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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

FACULDADE DE LETRAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO INTERDISCIPLINAR EM
LINGUÍSTICA APLICADA

O BOM LUGAR, O FUTURO CATASTRÓFICO, A FICÇÃO


CIENTÍFICA E ALGUMAS DISTOPIAS BRASILEIRAS

Vítor Vieira Ferreira

2015
O BOM LUGAR, O FUTURO CATASTRÓFICO, FICÇÃO CIENTÍFICA
E ALGUMAS DISTOPIAS BRASILEIRAS

Vítor Vieira Ferreira

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-


Graduação em Linguística Aplicada da
Universidade Federal do Rio de Janeiro, como
resultado parcial para a obtenção do título de
mestre em Linguística Aplicada.

Orientador: Prof. Dr. Luiz Barros Montez

Rio de Janeiro
Março de 2015
O BOM LUGAR, O FUTURO CATASTRÓFICO, FICÇÃO CIENTÍFICA
E ALGUNS DISTOPIAS BRASILEIRAS

Vítor Vieira Ferreira


Orientador: Prof. Dr. Luiz Barros Montez

Dissertação de Mestrado submetida ao Programa Interdisciplinar de Pós-Graduação em

Linguística Aplicada da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos

requisitos necessários à obtenção de título de Mestre em Linguística Aplicada.

Aprovada por:

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Presidente, Prof.

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Prof.

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Prof.

_______________________________________

Prof.

_______________________________________

Prof.

Rio de Janeiro
Março de 2015
VIEIRA FERREIRA, Vítor
O bom lugar, o futuro catastrófico, Ficção Científica e
algumas distopias brasileiras / Vítor Vieira Ferreira. Rio de Janeiro:
UFRJ / Faculdade de Letras / Programa Interdisciplinar de Pós-
Graduação em Linguística Aplicada, 2015, 195 p.

Orientador: Luiz Barros Montez


Dissertação (mestrado) – Universidade Federal do Rio de
Janeiro, Faculdade de Letras, Programa Interdisciplinar de Pós-
Graduação em Linguística Aplicada
Referências bibliográficas: f. 179-191

1. Ficção Científica. 2. Distopia. 3. Utopia. 4. Literatura


Brasileira. 5. Análise do Discurso. 6. Linguística Aplicada. I. Montez,
Luiz Barros. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Faculdade de
Letras. III. Título.
AGRADECIMENTOS

Em primeiro lugar, e não poderia deixar de sê-lo, serei eternamente grato por todo o
esforço, cuidado, carinho e atenção dedicados a mim por minha mãe, a quem tudo,
absolutamente tudo, devo e cujo corpo já não se encontra mais presente entre nós, resultado de
uma longa batalha contra uma agressiva doença e que teve fim durante a realização deste
trabalho. Suas memórias e ensinamentos permanecerão em mim e seguramente em meus
descendentes por longas datas. Ich danke Dir, meiner Mutter.
Não poderia deixar de expressar também os meus mais sinceros agradecimentos àquele
que já nos primeiros anos de minha trajetória acadêmica acreditou em meu trabalho e dedicou
a mim especial atenção, não somente na esfera acadêmica e profissional, como, de modo ainda
mais especial, na esfera pessoal. Para além de um orientador, tenho o Professor Luiz Barros
Montez como um grande amigo e conselheiro. Agradeço-lhe ainda por ter refinado minhas
inclinações humanísticas com um direcionamento intelectual crítico que lhes fosse devidamente
apropriado – sem o que este trabalho não apresentaria o mesmo tom.
Agradeço pela companhia e dedicação de Raquel Garcia D’Avila ao longo de boa parte
deste trabalho. Cito também, de modo bastante especial, todos os anos de amizade com Flora
de Almeida, inseparável amiga desde os primeiros momentos da graduação, Jéssica Muniz pelo
apoio e Thiago Ferreira, ambos sempre próximos e disponíveis para qualquer problema,
especialmente após o falecimento de minha mãe.
Declaro também minha gratidão especial por minha tia Maria da Glória por todo o
carinho e atenção dedicados a mim e a minha mãe desde sempre, bem como por todo o apoio
que tenho e sempre tive de meus familiares.
São merecedores também de agradecimentos todos os amigos, colegas e conhecidos da
Faculdade de Letras da UFRJ, especialmente Kairon Santos, Virginia Granadeiro (e suas
traduções), Paula Vieira, Julio Henrique e outros com quem tive e tenho momentos agradáveis,
dentro e fora da universidade. Aos amigos do bairro com quem costumo aproveitar meu pouco
tempo livre, especialmente Diego (Recruta), aquele salve!
Devo dizer ainda que este trabalho teria se tornado muito mais árduo e não contaria com
boa parte de seus fundamentos, não fosse o espírito compartilhador de muitos anônimos no
ambiente virtual que me possibilitaram o acesso a um imenso acervo de leituras e fontes que,
de outro modo, permaneceriam indisponíveis. A todos estes, meus agradecimentos.
Por fim, agradeço ao CNPq pelo auxílio financeiro, com o qual me vi em possibilidades
de dedicar boa parte de meu tempo à realização deste trabalho.
A minha mãe Rosana Maria Vieira
(in memoriam)
[...] a esperança, este afeto expectante contrário à
angústia e ao medo, é a mais humana de todas as
emoções e acessível apenas a seres humanos. Ela
tem como referência, ao mesmo tempo, o horizonte
mais amplo e mais claro. Ela representa aquele
appetitus no ânimo que não só o sujeito tem, mas
no qual ele ainda consiste essencialmente, como
sujeito não plenificado
Ernst Bloch

É necessário sempre acreditar que o sonho é


possível, que o céu é o limite e você, truta, é
imbatível!
Racionais MC’s

O sistema tem que chorar, mas não com você


matando nas ruas, o sistema tem que chorar vendo
a sua formatura!
Facção Central
O BOM LUGAR, O FUTURO CATASTRÓFICO, FICÇÃO CIENTÍFICA
E ALGUMAS DITOPIAS BRASILEIRAS

Vítor Vieira Ferreira

Orientador: Prof. Dr. Luiz Barros Montez

RESUMO

As narrativas distópicas de Ficção Científica (doravante FC) são um fenômeno literário


relativamente recente e seu consumo crescente pode ser notado, aqui no Brasil e em outros
lugares no mundo, sem grandes dificuldades. Esse tipo de literatura nos faz pensar sobre o
futuro da humanidade em um mundo em que os conhecimentos científico e tecnológico
progridem em intervalos cada vez mais curtos de tempo. Mas além das reflexões acerca de
nossos anseios e temores diante dos tempos vindouros, as obras do gênero também nos
convidam a descobrir o percurso histórico da FC, bem como o diálogo que ela estabeleceu ao
longo do tempo com os textos utópicos, cuja tradição foi iniciada formalmente por Thomas
Morus e sua maior obra “A Utopia”. Lançar os olhares ao conceito da utopia é imprescindível
para entendermos como o “bom lugar” foi cedendo espaço para o futuro catastrófico que se vê
representado ficcionalmente até os dias de hoje. O presente trabalho é o resultado de uma
pesquisa sobre a história e de reflexões conceituais acerca da utopia, da distopia, e sobre o
gênero da FC e sua relação com esses. Apoiado em uma perspectiva teórica que vê a obra
literária não encerrada em seus componentes estéticos, mas como uma forma especial de
discurso atravessada indispensavelmente por elementos sociais, políticos, culturais, enfim,
históricos, apresentamos ainda uma análise discursiva crítica de “A espingarda” (1966) de
André Carneiro, “Feliz Natal, 20 Bilhões!” (1989) de H. P. Flory e “O trainee” (2010) de
Ubiratan Peleteiro.

Palavras-chave: ficção científica, distopia, utopia, análise do discurso.


THE GOOD PLACE, THE CATASTROPHIC FUTURE, SCIENCE
FICTION AND SOME BRAZILIAN DYSTOPIAS

Vítor Vieira Ferreira

Orientador: Prof. Dr. Luiz Barros Montez

ABSTRACT

The dystopic science fiction (SF) is a quite recent literary phenomenal and its consumption can
be perceived without difficulty here in Brazil as well in other countries. This type of literature
make us reflect about the future of the humanity in a world where the scientific and technologic
knowledge increase ever faster. Besides the reflections concerning our hopes and fears about
the coming times, science fiction works invite us to discover the genre's development through
the history, as well as the relationship it has established with the utopian texts and its tradition,
initiated with the publication of Thomas More's masterpiece “Utopia”. Without considering the
concept of utopia, one cannot understand the transition from the "good place" to the catastrophic
futures which keep being fictionally represented until nowadays. The present study is the result
of a research about the history of utopia, dystopia and SF. Its relationship with them is also
considered as well as a conceptual discussion about these subjects. Based on a theoretical
perspective which consider the literary text not only in terms of its aesthetic value but as a
special form of discourse, where the social, politics and cultural aspects play an effective role,
we present a critical discoursive analysis of André Carneiro's “A espingarda” (1966), H. P.
Flory's “Feliz Natal, 20 Bilhões!” (1989) and Ubiratan Peleteiro's “O trainee” (2010).

Key words: Science fiction, dystopia, utopia, discourse analysis.


SUMÁRIO

1. Introdução ou sobre o desastre ao redor ...................................................................... 11

2. A ciência sem ficção ........................................................................................................ 16

2.1. Reflexões sobre o conceito de linguagem .................................................................. 17

2.2. Sobre os conceitos de narração, literatura e ficção .................................................... 25

2.3. A perspectiva discursiva ............................................................................................ 37

3. Do bom lugar ao futuro catastrófico ............................................................................. 43

3.1. Sobre o conceito de utopia ......................................................................................... 43

3.2. O discurso utópico ao longo da história ..................................................................... 50

3.3. A virada distópica ...................................................................................................... 59

3.4. Sobre os conceitos de utopia e de distopia ................................................................ 69

4. O homem, sua ciência e seu futuro: a Ficção Científica .............................................. 75

4.1. Ficção Científica enquanto gênero ............................................................................. 75

4.2. Percurso histórico ...................................................................................................... 88

4.3. Ficção Científica em solo tupiniquim ........................................................................ 99

4.4. Utopia e distopia na Ficção Científica ..................................................................... 107

5. Alguns casos de ficção científica distópica brasileira ................................................ 121

5.1. A Guerra Fria: A espingarda (1966) de André Carneiro ......................................... 123

5.2. O Brasil pós-ditadura: Feliz Natal, 20 bilhões (1989) de H. V. Flory ..................... 138

5.3. O capitalismo contemporâneo: O trainee (2010) de Ubiratan Peleteiro .................. 153

6. À guisa de conclusão ou sobre quando tudo dá errado ............................................. 169

7. Palavras finais e sobre o sonho diurno necessário ..................................................... 175

8. Referências Bibliográficas ............................................................................................ 179

9. Anexo .............................................................................................................................. 192


11

1. INTRODUÇÃO OU SOBRE O DESASTRE AO REDOR

Robôs que se rebelam contra os seres humanos que os criaram, paisagens naturais
representadas em tons de cinza e negro como efeito de uma catástrofe ambiental, grupos
corporativos em que uma superclasse de executivos cercados de seguranças mercenários com
alto poder de fogo ditam as regras do jogo político e social para além de qualquer controle por
parte do Estado ou da população, complexos urbanos em que marginalidade, poluição e
criminalidade dão o tom dos mais inocentes passeios pela cidade – não nos são de todo
desconhecidas representações simbólicas centradas na produção de um clima de desastre que
nos cerque, sejam quais forem as causas, sejam quais forem seus efeitos. Não fossem
suficientemente cruéis e aterradores muitos dos elementos que constituem a nossa realidade –
marcadamente em seus aspectos sociais – há ainda espaço para as extrapolações negativas por
parte de artistas e escritores acerca de nosso presente ou de nosso futuro.
Como em qualquer pesquisa científica, eis o nosso momento inicial de inquietação,
graças à considerável quantidade de representações de futuros catastróficos (geralmente
próximos) através de suportes verbais literários e de outros como cinema, histórias em
quadrinhos ou letras de música. O que fez com que nos colocássemos diante da seguinte
questão: o que possibilita que essas produções simbólicas sejam produzidas e consumidas? Ou
ainda, dito de modo mais disciplinar, considerando o campo dos Estudos do Discurso no qual
se insere nosso trabalho: que discursos se veem representados ou legitimados nestas produções
simbólicas e que circunstâncias sócio-históricas as engendram? Mais do que isto, em que
medida estas produções, para além de refletirem tais circunstâncias, acabam também por
transformá-las, entendido aqui o componente simbólico não somente como um espelho que
reflete a realidade, mas que, em sua instância de prática social, também a refrata?
Ao nos lançarmos a estas questões, percebemos que estas representações, inicialmente
dispersas, recebiam comumente a classificação de obras de Ficção Científica (doravante FC)
ou de literatura distópica. O que era dito de modo mais superficial, aparentemente uma mera
categorização, colocou-se diante de nós como um dado a ser verificado: em que medida
justifica-se o rótulo de "ficção científica distópica" para esta ou aquela obra? Com um trabalho
inicial de pesquisa, verificamos que, anterior a todas as outras formas de semiose através das
quais as representações de futuros catastróficos tinham seu suporte, encontrava-se a literatura
de FC, que apropriava-se a posteriori do conceito de distopia em suas narrativas. Portanto, a
despeito das especificidades do cinema, da música ou das histórias em quadrinhos, por exemplo,
12

havia uma influência inicial em comum. Eis então a primeira delimitação de nosso objeto de
estudo: a FC distópica.
Torna-se evidente que este objeto divide-se em duas partes: FC e distopia; caberia a nós
estudá-las num primeiro momento separadamente. Partindo do mais específico, voltamos
nossos olhares inicialmente para o conceito de distopia. Na quase totalidade dos textos que
tratavam deste, estabelecia-se uma relação de contraposição entre distopia e utopia, cabendo a
este último uma anterioridade cronológica. Portanto, não poderíamos deixar de lado um
aprofundamento sobre o conceito de utopia, à qual, em princípio, a distopia se opunha. Com
nossa atenção voltada para o conceito, realizamos dois movimentos de exposição com base na
pesquisa realizada: em primeiro lugar buscamos determinar as categoriais mais centrais que
dessem conta das especificidades do conceito de utopia para, em seguida, verificar como este
conceito materializava-se concretamente ao longo da história. Temos aqui, por um lado, um
eixo conceitual e, do outro, um histórico. Sem que um se sobreponha ao outro, pressupomos
uma relação dialética entre ambos, na medida em que o universal do conceito se justifica pelos
seus singulares históricos. Procedemos com o mesmo duplo movimento no que diz respeito ao
conceito da distopia, cuja caracterização enquanto conceito é neste trabalho apresentada após
os apontamentos de ordem histórica, antecedidos estes por outros de igual teor acerca da utopia
– o que, ao nosso olhar, tornaria a leitura mais fluída. Dito de modo resumido, será apresentada
aqui inicialmente uma reflexão conceitual acerca do conceito de utopia, precedida de suas
materializações discursivas ao longo da história; para, em seguida, apresentar o contexto
histórico em que a distopia ganha suas primeiras materializações literárias e somente então
estabelecer as categorias que caracterizam o conceito. Eis o que se verifica ao longo do capítulo
3 deste trabalho, onde traçaremos o trajeto ao longo dos tempos do bom lugar (utopia) ao futuro
catastrófico (distopia).
Já no que diz respeito à FC, como qualquer outro "conjunto de enunciados relativamente
estáveis", esta apresentava características próprias. Partindo da teoria bakhtiniana, que nos
parece ser a mais adequada para proceder com um trabalho analítico e de categorização de
acordo com os preceitos de uma filosofia materialista da linguagem – perspectiva em alguma
medida já consolidada anteriormente por nós a despeito da pesquisa em questão –
estabelecemos que a FC é um gênero discursivo, com conteúdos temáticos, construção
composicional e estilo próprios. Para definir estes componentes, realizamos um levantamento
bibliográfico prosseguido de um trabalho crítico de cotejamento entre obras que se debruçavam
teoricamente sobre a FC, para que então, com base nestas, pudéssemos caracterizá-la com
alguma profundidade – o mesmo procedimento que utilizamos quanto aos conceitos de utopia
13

