que seja
inerente ao Estado.
152
indivíduo em função das grandes narrativas de emancipação social dos tempos de outrora, a
participação política se vê cada vez mais fragmentada e distante das instituições partidárias
tradicionais.
Portanto, é possível observar que os meios de ação política tradicionais, partidários,
institucionalmente organizados, se encontram representados negativamente em FN. Seria
também possível dizer que a forma como a “Agência” atua poderia representar uma
extrapolação do clima de descrença diante das formas tradicionais de se fazer política: se o
Estado não é capaz de atuar em função do bem estar coletivo, meios alternativos de ação
poderão surgir. Neste sentido, podemos interpretar o surgimento da “Agência” como o resultado
da insatisfação de um determinado grupo diante das contradições sociais que no futuro ficcional
da obra não se viram superadas, ou mesmo como resultado da permanência de uma forma
ineficaz de se fazer política. A extrapolação da desigualdade social presente no conto parece
endossar este argumento.
Por fim, um último ponto a ser destacado, e que não se trata necessariamente de um eixo
temático central para nossa análise, é a complexa composição psicológica do personagem Alê.
Se por um lado há diversos momentos que propiciam ao leitor uma sensação mesmo de repulsa
– como aponta a Tabela 5 do Anexo; por outro, há três momentos em FN nos quais Alê parece
demonstrar algum tipo de humanidade ou compaixão pelo próximo, ainda que de modo bastante
contraditório: 1) quando, após pisar no pescoço de uma criança que se perdeu na mãe em meio
à típica confusão que ocorre ao desembarcar do ônibus, expressa o narrador, com marcação
entre aspas, em discurso direto, o pensamento de Alê: “Quem sabe eles se conscientizam de
que esta situação não pode continuar (FN:59)”, 2) quando Alê se compadece do político
“careca”, não o matando e 3) quando, ao final do conto, expressa o narrador: “[...]
diferentemente das outras vezes, desta Alê não sentia nenhum prazer pelo que fizera (FN:67)”.
Bastante relevante é ainda a fala de Alê após poupar o político:
Não sou homem de muitas palavras, mas acho que posso te dizer o seguinte: eu ia
mata-lo, a “Agência” me incumbiu e eu topei, mas depois de te ouvir eu não posso
fazer isso. Sabe, agora que a sua família foi morta, eu acho que suas opiniões vão ter
um peso político muito maior. E a partir de hoje você vai passar a sentir na carne o
problema, ter o meu fogo dentro de si... (FN:loc. cit.) [grifo do autor]
Não nos parece descabido dizer, ainda mais considerando o grifo original, que a passagem
sugere ter ocorrido a Alê o mesmo que ao político: perder sua família; fazendo assim com que
ambos passem a “sentir na carne” as contradições sociais que culminaram com a morte dos
familiares. O político é vítima de um mundo onde os meios tradicionais de se fazer política são
153
105
Ginway (2010:78) afirma, em breve análise do mesmo conto, que “Alê também encarna a desumanidade da
nova ordem neoliberal, mostrando-se vencedor, individualista, cumprindo seu serviço com a ambição de
enriquecer para morar num bairro de luxo”. Como se tentou argumentar aqui, esta configuração neoliberal pós-
ditadura, com efeitos de medidas políticas tomadas décadas anteriores, de fato corrompe Alê, cuja intenção de
ascensão social é expressa claramente pelo narrador (não citamos aqui a passagem). Entretanto, Ginway deixa de
lado o implícito de que Alê possa ter se tornado este “individualista ambicioso” para fugir de sua condição de
origem, na qual as contradições sociais que, em nossa leitura, causaram a perda da sua família, se apresentam de
modo intenso.
154
características ainda não se colocaram distantes o suficiente de nossos olhares para que melhor
possamos compreendê-las. Cabe dizer, contudo, como já o fizemos anteriormente, que a
primeira década dos anos 2000 foi marcada pela relevante quantidade de antologias e
publicações do gênero, especialmente graças ao trabalho de Roberto de Sousa Causo e das
editora Devir e Tarja Editorial, tendo sido a coletânea na qual figura OT publicada por essa
última. Como de imediato seu título indica, OT compõe a lista de obras que mantém vivas a
tendência cyberpunk desenvolvida mais intensamente nos anos 90 no Brasil e na década anterior
nos Estados Unidos; vertente ideal para abordar as contradições e os problemas sociais da
contemporaneidade, em tempos nos quais o modo de produção capitalista é adotado quase que
por todo o globo, com suas nações cada vez mais dependentes de instituições e organizações
financeiras globais e do mercado internacional. Cabe ainda aqui o comentário feito por Ginway
e que citamos ao início da seção anterior: por se tratar de uma obra cyberpunk produzida no
Brasil, não há, como costuma se verificar nas produções em língua inglesa, uma opção por parte
do autor de ambientar suas obras no cyberespaço, em ambientes virtuais, mas sim no ambiente
urbano.
Em OT, é apresentada a história de Hermes, o protagonista, em seu primeiro dia como
Trainee na fábrica Cybermind. Como qualquer primeiro dia de trabalho, um superior lhe
apresenta as instalações, explica as etapas de produção, as especificidades de seus produtos,
dentre outros. Hermes se dá conta de que as mercadorias produzidas pela fábrica são humanos
anencéfalos com interfaces cranianas sintéticas e cérebros eletrônicos, produzidos com alta
tecnologia e que o superior que lhe apresentara seu novo local de trabalho era um deles. A partir
daí, tem início uma fuga desesperada e motivada por ataques de outros funcionários, quando
estes percebem que o recém contratado sabia demais.
Como apontamos anteriormente, a cidade é um elemento temático comum às literaturas
utópicas, distópicas e à FC. Na vertente cyberpunk, ela se torna ainda mais relevante. Como
aponta Amaral (2006:65):
Tal como nos outros contos, a descrição que se faz da cidade contribui em considerável medida
para a ambientação da narrativa, assimilando o cenário ele mesmo as contradições sociais
urbanas. Em OT, há um espaço interno e um externo, podendo este primeiro ser dividido em
155
dois espaços menores. Como se pode verificar na Tabela 7 do Anexo, a quantidade de termos
que fazem referência ao cenário externo urbano é várias vezes maior do que aqueles utilizados
na composição dos outros cenários. Como não fosse o bastante, deve-se ainda considerar, em
termos da economia do texto, que somente na, aproximadamente, metade da oitava página
Hermes sai da fábrica e então visualiza o espaço externo urbano que o cerca – de um total de
doze páginas que o conto ocupa na edição utilizada. Ou seja, mesmo em uma fração de texto
reduzida, há um cuidado descritivo maior com o espaço externo urbano. Mantém-se aqui a
preocupação por parte dos autores, como verificamos também anteriormente nos dois outros
contos, com a apresentação dos cenários urbanos. Em OT, vale transcrever a passagem mais
emblemática acerca do mundo ao redor da Cybermind:
Estavam sobre uma alta construção de concreto. Concreto maciço, sem janelas, sem
nada. Olhou em volta. Havia outras construções como aquela. Em cima de cada uma,
um prédio cúbico, de aparência monolítica e indestrutível, cercado por muros.
Imaginou que eram todas fábricas como a Cybermind, todas produzindo produtos
importantes, talvez algumas delas com linhas de montagem de anencéfalos, ou outras
mercadorias mais hediondas. Era aquele então o mundo. Um mundo de montanhas de
concreto, cercada de viadutos gigantes e fortalezas produzindo monstros (OT:119).
Verifica-se aqui a forma noir de representação do espaço urbano, tipicamente apropriado pela
literatura distópica e especialmente pelo cyberpunk. Conforme aponta Prakash (2010:1),
Seja dito, este tipo de ambientação noir não representa uma extrapolação distópica no sentido
estrito do termo, sendo percebida em OT a funcionalização do conceito de distopia muito mais
em função do tema da engenharia genética.
Se considerarmos a história da FC, conforme apontam Slonczewski e Levy (2003:174),
ao longo dos anos 90 alguns escritores do gênero passaram a considerar a biologia como a
ciência do futuro. Assim, se anteriormente os alienígenas eram os invasores a serem
106
No original em inglês: “Since the turn of the twentieth century, dystopic images have figured prominently in
literary, cinematic, and sociological representations of the modern city. In these portrayals, the city often appears
as dark, insurgent (or forced into total obedience), dysfunctional (or forced into machine-like functioning),
engulfed in ecological and social crises, seduced by capitalist consumption, paralyzed by crime, wars, class,
gender, and racial conflicts, and subjected to excessive technological and technocratic control”.
156
Outro aspecto que cabe ser mencionado quanto à inserção da obra no gênero da FC
distópica é a presença de elementos tecnológicos mais desenvolvidos do que aqueles à época
do autor. Neste sentido, ainda que não haja no conto qualquer referência temporal precisa, trata-
se de um tempo futuro próximo. O que, por sua vez, se configura como uma das características
da vertente cyberpunk, que, ainda que se aproprie da ideia de futuro, apresenta-o como não tão
distante do presente à época do autor e do leitor. E não é por menos que esta vertente, enquanto
107
No original em inglês: “A contraction of ‘‘cybernetic organism’’, contrived to describe products of
organic/inorganic chimerisation, particularly the augmentation of the human body with mechanical devices”.
157
um dos movimentos mais recentes da história da FC, apresente perspectivas de futuro cada vez
mais próximas do presente. Como aponta Koselleck (2003), com o advento da modernidade a
aceleração se torna uma categoria específica do tempo histórico, que, condicionado pelas
transformações científicas, tecnológicas e industriais e marcado por uma filosofia do progresso,
passa a descortinar um futuro em um intervalo de tempo a partir do presente cada vez menor.
Assim, o cenário de OT pouco tem a dever àqueles que as grandes metrópoles contemporâneas
nos apresentam; mesmo que nos dias atuais (ainda) não verifiquemos manipulações de
anencéfalos tal como são apresentadas no conto, ou mesmo naves como veículos urbanos e
guardas que voam através de jatos em seus corpos – os únicos dois elementos de tecnologia
extrapolada apresentados no conto além da biotecnologia utilizada pela Cybermind na produção
de seus ciborgues.
Justificada a inserção de OT na literatura cyberpunk, em que se comumente o conceito
de distopia se vê funcionalizado, prosseguiremos com nossa análise. Adotaremos aqui três eixos
temáticos centrais a se verificarem na instância da prática social do conto. São eles: a
reafirmação das classes sociais no capitalismo contemporâneo, a questão bioética e a questão
da ideologia.
Para levarmos adiante uma leitura que consiga identificar em OT questões de classe,
inseridas no contexto maior do modo de produção capitalista, é preciso que deixemos de lado
uma outra possível interpretação. Neste sentido, a defesa de uma interpretação que coloque
como um dos eixos temáticos centrais a manutenção das classes sociais no capitalismo
contemporâneo pressupõe necessariamente uma negação de leituras outras que não o façam.
Como apontamos anteriormente, a Cybermind é uma fábrica que produz indivíduos
anencéfalos, nos quais são inseridos cérebros eletrônicos e através deles estes indivíduos
tornam-se aptos a, exclusivamente, exercerem determinadas funções previamente escolhidas
por seus compradores. Em dado momento da narrativa, Hermes, o protagonista, se dá conta de
que ele próprio é um destes ciborgues produzidos pela Cybermind, e, em sua tentativa de fuga
da fábrica, acaba por ser perseguido por seguranças. O desfecho da narrativa se dá com Hermes
sendo salvo por um “sujeito estranho” que pilotava uma nave em forma de motocicleta e que
pôde dar cabo dos seguranças que perseguiam o protagonista. O tal sujeito convida Hermes a
acompanhá-lo caso quisesse continuar vivo, quanto a que expõe o narrador: “Hermes hesitou.
Lembrou da conversa que tivera com o finado gerente, sobre os clones que se revoltavam e
fugiam para viver na marginalidade, em gangues. Ele, afinal, era um produto com a mesma
desvantagem (OT:122)”. Hermes opta por seguir viajem com o tal sujeito, indo com ele para o
underground.