e distopia. Mantendo a dialética do singular e do universal, lançamos nossos olhares também


sobre o desenvolvimento histórico do gênero, apresentado aqui também como resultado de um
mesmo trabalho de cotejamento acerca da literatura secundária do gênero. Verifica-se, portanto,
no capítulo 4, uma reflexão teórica e conceitual da FC enquanto fazer literário e que, como se
verificou, atua como suporte para a funcionalização literária do conceito de distopia.
Tendo definido utopia, distopia e Ficção Científica, nos coube traçar as interseções entre
estes três elementos – analisando-os conjuntamente, uma vez já tendo estes sido tratados
separadamente. Com isso, podemos então compreender de modo mais amplo a existência das
constantes representações de futuros catastróficos; e, por outro lado, da ausência de outras de
futuros melhores. Verifica-se ainda ao final do capítulo 4 os motivos pelos quais as literaturas
utópica e distópica estabelecem vínculos estreitos com a FC.
Diante de todo este nosso movimento de questionamentos conceituais e categóricos,
parecia-nos necessário ainda para validarmos as conclusões a que chegamos até então, verificar
se estas se aplicavam a um determinado conjunto de obras, suficientemente amplo para termos
um nível satisfatório de semelhança formal. Por partirmos de uma perspectiva que preze pela
realização real e efetiva da linguagem, perpassada inexoravelmente por questões de ordem
política, social, cultural etc., não faria sentido nos determos tão somente em elucubrações
conceituais e categóricas – seria indispensável verificarmos concretamente em que medida
produções simbólicas concretas se relacionavam, cada qual a seu modo, com o gênero mais
amplo em que se inseriam e como isto poderia ser entendido como uma prática social maior, de
ordem linguística e extralinguística (ou, simplesmente, discursiva) diante das contradições e
questões de seus momentos históricos de produção. A extensão de nosso trabalho não
permitiria, naturalmente, uma verificação exaustiva, o que nos levou a dois critérios de seleção
para a escolha das obras: o formal e o histórico. O primeiro critério fez, inicialmente, com que
optássemos, pelo tempo do qual dispúnhamos, por obras de extensão reduzida – do contrário
teríamos de reduzir a quantidade destas. O que inicialmente se colocou como uma questão de
limitação da pesquisa não significou uma debilidade em termos de análise. Visto que o formato
conto é predominante na FC, não haveria qualquer problema em nos centrarmos em obras de
tal extensão. Já quanto ao critério histórico, para colocarmos à prova reflexões de caráter mais
universal, optamos pela seleção de obras de momentos históricos que apresentassem temáticas
e contradições distintas – se para diferentes problemas se verificassem meios e níveis de
posicionamento semelhantes, então nossos esforços de categorização ao longo dos capítulos 3
e 4 teriam sua validade. Não devemos ainda perder de vista que, conquanto utopia, distopia e
FC adquiriram o estatuto de objetos de análise da pesquisa – inicialmente cada um
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isoladamente, e, em seguida, consideradas em suas relações – nossa inquietação inicial dizia


respeito especificamente à FC distópica; tendo sido necessário que voltássemos nosso olhar
para o conceito de utopia precisamente para melhor compreendermos o de distopia.
Se já se configurava para nós a realização de uma etapa de análise em nossa pesquisa,
cujos critérios de escolha das obras já nos permitia efetivamente fazê-lo, outra inquietação
colocava-se diante de nós, uma vez já estando familiarizados com os três elementos que se
tornaram objeto de parte da pesquisa (utopia, distopia e FC). Uma inquietação inicialmente
discreta, que sentíamos ao nos depararmos em nossas pesquisas bibliográficas com o baixo
número de publicações em português acerca dos elementos aqui abordados. Finalmente, quando
da etapa da seleção das obras a serem analisadas como forma de comprovação das conclusões
às quais chegamos anteriormente, coube nos questionarmos: não haveria literatura de FC
produzida no Brasil?
Felizmente, se a literatura secundária do gênero apresentava-se em quantidade reduzida,
o mesmo não se podia dizer das obras de FC nacional. Considerando a profusão de obras e o
pouco reconhecimento do qual estas dispunham tanto no meio acadêmico quanto no mercado
editorial – o que já se percebia superficialmente nos momentos mais iniciais de nossa pesquisa,
como dissemos – pareceu-nos ser mais relevante contribuirmos com os estudos de FC em língua
portuguesa a partir da análise de obras de FC nacional; inclusive, seja dito, como um
posicionamento político que contribuísse para sua visibilidade. Isto ainda nos colocava em
condições de verificar a tensão existente entre a universalidade da FC enquanto um gênero
literário cujos autores poderiam possuir qualquer fosse a origem geográfica e a particularidade
de produção do gênero em um local específico, com contradições, desafios e especificidades
próprias. Com isso, para além do aprofundamento específico acerca dos três elementos centrais
da pesquisa, punha-se diante de nós a possibilidade de lançarmos olhares sobre conflitos e
dilemas próprios de nosso país ao longo de sua história. Seriam assim reafirmados conceitos e
categorias gerais ao mesmo tempo em que encontraríamos posicionamentos históricos
específicos por parte dos autores do gênero em distintos contextos nacionais.
Prosseguimos então com a seleção das obras mantendo os critérios da forma e da
historicidade, seleção esta que se desenvolveu a partir de um levantamento bibliográfico
conforme sugerido pelos poucos manuais e obras introdutórias de FC brasileira. Tal como na
FC de língua inglesa, realizamos também uma pesquisa quanto ao desenvolvimento histórico
deste tipo de literatura no Brasil, e, partindo de conhecimentos gerais prévios da história do
país, realizamos os recortes históricos dos quais seriam selecionadas obras correspondentes.
Foram eles: o período da Guerra Fria e que coincidiu com o da ditadura militar no Brasil, o
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período de pós-ditadura em que o país começou a sentir os efeitos de uma modernização tardia
levada a cabo pelas políticas econômicas do regime militar, e, por fim, nossa
contemporaneidade, com a adoção em nível global do sistema capitalista e seu modelo
econômico neoliberal. O resultado do processo de análise realizado será apresentado no capítulo
5 de nosso trabalho.
Restava-nos então os instrumentos analíticos que estivessem de acordo com a percepção
do fenômeno da linguagem que anteriormente já determinava em grande medida os princípios
epistemológicos mais fundamentais quanto a nosso trabalho de apreciação dos discursos e de
suas formas literárias. Optamos assim pela Análise Crítica do Discurso – ou, simplesmente, por
uma “perspectiva discursiva” – por julgarmos ser esta a mais adequada aos princípios
linguísticos que nos parecem ser dos mais fundamentais quando de um olhar científico e
racional sobre a linguagem verbal. Estes princípios constituem a filosofia materialista da
linguagem que optamos por apresentar em nosso trabalho, na seção 2.1, com alguma extensão
– princípios estes que, ainda que tácitos, encontram-se por detrás de cada linha aqui a ser
apresentada. Considerando ainda a escolha por textos literários, não poderíamos deixar de
apresentar alguns apontamentos epistemológicos que dessem conta das especificidades deste
tipo de texto; o que nos levou a uma reflexão acerca dos conceitos de narração, literatura e
ficção. Para tanto, partimos novamente de um trabalho comparativo entre autores que pudessem
contribuir com suas perspectivas para então chegarmos às nossas conclusões, considerando as
concepções filosóficas a elas inevitavelmente subjacentes. Assim, teremos no capítulo 2 a
apresentação do bloco teórico – desta vez, a ciência não ao lado da ficção – que sustenta nosso
trabalho.
Realizadas as etapas 1) de seleção de nossos objetos, 2) de escolha do arcabouço teórico
adequado para estes, com base nas posturas filosóficas e epistemológicas anteriores ao trabalho
da pesquisa, 3) de estabelecimento de categorias que definam tais objetos e da apresentação dos
percursos históricos que estes realizam ao longo do tempo, 4) da análise textual em que se
verificassem a) a validade das categorias anteriormente definidas, b) a relação que as obras
estabelecem com o gênero e seu respectivo momento histórico, e c) a instância da prática social
que elas representam enquanto suportes verbais de posicionamentos por parte do autor diante
de sua realidade histórica; caberá então apresentarmos nossas conclusões face à análise
desenvolvida entendida em sua totalidade para além das especificidades de cada conto
selecionado – o que se verifica no capítulo 6; para, enfim, no capítulo 7, encerramos nosso
trabalho com comentários finais.
16

2. A CIÊNCIA SEM FICÇÃO

Neste capítulo, trataremos de expor os nortes teóricos que consideramos como


indispensáveis para o tratamento de nosso objeto de estudo.
Considerando que selecionamos três elementos centrais de estudo – utopia, distopia e
FC, envolvendo reflexões de ordem histórica e conceitual, e um conjunto de obras específicas
a serem analisadas, se faz necessária a apresentação de referenciais teóricos de três níveis
distintos, porém complementares. Tais reflexões históricas e conceituais – assim como o
trabalho como um todo, de modo geral – pressupõem premissas epistemológicas próprias acerca
do conceito do fenômeno da linguagem e das relações que se estabelecem entre as produções
simbólicas e os contextos sociais que as engendram. Estas premissas podem ser agrupadas com
algum rigor sistemático e coesão interna sob a rubrica de uma filosofia materialista da
linguagem, entendida enquanto realização linguística concreta, historicamente situada.
Inevitável nos remetermos, neste sentido, às contribuições filosóficas presentes na obra de
Marx, um dos maiores nomes da história do pensamento que buscou interpretar o mundo e suas
contradições a partir de suas instâncias objetivas, contrapondo-se a uma tradição de pensar a
realidade a partir das ideias que nela se desenvolve. Isto justifica a dedicação quase que
exclusiva à obra Une philosophie marxiste du langage, abordada na primeira seção deste
capítulo e que, ao nosso ver, sintetiza de modo satisfatório os pressupostos de uma filosofia
materialista da linguagem que antecede nosso trabalho de pesquisa.
Os princípios dos quais partimos, apresentados na primeira seção do capítulo, dizem
respeito a concepções mais amplas e gerais acerca da linguagem e que compõem o primeiro
nível dos referenciais teóricos aqui utilizados. Estas concepções permitirão que olhemos para
os conceitos de utopia, distopia e FC entendidas enquanto produções simbólicas que
estabelecem uma relação dialética com a realidade objetiva que as engendra. Há de considerar
ainda as especificidades destas produções na medida em que se estruturam textualmente, em
grande parte, como obras de narrativa ficcional literária. Isto nos leva a um trabalho de reflexão
acerca dos conceitos de narrativa, literatura e ficção, com a segunda seção deste capítulo
apresentando o resultado de um trabalho de cotejamento das contribuições teóricas de diversos
autores acerca destes três conceitos. Eis o segundo nível de nossos referenciais teóricos
Quanto ao terceiro nível, este diz respeito à escolha de um instrumento analítico
adequado à perspectiva filosófica acerca do conceito de linguagem apresentada na primeira
seção deste capítulo e que será posteriormente funcionalizado no capítulo deste trabalho
dedicado à análise dos contos previamente selecionados como forma de comprovação das
17

conclusões às quais se chegou acerca dos conceitos de utopia, distopia e FC. O instrumento
analítico aqui escolhido corresponde a uma perspectiva discursiva acerca do objeto linguístico
e que, em termos mais disciplinares, dizem respeito à Análise Crítica do Discurso (doravante
ACD), cujos marcos teóricos principais serão apresentados na última seção deste trabalho.
Entendidos estes três níveis intrinsecamente imbricados, estaremos então em condições
de prosseguirmos com o devido aprofundamento acerca de nossos objetos de estudo e com o
exercício analítico a ser desenvolvido sobre os contos selecionados.

2.1. Reflexões sobre o conceito de linguagem

Althusser (1976) aponta para um conceito que nos parece fundamental para refletirmos,
ainda que de forma breve, sobre as relações entre o pesquisador e sua prática científica. Trata-
se da filosofia espontânea do cientista e que pode ser definida, de um modo bastante geral, como
sendo o conjunto de pressupostos filosóficos que todo cientista traz consigo e que, em alguma
medida, condicionam o trabalho por eles realizado, e se dá de forma inconsciente, daí o termo
“espontânea”. A reflexão do pensador francês se insere em um questionamento acerca da
neutralidade por parte do pesquisador diante de seu objeto. O que, como já há muito endossado,
nos parece questionável, ao menos de modo mais absoluto. Parece-nos inegável que já desde a
escolha de um objeto foram operados elementos “extra-científicos”; isto é, por razões sociais,
políticas, ideológicas, psicológicas etc. preferiu-se um objeto a outro. A escolha de um
determinado arcabouço teórico em função de outro pode também atender a objetivos que não
dizem respeito exclusivamente à natureza do objeto pesquisado. Isto é, se, por um lado, são as
especificidades deste último que nos levariam à escolha de uma teoria ou outra, por outro,
podemos dizer também que a escolha anterior de uma teoria nos levaria a optar por um
determinado aspecto do objeto em função de outro. Neste sentido, não caberia falar aqui em
uma neutralidade absoluta por parte do cientista.
Mikhail Mikhailovich Bakhtin1, pensador russo que se debruçou sobre o fenômeno da
linguagem, contribuiu de modo relevante para esta nossa discussão. Pois, antes mesmo de nos
questionarmos acerca de escolhas teóricas, metodológicas ou de objeto, é no nível mais
elementar da linguagem que há a suspensão da neutralidade, dada sua natureza axiológica. Já

1
Como se sabe, é controversa a questão da autoria referente às obras publicadas por Bakhtin. Não entraremos aqui
nestas questões. Utilizaremos também o termo “círculo bakhtiniano” quando se tratar de obras publicadas sob a
alcunha de V.N. Voloshinov.
18

na esfera do signo linguístico – menor unidade conceitual de análise linguística2 – isto pode ser
verificado. Bakhtin (2009), em seu Marxismo e Filosofia da Linguagem, nos apresenta um
duplo caráter do signo linguístico: o de refletir e de refratar a realidade. Em suas palavras:

Os signos também são objetos naturais, específicos, e, como vimos, todo produto
natural, tecnológico ou de consumo pode tornar-se signo e adquirir, assim, um sentido
que ultrapasse suas próprias particularidades. Um signo não existe apenas como parte
de uma realidade; ele também reflete e refrata uma outra. Ele pode distorcer essa
realidade, ser-lhe fiel, ou apreendê-la de um ponto de vista específico, etc. Todo signo
está sujeito aos critérios de avaliação ideológica (isto é: se é verdadeiro, falso, correto,
justificado, bom, etc.). O domínio do ideológico coincide com o domínio dos signos:
são mutuamente correspondentes. Ali onde o signo se encontra, encontra-se também
o ideológico. Tudo que é ideológico possui um valor semiótico (Ibid:32-3) [grifo do
autor].

Em seu texto de título Os gêneros do discurso, o autor nos apresenta o conceito de atitude
responsiva, ao refletir sobre o processo de compreensão entre falantes em um momento de
interação linguística:

[...] o ouvinte, ao perceber e compreender o significado (linguístico) do discurso,


ocupa simultaneamente em relação a ele uma ativa posição responsiva: concorda ou
discorda dele (total ou parcialmente), completa-o, aplica-o, prepara-se para usá-lo,
etc.; essa posição responsiva do ouvinte se forma ao longo de todo o processo de
audição e compreensão desde o seu início [...]. Toda compreensão da fala viva, do
enunciado vivo é de natureza ativamente responsiva (embora o grau desse ativismo
seja bastante diverso); toda compreensão e prenhe de resposta, em essa ou naquela
forma a gera obrigatoriamente: o ouvinte se torna falante (BAKHTIN, 2010:271).