158
Uma das questões que poderiam ser levantadas acerca do destino de Hermes – e, por
consequência, de sua origem – seria o temor de que as máquinas, por algum motivo tendo sua
existência não mais totalmente determinada pelos parâmetros iniciais a partir dos quais elas
foram criadas, poderiam vir a se rebelar contra os seres humanos. Trata-se aqui do clássico
complexo de Frankenstein em que a criatura, despida de maiores controles, se volta contra seu
criador. Ou ainda, outra linha de interpretação a se traçar a partir da figura de Hermes, visto que
no conto não se verifica uma revolta dos ciborgues contra seus donos, seria o possível estatuto
de marginalidade que estes seres em parte humanos e em parte máquinas poderiam adquirir
uma vez não se comportando mais como foram programados para se comportarem. Colocar
estas questões como centrais equivaleria a interpretar o conto a partir da tensão que este sugere
entre o homem e a máquina – o que equivaleria, por extensão metonímica, à tensão mais ampla
e abrangente entre o ser humano e seu progresso tecnológico. O que não deixa de ser um roteiro
de análise válido. Contudo, cremos que de tal modo não atingiríamos a profundidade da crítica
social que o conto potencialmente apresenta; e, por conseguinte, não poderia se verificar o eixo
temático de análise quanto às classes sociais.
Em primeiro lugar, a premissa da qual parte o conto, se levada a uma verificação mais
aprofundada, carece de um grau de verossimilhança mínimo para considerarmos o conflito
presente em OT entre homem versus máquina plausível. Ainda que a temática da vingança do
criador sobre a criatura seja corrente na FC, há a premissa lógica de que uma máquina não opera
senão sob parâmetros anteriormente estipulados e caso haja algum tipo de influência externa
que cause a alteração destes parâmetros o que teremos como resultado é um mau
funcionamento, e não um funcionamento em natureza distinto daquele previsto: uma cafeteira
com defeito não passa, por isso, a produzir refrigerante; assim como um complexo sistema de
software tem como efeito de um parâmetro de funcionamento não respeitado um crash. Tendo
esta premissa em mente, voltemos nossos olhares novamente para OT. No conto, Hermes é uma
máquina com defeito, causado, segundo o narrador em discurso indireto livre, por “[u]m
miserável curto-circuito! (OT:120)”. Hermes, portanto, é um dos anencéfalos que se manteve
vivo graças à interface craniana que nele foi implantada. A despeito de seu defeito, Hermes
possui todas as funções vitais indispensáveis à vida de um ser humano, e, mais do que isto,
possui uma consciência além daquela previamente programada. Isto, pois em dado momento
da narrativa, quando percebe que é mais um dos produtos da Cybermind, Hermes se dá conta
de que toda a sua vida era uma grande ilusão – deduz-se, ainda que o narrador não o expresse,
159
que suas memórias foram tecnologicamente forjadas e indexadas em seu cérebro eletrônico108.
É interessante percebermos que se estas memórias são necessárias, é por haver por parte dos
criadores dos ciborgues como Hermes o temor de que estes possam se tornar conscientes de sua
origem, rebelando-se. Ora, não faria nenhum sentido dizer que a programação do cérebro
eletrônico contenha em si um parâmetro que possibilitasse um comportamento rebelde.
Portanto, se considerarmos a premissa anterior de que uma máquina não apresenta, em termos
estritos, comportamentos distintos daqueles que foram previstos, logo, o parâmetro que permite
um comportamento rebelde não se encontra no cérebro eletrônico. Onde mais estaria então?
Em termos biológicos, não podemos dizer que a “consciência rebelde” – ou mesmo a
“humanidade” dos ciborgues, uma vez conscientes de suas origens – é produzida em qualquer
outro local do corpo senão no cérebro. A esse respeito, convém citarmos Penna (2005:97), que
parte do conceito presente na literatura médica de morte neurológica. Esta impossibilita a
consciência, fazendo com que um indivíduo que a tenha sofrido mantenha-se biologicamente
ativo109 tão somente com a ajuda de aparelhos ou outras substâncias químicas. Baseado nisto,
a autora sustenta que
108
Podemos nos remeter aqui, como exemplo de extrapolação ficcional que trate da implantação de memórias, ao
conto de Philip K. Dick We Can Remember It for You Wholesale (1966) e que serviu de base para o filme Total
Recall (1990), no Brasil lançado no mesmo ano com algum sucesso como O vingador do futuro.
109
A autora utiliza o termo biologicamente ativo para evitar a confusão com o termo vivo e a “aparente contradição
entre pessoa morta e organismo vivo (PENNA, 2005:97)”. Assim, falar em um indivíduo biologicamente ativo
corresponde às funções mais básicas do corpo, ainda que a morte neurológica, que o impede de dispor de qualquer
forma de consciência, tenha ocorrido.
160
representando toda uma classe de profissionais cujas tarefas e serviços dispõem de menor
prestígio social e que não são, via de regra, realizados por aqueles que possuem um poder
aquisitivo mais elevado. Portanto, entendida esta perspectiva metafórica, podemos argumentar
que tal metáfora constitua o que definimos como o eixo temático de análise da reafirmação das
classes sociais no capitalismo contemporâneo.
Adotarmos este eixo temático não se justifica somente pela impossibilidade lógica de
levar até as últimas consequências a premissa dos ciborgues da Cybermind, como acabamos de
ver. Há ainda outros aspectos textuais que endossam nosso olhar sobre o conto. Cabe, antes de
irmos a eles, tecermos alguns comentários sobre o conceito de luta de classes, conforme
apresentado por Marx e Engels.
Ou autores alemães (2005:40) afirmam em seu Manifesto Comunista de 1848 – em
passagem não pouco reproduzida – que “[a] história de todas as sociedades até hoje existentes
é a história da luta de classes”. O conceito de luta de classes pode soar para alguns hoje como
um anacronismo, que pouco teria a acrescentar em nossa compreensão hodierna da realidade e
da vida social – e, portanto, disfuncional em termos ficcionais. Pois conforme apontam
Boltanski e Chiapello (2009:316),
[a] elevação do nível de vida dos operários depois do pós-guerra, seu acesso ao
consumo de certos bens, tais como automóvel ou televisão, a melhoria do conforto
das habitações, assim como o decréscimo regular do efetivo operário a partir de 1975,
tudo isso abriu caminho para a teoria da absorção de todas as classes (da classe
operária em particular) por uma ampla classe média.
O que se verifica é que vem ocorrendo nos últimos tempos um crescente desuso do termo luta
de classes, ou da categoria de classe como um instrumento analítico para as ciências sociais. E
isto por diversos fatores, dentre os quais podemos destacar, como adequadamente sintetiza Braz
(2012:483):
verifica com o desenvolvimento do sistema capitalista ao longo dos anos é que a desigualdade
social não somente não se viu superada (cf. SANTOS, 2001:39, DUPAS, 2008, BRAZ, op. cit.)