Depreendemos assim que desde a esfera do signo até o momento de sua compreensão, ocorre
inexoravelmente por parte de qualquer indivíduo a adoção de uma postura axiológica. Neste
sentido, nenhuma interação permeada pela linguagem verbal pressupõe qualquer tipo de
neutralidade por parte dos participantes envolvidos.
Ao falarmos de neutralidade, não estamos com isto propondo a sua completa negação
para embarcar assim, declaradamente, naquilo que Demo (1995:84) chamaria de “ativismo
barato”, no qual “destrói-se o compromisso com a objetivação, tornando a ciência
excessivamente subserviente a ideologias, por mais que julguemos serem estas nobres” e
acabamos por “superdimensionar as condições subjetivas de mudança social, como se a
excitação política, sozinha, fizesse o milagre da multiplicação dos pães”. Se, por um lado, não
podemos dizer que o cientista se aliena integralmente de seus aspectos subjetivos, por outro,
não podemos dizer que um tratamento objetivo de empírico de um determinado fenômeno se
torne por isso impossibilitado, ou que uma pesquisa se reduza aos aspectos subjetivos do

2
Tratamos como menor unidade linguística em um contexto de análise que se atenha à parole saussuriana, dado
que quando tratamos da langue o signo pode ser decomposto em unidades ainda menores.
19

pesquisador. “A objetividade será um compromisso com a verdade e não com a neutralidade


(SADER, 1985:6)”. Esta curta frase sintetiza a postura que adotamos aqui. Entendemos que o
tratamento objetivo de qualquer fenômeno é possível e que as inclinações subjetivas irão
imprimir sempre suas marcas ao longo do trabalho de pesquisa e de interpretação de dados. O
que deve ser rechaçado é que se postule sobre um fenômeno algo que objetivamente não diz
respeito a ele. Certamente, quando nos situamos em pesquisas que se debrucem sobre
fenômenos linguísticos entendidos em suas realizações concretas, o estatuto de verdade parece
mais instável do que quando lidamos com uma reação química, por exemplo. Contudo, é preciso
que as relações de causalidade estabelecidas entre os fenômenos apresentem uma justificativa
lógica que se baseie em dados e em verificações empíricas, sempre que possível.
Portanto, o objetivo desta seção é expor, de modo objetivo, que aspectos do fenômeno
pesquisado neste trabalho estamos priorizando. Dito de modo mais específico, qualquer
pesquisador que lide com fenômenos linguísticos parte de uma filosofia da linguagem, isto é,
de um conjunto de acepções mais fundamentais acerca da linguagem. Assim, expomos aqui os
fundamentos da filosofia da linguagem que subjazem ao nosso trabalho e sem a qual ele não
teria se desenvolvido como o foi. Mais do que isto, é preciso que ampliemos nosso olhar e
apresentemos os fundamentos filosóficos que determinam nossos olhares acerca do mundo, da
realidade material que nos cerca, das relações sociais em que estamos inseridos. Referimo-nos
aqui, especificamente, à concepção materialista da história conforme proposta por Karl Marx.
A concepção filosófica do materialismo histórico está presente em diversas obras de
Marx e trazer à tona qualquer fragmento mais específico acabaria por nos levar a conexões mais
profundas de seu pensamento, o que não pretendemos aqui. De modo sintetizado, podemos
dizer que partir de uma concepção materialista da história implica: 1) negar a concepção
idealista, segundo a qual a explicação do mundo e de seus fenômenos possam ter suas causas
últimas explicadas através das ideias, dos conceitos ou do espírito, 2) ao contrário, considerar
que as condições materiais e objetivas da realidade é que determinam, em última instância, a
maneira como os fenômenos se dão no mundo, 3) compreender que as exigências materiais
mais primárias que garantem a subsistência dos homens são uma exigência histórica inexorável
e daí decorrem todas as representações e ideias ligadas às atividades do homem para cumprir
tais exigências; ou seja, a organização econômica de uma sociedade e seus meios de produção
determinam em última instância as representações simbólicas nela produzidas e consumidas, 4)
considerar que as ideias dominantes em um determinado momento histórico são aquelas da
classe e grupos sociais dominantes, isto é, as que dispõem dos meios de produção material em
uma sociedade, 5) as ideias dominantes exercem socialmente uma força discursiva de
20

legitimação de sua condição de poder ao naturalizarem e determinarem como sendo imutáveis


as configurações sociais, econômicas e políticas que possibilitam esta dominação, 6) primar
pelos aspectos objetivos da realidade na compreensão de seus fenômenos sociais sob os
subjetivos e 7) entender os fenômenos a partir de sua inserção em uma totalidade histórica, o
que significa dizer que não se pode desconsiderar elementos de natureza social, política e
econômica em seus tratamentos.
Uma vez expostos estes pressupostos mais abrangentes acerca da realidade social,
devemos agora nos remeter às pressuposições relacionadas especificamente à linguagem. Pelo
diálogo que a obra estabelece com o pensador alemão, partiremos aqui da obra Une philosophie
marxiste du langage de Jean-Jacques Lecercle. Trata-se de uma das poucas obras, até o presente
momento, que se dedica especificamente a estabelecer uma relação entre a filosofia materialista
da história presente nas obras de Marx e uma proposta de filosofia da linguagem, como
explicitamente denota o título. Objetivos similares identificamos somente na obra Marxismo e
Filosofia da Linguagem, de Mikhail Bakhtin. As reflexões apresentadas nesta são de
incomparável relevância para os estudos linguísticos e marxistas e contribuem em grande
medida para texto de Lecercle. Contudo, o diálogo encontrado com outros autores da tradição
marxistas e outros que a ela não pertencem em Bakhtin é um tanto quanto mais intenso e suas
proposições para uma filosofia materialista da linguagem são apresentadas de modo mais
sistematizado. Não se trata de estabelecer uma taxativa relação hierárquica de valor entre os
dois textos; aos nos basearmos em Lecercle, somos inevitavelmente levados de uma forma ou
de outra àquilo que propunha Bakhtin e seu círculo.
Une philosophie marxiste du langage (2006) nos apresenta um denso percurso e nos
parece de considerável relevância que nos aprofundemos nele em alguma medida. Deixaremos
de lado ao longo da exposição da obra o diálogo que o autor estabelece com Habermas, Deleuze
e Guatarri, Roland Barthes, os autores marxistas Lenin, Stalin, Pasolini, Voloshinov, Gramsci,
Raymond Williams, Pierre Macherey, Louis Althusser, bem como os próprios Marx e Engels,
o filósofo vietnamita Tran Duc Thao, dentre outros nomes já conhecidos nos meios linguísticos
como Saussure e Chomsky. Interessa-nos mais aqui apresentar uma síntese das proposições de
Lecercle, isto é, o resultado final a que ele chega com vistas a uma filosofia materialista da
linguagem do que o percurso teórico que ele realiza ao dialogar com outros autores. Devemos
considerar ainda a complexidade que estes nos trazem e que não é objetivo deste trabalho
colocar em cheque os recortes conceituais feitos por Lecercle em suas críticas e apropriações
de outros autores. Para assegurar se suas interpretações correspondem àquilo que de fato se
encontra nas obras em que ele se baseia ou não, seria necessário um trabalho específico.
21

Nos dois últimos capítulos de seu texto, Lecercle nos apresenta suas seis teses, divididas
em uma tese principal, quatro outras teses positivas e uma tese conclusiva, que fundamentam
sua filosofia da linguagem e que serão aqui expostas de modo sucinto. A tese principal afirma
que a linguagem é uma forma de práxis. Isto significa que consideraremos a linguagem
enquanto processo, não como produto, não sendo ela tão somente um receptáculo de regras
gramaticais e acervo lexical, mas sim um complexo sistema de variações. Estas variações se
dão em confluência com a história dos seres humanos e suas sociedades, sendo a história da
linguagem ela mesma perpassada em sua dinâmica própria por alterações sociais, econômicas,
culturais, políticas etc. Este sistema deve ser compreendido de forma não fetichizada, mas sim
inserida indissociavelmente em uma totalidade social, não sendo com isso sua origem redutível
ao indivíduo; o sujeito apropria-se sempre de algo que lhe é anterior. Tem-se assim a primazia
da interação social em função de um falante individual.
A primeira tese positiva afirma que a linguagem é um fenômeno histórico. Lecercle
considera que a língua é uma formação linguística instável de tensões e contradições em um
dado contexto histórico específico e que, tal como a história, como também comentamos
anteriormente, mantém-se em constante mudança. A invenção linguística é, portanto, não
somente resultado da criatividade genial de um poeta, mas de todo um complexo de interações
dialéticas entre, para utilizar termos marxistas, infraestrutura e superestrutura. O autor propõe
ainda a noção de conjuntura linguística e que se sobrepõe à dicotomia entre sincronia e
diacronia, correspondendo a tal conjuntura o contexto em que os significados se associam às
práticas sociais dos falantes e reificam-se em formações maiores de sentido. Deve-se considerar
ainda o momento específico desta conjuntura, visto manter-se a linguagem num estado de
variação ininterrupta.
A segunda tese positiva afirma que a linguagem é um fenômeno social. Os sujeitos são
os produtos da linguagem e são por ela falados, isto é, trata-se de linguagem entendida como
práxis que constitui os sujeitos, que concede-lhes um lugar. Temos assim uma ideia de
intersubjetividade enquanto um efeito de interlocução de sujeitos falantes, o que depende
inexoravelmente de uma forma de sociedade já estabelecida. Ademais, compreende-se este
sujeito não como algo já constituído em função apenas de uma de suas faculdades, a da
linguagem, mas sim como inserido em uma totalidade social maior. Essa, entendida enquanto
forma de práxis, o subjetifica. Lecercle nesta sua segunda tese tenta ainda estabelecer uma
relação entre linguagem e ideologia, em que não nos aprofundaremos. Trataremos dela
especificamente ao apresentar o modelo teórico de Norman Fairclough, que, ao nosso ver, trata
22

da questão de forma mais ampla, mantendo-se a contribuição althusseriana da qual parte


Lecercle.
A terceira tese positiva afirma que a linguagem é um fenômeno material. De forma
superficial, isto é claramente compreendido se tomamos o fato de que a linguagem seja
constituída por sons e formas materiais concretas3, bem como “corpos falantes”. Um segundo
elemento a ser destacado é o das instituições que materializam discursos e atos de fala4. Lecercle
vai além e destaca ainda a materialidade que se faz presente através de diferentes corpos 5. O
primeiro e mais óbvio, nas próprias palavras do autor, é o corpo biológico. Sua materialidade
consiste em órgãos fisiológicos e no funcionamento pleno do cérebro. O que, naturalmente, não
pode ser entendido como a instância única em que se situaria a linguagem; ainda que a
consideremos como sendo um de seus elementos de materialidade. O segundo, diz respeito ao
corpo fenomenológico6, entendido enquanto o lugar das operações enunciativas e cognitivas.
Um corpo que é consciente de si próprio e ativo, orientado em um mundo que o cerca, onde
emergem consciência e subjetividade. O terceiro, diz respeito ao corpo erótico, compreendido
no sentido psicanalítico do termo. Lecercle não desconsidera as implicações do componente
psíquico do falante uma vez que este produza efeitos no campo da linguagem. Por fim, o autor
no apresenta a noção de corpo trabalhador, conceito por ele apropriado de David McNally. Este
corpo, entendido não somente em sua instância individual, é atravessado por forças e relações
sociais que se modificam no percurso histórico do homem, sendo “não somente o agente da
práxis social, como também o produto dos processos que constituem esta práxis (LECERCLE,
op. cit.:181)” [tradução própria]7.

3
Cabem aqui as palavras de Bakhtin (2009:37) quanto à materialidade semiótica da palavra e suas implicações:
“Há uma outra propriedade da palavra que é da maior importância e que a torna o primeiro meio da consciência
individual. Embora a realidade da palavra, como a de qualquer signo, resulte do consenso entre os indivíduos, uma
palavra é, ao mesmo tempo, produzida pelos próprios meios do organismo individual, sem nenhum recurso a uma
aparelhagem qualquer ou a alguma outra espécie de material extracorporal. Isso determinou o papel da palavra
como material semiótico da vida interior, da consciência (discurso interior). Na verdade, a consciência não poderia
se desenvolver se não dispusesse de um material flexível, veiculável pelo corpo. E a palavra constitui exatamente
esse tipo de material”.
4
Ver Austin (1990).
5
Devemos aqui fazer referência à dita virada somática, uma nova forma de se apreender o corpo nas ciências
sociais. Ver Pennycook (2008:77 et seq.).
6
Fenomenologia é uma escola filosófica iniciada na Alemanha por volta do final do século XIX e foi desenvolvida
por Edmund Husserl. Em linhas iniciais, trata-se de uma “reflexão sobre um fenômeno ou sobre aquilo que se
mostra (ALES BELLO, 2006:18)”. O corpo fenomenológico, no sentido em que Lecercle trata da questão, diz
respeito à forma como ele se relaciona com o mundo, como ele o percebe, relacionando-se isto a uma forma de
apreensão da realidade objetiva sendo realizada pela linguagem.
7
No original em inglês: “[…] it is not only the agent of a social praxis, but also the product of the processes that
constitute this praxis”. Ao longo de nosso trabalho, nos vimos por vezes impossibilitados de termos acesso a
versões em português das obras que consultamos, ou mesmo, não raramente, não haviam versões traduzidas.
Optamos por realizar traduções próprias em todos os momentos em que transcrevemos passagens de outros autores
em língua estrangeira, inserindo ainda nas notas de pé de página ao final de cada fragmento a passagem
23

A quarta tese positiva afirma que a linguagem é um fenômeno político. Lecercle, ao


discorrer sobre esta, apresenta-nos uma reflexão das de maior relevância. Ao fazer de objeto de
estudo a langue saussuriana ou a I-Language chomskyana, a linguística interna, nas palavras
do autor, adota assim uma postura de aparente neutralidade científica e se vê longe da
“contaminação” por uma determinada orientação política ou outra. Contudo, há de “ser pago
um alto preço” para tal: deixa-se de lado a compreensão de linguagem enquanto uma forma de
práxis. Mais do que isto, é preciso que se reveja ainda o papel do cientista na
contemporaneidade e em que medida sua produção acaba por contestar e colocar em cheque
certas condições sociais de exclusão, exploração e discriminação ─ em termos de classe, etnia,
gênero, sexualidade, cultura etc ─ ou ainda legitimá-las; seja intencionalmente ou justamente
por conta do que Pennycook chama, não sem razão, de “avestruzismo liberal”. Em suas
palavras:

[...] a investigação crítica é frequentemente acusada de aderir a um tipo de ideologia


particular, ao passo que aqueles que fazem tal crítica reivindicam uma posição neutra
tanto política quanto intelectual. Da perspectiva da LAC, essa negação de sua própria
política, essa recusa em considerar questões sociais e políticas mais amplas, torna isto
uma abordagem da LA do tipo avestruz (cabeça enfiada na areia). Esse avestruzismo
liberal permeia muitas das abordagens tradicionais de LA. Embora as políticas
subjacentes a posições críticas diferentes devam ser de fato investigadas, a solução
não pode ser negar questões de cunho político e reivindicar neutralidade. Essa é uma
negação hipócrita de responsabilidade social (PENNYCOOK, 2008:69).

Gramsci e seu conceito de intelectual orgânico também nos apresenta subsídios teóricos para
pensar a relevância social do trabalho do pesquisador. Para o pensador marxista italiano,

[c]ada grupo social, nascendo no terreno originário de uma função essencial no mundo
da produção econômica, cria para si, ao mesmo tempo, de um modo orgânico, uma ou
mais camadas de intelectuais que lhe dão homogeneidade e consciência da própria
função, não apenas no campo econômico, mas também no social e no político: o
empresário capitalista cria consigo o técnico da indústria, o cientista da economia
política, o organizador de uma nova cultura, de um novo direito, etc., etc. (GRAMSCI,
1982:3).

É graças à sua organicidade que este tipo de intelectual goza então de um relevante poder social,
tendo eles de se posicionarem diante de questões sociais e políticas de seu tempo. Tendo o
capitalismo se consolidado como a organização política hegemônica em um nível global nunca
dantes visto, não lhe faltará, certamente, um corpo social de intelectuais que se proponham a

correspondente na versão consultada. Isto permite que o leitor, com algum domínio na língua estrangeira em
questão, verifique de modo mais facilitado se a tradução trouxe algum problema de interpretação ou se não foi
totalmente clara.
24

realizar a todo custo a manutenção do establishment, reproduzindo ideologias burguesas, que


encontram ecos nas mais diversas camadas da sociedade; e, especificamente no campo da
política, uma postura liberal, diante da qual o indivíduo vê seu papel de sujeito histórico
completamente esfacelado, cabendo à pouco afável mão invisível do mercado o papel de
regulador último da vida social. Faz-se então necessário que se adote por parte de intelectuais
outros, e igualmente orgânicos, uma postura contra-hegemônica que tenha como objetivo um
projeto ético de emancipação das classes e grupos sociais subalternos, marginais, outsiders.
Lecercle ressalta também a estreita relação entre política e linguagem, uma vez que a
primeira dependa essencialmente da última para se constituir socialmente e converter
“programas, tratos, discursos, moções, slogans, leis e decretos” em práticas sociais efetivas.
Outro momento em que isto pode ser claramente percebido é com relação às políticas
linguísticas e todo o profícuo debate em torna da relação entre línguas nacionais (relacionadas
dialeticamente com a constituição dos estados-nação), ensino de língua estrangeira e materna,
intercâmbios culturais via imigração, dialetos e regionalismos, dentre outros. Como exemplo
concreto, o autor aponta para o fato de que, das cerca de cinco mil línguas faladas pelo mundo,
somente 130 são línguas nacionais (LECERCLE, op. cit.:191). É também através da linguagem
que toda a vida social se encontra organizada e regulada, o que nos leva a considerar que esta
organização da sociedade civil se dê justamente por um uso político efetivo da linguagem. É
uma das proposições da tese que os seres humanos sejam animais políticos precisamente por
serem animais falantes; sendo ainda o reverso também válido: o homem fala por ser político e
é político por falar. Por fim, seguindo a tradição marxista, Lecercle situará ainda a luta de
classes na linguagem, sendo através desta última que seus agentes, ainda que mesmo sem se
dar conta, intensifiquem o conflito na esfera discursiva.
Quanto à tese final, o autor afirma que a função da linguagem é a produção de sujeitos.
Com isto, o autor vê na linguagem um instrumento de transformação dos indivíduos em sujeitos,
sendo esta uma função anterior até mesmo à comunicação pura e simples entre estes. Nas
palavras do autor, “o lugar do sujeito é aquele de um sujeito em formação interpelado pela
linguagem que o diz e que, para dizê-lo, contra-interpela-o (Ibid:198)”.
Estas seis teses sintetizam, a nosso ver, de modo sistemático e satisfatório a concepção
que temos da linguagem e que nos dão subsídios suficientes para encararmos o fenômeno
linguístico em sua totalidade social e histórica. Acreditamos que, com esta breve exposição, os
princípios mais gerais acerca de uma filosofia materialista da linguagem tenham sido
adequadamente expostos, o que nos permite não perder de vista o contexto extralinguístico que
25

engendra as produções simbólicas em que se veem materializados os conceitos da utopia e da


distopia, bem como as obras de FC.

2.2. Sobre os conceitos de narração, literatura e ficção

Nossos corpora são formados por textos narrativos ficcionais literários. Dito de modo
superficial e meramente classificatório, tratam-se de textos verbais, organizados em uma
estrutura narrativa, que não se propõem a representar objetivamente a realidade fidedignamente
e que se apresentam e são lidos como textos pertencentes a um conjunto de textos que
atualmente são considerados como pertencendo ao grupo dos literários. É preciso, porém, que
discorramos em alguma medida sobre os três conceitos que norteiam esta classificação, e que
dão título a esta nossa seção. Trataremos agora de estabelecer aqui um diálogo com alguns
autores vinculados à disciplina da Teoria Literária, ou mesmo dos ED, e que julgamos
apresentarem reflexões teóricas relevantes para que compreendamos melhor a natureza dos
textos que compõem o objeto de estudo de nossa pesquisa.
Em primeiro lugar, tratemos da narração.
Usualmente, insere-se a narrativa como sendo um dos tipos textuais, em conjunto com
os textos descritivos, dissertativos, argumentativos e injuntivos8. Em tal classificação está
presente o critério da forma textual, a despeito de seu caráter discursivo e que, por sua vez, nos
faria levar em conta aspectos extratextuais. Conforme aponta Gancho (1991:9), há cinco
elementos fundamentais sem os quais não se pode haver narrativa: enredo, personagens, tempo,
espaço e narrador. Será então uma narrativa todo texto que apresente uma determinada sucessão
de acontecimentos na qual figurem personagens, em um determinado momento da história e
em um determinado espaço físico (estejam ele explícitos ou não), sendo isto apresentado
textualmente através de um narrador.
Charaudeau (2014) nos apresenta ainda a narrativa como sendo um dos modos de
organização de discurso (junto aos modos enunciativo, descritivo e argumentativo) que
constituem os “princípios de organização da matéria linguística” (cf. id., ibid.:68)9. Este modo

8
Não pretendemos aqui entrar em questões acerca de tipologia textual e quais seriam os critérios para uma
classificação adequada de textos verbais. Destacamos apenas a composição linguística dos textos em suas
estruturas verbais mais elementares, a despeito de aspectos extralinguísticos.
9
Nesta mesma passagem, Charaudeau afirma que tais princípios dependem da finalidade comunicativa do sujeito
que fala. No capítulo dedicado ao modo narrativo, diz o autor, no que concerne à finalidade do contar: “Contar
representa uma busca constante e infinita; a da resposta às perguntas fundamentais que o homem se faz: ‘Quem
somos? qual é a nossa origem? qual é nosso destino?’ Dito de outro modo: ‘qual a verdade de nosso ser’
(ibid.:154)”. Cremos que a opção pelo narrar extrapola estas questões existenciais (até certo ponto clichês) e que
tentar entender os motivos pelos quais o sujeito falante do ato de comunicação, utilizando a terminologia do autor
26

dispõe de uma lógica narrativa própria constituída a partir de três componentes: os actantes,
aqueles que “desempenham papéis relacionados à ação da qual dependem”; os processos, que
“unem os actantes entre si” e as sequências, que “integram processos e actantes numa finalidade
narrativa” (cf. id., ibid.:160). O autor francês esmiúça diferentes características de cada um
destes elementos, às quais não nos deteremos aqui.
O que nos interessa é entender o conceito de narrativa como sendo uma classificação
estritamente textual e que depende tão somente das formas linguísticas presentes no texto. Não
se trata assim de algo que dependa de uma avaliação por parte do leitor, ou de qualquer forma
de convenção social de ordem extralinguística. Isto se tornará relevante quando verificarmos
que o mesmo não ocorre com o conceito de ficção e de literatura.
Dissemos anteriormente que o narrador é um dos elementos indispensáveis à narrativa.
Charaudeau (ibid.:153) o corrobora ao dizer que “[p]ara que haja narrativa, é necessário um
‘contador’ (que se poderá chamar de narrador, escritor, testemunha, etc.), investido de uma
intencionalidade, isto é, de querer transmitir alguma coisa” [grifos do autor]. Faz-se necessário
também que comentemos, ainda que de forma breve, sobre a já conhecida distinção entre autor
e narrador.
Conforme vimos anteriormente, para o autor francês há uma lógica própria do texto
narrativo, e que conta com alguns elementos já citados. Esta lógica corresponde a um dos pontos
de uma articulação dupla que caracteriza o modo de organização narrativo. O outro ponto é a
encenação narrativa, na qual se “constrói o universo narrado (ou contado) propriamente dito,
sob a responsabilidade de um sujeito narrante que se acha ligado por um contrato de
comunicação ao destinatário da narrativa (id., ibid.:158)”. Sem este dispositivo da encenação
narrativa, não há narração. Este dispositivo, por sua vez, articula dois distintos espaços de
significação: um espaço externo ao texto e outro interno ao texto. Estes espaços são relevantes
para que se diferenciem aqui o autor do narrador e o leitor destinatário do leitor real. Segundo
o esquema teórico de Charaudeau, encontram-se neste espaço extratextual o autor e o leitor real,
correspondendo estes ao sujeito falante e ao sujeito-receptor-interpretante do dispositivo geral
da comunicação e dispondo de identidades sociais. Já no espaço intratextual, encontram-se
narrador e leitor-destinatário, correspondendo estes aos enunciador e destinatário do dispositivo
geral da comunicação e dispondo de identidades discursivas. Dentro desta perspectiva teórica,

francês, se vale de um modo narrativo em função de outras formas de comunicação é uma das questões centrais
para qualquer análise discursiva, especialmente a que se depara com objetos literários.
27

há então “quatro sujeitos ligados dois a dois de maneira não simétrica, mas ligados igualmente
entre si de um espaço a outro (id., ibid.:184)”10.
Pode-se ainda estabelecer a distinção entre o autor-indivíduo e o autor-escritor, na
medida em que somente este último desempenha socialmente o papel social particular de
escritor – “[o] nome do autor não é, pois, exatamente um nome próprio como os outros”, diria
Foucault (2009:273). Isto implica, segundo o autor, um projeto de escritura, um determinado
saber escrever do escritor – ou estilo – e uma ideologia socioartística; elementos estes de
reconhecida influência em termos de recepção\consumo dos textos. Charaudeau distingue
também o narrador-historiador do narrador-contador, estabelecendo o contraponto entre uma
história contada “da maneira mais objetiva possível, mais próxima dos fatos da realidade,
utilizando arquivos, testemunhos e documentos” e outra “contada como pertencente a um
mundo inventado, criado por seu organizador, em relação com todos os outros mundos
inventados; um mundo que não aceita outros códigos e outras leis além daqueles da ficção
(CHARAUDEAU, op. cit.:187)”. Em nosso trabalho, podemos dizer que todos os autores dos
três contos analisados podem ser classificados como autores-escritores e narradores-contadores.
Tendo sido feita esta classificação, é necessário ainda que voltemos um pouco nossa atenção
para a noção de autor e de que forma ela será funcionalizada em nossas análises.
Conforme aponta Barthes (2004:58),

[o] autor é uma personagem moderna, produzida sem dúvida pela nossa sociedade, na
medida em que, ao sair da idade Média, com o empirismo inglês, o racionalismo
francês e a fé pessoal da Reforma, ela descobriu o prestigio do indivíduo, ou como se
diz mais nobremente, da «pessoa humana».

A ideia de um indivíduo responsável por seus escritos, concedendo-lhes algum tipo de


autoridade ou colocando-se enquanto sujeito como um aspecto determinante para o consumo
de uma determinada obra, é relativamente recente. Aponta-nos ainda Barthes para uma
tendência, também recente, de que os autores de textos literários apaguem, utilizando a
terminologia de Charaudeau, seus traços de autores-escritores. Citando,

[...] o escritor moderno nasce ao mesmo tempo que o seu texto; não é de forma alguma
dotado de um ser que precedesse ou excedesse a sua escrita, não é em nada o sujeito
de que o seu livro fosse o predicado; outro tempo não há senão o da enunciação, e.
todo o texto é escrito eternamente aqui e agora (id., ibid.:61).

10
A distinção feita por Charaudeau entre autor e narrador, mutatis mutandis, verifica-se também em Bakhtin
(2010) em sua contraposição entre autor-criador e autor-pessoa, bem como em Barthes (op. cit.:60), quando este
afirma que o autor (narrador, para Charaudeau) é tão somente um sujeito vazio da enunciação, pela qual a
linguagem se realiza.
28

Fala-se assim no desaparecimento, no apagamento, na morte do autor – “o sujeito que escreve


despista todos os signos de sua individualidade particular; a marca do escritor não é mais do
que a singularidade de sua ausência (FOUCAULT, 2009:269)”.
Considerando isto, qual o papel que o autor exerceria então em nossa análise? Devemos
tentar isolá-lo, enquanto indivíduo, da leitura que faremos das obras para que não as reduzamos
às identidades sociais do autor, ou, por outro lado, buscaremos nelas seus traços, estejam eles
intencionalmente silenciados ou não? Que relação estabelecer entre autor e obra em uma
perspectiva de análise discursiva? Para respondermos estas questões, partiremos da centralidade
do caráter essencialmente axiológico presente na linguagem, considerando o pensamento do
círculo bakhtiniano.
Conforme abordamos na seção anterior, todo e qualquer processo de comunicação
pressupõe de seus participantes uma atitude responsiva de ordem axiológica. Isto não pode ser
negligenciado quando se trata da relação entre o autor e o mundo sócio-histórico que o cerca.
Este posicionamento por parte do autor encontra-se subjacente a toda e qualquer produção
artística sua. Pois, nas palavras de Faraco (2005:38), “todo ato cultural se move numa atmosfera
axiológica intensa de inter-determinações responsivas, isto é, em todo ato cultural assume-se
uma posição valorativa frente a outras posições valorativas”. É importante notarmos que nos
personagens e no narrador do texto narrativo não encontraremos necessariamente as ideias do
escritor, mas sim as imagens artísticas de suas ideias (cf. id., ibid.:40). Uma vez percebida esta
distinção, é deixada então de lado uma forma de análise que tivesse como objetivo verificar, a
partir de um estudo da psique do autor e de sua biografia, como que estes dois aspectos se veem
manifestados nas obras. Por outro lado, também faz-se necessário recusarmos àquilo que
Voloshinov (1976:96) aponta como sendo a “fetichização da obra artística enquanto artefato”:
i.e., quando “[o] campo de investigação se restringe à obra de arte por si só, a qual é analisada
de tal modo como se tudo em arte se resumisse a ela. O criador da obra e os seus contempladores
permanecem fora do campo de investigação11”. Em suma, o que se propõe neste trabalho é que
se realize uma análise de ordem discursiva, não psicologizante e que não se abstenha das
determinações sociais, históricas e ideológicas presentes no texto. Também não se trata de
decodificar nas entrelinhas do texto as ideias individuais do autor expressas por seus
personagens e narrador (bem como enredo, tempo e espaço), mas sim, a partir destes, enquanto