– a maior parte mundo, nem de longe, se tornou uma grande “classe média” – como ainda,
argumentam alguns110, tem mantido níveis crescentes. Evidentemente, não há espaço aqui para
desenvolvermos uma discussão acerca dos problemas de distribuição de riqueza, da exploração
do homem pelo homem que é inerente ao sistema capitalista, da natureza totalitária do mercado
e suas instituições e organizações globais, enfim, de pouca valia seria apontar aqui os efeitos
nefastos que o sistema econômico capitalista imprime à vida de milhões de pessoas diariamente.
Optaremos por verificar como as classes sociais se veem representadas no nosso conto em
questão.
Em OT, verificamos uma reafirmação das distinções sociais entre classes – o que deve
ser entendido aqui como um posicionamento por parte do autor não necessariamente em termos
de um anti-capitalismo raso ou da defesa de modelos econômicos alternativos, mas de uma
exposição de contradições que são da ordem do dia e para as quais não faltam estratégias
discursivas que tentem ocultar suas origens.
De início, devemos considerar os dois espaços internos da Cybermind. Eles se vinculam
diretamente à distinção que há entre os diferentes indivíduos que nela trabalham. Tomemos a
seguinte passagem: “Se quiser ser engenheiro da Cybermind, tem que ter estômago. Mas fique
tranquilo. A maior parte do nosso trabalho é atrás de uma mesa, ou em reuniões, ou atendendo
clientes e executivos em vídeo-conferência. (OT:112)”. A simples existência de diferentes
funções dentro de um processo produtivo, dito de modo mais ingênuo, por assim dizer, não
necessariamente se configuraria como um problema de distribuição social da riqueza produzida
por uma sociedade. Porém, enquanto trainees e os engenheiros ficam apenas “atrás de uma
mesa”, os outros funcionários trabalham em espaços internos tal como o de número 2 na Tabela
7 do Anexo. Consideradas as representações destes espaços interno, constrói-se assim
textualmente uma dualidade evidente entre os termos [corredor branco, limpo, bem iluminado]
e corredor [escuro e imundo]. Assim, diferentes funções são diferentemente valoradas e seus
respectivos espaços o comprovam.
Como apontamos menos especificamente acima, a fábrica é apresentada a Hermes
através de um gerente que, subitamente, apresenta um mau funcionamento de seu cérebro
110
Inevitável não deixar de mencionar aqui Thomas Piketty e seu Le Capital au XXI siècle (2013), onde, dito de
modo absolutamente sucinto, se argumenta que há uma tendência de concentração de riqueza na medida em que o
retorno do capital investido tende a ser maior do que o crescimento econômico dos países.
162
eletrônico, fazendo com que Hermes solicite ajuda por um interfone. Chegam então os
funcionários:
Então a porta se abriu. Para sua surpresa entraram dois homens vestindo macacões
cinzentos, pareciam mecânicos. Na frente vinha um negro baixo e gordo, de cabelo
meio grisalho, seguido por um rapaz moreno, magricela, de sobrancelhas e lábios
grossos, que carregava pela alça uma caixa de metal, a qual parecia uma caixa de
ferramentas (OT:114).
Esta passagem é de fundamental importância para nosso argumento quanto à questão das
classes. Logo de início é possível verificar a clara referência racial: não se trata de mecânicos
brancos, altos e com corpos bem cuidados. Suas funções de menor prestígio correspondem aos
indivíduos pertencentes aos grupos étnicos de um igualmente reduzido prestígio social.
Devemos atentar quanto ao fato de que não se trata aqui da legitimação de que determinados
grupos sociais e étnicos ocupem apenas funções subalternas – o que se verifica é precisamente
a denúncia da condição social desigual na qual se encontram os indivíduos destes grupos antes
mesmo de seu nascimento. E é através desta passagem que vemos endossado o argumento de
que a crítica social presente em OT adquire tons metafóricos, isto é, digamo-lo novamente, não
se trata aqui de como a humanidade tratará as máquinas do amanhã que realizam serviços
indesejados, mas com tratamos hoje os seres de carne e osso que o fazem.
Verifica-se ainda nesta passagem um sutil detalhe diegético. Consideremos, e o conto
permite dizê-lo, que todos os funcionários da Cybermind são eles próprios produtos da fábrica.
Como vimos anteriormente, tratam-se de fetos anencéfalos nos quais posteriormente são
implantados cérebros eletrônicos. Entretanto, os traços étnicos originais do feto herdados de
sua progenitora são mantidos – não parece haver entre os procedimentos de produção dos
“produtos” uma etapa de alteração da aparência. Assim, cabe a pergunta: que mulheres seriam
as mães dos fetos anencéfalos? Definitivamente não aquelas pertencentes aos grupos sociais de
maior prestígio – brancos, altos e de traços finos no rosto. Portanto, os fetos anencéfalos da
Cyermind trazem consigo os traços étnicos de suas progenitoras e estas, por sua vez, são
indivíduos pertencentes às classes sociais de menor prestígio social, a quem caberia a função
infausta de gerar a mão de obra para serviços indesejados. Se olharmos para o mundo objetivo
que nos cerca, não seria necessário grande esforço para que reafirmemos a operação de que os
produtos da Cybermind representam metaforicamente os trabalhadores da base da pirâmide
social.
Outro discreto detalhe que deve aqui ser mencionado é a opção do autor por utilizar –
consciente ou inconscientemente – ao longo do texto os termos “operário”, “fábrica” e
163
O novo século verá com toda a certeza realizar-se a clonagem humana e muitas outras
proezas da engenharia genética, sejam quais forem os interditos lançados pelas
Igrejas, pelos comités de ética ou pelas legislações. É a humanidade inteira que correr
a partir de agora o risco de ficar prisioneira da elite biotecnológica e do complexo
econômico-industrial ao qual ela está associada. «Exercer um controlo» sobre a
pesquisa, seja ela qual for e sejam quais forem as consequências dela, surge num
contexto liberal como um acto de ditadura: «não há remédio para o progresso», por
que as razões que podem ser invocadas para andar para a frente são sempre
irresistíveis – o progresso do saber, da medicina, da terapêutica, a liberdade da
pesquisa, a democracia, as necessidades alimentares da humanidade, a salvação dos
países em desenvolvimento e muito simplesmente o próprio prazer de andar para a
frente [...].
111
Ver seção 3.1.