11
Tradução de Carlos Alberto Faraco e Cristovão Tezza para uso didático e disponível em
www.uesb.br/ppgcel/Discurso-Na-Vida-Discurso-Na-Arte.pdf ou https://pt.scribd.com/doc/96529004/M-
Bakhtin-Discurso-Na-Vida-Discurso-Na-Arte.
29

sujeito enunciadores do espaço interno do texto narrativo, verificar quais discursos se fazem
(ou se permitem fazer) manifestos e sob que perspectiva axiológica. Trata-se muito mais de
“quais avaliações acerca de quais discursos correntes ao contexto sócio-histórico podem ser
verificados?” do que “o que o autor quis dizer?” ou ainda “que elementos sócio-históricos se
veem aqui refletidos?”. Isto se vincula diretamente à perspectiva materialista da linguagem que
abordamos na seção anterior, na medida em que os produtos simbólicos são aqui entendidos em
sua inserção dentro de uma totalidade mais ampla, cujos constituintes de ordem extralinguística
ao mesmo tempo que os engendram são também por eles modificados, entendido aqui o texto
literário em sua instância de prática social.
Consideradas estas reflexões acerca do texto narrativo, tratemos agora do conceito de
literatura. Obviamente, não há qualquer pretensão de que se estabeleçam aqui critérios
definitivos para dar conta do fenômeno literário ou de sua definição mais precisa. Gostaríamos,
entretanto, de apontar para algumas questões que nos parecem relevantes e nos posicionarmos
quanto a elas, considerando com isso as implicações decorrentes deste posicionamento para
nosso trabalho.
Em primeiro lugar, é preciso dizer que o conceito de literatura, da forma como
entendemos, é algo relativamente recente. A ideia de uma “arte peculiar, uma específica
categoria da criação artística e um conjunto de textos resultantes desta actividade [sic] criadora
(SILVA, 2007:10)” nem sempre foi a única acepção do termo. Literatura já significou erudição,
conjunto de textos seculares, saber gramático e científico em geral, dentre outros (cf. id., ibid.:1
et seq.). Não se trata aqui de traçar a evolução histórica do termo. O que nos interessa é entender
que nossos corpora constituem-se como textos literários, pertencendo ao grupo de produções
simbólicas assim classificados socialmente. Não poderíamos, naturalmente, nos embasarmos
tão somente nesta denominação comum; é preciso que levantemos aqui alguns aspectos para
verificarmos se tal classificação dispõe de subsídios suficientes que a justifiquem.
Dito de modo bastante objetivo, dizer que um texto é literário nos coloca diante da
grande questão entre: a) dispor um texto de aspectos estruturais suficientes para ser assim
classificado e b) estarmos diante de uma questão de convenção, recaindo esta classificação mais
a elementos extrínsecos do que intrínsecos ao texto. Estes são os dois extremos em que se
encontraria o estatuto de literariedade de um texto. Há quem posicione-se de ambos os lados.
Foucault, por exemplo, remetendo-se à sua preocupação peculiar presente em muitas de
suas obras quanto às condições de existência dos enunciados no campo discursivo, mais do que
quanto à sua materialidade linguística em si, aponta:
30

O que faz com que a literatura seja literatura, que a linguagem escrita em um livro
seja literatura, é uma espécie de ritual prévio que traça o espaço da consagração das
palavras. Por conseguinte, quando a página em branco começa a ser preenchida,
quando se começa a transcrever palavras nessa superfície virgem, cada palavra se
torna de certo modo absolutamente decepcionante com relação à literatura, pois não
há nenhuma palavra que pertença por essência, por direito de natureza, à literatura
(FOUCAULT, 2000:142).

Em Maingueneau, um dos grandes nomes da escola francesa da Análise de Discurso,


podemos perceber a influência foucaultiana quando este nos afirma que “[a] delimitação do que
seria ou não literatura depende de cada posicionamento e de cada gênero no interior de um certo
regime da produção discursiva (2005:21)”.
Eagleton (2003) será ainda mais incisivo. Ao considerar aquilo que a crítica literária
estabeleceu como sendo os parâmetros determinantes para que um texto seja literário e outro
não, o autor chega a algumas conclusões que talvez pouco agrade aos críticos literários.
Sucintamente, são elas: 1) a existência do caráter literário de um determinado texto diz muito
mais respeito à maneira como este é lido do que por sua natureza e características, 2) os textos
podem nascer literários, ganharem status de literários ou lhes ser este imposto, na medida em
que mais importa como as pessoas os avaliam, 3) tal qual Foucault, não há uma “essência” da
literatura; qualquer texto pode ser lido ora pragmaticamente, ora poeticamente, 4) julgamentos
de valor exercem papel fundamental naquilo que seja considerado literatura, 5) tais julgamentos
são passíveis de serem revistos e até mesmo deixados de lado em função do momento histórico
em que se realizam e 6) esta estrutura de valores está relacionada a questões ideológicas.
Searle (1979:59) nos apresenta uma postura que também faz com que se recaia sobre
determinadas convenções e posicionamentos receptivos diante do texto, mais do que sobre ele
próprio, a justificativa para o estatuto de literariedade de um texto:

[...] não há característica ou conjunto de características que todas as obras de


Literatura tenham em comum e que possa constituir as condições necessárias e
suficientes para algo ser uma obra de literatura. [...] "literatura" é o nome de um
conjunto de atitudes que tomamos para com um segmento de discurso, não o nome de
uma propriedade interna do segmento de discurso, embora a razão por que tomamos
as atitudes que tomamos seja evidentemente, pelo menos em parte, uma função das
propriedades do discurso e não inteiramente arbitrária12.

Interessante percebermos a concessão feita pelo autor ao final da passagem. Searle entende que
há propriedades do discurso que não sejam totalmente arbitrárias e que, em alguma medida,

12
Tradução de Vítor Guerreiro disponível em http://criticanarede.com/logicaficcional.html. Ela será utilizada em
todos os momentos nos quais a obra tiver seus fragmentos transcritos neste trabalho.
31

justificam o conjunto de atitudes tomadas para que um determinado segmento do discurso seja
considerado literário. O que nos coloca agora do outro lado da questão.
Conforme aponta Silva (2007: 14 et seq.), da necessidade metodológica de se
estabelecer um conceito de literatura enquanto fenômeno estético específico, surgem
movimentos que defenderão haver características estruturais próprias aos textos literários e que
os diferenciam dos textos não-literários; como o formalismo russo, o novo criticismo anglo-
norte-americano e a estilística. Constituía-se assim, prossegue o autor, ao longo da história dos
estudos literários uma ciência da literatura que tivesse como objeto os elementos fundadores da
literariedade dos textos literários, e não somente eles isoladamente.
Tomando como ponto de partida a existência destas características estruturais próprias,
convém citar aqui Jonathan Culler (1999), que em sua Introdução à Teoria Literária tenta
elencar algumas destas características. Tentando superar a postura tautológica de dizer que
“literatura é aquilo que uma sociedade define como tal” – o que só nos remeteria à questão “o
que leva uma sociedade a definir o que é literatura” – Culler apresenta cinco aspectos
fundamentais, não hierarquizados, e que justificam a classificação de literário dada a um texto.
São eles: 1) a literatura como “colocação em primeiro plano” da linguagem – diz respeito a
processos de seleção quanto à forma de um texto que se diferem de produções linguísticas mais
comuns, 2) literatura como integração da linguagem – o texto literário goza de uma estruturação
interna própria onde seus diversos elementos estabelecem uma relação complexa entre si, não
podendo ser tal texto lido como expressão da psique do autor ou reflexo de sua sociedade, 3)
literatura como ficção – desconsiderado o compromisso do discurso literário com a
representação fiel da realidade, sua relação com o mundo está sempre submetida a uma questão
de interpretação, 4) literatura como objeto estético – no discurso literário o texto não se propõe
a informar, persuadir, ou a atingir algum fim específico; há uma inter-relação entre forma e
conteúdo, de modo que suas partes se relacionem para um efeito do todo e 5) literatura como
construção intertextual ou auto-reflexiva – o discurso literário estabelece um meta-discurso na
medida em que a literatura se constitui como uma prática de reflexão sobre ela própria.
Poderíamos aqui mencionar ainda outros autores e suas contribuições para nossa
questão. Temos aqui por objetivo, entretanto, apenas apresentar alguns pressupostos mais
basilares acerca do fenômeno literário e que contribuam para um melhor entendimento do tipo
de olhar que lançamos sobre eles. Portanto, cabe agora sintetizarmos nossos pressupostos com
base nos autores e ideias apresentadas.
Acreditamos que a literariedade de um texto se justifica tanto por suas características
estruturais e usos linguísticos específicos – ainda que estes não sejam de utilização exclusiva
32

por parte dos textos literários – quanto pelas convenções institucionais e pela relação que se
estabelece entre leitor e obra. Uma obra literária deve tanto apresentar marcas textuais de
literariedade quanto ser lida enquanto literatura. O que é endossado por Silva (2007:33): “a obra
literária só adquire efectiva [sic] existência como obra literária, como objecto [sic] estético,
quando é lida e interpretada por um leitor, em conformidade com determinados conhecimentos,
determinadas convenções e práticas institucionais”.
Há três implicações em termos da análise que desenvolvemos na presente dissertação
quando falamos de textos literários.
Em primeiro lugar, é preciso que haja uma atenção especial aos recursos linguísticos,
conforme mencionados por Culler, que se encontram nas obras literárias, de modo que, numa
análise discursiva que leve em conta as avaliações expressas na narrativa diante do mundo
sócio-histórico do autor, o texto literário não se resuma a seu aspecto documental. Pois é
precisamente através da organização linguística própria dos textos literários que poderão ser
verificados os diferentes horizontes axiológicos tornados manifestos. Em segundo lugar, não se
questiona aqui o estatuto de literariedade dos textos que compõem o corpus de análise de nosso
trabalho. Todos eles atendem aos pressupostos textuais – elementos intrínsecos ao texto em
termos de suas estruturas linguísticas – e convencionais – aspectos de ordem extralinguística e
que dizem respeito aos pactos que se estabelecem entre o leitor e o texto, motivados por
convenções socialmente compartilhadas – para que sejam considerados textos literários. Por
fim, não apresenta grande relevância para nós estabelecer critérios de diferenciação entre aquilo
que seria uma boa ou ruim literatura. Interessa-nos muito mais, reafirmemos, as posições
avaliativas expressas textualmente, isto é, em que medida se verifica não somente um reflexo
do contexto histórico do autor, mas a refração deste contexto realizada pela instância da prática
social do texto literário. Uma valoração positiva ou negativa acerca de estilo, criatividade,
originalidade e aspectos semelhantes não se colocam aqui como objetivo de nossa análise.
Para enfim adentrarmos no conceito de ficção, devemos antes mencionar a estreita
relação que esta estabelece com o texto narrativo. Conforme visto anteriormente, Culler
pressupõe a ficção como sendo um dos componentes do texto literário e isto pode ser verificado
ainda em outros autores. O já citado Searle nos diz que é possível confundir uma definição de
ficção com uma literatura – apresentando, porém, como contra-argumento, o fato de ser possível
haver tantas formas de literatura que não são ficcionais, como textos ficcionais que não são
literários (como as anedotas, por exemplo). Käte Hamburger (2013) em seu A lógica da criação
literária entende o gênero ficcional como sendo um material artístico, precisamente o da
33

literatura, presente na ficção dramática e épica13. Falar, portanto, em literatura, significa falar
em ficção.
O primeiro aspecto a ser mencionado é a distinção entre ficção e mentira. Ainda que
ambos sejam formas de signos sem referentes e instaurem novas realidade, a primeira distingue-
se da segunda por haver um pacto ficcional entre os interlocutores, não havendo por parte do
autor de ficção qualquer intenção de enganar. Autor e leitor estão cientes de que o texto não
tem por objetivo representar a realidade tal qual ela se apresenta objetivamente.
Outros aspectos referentes ao conceito de ficção nos são apresentados por Wolfgang
Iser e Lubomir Doležel, cujas teorias nos parecem de grande relevância e gostaríamos aqui de
trazê-las à tona.
Partindo da já mencionada estreita relação entre o texto literário e o texto ficcional, Iser
(2002), em capítulo intitulado Os atos de fingir ou o que é fictício no texto ficcional, coloca em
xeque a oposição que comumente se estabelece entre realidade e ficção, visto que não se pode
dizer que os textos ficcionais são absolutamente isentos da realidade. Citando-o:

A relação opositiva entre ficção e realidade retiraria da discussão sobre o fictício no


texto uma dimensão importante, pois, evidentemente, há no texto ficcional muita
realidade que não só deve ser identificável como realidade social, mas que também
pode ser de ordem sentimental e emocional (id., ibid.:958).

Em contrapartida, sugere ele uma tríade composta pelas instâncias do real, do fictício e
do imaginário. A instância do real é aquela correspondente ao mundo extratextual anterior ao
texto e que a este último fornece os campos de referência, isto é, os elementos temáticos a serem
selecionados pelo autor na composição de seu texto. Estes campos adquirem o estatuto de
fictícios na medida em que passam a representar elementos da realidade. Esta representação
não é uma pura transposição do real, mas sim uma extrapolação, uma transgressão de seus
limites – o ato de fingir é uma irrealização do real. Esta transgressão, enquanto uma
reorganização específica do real extrapolado, vincula-se à instância do imaginário que, uma vez
difuso, passa a se constituir numa configuração específica de imagens fictícias, realizando-se –
o ato de fingir é também uma realização do imaginário.
Transgressão e extrapolação só são possíveis se entendermos que elas se dão a partir de
um ato de seleção por parte do autor, visto que “a seleção é uma transgressão de limites na
medida em que os elementos acolhidos pelo texto agora se desvinculam da estruturação

13
Na obra citada, a autora argumenta haver um componente linguístico próprio à estrutura ficcional, o uso do
pretérito, cujo uso na ficção é distinto daquele do uso cotidiano. Não nos aprofundaremos neste aspecto de sua
teoria.
34

semântica ou sistemática dos sistemas de que foram tomados (id., ibid.:960-1)”. Seleção e
combinação dos elementos textuais, enquanto atos de fingir, por serem transgressões de limites,
tornam-se os elementos centrais para que se apreenda a intencionalidade de um texto.
Interessante destacarmos aqui que, como vimos no início desta seção ao discutirmos sobre a
figura do autor diante de seu texto, temos endossada por Iser a tese de que “apenas através das
qualidades que se evidenciam a seletividade do texto face a seus sistemas sociais” é que é
possível se chegar à intencionalidade do texto, não sendo “possível o conhecimento da intenção
autoral pelo que o tenha inspirado ou pelo que tenha desejado (id., ibid.:962)”.
Igualmente reafirmando a vinculação entre o texto ficcional e o literário, Doležel (1997),
por sua vez, em capítulo intitulado Mímesis e mundos possíveis, tem como ponto de partida a
crítica à ideia de que as ficções sejam derivadas da realidade ou imitações\representações de
entidades que de fato existam14. O autor apresenta aquilo que ele chama de função mimética,
um pressuposto teórico central para a interpretação dos objetos ficcionais por parte de muitos
críticos literários e historiadores: o particular ficcional P /f/ representa o particular real P /r/.
Com base nesta função, busca-se estabelecer uma correspondência, por exemplo, entre um
personagem lendário com um indivíduo histórico, ou um acontecimento ficcional com um real
(cf. id, ibid.:71).
Dada a insuficiência deste método, visto que é impossível estabelecer um particular real
para cada particular ficcional, surge então, segundo o autor, a ideia de que os tipos particulares
ficcionais representariam universais reais, como tipos psicológicos, grupos sociais ou condições
existenciais ou históricas. Ocorre então uma transformação da função mimética, tornando-se
esta universalista: o particular ficcional P /f/ representa o universal real U /r/ (cf. id., ibid.:72).
Doležel questiona que se perdem assim as características mais peculiares de cada texto literário
na medida em que estes se reduzem a exemplos deste ou daquele universal, reduzindo-se assim
o horizonte de interpretações a serem realizadas pela crítica – que não por menos se viram
insatisfeitos com tal método.
O autor apresenta, por fim, uma terceira função a partir da qual se realizaria a crítica
mimética. Trata-se de uma função pseudo-mimética: a fonte real F /r/ proporciona a

14
Frederico José Machado da Silva (2013) aponta que Doležel incorre em um erro de interpretação quanto à ideia
de mímesis em Aristóteles. Não cabe aqui, nem há espaço para tanto, nos debruçarmos sobre a obra de Aristóteles.
Questionamos, contudo, a postura adotada por Silva ao pressupor poder haver, baseando-se inicialmente no próprio
Aristóteles e mais adiante em Luiz Costa Lima, um mundo de ficção que não esteja “fiado no real”, citando como
exemplo a arte simbolista e a arte abstrata. Diferentemente, acreditamos que uma produção simbólica de referentes
reais apagados, representando supostamente tão somente a si mesma estabelece a sua estreita ligação com o real
justamente por sua ausência de referenciação. Isto, pois, citando Iser (Op. Cit:961), “os elementos presentes no
texto são reforçados pelos que se ausentaram”.
35

representação do particular ficcional P /f/. Aparentemente trata-se de uma relação mimética,


não derivando, porém, os particulares ficcionais de protótipos reais. Critica o autor, porém, que,
pré-existentes ao ato de representação, estes particulares ficcionais parecem estar presentes tão
somente na consciência dos autores (fontes reais) que venham a representá-los em suas obras,
tal como descreve um historiador as personagens históricas (cf. id., ibid.:75), o que
corresponderia a uma análise por demais individualizante.
Tendo apresentado suas críticas a cada uma das três correntes presentes nos estudos
literários, Doležel propõe aquilo que chama de semântica da ficcionalidade dos mundos
possíveis, fundamentada em seis principais ideias: a) os mundos fictícios são conjuntos de
estados de coisas possíveis, b) o conjunto de mundos ficcionais é ilimitado e variado ao
máximo, c) os mundos ficcionais são acessíveis através do mundo real, d) os mundos ficcionais
da literatura são incompletos, e) muitos mundos ficcionais da literatura não são semanticamente
homogêneos e f) os mundos ficcionais da literatura são construtos da atividade textual.
Há ainda alguns aspectos relevantes a serem salientados. Para além das características
mencionadas acima, o autor considera ainda, bastante acertadamente ao nosso ver, 1) que os
indivíduos ficcionais não podem ser identificados com indivíduos reais de mesmo nome,
havendo sempre uma distinção entre personagem e indivíduo histórico, 2) ao passo que, é mais
do que necessária o que o autor chama de “identificação entre mundos”, sendo válido
estabelecer um paralelo entre um indivíduo histórico e qualquer outro indivíduo possível
ficcional, 3) que o mundo ficcional, enquanto conjunto de ficcionais possíveis, apresenta uma
organização estrutural própria e 4) que o material real deve sofrer uma transformação
substancial ao ponto de converter-se de real a possível, com todas as decorrências ontológicas,
lógicas e semânticas daí resultantes.
Percebamos agora o quanto o ponto 4 assemelha-se à ideia de extrapolação e de
transgressão presente em Iser. Transformação, extrapolação, transgressão – não seria descabido
acrescentar a este conjunto de processos o verbo “romper”. É o que se pode verificar em Searle
(op. cit.:66):

Ora, o que torna possível a ficção, segundo sugiro, é um conjunto de convenções


extralinguísticas, não semânticas, que rompem a ligação entre as palavras e o mundo
estabelecida pelas regras atrás mencionadas. [...] Consequentemente, não alteram ou
modificam os significados das palavras ou outros elementos da língua. O que fazem
é antes permitir ao falante usar as palavras com os seus significados literais sem
assumir os compromissos que esses significados normalmente exigem.
36

Acrescente-se ainda o fato de que, de modo oposto ao texto ficcional e dispondo de menos
elementos estruturais que o texto literário, o texto fictício carece de, nas palavras de Searle, um
conjunto de convenções extralinguísticas (ou pactos entre o leitor e o texto, suspensão da
descrença etc). Daí a afirmação de que “[n]ão há propriedade textual, sintáctica [sic] ou
semântica, que identifique um texto como obra de ficção (id., ibid.:65)15”.
Considerado todo o exposto, podemos então concluir com base nas contribuições dos
autores supracitados que 1) ficção não se trata de mentira por pressupor convenções
extralinguísticas em que se realiza um pacto entre texto e leitor, estando suspensa por parte
deste, conscientemente, a crença de que se trata de um texto objetivo e que representará a
realidade tal como ela se apresenta materialmente, 2) a ficção pressupõe uma alteração,
reorganização, transformação, rompimento ou qualquer equivalente semântico do mundo real
que lhe fornece os subsídios necessários para tornar o imaginário difuso em uma configuração
temática determinada, cujo suporte é linguístico-textual, 3) o processo de seleção e organização
desta configuração na composição de um mundo possível aponta para a intencionalidade do
autor, uma vez entendido que o sentido do texto se encontra nele próprio, e não na consciência
ou na vida individual do autor (que, como vimos anteriormente, não se confunde nem com
narrador, nem com seus personagens) e 4) que, numa perspectiva analítica discursiva, faz-se
necessário atentar para as motivações sócio-históricas subjacentes e anteriores ao processo de
produção do texto ficcional, qual a relação destas com a configuração do mundo fictício
construído textualmente e que discursos presentes no contexto sócio-histórico do autor se veem
através de sua criação ficcional reproduzidos, legitimados ou contestados.
Em suma, o que podemos observar é que, de um lado, encontramos o texto narrativo,
cujos elementos linguísticos que o estruturam internamente garantem de modo suficiente seu
estatuto de narrativa; do outro, encontramos o texto ficcional, cujo estatuto de ficcionalidade
depende exclusivamente do pacto que se estabelece entre leitor e texto, sendo convencionado
previamente que não se trata de uma produção linguística cujos referentes não necessariamente
se encontram na realidade objetiva material, sendo por isso válido falamos em mundos

15
É possível que se objete esta afirmação tão peremptória se considerarmos enunciados pertencentes, por exemplo,
ao campo das ciências da natureza ou da matemática. Quando digo “1 mais 1 são 5” posso tanto estar enunciando
algo logicamente falso, como estar, conotativamente, dizendo, por exemplo, que, considerado um casal com
relações afetivas estáveis, um deles possui três amantes (ou um 2 e o outro 1 e vice-versa) – há uma canção do
grupo inglês Pet Shop Boys com o exato título One and one make five. George Orwell em seu 1984 nos apresenta
o slogan “2 +2 = 5”, um dentre outros veiculados pelo Partido na narrativa e assimilado acriticamente pelo povo a
ponto de ser considerado um fato. O argumento é: a verificação lógica e empírica de um determinado enunciado
em termos de sua validade enquanto uma verdade objetiva é ela própria uma postura extralinguística, visto que,
como nos dois exemplos acima, alterada a postura do leitor\ouvinte, mesmo um enunciado logicamente falso pode
ser entendido, conotativamente, como verdadeiro.
37

ficcionais possíveis em que a esta se veja extrapolada e, por fim, há o texto literário que se
apropria das convenções subjacentes à ficcionalidade e da estrutura narrativa, acrescidos a estes
outras formas específicas de elementos linguísticos, para adquirir o seu estatuto de literariedade.
Em termos das implicações da análise desenvolvida em nosso trabalho, atentaremos tanto para
estruturas internas linguísticas próprias dos textos literários e ficcionais, como ainda será nosso
objetivo verificar em que medida estas operam as transgressões realizadas pelo autor em seu
exercício criativo literário, a partir das quais depreendem-se as atitudes responsivas
materializadas no texto.

2.3. A perspectiva discursiva

Trataremos de expor nessa seção o arcabouço teórico analítico no qual se fundamenta a


parte de nosso trabalho dedicado à análise dos contos de FC distópica. Faremos uma breve
contextualização histórica desde o seu surgimento para em seguida apresentarmos suas
principais características, detendo-se, mais especificamente, na obra Discurso e mudança social
de Norman Fairclough (2001).
Célia M. Magalhães (2001) afirma que os estudos linguísticos em certo momento
deixaram de se preocupar estritamente com o nível frásico, em sua estrutura sintática. Isto nos
parece claro se tomarmos como exemplo os estudos de Chomsky, em que os enunciados que
correspondiam aos exemplos e os próprios “micro-objetos” de análise não tinham qualquer
preocupação em estarem situados em um contexto real de uso – sobre o que discorremos
brevemente, inclusive, em nossa parte dedicada à filosofia materialista da linguagem. Após um
momento em que outros aspectos da produção linguística passaram a ser levados em
consideração, as análises subsequentes passaram a se preocupar mais com a interação entre
falantes do que com suas produções isoladas e descontextualizadas; o contexto passa a exercer
uma função crucial no texto. Nas palavras de Helena H. Nagamine Brandão (2004:11):

A linguagem enquanto discurso não constitui um universo de signos que serve apenas
como instrumento de comunicação ou suporte de pensamento; a linguagem enquanto
discurso é interação, e um modo de produção social; ela não é neutra, inocente e nem
natura), por isso o lugar privilegiado de manifestação da ideologia. [...] Como
elemento de mediação necessária entre o homem e sua realidade e como forma de
engajá-lo na própria realidade, a linguagem é lugar de conflito, de confronto
ideológico, não podendo ser estudada fora da sociedade, uma vez que os processos
que a constituem são histórico-sociais. Seu estudo não pode estar desvinculado de
suas condições de produção. Esse será o enfoque a ser assumido por uma nova
tendência lingüística que irrompe na década de 60: a análise do discurso.
38

Podemos verificar nesta passagem ecos claros daquilo que expusemos ao tratar da
filosofia materialista da linguagem. Não por menos, pois a

[a]nálise de Discurso pressupõe o legado do materialismo histórico, isto é, o de que


há um real da história de tal forma que o homem faz história mas esta também não lhe
é transparente. Daí, conjugando a língua com a história na produção de sentidos, esses
estudos do discurso trabalham o que vai-se chamar a forma material (não abstrata
como a da Lingüística) que é a forma encarnada na história para produzir sentidos:
esta forma é portanto lingüístico-histórica (ORLANDI, 1999:19).

Apropriando-se da filosofia materialista da história, conforme se verifica nos escritos de


Marx e situando a linguagem em seu contexto real e concreto de uso com o qual estabelece uma
relação dialética, desenvolve-se então o campo da Análise do Discurso, preocupado com as
formas ideológicas, hegemônicas e de poder inscritas na linguagem e ao mesmo tempo por ela
legitimada ou contestadas. Historicamente, destaca-se como o primeiro marco desta nova forma
de compreender a linguagem a perspectiva teórica francesa, muito influenciada pelas obras de
Louis Althusser e Michel Foucault e tendo como seus principais nomes Michel Pêcheux.
Pêcheux, influenciado por Althusser, vincula a ideia dos aparelhos ideológicos do estado
e sua reflexão sobre a ideologia em si à linguagem enquanto forma de reprodução e
transformação ideológica. Para Althusser, a ideologia goza de certa autonomia relativa da base
econômica, podendo contudo legitimá-la ou questioná-la e adquire formas materiais que podem
ser entendidas tanto como complexos institucionais maiores – daí a ideia dos aparelhos – quanto
como práticas rituais individuais. Além disso, o autor parte do princípio de que é na ideologia
que os sujeitos se constituem e fixam suas posições na realidade social. Nas palavras de Pêcheux
(1997:149), “só há prática através de e sob uma ideologia” e “só há ideologia pelo sujeito e para
sujeitos”. Fairclough (2001) reconhece a contribuição de Althusser, mas questiona os métodos
de análise desenvolvidos pela linha francesa da Análise do Discurso, da qual Pêcheux é
representante. Para o autor,

[...] os textos são tratados como evidências para hipóteses sobre as FDs formuladas a
priori, contrariamente à tentativa pelos analistas de estudo cuidadoso daquilo que é
distintivo no texto e no evento discursivo. Há uma tendência semelhante na teoria
althusseriana de ênfase na reprodução - como os sujeitos são posicionados dentro de
formações e como a dominação ideológica é assegurada - em detrimento da
transformação - como os sujeitos podem contestar e progressivamente reestruturar a
dominação e as formações mediante a prática. [...] Conseqüentemente, há uma visão
unilateral, da posição do sujeito como um efeito; é negligenciada a capacidade dos
sujeitos de agirem como agentes, e mesmo de transformarem eles próprios as bases
da sujeição (id., ibid:55-6).
39

Quanto a Foucault, Fairclough (ibid:81-2) também apresenta suas contribuições, cujas


principais percepções sobre o discurso são: 1) a natureza constitutiva do discurso, 2) a primazia
da interdiscursividade e da intertextualidade, 3) a natureza discursiva do poder, 4) a natureza
política do discurso e 5) a natureza discursiva da mudança social. Fairclough aponta, porém,
para o fato de que na perspectiva adotada por Foucault, assim como em Pecheux, o sujeito
parece não conseguir realizar em suas práticas discursivas contestações às práticas e instâncias
históricas que o determinam, estando por demais determinado por estruturas engessadas cujos
processos de sua reprodução e manutenção se dão em muito maior medida do que os de
transgressão. Nas palavras de Fairclough:

As fraquezas relevantes no trabalho de Foucault têm a ver com as concepções de poder


e resistência, e com questões de luta e mudança. Foucault é acusado de exagerar a
extensão na qual a maioria das pessoas é manipulada pelo poder, ele é acusado de não
dar bastante peso à contestação das práticas, às lutas das forças sociais entre si, às
possibilidades de grupos dominados se oporem a sistemas discursivos e não-
discursivos dominantes, às possibilidades de propiciar a mudança nas relações de
poder mediante a luta, e assim por diante [...] (ibid.:82-3).

O autor aponta ainda em sua crítica à Foucault por haver não haver nas obras de Foucault
qualquer sistematização orientada para uma análise textual das formas discursivas; uma lacuna
que cabe à Análise do Discurso preencher. Conquanto se verifiquem estas críticas, Fairclough
não deixa de reafirmar a importância dada pelo autor francês às propriedades constitutivas dos
discursos e que dizem respeito a aspectos de ordem extralinguística, social, e que perpassam
inexoravelmente as instâncias textuais dos discursos.
Baseando-se nos autores supracitados, Althusser, Foucault e Pêcheux, reconhecendo-
lhes sua importância ou ainda aquilo que para Fairclough parece passível de crítica, propõe
então o autor a sua própria Teoria Social do Discurso, na qual se baseia nosso trabalho.
Inicialmente, apresenta-se sua seguinte definição de discurso:

Ao usar o termo “discurso”, proponho considerar o uso de linguagem como forma de


prática social e não como atividade puramente individual ou reflexo de variáveis
situacionais. [...] [Isto] implica ser o discurso um modo de ação, uma forma em que
as pessoas podem agir sobre o mundo e especialmente sobre os outros, como também
um modo de representação. [...] implica uma relação dialética entre o discurso a
estrutura social, existindo mais geralmente tal relação entre a prática social e a
estrutura social: a última é tanto uma condição quanto o efeito da primeira. Por outro
lado, o discurso é moldado e restringido pela estrutura social no sentido mais amplo e
em todos os níveis: pela classe e por outras relações sociais em um nível societário,
pelas relações específicas em instituições particulares como o direito ou a educação,
por sistemas de classificação, por várias normas e convenções, tanto de natureza
discursiva como não discursiva, e assim por diante (id., ibid.:90-1).
40