112
Se, como argumentamos anteriormente, um feto anencéfalo não possui consciência, seria eticamente correto
imputar-lhe uma “vida pré-estabelecida” indexada em parâmetros de funcionamento de um cérebro artificial?
113
Não cabe falar aqui em uma pessoa, em termos filosóficos, dado que não há consciência.
165
Voltemos agora nossos olhares para o último eixo de análise, que diz respeito à questão
da ideologia. Segundo Rossi-Landi (1987), há três grupos principais de significados do conceito
de ideologia. Tais significados certamente não esgotam a questão, mas nos parecem relevantes
para apontar os seus principais matizes. São eles: ideologia como ciência das ideias, ideologia
como visão de mundo e ideologia como falso pensamento. O primeiro remete às origens do
termo, a partir de Destutt de Tracy, filósofo parisiense que tinha como intuito fundar uma
ciência das ideias, imbuído ainda pela ilusão da neutralidade da ciência no tratamento de seus
objetos. O segundo significado traz consigo a neutralização do conceito na medida em que diz
respeito ao conjunto de ideias e a formas de compreensão da realidade social de um determinado
grupo historicamente situado. Neste sentido, a ideologia não é positiva nem negativa, mas
apenas um agrupamento de elementos ideais. Por fim, a terceira acepção de Rossi-Landi nos
remete a Marx, para quem as ideias dominantes de uma sociedade em um determinado
momento histórico são precisamente as ideias da classe dominante, visto que é ela quem dispõe
das condições materiais reais que permitem uma produção de formas de consciência que as
legitimam. As ideias tendem a não apresentar de forma explícita as relações materiais concretas
que se estabelecem entre os homens e que instauram uma relação de dominação – daí o caráter
de falseamento.
Ao longo da história intelectual, passou-se a se questionar sobre a força que produções
simbólicas teriam em criar para aqueles que a consomem e reproduzem uma realidade por
demais distinta daquela que se verifica objetivamente. Isto corresponderia a uma operação de
falseamento deveras eficaz e que só seria possível caso fosse deixada de lado toda e qualquer
avaliação empírica crítica que um indivíduo pudesse fazer de sua realidade social. Mais do que
isto, argumenta-se, seria exagerado uma percepção social ilusória o bastante que não dispusesse
de qualquer justificativa minimamente válida para que pudesse ser tida como válida. Pois
Em suma, não cabe mais, nos dias de hoje, falarmos na construção de uma percepção da
realidade social completamente alheia a uma reflexão crítica que se possa desenvolver mesmo
em meio àqueles que se encontram na condição de explorados. Estes podem ter plena
consciência – e não uma falsa consciência – acerca das relações sociais nas quais se veem
imbricados; ainda que não disponham de meios objetivos efetivos para transformá-las. Abordar
a questão da ideologia a partir desta perspectiva significa lançar olhares para o impulso crítico
e transformador que possa surgir em meio a relações de dominações, ao invés de simplesmente
imputar ao explorado uma completa ignorância da realidade social que o cerca.
Consideradas estas breves reflexões, retornemos ao conto.
Em OT, como verificamos anteriormente, deduz-se que haja um processo de implante
de memórias na fase de produção do cérebro eletrônico. No caso de Hermes, quando este se dá
conta de que era mais um produto da Cybermind, há um momento em que o protagonista
recorda-se de tudo o que ilusoriamente experienciara:
Um calafrio percorreu sua espinha. Então era isso. Uma ilusão. Ele não veio para a
Cybermind dirigindo seu carro. Não estacionou numa vaga reservada. Não foi bem
recebido pelas belas recepcionistas no balcão de granito. Não lhe deram um crachá de
identificação. Não lhe disseram aonde ir e com quem falar. A casa da qual lembrava
não existia, nem seus pais, nem o cachorro, nem o peixe dourado. Sentiu vertigem
com esses pensamentos (OT:117).
Momentos antes, Hermes depara-se com um espaço interno da fábrica do qual julgava se
lembrar. Face à percepção real deste mesmo espaço, Hermes então se dá conta do que lhe
ocorrera. Verificamos nestes dois momentos da narrativa uma clara contraposição entre a
memória de Hermes e a realidade tal como ela de fato se apresentava – conforme podemos
observar na Tabela 6 do Anexo. Trata-se, por um lado, de uma realidade ilusória positivamente
valorada, e, por outro, de uma outra, a real, negativamente valorada.
Hermes chega ainda a se mostrar resistente diante de sua descoberta, nela não crendo
em absoluto. Quando da fuga dos guardas, que, em meio a uma perseguição, pareciam brincar
com o protagonista em uma “ciranda macabra” (cf. OT:119), diz-nos o narrador:
Recusou-se a ser um brinquedo. Não faria esse papel, apesar de agora saber que era
em parte objeto, mesmo isso se apresentando a ele como um pesadelo. Talvez fosse
isso. Ainda estava dormindo, o nervosismo pelo primeiro dia como trainee sujeitara
seu subconsciente àquelas loucuras. Melhor deixar o guarda acertá-lo. Morreria no
sonho e acordaria em sua confortável cama, pronto para encarar um dia de realidade,
no emprego promissor que tanto havia desejado (OT:120).
167
Posteriormente, o protagonista opta por sua sobrevivência, ainda que como mais um ciborgue
exercendo o papel de trainee na fábrica que o produziu:
Será que o seu defeito não compensava o custo da reparação? O defeito que lhe
permitira saber a verdade. Um curto. Um miserável curto-circuito! Preferia não ter
descoberto a verdade. Continuar naquela fantasia, dormir à noite num armário de
vidro e pela manhã ter lembranças de uma vida feliz que nunca existiu. Ao menos o
trabalho seria real. Poderia amar as ilusões, se elas continuassem mentiras perfeitas.
Gritou: - Por favor! Levem-me de volta! Consertem-me! Eu posso trabalhar! Eu quero
trabalhar! (OT:120-1)
Buscamos ao longo do último capítulo realizar uma análise que considerasse a unidade
discursiva dos contos em suas três instâncias – texto, prática discursiva e prática social –
segundo a teoria de Fairclough (op. cit.). Tentamos ao máximo apresentar elementos textuais
que justificassem nossas interpretações sem que nunca tivéssemos a pretensão de esgotar as
leituras possíveis – sendo justamente esta amplitude de interpretações que, ao nosso ver,
caracteriza a obra de arte. Buscamos estabelecer articulações entre o momento histórico de
produção dos contos e os principais aspectos sócio-históricos às épocas, bem como com o
percurso histórico do gênero da FC de um modo mais geral. Quanto à representação distópica,
verificamos a funcionalização do conceito na forma literária nos três contos e seguindo o
mesmo padrão de se focar no espaço urbano a extrapolação negativa ficcional que caracteriza
o conceito. Como argumentamos anteriormente, a cidade é um elemento central para a literatura
distópica e também possui especial relevância para a FC.