Vemos sem grandes dificuldades que nesta definição estão abarcadas a primazia dos
usos concretos da linguagem numa realidade sócio-histórica determinada, sua relação dialética
com a estrutura social, seu caráter constituinte desta e sua relação com instâncias não
discursivas; em plena consonância com o que vimos em Lecercle e sua proposta de filosofia
materialista da linguagem.
O que Fairclough nos apresenta de diferente com relação às outras teorias da Análise do
Discurso é seu modelo tridimensional. A partir deste modelo, o discurso é composto por três
dimensões. Trata-se, naturalmente, de uma divisão meramente didática e para finalidades
específicas de análise. As dimensões são: texto, prática discursiva e prática social, sobrepondo-
se elas umas às outras em sua realização discursiva real. Por texto, entende-se a estrutura
interna, a materialidade linguística de um discurso, seu componente verbal. Já a prática
discursiva envolve os processos de produção, distribuição e consumo dos textos em
consonância com suas respectivas especificidades sociais e históricas. Por fim, a prática social
é a instância que se relacionam aos conceitos de ideologia, poder e hegemonia. Para cada uma
destas camadas do discurso, Fairclough sugere uma forma de análise específica,
respectivamente uma análise textual, uma discursiva e uma outra social. A primeira considera
elementos linguísticos como vocabulário, gramática, coesão, estrutura textual, polidez,
metáforas, conectivos, argumentação, controle de tópicos, tomada de turnos, dentre outros. A
segunda, a produção do texto, sua distribuição, seu consumo, interdiscursividade e
intertextualidade manifesta, cadeias intertextuais, coerência e coesão, relação com gêneros
textuais, dentre outros. Por fim, a terceira dedica-se às circunstâncias organizacionais e
institucionais, estruturas sociais, ordens do discurso, efeitos ideológicos e hegemônicos,
exercícios de poder, dentre outros.
Fairclough estabelece, como vimos, uma relação entre as formas discursivas, ideologia
e hegemonia. Quanto a este último, trata-se especificamente de um conceito gramsciano.
Antonio Gramsci (1891-1937) foi um pensador italiano de grande relevância na
retomada de problemáticas postas pelo pensamento marxista no início do século XX. Nas
primeiras décadas do século passado se observava (particularmente nas fileiras social-
democratas alemãs e austríacas) uma apropriação claramente mecanicista da obra de Marx.
Postulava-se teoricamente a transição para a sociedade socialista como um resultado quase
exclusivo das transformações na estrutura econômica da sociedade e de suas forças produtivas.
Em função do caráter determinista desta postulação, as formas superestruturais (políticas,
culturais, artísticas etc) eram postuladas teoricamente como simples reflexos da estrutura
econômica. Em oposição a isto, o pensamento de Gramsci entrevia também nestas formas
41

superestruturais um espaço de conflito e de disputa entre classes. Neste espaço, observa


Gramsci, a burguesia exerce uma hegemonia simbólica que lhe mantém assegurada a
hegemonia material sobre as forças de trabalho. O filósofo italiano percebia que não se podia
falar em uma dominação política sem que se levasse em conta a forma de direcionamento social
(cf. DÍAZ-SALAZAR, 1991, p. 228). Este sentido de direcionamento, condução, está presente
nas origens etimológicas do termo hegemonia – do grego eghesthai – de que parte Gramsci.
Dito de modo satisfatoriamente sintetizado:

Na história da luta de classes, a hegemonia de uma classe depende, essencialmente,


do modo como seu domínio sobre a produção material e sobre o conjunto das forças
produtivas e destrutivas se desenvolve como domínio sobre a produção e a circulação
de ideias, sobre a formação da consciência socialmente determinada e,
consequentemente, sobre o conjunto de organizações e instituições da sociedade civil
e sobre o poder político do Estado. Sem isso, o domínio de uma classe social sobre os
meios da produção social da vida teria de se afirmar permanentemente pela coerção e
pela violência; não caberia, neste caso, falar em hegemonia, mas em dominação direta,
exercida permanentemente pelos meios mais brutais (DANTAS, 2008:92-93).

Portanto, o que se cabe verificar na instância da prática social do discurso é a forma através da
qual uma determinada produção simbólica contribui para a manutenção de uma determinada
estrutura social em que se verifique uma assimetria de poder – ou uma desigualdade de classe,
dito a um modo mais tradicionalmente marxista; estas, por sua vez, legitimadas, não mais como
anteriormente graças a formas imediatas de coerção, mas através de um complexo simbólico
convincente o bastante para que os próprios indivíduos reproduzam formas de consciência que
mantenham uma configuração social na qual estes se vejam, em alguma medida, subjugados.
Quanto à ideologia, Fairclough, tal como Pêcheux, apropria-se das reflexões de
Althusser ao considerá-la como dispondo de uma existência material, interpelando e
constituindo os sujeitos e materializada através dos aparelhos ideológicos do estado. Questiona-
se, contudo, a força que a ideologia possui enquanto “cimento social”, acabando por deixar de
lado, ainda que o pressuponha, as práticas discursivas transformadoras ou ainda as próprias
contradições internas da ideologia – crítica semelhante àquela direcionada a Foucault.
Fairclough admite que a ideologia contribui para a legitimação e a reprodução das relações de
dominações em uma sociedade, mas foca antes sua atenção na luta discursiva, uma vez que os
sujeitos, ainda que constituídos através da ideologia, são também criativos e podem incorporar
significações e práticas sociais e discursivas que vão de encontro às relações de poder vigentes.
O grande diferencial na Análise do Discurso, conforme proposto por Fairclough e outras
teorias precedentes, é o destaque que o autor dá para o papel transformador do sujeito, para
além das determinações sociais e ideológicas que são inexoravelmente impressas em seus
42

discursos e práticas, mas que podem, ao mesmo tempo, ser por estas questionadas. Nas próprias
palavras do autor:

[...] os sujeitos são posicionados ideologicamente, mas são também capazes de agir
criativamente no sentido de realizar suas próprias conexões entre as diversas práticas
e ideologias a que são expostos e de reestruturar as práticas e as estruturas
posicionadoras (ibid:121).

Não por menos o próprio título de sua obra Discurso e Mudança Social. A questão da
mudança é um tópico extremamente caro ao autor, que diz:

À medida que os produtores e os intérpretes combinam convenções discursivas,


códigos e elementos de maneiro nova em eventos discursivas inovadores estão, sem
dúvida, produzindo cumulativamente mudanças estruturais nas ordens de discurso:
estão desarticulando ordens de discurso existentes e rearticulando novas ordens de
discurso, novas hegemonias discursivas. Tais mudanças estruturais podem afetar
apenas a ordem de discurso 'local' de uma instituição, ou podem transcender as
instituições e afetar a ordem de discurso societária (ibid:128).

Por esse motivo destacamos o caráter contra-hegemônico, sobre o qual falamos


anteriormente, presente, como apresentaremos no capítulo dedicado a suas análises, nas obras
selecionadas, cabendo ainda à própria crítica literária lhes ampliar o sentido e situar
historicamente suas representações, não somente para contribuir com o conhecimento histórico
de suas respectivas épocas, mas com vistas também a reflexões sobre a própria
contemporaneidade, entendido que muitas das questões que se colocavam anteriormente à luz
do dia ainda permanecem em alguma medida latentes e com claras reverberações em tempos
atuais.
Em suma, acreditamos que a proposta de Fairclough nos oferece subsídios teóricos
consoantes com as características de uma filosofia materialista da linguagem. Com a concepção
tridimensional do discurso, acreditamos que não somente atingimos os aspectos de natureza
histórica, social e ideológica inalienáveis do uso da linguagem em contextos reais de
comunicação, bem como não deixamos de lado a constituição verbal própria das formas
discursivas, isto é, seus elementos internos de coesão e coerência, vocabulário, relações
semânticas, metafóricas, enfim. Se o contexto imprime suas marcas, é preciso que entendamos
como se realiza textualmente esta operação. E se ao mesmo tempo a obra literária, como é nosso
caso, constitui-se enquanto parte material da realidade transformando-a e modificando-a, ela o
faz de igual modo, também textualmente.
43

3. DO BOM LUGAR AO FUTURO CATASTRÓFICO

Como apresentamos inicialmente na introdução de nosso capítulo, há uma relação que


se estabelecem entre a literatura de FC e os conceitos de utopia e distopia. Sem nos voltarmos
agora para a FC enquanto gênero literário específico, o que se realiza nas obras do gênero é
uma funcionalização ou apropriação literária do conceito de distopia, ou, dito de outro modo,
do discurso distópico. Para fins da apresentação de nossa reflexão, estabelecemos entre conceito
e discurso uma distinção semântica central: enquanto a ideia de conceito concebe a coisa em si
em suas características formais mais específicas, o discurso é entendido aqui como algo
verbalmente materializado em um determinado momento histórico. Neste sentido, esclarece-se
a distinção feita entre a primeira (Sobre o conceito de utopia) e segunda seção (O discurso
utópico ao longo da história) deste capítulo: naquela serão apontadas algumas reflexões acerca
dos elementos fundadores do conceito de utopia para em seguida verificar como ele adquiriu
formas materiais discursivas específicas ao longo da história. Esta mesma distinção será feita
na terceira seção (A virada distópica). Como veremos, dada a razão de anterioridade
cronológica, o percurso para a compreensão da distopia não poderia ser iniciado a não ser pelo
da utopia, o que justifica a ordenação dos elementos no título e seções subsequentes.

3.1. Sobre o conceito de utopia

A primeira consideração a ser feita sobre o conceito de utopia diz respeito às suas
utilizações mais comuns e que, naturalmente, nem de longe se aproximam de seus traços mais
característicos e de todas as reflexões dele decorrentes. Referimo-nos à apreciação pejorativa
do termo, que se tornou sinônimo de fantasia, em seu sentido negativo, entendido como mera
ilusão ou como algo irrealizável concretamente. “Utopia” se tornou uma etiqueta de fácil uso
para a rotulação mais gratuita de qualquer ideia ou conjunto de ideias que vejam o mundo como
algo a ser transformado, que proponham algum tipo de mudança concreta. Esta recusa em se
pensar o para além do aqui e agora, como veremos adiante de modo mais aprofundado, deve
ser entendida como uma atitude consciente ou inconsciente de manutenção do estado de coisas
tal qual elas se encontram; uma legitimação, intencional ou cínica, do status quo.
Considerado isto, verifiquemos isoladamente a palavra utopia. Em termos cronológicos,
temos em Thomas More o primeiro de seus usos, com o título de sua principal obra A Utopia,
publicada em 1516 (retornaremos a ela na próxima seção deste capítulo). O neologismo, como
sabido, tem sua origem como a junção dos termos gregos οὐ (significando não, negação e que
44

se reduz a “u”) e τόπος (lugar, região) acrescida do sufixo –ia, também indicando lugar.
Conforme aponta Vieira (2010:4), o termo em si apresenta um duplo movimento de afirmação
e negação – afirmação por conta do acréscimo final –ia e negação por conta de seu prefixo.
Entendida a sua forma, é preciso que nos atenhamos ao conceito. Para tanto, nosso texto
se apropria a partir de agora das reflexões realizadas por alguns dos principais autores que
lançaram seus olhares sobre a utopia e que julgamos poderem contribuir com elementos
fundamentais para uma compreensão mais ampla sobre esta. Consideradas as perspectivas de
cada autor em particular, apresentaremos ao final uma síntese própria de nosso trabalho, a qual
esperamos que contribua para os estudos sobre a utopia.
Vieira (ibid.), além de ressaltar o duplo movimento mencionado acima, destaca a tensão
existente entre os dois termos cunhados por More à época da publicação de sua obra: eutopia e
utopia. A primeira, também um neologismo, pode ser traduzida como o bom lugar,
considerando o prefixo eu- (do grego, feliz, bom) e figura em um poema publicado ao final do
texto d’A Utopia16, remetendo-se à ilha. Concebendo estes dois conceitos, More estabelece
assim que o “bom lugar” é, a um só tempo, o “não lugar”. Instaura-se assim uma contradição
fundamental ao conceito da utopia – se More consegue, utilizando seu potencial imaginário,
conceber, sob a forma literária, um ambiente em que as expectativas de uma vida melhor se
vissem realizadas, esta superação positiva assenta suas fundações precisamente no nível da
ficção.
Considerado isto, Vieira (ibid.:6) aponta para a existência de quatro características para
o conceito de utopia: 1) a utopia apresenta o conteúdo de uma determinada sociedade cuja
organização é superior ou mais desejada do que aquela presente à época do autor, 2) constituída
enquanto gênero literário, trata-se da forma através da qual a imaginação utópica se vê
cristalizada, 3) a utopia dispõe de uma função utópica, na medida em que haja um impacto a
ser causado nos leitores que os instigue à ação17 e 4) o desejo por uma vida melhor, causado
por um descontentamento face à sociedade em que se vive.
Esta organização superior, imaginada e motivada pela esperança de tempos melhores,
não se realiza a partir de forças divinas atuando em nome da transformação terrena. Como
destaca a autora, as sociedades utópicas são frutos da ação humana e concebidas para os

16
Nem todas as edições da obra trazem consigo este poema. Sugerimos a da Cambridge University Press de George
M. Logan e Robert M. Adams.
17
Cabe aqui a citação de Lacroix (1996:98), quando afirma que “[...] a realização projetada de um conceito pensado
como imagem estimula a ação real. E então Utopia, da qual dissemos que é paradigma da ação, é também o que
pode desencadear uma ação”.
45

humanos – o que não é qualquer surpresa considerando o humanismo renascentista que cercava
More.
Tomada em sua aparente perfeição, a utopia pressupõe por parte daquele que a
materializa textualmente a observação dos aspectos sociais a serem transformados e uma
capacidade criativa tal para organizar, sob a égide da força imaginária, um lugar em que estes
aspectos sociais deficientes se vejam superados. Para tanto, afirma a autora (op. cit.:6), é
preciso, entretanto, que a ficção utópica não desafie os limites da lógica, devendo ser gradual a
passagem do mundo real para o ficcional. Relevante percebermos aqui que, no texto utópico,
não somente deve o leitor estabelecer com o texto o pacto da suspensão da descrença (como
vimos no capítulo anterior quando tratamos do texto ficcional) para que o mundo descrito se
lhe torne plausível, como também é esperado por parte do autor que o leitor compartilhe com
ele a esperança de que, de alguma forma, aquela sociedade ideal possa ser atingida –
reafirmando-se com isto a função utópica anteriormente citada.
Um segundo autor que não poderia deixar de ser mencionado em nosso texto é Karl
Mannheim, um dos maiores nomes da chamada Escola de Frankfurt, composta por cientistas
sociais, cujo maior legado foi ter ampliado a discussão de temas contemporâneos a partir de
uma atualização, se podemos assim dizer, das teorias marxistas que, em suas formas mais
tradicionais, pareciam não mais dar conta de um mundo que em muitos aspectos já não mais
correspondia àquele de Marx.
Mannheim é o autor de Ideologie und Utopie, obra publicada em 1929 e da qual
tomaremos tão somente as ideias que julgamos mais relevantes para a discussão aqui
apresentada18.
O autor alemão (1954:173) nos apresenta a definição do que seria um estado de espírito
utópico: trata-se daquele que é incongruente com a realidade objetiva na qual ele ocorre e que
se orienta para elementos que não existem nesta. Esta orientação, porém, só se torna utópica
quando, por meio dela, tenciona-se romper com os limites da ordem das coisas existentes. Entre
esta ordem e a utopia estabelece-se uma relação dialética, na medida em que

[...] toda era permite que surja (situada em diferentes grupos sociais) aquelas ideias e
valores nas quais estejam contidas de modo condensado as tendências não realizadas
ou satisfeitas que representam as suas necessidades. Estes elementos intelectuais

18
Mannheim estabelece uma diferenciação entre a ideologia e a utopia. Dito de modo sucinto, tanto a utopia quanto
a ideologia são formas de pensamento que compartilham uma forma transcendental em comparação com a
realidade que as engendra. Entretanto, cabe à primeira a tarefa de transformar a realidade histórica existente em
uma outra que esteja mais de acordo com seus pressupostos (cf. MANNHEIM, op. cit.:176). Não nos
aprofundaremos neste ponto visto que seria necessário discorrer mais amplamente sobre o conceito de ideologia
não somente em Mannheim como em Marx e outros autores que se apropriaram do termo.
46

tornam-se então o material explosivo para que se rompam os limites da ordem


existente. Em uma tal ordem, surgem Utopias que, por sua vez, rompe os liames da
ordem existente, deixando-a livre para se desenvolver na direção de uma outra (id.,
ibid.:179) [tradução própria]19.