Considerando os posicionamentos por parte dos autores, ao menos levando em conta
exclusivamente os textos analisados, nos parece válido sustentar a tese de que a distopia,
funcionalizada em suas formas literárias, tende a trazer à tona discursos contra-hegemônicos.
Isto é, a extrapolação negativa de um determinado status quo é, em tese, uma denúncia das
contradições sociais já neste presentes, ainda que de forma mais tênue – e assim respondemos
a primeira pergunta que se colocou diante de nós nos momentos primeiros da pesquisa e que
mencionamos na introdução de nosso trabalho. Como estamos tratando de obras literárias, seria
equivocado, naturalmente, postular isto como uma regra absoluta a ser seguida – o que não nos
impede de dizer que se trata de uma tendência predominante, pressuposta pelo próprio conceito
de distopia per se.
Em AE, vimos que não somente um discurso anti-bélico incorporando o temor da
ameaça nuclear se fez presente, mas também pôde-se argumentar que houve por parte do autor
uma valoração mais negativa por parte de um dos lados do conflito, ainda mais por esperarmos
em uma produção nacional à época que se vissem reverberados os discursos anticomunistas
massivamente reproduzidos.
Em FN, o autor não economizou referências à crise econômica que assolava o país ou à
crescente força dos meios de comunicação em massa. Também foram alvos de crítica políticos
que se valem da máquina pública para enriquecimento próprio e a interferência de setores
religiosos – seja dito, com grande aceitação popular no Brasil – em questões sociais ou a busca
pela manutenção de seu poder social a todo custo. A todos estes aspectos vincula-se a questão
170
Em OT, o aspecto mais local do conto se apresenta quase como imperceptível. Prevalece
no conto seu caráter global, na medida em que o cenário distópico e um capitalismo sem limites
sejam elementos que se verifiquem na vasta maioria do globo, especialmente a partir, como já
dissemos, da queda do muro de Berlim, marco central para a história da humanidade do
momento a partir do qual o sistema capitalista estabelece sua hegemonia no planeta. Porém,
atentemos para a passagem de Penna (2005:97):
Ainda que não possamos afirmar com toda a certeza, não seria improvável pensar que o
autor tenha partido da temática dos fetos anencéfalos por ser esta no Brasil uma questão que
mobiliza diversos grupos sociais com alguma cobertura pela mídia hegemônica sem que um
horizonte para a sua resolução possa atualmente ser vislumbrado. De fato, o conto não apresenta
diretamente a questão do aborto, sejam eles anencéfalos ou não, não obstante, considerada a
passagem acima, cremos ser difícil que o conto deixe de evocar no leitor a existência desta atual
querela médica\ética no país.
Já em AE, não conseguimos identificar qualquer mínima referência a algo
especificamente brasileiro. Há uma interpretação outra do conto (cf. GINWAY, 2005:89-90)
que sugere corresponder à dualidade norte e sul presente na narrativa a distinção entre a parte
sul mais industrializada do país e a parte norte, menos industrializada, sendo a mensagem
central da obra que a tecnologia havia separado o país. Ainda que sendo esta última válida e
virtualmente possível, como se percebeu, nossa análise tomou caminhos um tanto quanto
diferentes.
Considerada esta tensão entre local e universal, houve ainda uma curiosa coincidência
nos três contos, nem de longe prevista quando da seleção das obras. Identificamos, em meio
aos eventos das narrativas, a presença de uma cena grotesca em cada conto e que, cada uma a
seu modo e com funções diegéticas próprias, tendem a causar certa repulsa no leitor. Neste
sentido, nos parece válida aqui, antes de tratarmos das cenas, a passagem de Sodré e Paiva
(2002:17), quando estes afirmam que o grotesco é
172
Tomaremos aqui a liberdade de fazer a transcrição integral das cenas. Em AE, em dado
momento o protagonista adentra um apartamento e acaba por experienciar o que se segue:
Em FN, Alê sai da padaria em que se encontrava no começo do conto para dar uma caminhada,
quando então se depara com uma cachorrinha que amamentava seus filhotes:
Uma cachorrinha acuada amamentava cinco filhotes. Quando Ale aproximou-se ela
arreganhou os dentes rosnando ameaçadoramente, pronta para defender suas crias. —
Ora, Ora, Ora — murmurou ele docemente, curvando-se para observar a cachorra. —
Uma amiguinha que também está cuidando do "Crescei e Multiplicai-vos", hein?
Continuou falando mansamente, afastando-se devagar. A cachorra pareceu adquirir
confiança c parou de rosnar (conquanto Alê ficasse longe de seus filhos). Alô recuou
mais um passo, até finalmente achar o que queria. Tomou de um golpe o cano
encostado à parede, segurou-o com ambas as mãos, levantou-o e, com todo o seu peso
e impulso, enterrou na barriga da cachorra. O sangue jorrou e as perninhas se
mexeram, acompanhadas de um ganido cortante. Alê sentiu-se inebriado, tremendo
de satisfação. Perfurou ainda mais três vezes o corpo da cachorra. Agora só restavam
os cinco filhotes. Estes, parece, já haviam entendido o que acontecia e ganiam em
desespero. Alê sorriu-lhes cinicamente, o rosto contorcendo-se de felicidade, e passou
para o "Gran Finale". Rearrumando-se com indisfarçado deleite, golpeou com a barra
de ferro até que entre a cachorra e filhotes só se distinguisse uma massa disforme de
carne vermelha, silenciosa. O trabalho estava feito sem que Alê tivesse se sujado com
sequer uma gota de sangue. Abandonou o beco e voltou contente, quase saltitante, à
padaria (FN:56).
173
Por fim, em OT, logo após presenciar uma das cenas de parto na Cybermind, Hermes observa
o trabalho de um dos robôs de limpeza:
literários, que se tem diante de um mundo em que o progresso tecnológico e científico ao mesmo
tempo que nos permite sonhar com a cura de doenças ou com condições melhores de vida sendo
proporcionadas a um número cada vez maior de pessoas, também se coloca à mercê de jogos
de poder e acabam por potencializar assimetrias sociais, pelas quais não podem ser diretamente
responsabilizados. Esta reação tem como suporte verbal e discursivo obras em que contradições
e conflitos humanos se vejam extrapolados e adquirem um caráter de denúncia destas mesmas
contradições e conflitos, considerado ainda em especial medida o fato de que não são poucas
as forças discursivas que tendem a naturalizá-los, convertendo-os em uma realidade imutável e
sempre justificável. Esta denúncia, exposição direta das incongruências sistêmicas do mundo
social que nos cerca, imputa à FC distópica o caráter refratário da realidade objetiva da qual o
gênero extrai seu material literário – eis aqui a resposta para a segunda pergunta que nos fizemos
quando dos primeiros momentos de nosso trabalho de pesquisa à qual se fez menção na
introdução deste texto.
175
Se tivemos como objetivo central ao longo deste trabalho apresentar uma reflexão
acerca dos conceitos de utopia, distopia e de FC, cujas sistematizações conceituais foram
submetidas a uma verificação textual concreta realizadas através das análises realizadas, há de
se expor agora os objetivos paralelos que acreditamos ter atingido ao longo da exposição do
resultado de nossas pesquisas. Estes serão expostos nas linhas que se seguem, bem como
aproveitaremos para mencionar de forma bastante breve os efeitos que desejamos fazer surtir
com o que foi apresentado até então, resultado de nosso trabalho de reflexão, pesquisa e análise.
Em primeiro lugar, reafirma-se aqui a importância do gênero da FC, compreendidas em
suas categorias mais centrais a partir da funcionalização do arcabouço teórico oferecido por
Bakhtin em sua teoria acerca dos gêneros discursivos. Trata-se de uma forma específica de se
fazer literatura, cujo percurso histórico não deve ser rememorado tão somente em termos de um
registro historiográfico do gênero per se, mas sim como um sintomático complexo de produções
simbólicas que dizem respeito em grande medida a questões universais – e, evidentemente, em
alguma medida, sempre locais – diante das quais o ser humano vem se colocando com maior
intensidade a partir do advento da modernidade, período no qual a noção de progresso e os
crescentes avanços científicos e tecnológicos possibilitam que se vislumbre um futuro cada vez
menos distante do presente. Com isso, queremos dizer aqui que, conquanto cada obra do gênero
ao longo do decorrer histórico da FC traga consigo inexoravelmente marcas das circunstâncias
sociais, políticas, culturais, econômicas etc de seu momento de produção, as questões que esta
forma específica de literatura tende a suscitar dizem respeito fundamentalmente à nossa
contemporaneidade e às contradições ainda não superadas em tempos de modernidade tardia.
Reafirmada esta importância, devemos desde já questionar certas posturas de setores
mais tradicionais do meio da crítica literária que tendem a diminuir a relevância das obras de
FC; algo, a nosso ver, justificado tanto por uma tendência conservadora de lançar olhares tão
somente aos textos já consagrados quanto por um desconhecimento da riqueza literária que o
gênero possui. É evidente, e em momento algum o negaríamos ao longo de nossos
apontamentos, que a literatura de FC, enquanto um fenômeno de massa (especialmente nos
Estados Unidos), estabeleceu-se em grande medida através da produção de obras de pouco valor
estético ou que através da repetição de certas fórmulas contribuíram tão somente para a exaustão
do gênero e a perda de seu potencial reflexivo. O que, em medida alguma, torna menor a
qualidade de obras que escaparam aos imperativos editoriais pautados exclusivamente pela
venda de exemplares e buscaram fornecer a seus leitores questionamentos em vez de
176
114
Há obras em língua inglesa que se dedicam à utilização da FC como forma de mediação entre o conhecimento
científico. Ver Luokkala (2014) e Dubeck et al. (1994). Em língua portuguesa podemos citar Machado (2008),
Gomer-Maluf & Souza (2008) e Piassi & Pietrocola (2007).
177
Na medida em que se constitui enquanto uma produção simbólica literária, esta assume
inevitavelmente um caráter avaliativo responsivo tornado material através da individualidade e
criatividade do autor; que, por sua vez, enquanto produtor de um discurso, realiza através desse
uma prática social concreta e efetiva, atuando, portanto, na realidade que o cerca e que permite
que seus olhares e percepções, fonte última de sua produção literária, se realizem de uma
determinada forma e não de outra. E quando falamos aqui de olhares mais amplos, trata-se de
uma escolha deliberada por uma filosofia materialista da linguagem da qual partiram nossas
perspectivas acerca do objeto literário, por sua vez narrativo e ficcional. Se uma produção
linguística em sua realização concreta, social e historicamente situada é perpassada por todo
um complexo conjunto de elementos extralinguísticos, o mesmo não deixaria de ocorrer com
os textos literários, consideradas aqui suas especificidades e quanto a que cremos ter
apresentado um nível de reflexão teórica minimamente considerável.
Acreditamos que, para além da fruição estética que o leitor possa ter com a obra de arte,
a literatura é uma produção simbólica que se distingue das demais pela existência de uma
característica que lhe é fundamental: a de atuar como um convite ao pensar, um impulso à
reflexão. Na singularidade de suas formas, resultado sempre único dos olhares do escritor
acerca da realidade que o cerca, esta mesma realidade se mostra reconfigurada, outra; e aos nos
depararmos com esta realidade outra, torna-se igualmente outra aquela realidade que
objetivamente nos cerca. De fato, isto não é privilégio da FC, da literatura distópica ou da
literatura utópica. Devemos sustentar aqui, contudo, que, quanto mais esta representação outra
se volte – independentemente dos recursos que para tal são utilizados – para a realidade mesma,
mais desta nos aproximamos e melhor passamos a compreendê-la. Conforme sustentamos
anteriormente, neste sentido a FC em sua primazia pelo caráter objetivo da realidade em função
de aspectos subjetivos tende a se aproximar de uma forma realista, segundo a tradição marxista,
de se produzir literatura, e que expõe as contradições que nem sempre se apresentam como
evidentes de modo mais imediato.
É em função disto que acreditamos ser tarefa do pesquisador na área dos ED, uma vez
dotado de uma perspectiva multidisciplinar, tomar para si todos os campos do conhecimento
necessários para se fazerem reverberar os discursos que se encontram velados na obra literária,
cuja natureza plurissignificativa apresenta um vasto – ainda que não infinito – espectro de
interpretações possíveis. Muito mais que defender uma opção teórica ou metodológica ou ramo
disciplinar dentro de uma dentre tantas as áreas que se debruçam sobre o fenômeno da
linguagem, trata-se aqui de uma postura epistemológica que considere o objeto linguístico –
literário ou não – na complexidade que lhe compete. Buscamos aqui, tendo este objetivo em
178
mente, dialogar com distintas áreas do conhecimento para, de forma, ao nosso ver,
minimamente convincente e consideradas as limitações e extensão deste trabalho, atingir
instâncias do fenômeno literário que não se encerram em seu componente textual e estético.
Por fim, é preciso salientar que a escolha por obras de FC distópica não deve ser
traduzida aqui – como, conforme afirmamos anteriormente, sequer o próprio conceito da
distopia o pressupõe – como uma resignação tácita diante das contradições e conflitos humanos
que a realidade objetiva nos apresenta e que se tornam matéria de exercício literário. Ainda que
as forças de transformação tenham se dissipado e não apresentem mais símbolos, nomes, siglas
ou quaisquer outros contornos mais precisos e centralizados, sustentamos aqui que a
humanidade passa por um momento no qual o impulso utópico, a esperança de tempos
vindouros melhores, não perdeu seu lugar ou razão de ser – o sonho diurno se mantém presente.
Se a história nos mostra que do bom lugar fomos ao futuro catastrófico, não cessou neste último
de se manter viva “a esperança, este afeto expectante contrário à angústia e ao medo, [...] a mais
humana de todas as emoções e acessível apenas a seres humanos (BLOCH, 2005:77)”.
Conquanto haja de se reconsiderar os caminhos traçados ao longo das experiências históricas
em nome dos ideais de outrora, não devemos nos abster de, enquanto sujeitos históricos, nos
impormos como aqueles que traçam caminhos, como aqueles que se recusam a aceitar a força
ideológica, monologizante e legitimadora de um status quo que se faz presente em discursos
que tentem pôr a baixo os sonhos diurnos dos bons lugares, resumindo-os, sistemática e
equivocadamente, a meras quimeras sem valor. Se em nossa pós-modernidade, por diversos
motivos, vimos sendo tomada de assalto a consciência acerca de nossos papéis enquanto
sujeitos históricos e os sonhos utópicos do futuro dando lugar às denúncias extrapoladas do
presente, isto só nos leva a reafirmar que em dias atuais, mais do que nunca, o sonho diurno se
faz necessário.
179
8. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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192
9. ANEXO
Tabela 1
jardins [isolados]
ilhas [tristes e isoladas]
luz [mortiça da tarde]
cheiro [pesado]
nuvem [invisível]
horizonte [de limites curtos]
193
Tabela 2
carros [parados]
prédios [tombados pelos incêndios que ninguém apagava]
avenida
bares
carrocerias [cobertas de poeira]
mercearias
pneus [murchos]
cadáveres [jaziam pelos cantos]
manchas [de óleo feitas gota a gota]
trapos
chão [de asfalto]
braços [retorcidos]
pára-choque [cheio de barro]
farmácias
ferrugem [que avançava]
casas
carro [conversível]
[grande] edifício
estofamento [se estragando]
rua
vidros [sujos e opacos]
fios [elétricos]
carcaça
prédio
juntas [enferrujadas]
árvores
casas [de luxo]
mercearia
jardins [isolados]
apartamentos
barro [ressequido]
restaurantes
[pequenas] folhas
subúrbio
raízes [descobertas]
abrigo [à beira da estrada]
verde [misturado com folhas secas]
estrada
construções
casa [depois de uma curva]
ilhas [tristes e isoladas]
amontoado [de casas, cidade ou povoado]
centro [da cidade]
[pequena] cidade
obstáculos
ruas
calçadas
casas [silenciosas]
estradas
cidade [vazia]
postes [tombados]
farmácia
caminhões
fim [da cidade]
cargas [abandonadas]
estrada [em direção às montanhas]
buraco
Tabela 3
Tabela 4
Tabela 5
personagem Alê
sorriso [cínico] {quanto à transmissão sobre a "terrível série de assassinatos gratuitos que assolam o país"}
inquietação e pletora [sanguinolenta] {a} borbulhar nas veias ao ver o jornal, as cenas de violência e a multidão
comprimida na porta padaria
repulsa, ódio [quase incontido] {pelos religiosos}
sarcasmo [amargo]
raiva [cega] {por conta da música Jingle Bells}
[irritado] {por conta da imagem do arcebispo}
detestava {tipos "Show-man"}
[demoniacamente enjerizado] {pelas respostas da mulher no programa de auditório}
invocação com as vestes do Papai Noel
[contente], [quase saltitante] {após matar uma cachorra e seus cinco filhotes a golpes de um cano}
raiva contra o ser humano, contra a reprodução desenfreada, contra os religiosos e políticos "conservadores"
vontade de matar alguém {quando dentro do ônibus}
sorriso [divertido num triscar de lábios] {após pisar no pescoço de uma criança perdida da mãe na saída do ônibus}
[excitado e irritado] {por ter de trabalhar como papai noel}
frieza dos mestres {para preparar o plano de ataque na casa do político}
ganas de retalhar o útero {da "morena" que mencionou a cifra dos cinquenta bilhões de indivíduos}
obstinação [homicida]
[nenhuma] emoção na voz {após matar duas crianças na casa do político}
Tabela 6
Tabela 7
Cybermind
espaço externo urbano
espaço interno 1 espaço interno 2
Nota 1: Os termos presentes nas tabelas 1, 2, 3, 4 e 7 foram extraídos de seus respectivos contos e são referências
aos cenários das narrativas.
Nota 2: Os termos presentes na tabela 5 dizem respeito a substantivos e construções qualificativas referentes à
composição psicológica do personagem Alê.
Nota 3: Os termos presentes na tabela 6 dizem respeito a substantivos e construções qualificativas referentes ao
espaço interno real da Cybermind em comparação à imagem que dele tinha Hermes em sua memória.
Nota 4: Foram grafadas entre colchetes as construções qualitativas junto aos substantivos aos quais estas se referem
com o simples objetivo de destacá-las visualmente.
Nota 5: Foram grafados entre chaves termos que foram omitidos nos textos em questão – retomados por inferência
– e que tornam completo o sentido expresso pelos termos citados.