Neste sentido, uma compreensão plena da utopia requer que se compreenda também a situação
estrutural do estrato social que vocaliza um determinado desejo utópico. Por conta disto, ocorre
que, para o autor, é sempre o grupo dominante em uma dada formação social que caracterizará
um determinado conjunto de ideias como sendo utópica, isto é, o caráter irreal destas ideias ou
ainda seus traços transformadores é salientado por aqueles a quem interesse ou não tal
transformação. Assim, “[q]uando um grupo em ascensão percebe a possibilidade de romper
com a ordem social que os oprime, tem-se aí um terreno fértil para o surgimento de uma
mentalidade que buscará romper com tal ordem” (MAZUCATO, 2013:194).
Fredric Jameson também traz apontamentos relevantes acerca do conceito de utopia.
Também vinculado à tradição marxista, Jameson tornou-se um renomado teórico dos chamados
estudos culturais e um forte nome dentro da crítica literária. Uma de suas obras que nos é central
é Archaeologies of the Future – The Desire Called Utopia and Other Science Fictions,
publicada em 2005 e cujo título saltaria aos olhos de qualquer pesquisador que se debruçasse
sobre utopia e\ou FC – precisamente nosso caso. O tema da utopia, repetidamente analisado por
Jameson, não se limita, a esta obra e nos remeteremos também a outros escritos do autor.
O primeiro aspecto levantado pelo americano e que gostaríamos de apontar aqui é a
distinção por ele feita entre um programa utópico e o impulso utópico (JAMESON, 2005:3).
Quanto ao primeiro, esse coloca como tarefa a transformação social concreta, cujos resultados
são imaginados como ideais por parte daqueles que compartilhem deste programa. Trata-se de
uma proposta de transformação de caráter totalizante e que se realiza partir de um confronto
com a realidade que se realiza com limites próprios e estabelecendo sempre uma distinção entre
o utópico e o não-utópico. Já o impulso utópico, enquanto alegoria, não corresponde a uma
práxis utópica determinada e materializa-se sob a forma de fragmentos dispersos, expressando
a satisfação do desejo por um estado de coisas melhor. Chega-se a este impulso pela via
hermenêutica, através de um exercício interpretativo em que sejam decifrados pistas e traços de
um desejo utópico tornado manifesto através de uma determinada produção textual (cf. id.,
2010:25-6).

19
No original em inglês: “(…) every age allows to arise (in differently located social groups) those ideas and
values in which contained in condensed form the unrealized and the unfulfilled tendencies which represent the
needs of each age. These intellectual elements then become the explosive material for bursting the limits of the
existing order. The existing order gives birth to Utopias which in turn break the bonds of the existing order, leaving
it free to develop in the direction of the next order of existence”.
47

Há de se considerar ainda a relação entre a utopia e a política, entendida aqui em termos


institucionais mais específicos, e não de modo mais abrangente como toda e qualquer relação
interpessoal. Para Jameson, a utopia emerge no momento da suspensão do elemento político.
Isto é, quando o horizonte de transformações não se vislumbra mais a partir de caminhos
institucionais tradicionalmente estabelecidos, quando a luta política já não apresenta qualquer
possibilidade de transformação do status quo, eis o momento de surgimento da imaginação
utópica, reconfigurando a realidade objetiva em suas especificidades institucionais,
reorganizando-a de modos os mais impensáveis. Nas palavras do autor: “a realidade parece
maleável, mas não o sistema; e é esta distância entre o sistema imutável e a inquietação
turbulenta do mundo real que parece descortinar um momento de livre exercício das ideias e da
criatividade utópica, seja na mente em si mesma ou na imaginação política (id.:2004)” [tradução
própria]20.
Esta perspectiva nos auxilia a compreender o caráter negativo da utopia. Conforme
aponta o autor, para além de permitir que tenhamos contato com um mundo onde as
contradições sociais do momento histórico do autor se vejam superadas, a utopia nos coloca
também diante de nossa incapacidade em atingir um tal nível de qualidade. Ela nos faz lembrar
que estamos aprisionados em um presente que não é utópico e sem qualquer historicidade ou
perspectiva de futuro (id., ibid.). Por outro lado, ao mesmo tempo e de modo complementar, há
uma condição objetiva prévia de que a situação social que se vê superada positivamente através
da utopia admita uma solução ou a coloque como possível. Sobre o que Marx (2008:48) já dizia:
“a humanidade não se propõe nunca senão os problemas que ela pode resolver, pois,
aprofundando a análise, ver-se-á sempre que o próprio problema só se apresenta quando as
condições materiais para resolvê-lo existem ou estão em vias de existir”. Isto significa dizer
que o impulso utópico não nos possibilita simplesmente representações de mundos perfeitos,
mas de mundos a serem interpretados como virtualmente possíveis. Trata-se, segundo o autor,
de uma operação de ampliação dos limites da imaginação acerca do futuro, possibilitando assim
que, mesmo por meios ficcionais, possamos ultrapassar limites que na realidade objetiva
colocam-se como intransponíveis (cf. JAMESON, 2010:23).
Por último, convém mencionarmos aqui Ernst Bloch, autor da grandiosa obra O
Princípio Esperança (1959), cuja influência sobre os estudos da utopia é das mais importantes.
É necessário dizer aqui que em virtude da extensão do trabalho e da opção por tentar dialogar

20
No original, em inglês: “[…] reality seems malleable, but not the system; and it is that very distance of the
unchangeable system from the turbulent restlessness of the real world that seems to open up a moment of ideational
and utopian-creative free play in the mind itself or in the political imagination”.
48

com o máximo de autores possíveis, restará para as próximas linhas apenas centelhas das
reflexões proposta por Bloch em sua obra.
Logo em seu prefácio, Bloch (2005, I:14) atesta que “[n]enhum ser humano jamais viveu
sem sonhos diurnos”. Diz-nos o autor, que

[...] os seres humanos de forma alguma sonham apenas à noite. Também o dia possui
bordas crepusculares, também ali os desejos se saciam. Diferentemente do sonho
noturno, o sonho diurno desenha no ar repetíveis vultos de livre escolha, e pode se
entusiasmar e delirar, mas também ponderar e planejar. De maneira ociosa (que,
contudo, pode ser muito semelhante à da Musa e de Minerva), ele persegue idéias
políticas, artísticas, científicas. O sonho diurno pode proporcionar idéias que não
podem interpretação, e sim elaboração – ele constrói castelos de vento com as plantas
já desenhadas e nem sempre meramente fictícias (ibid.:88).

Assim, é inerente ao homem não somente contemplar a realidade que o cerca, mas ser capaz de
transformá-la, melhorá-la, superá-la. Um olhar à frente é sempre lançado, um novum mantém-
se sempre como possível: “[...] a essência mesma do mundo situa-se na linha de frente (id.,
ibid.:28)”. E é por nos situarmos na linha de frente que a imaginação pode então operar.
Vislumbrando-se algo melhor que aquilo do que dispomos, ocorre então um desejar. Desejando
o imaginado, o que antes era tão somente imaginação torna-se um ideal, e quanto mais essa o
for, tanto mais o imaginado será desejado. Assim ocorre à esperança, um afeto expectante, com
uma “intenção pulsional de amplo alcance, cujo objeto pulsional não está disponível na
respectiva acessibilidade individual e tampouco no mundo ao alcance da mão, tendo lugar,
assim, ainda na dúvida de sua finalização ou de sua ocorrência (id., ibid.:76-7)”. A esperança,
enquanto afeto, “[...] é a mais humana de todas as emoções e acessível apenas a seres humanos.
Ela tem como referência, ao mesmo tempo, o horizonte mais amplo e mais claro. Ela representa
aquele appetitus no ânimo que não só o sujeito tem, mas no qual ele ainda consiste
essencialmente, como sujeito não plenificado (id., ibid.:77)”.
E quanto mais consciente estivermos daquilo que, estando à frente de nós, olhamos,
tanto mais aguçado este olhar se torna. É aí que a esperança adquire a sua função utópica, cuja
fantasia distingue-se da fantasia quimérica. Pois só a primeira é capaz de forjar para si um ainda-
não-ser que pode ser esperado (cf. id., ibid.:144). Surge então o conceito de utópico-concreto,
que não se confunde com o sonhar utópico-abstrato – ecoa aqui a ideia de uma práxis
transformadora sintetizada por Marx em sua décima primeira tese a Feuerbach21. E não por
menos. Para Bloch (ibid.:20),

21
Eis a célebre frase de Marx: “Os filósofos limitaram-se a interpretar o mundo de modos diferentes; o que
importa, porém, é transformá-lo”.
49

[a] filosofia marxista, como aquela que finalmente se comporta de modo adequado
frente ao devir e ao que está por surgir, conhece igualmente todo o passado em sua
amplitude criativa, porque ela não conhece nenhum outro passado a não ser o ainda
vivo, a ainda não liquidado. A filosofia marxista é a do futuro, portanto também a do
futuro no passado. Ela é, assim, nessa consciência de linhas de frente unidas, teoria-
práxis viva da tendência compreendida, teoria-práxis afeita ao evento, conjurada com
o novum.

Verifica-se ainda em Bloch a forte presença do componente histórico, a partir do qual


as fantasias convertem-se em utópico-concreto. Se para o autor alemão o desejo daquilo que
ainda não é deve ter efeitos transformadores reais, estes desejos mesmos não escapam à
materialidade histórica que, ainda que transcendida em imaginação, imprime-lhes seus limites.
Pois, “por mais pessoalmente que seja desenvolvido, o sonho contém a tendência de seu tempo
e da subsequente expressão em figuras [...]. Todas as possibilidades somente alcançam a
viabilidade dentro da história; também a novidade é histórica (id., 2005, II:36)”.
Considerado o exposto, apresentaremos aqui, a partir das leituras mencionadas e de
tantas outras que não se apresentam manifestadamente, os elementos que caracterizam o
conceito de utopia. Como já dito, não se trata de uma definição conclusiva, mas sim de uma
que satisfaça as necessidades de nosso trabalho, com todas as implicações daí decorrentes. Dito
isto, podemos aqui afirmar que: 1) a utopia é uma superação positiva do status quo da época
em que se realiza, 2) é válida a distinção entre programa utópico e impulso utópico; o primeiro
vincula-se a um conjunto de perspectivas de atuação prática na realidade e o segundo pode ser
verificado através de um processo hermenêutico em produções simbólicas e culturais, 3) a
utopia é um estado de espírito vinculado a um processo imaginativo e que se materializa em um
suporte textual verbal, 4) estes estados de espírito e processos imaginativos não se desvinculam
das realidades históricas que os engendra sendo por elas sempre determinado; não há utopia
fora da história, 5) a avaliação de que a utopia é algo irrealizável, quimérico – portanto,
indesejado – ou algo que deve ser realizado, que se deseja realizar com vistas a uma superação
das contradições presentes numa realidade histórica dada diz respeito ao posicionamento social
dos grupos que a promovem ou que a rechaçam; como se verifica na história, os grupos sociais
dominantes tendem a rejeitar qualquer processo de transformação que os retire de uma tal
condição, 6) a utopia deve, portanto, ser incongruente com a realidade, dispor de um desejo de
transformá-la; ainda que aponte nesta mesma realidade as contradições a serem superadas – e
como fazê-lo – para se atingir o bom lugar, 7) cabendo assim falarmos no caráter negativo da
utopia que reafirma estas contradições, 8) mas que, a um mesmo momento, pretende despertar
no leitor um impulso utópico equivalente, convidando-o a questionar e agir; 9) e, por fim, a
50

utopia se encontra em estreita relação com a esperança, entendida aqui enquanto componente
ontológico do ser humano que nunca se abstém de pensar o futuro como algo melhor que o
presente e que, motivado por este olhar à frente, dispondo do impulso utópico que lhe é
intrínseco, é capaz de gerar formas utópicas.

3.2. O discurso utópico ao longo da história

Nesta seção, apresentaremos de forma resumida algumas das obras que, ao longo da
história, podem ser consideradas como materializações verbais do impulso utópico. Não se trata
aqui, devemos dizer, de fazer uma historiografia da utopia, para o que já existe literatura
recomendável22. Estabeleceremos neste momento uma relação entre a obra Genealogia
dialética da utopia de Carlos Lima – recorrendo a outras sempre que julgarmos necessário – e
o conceito de modernidade apresentado por Koselleck para então, a partir desta, apresentarmos
nossa leitura acerca do desenvolvimento do discurso utópico ao longo da história. Nossa
perspectiva, seja dito novamente, não se propõe a ser conclusiva nem pôde ser exaustivamente
colocada à prova ao longo do trabalho dada sua extensão; ela servirá, porém, de ponto de partida
para a reflexão desenvolvida na próxima seção e que nos permitirá inserir a ideia de utopia em
uma continuidade histórica mais ampla.
Como apontamos anteriormente, a utopia, enquanto termo específico nomeando um
determinado conceito, tem seu surgimento com a publicação d’A Utopia de Thomas More em
1516. Nela, o escritor constrói ficcionalmente a ilha de Utopia, situada em algum lugar
desconhecido do planeta onde os assuntos políticos são discutidos às claras em assembleias,
onde todos possuiriam um trabalho – de modo que assim não caberia a um mais trabalho por
conta do outro não dispor de nenhum, onde não há propriedade privada; enfim, boa parte dos
problemas sociais e suas origens à época do autor viam-se superados em seu texto literário. Sem
querermos nos aprofundar na obra, a qual já foi e continua sendo objeto de estudos de inúmeros
autores, o que cabe ser destacado aqui é a tensão presente entre o mundo ficcional literário e a
realidade objetiva. Entre estes dois elementos, estabelece-se uma tensão presente já desde o
título da obra, conforme vimos na seção anterior. Cabe aqui citarmos Coelho (1980:18):

Se Thomas More escolheu a fabricação desta palavra foi porque a Inglaterra de seu
tempo era um lugar onde não apenas inexistia a liberdade de expressão como também

22
Ver The Story of Utopias de Lewis Mumford, Utopian Thought in the Western World de Frank E. Manuel e
Fritzie P. Manuel, além das mencionadas por Carlos Lima, a cuja obra nos remetemos neste trabalho, L’Utopie et
les utopies de Raymond Ruyer e Historie de l’utopie de Jean Servier.
51

a de pensamento – e as idéias e comentários de More eram tão “subversivos”, mesmo


sendo ele um homem do poder, que, para evitar maiores dissabores, ele acabou
situando sua imaginação de uma vida segundo ele melhor num lugar que não existia,
no nada: em Utopia

Podemos falar aqui em uma impossibilidade histórica para que as ideias de More pudessem ser
transpostas em um programa de ações políticas mais específico 23, cabendo ao impulso utópico
do autor ter se convertido exclusivamente em uma forma literária; o que, por outro lado,
instaurou-se como a fundação da utopia enquanto um gênero literário específico, influenciando
a posteriori outras formas textuais literárias semelhantes, proporcionando assim um formato
válido e digno de ser reproduzido para que se tornassem manifestas ideias utópicas.
Contudo, o autor inglês não se coloca historicamente como a origem do pensamento
utópico. Será na cultura grega e em suas produções literárias que poderemos localizar aquela
que pode ser considerada a primeira obra com traços utópicos de que se tem registro; trata-se
do poema Trabalhos e dias de Hesíodo, que teria vivido durante o século VIII a.c. (cf.
LAURIOLA, 2009, p.93; JACOBY, 2007, p. 73). Em sua obra, o poeta grego discorre sobre a
“Idade do Ouro”, uma época em que não havia entre os homens qualquer tipo de conflito ou
preocupações, onde predominavam a paz e a justiça. Não obstante, é com “A República” de
Platão que teremos a primeira obra dedicada exclusivamente à reflexão sobre a cidade ideal, e
com considerável nível de sistematicidade. A obra pode ser entendida como uma reação do
autor grego às transformações causadas pela guerra do Peloponeso e que resultaram na derrota
de Atenas, dando início a seu declínio. Platão concebe, então, sua república a partir de sua
divisão em classes sociais, nas quais os homens seriam distribuídos com base em suas funções.
São separados aqui governantes, auxiliares e o resto da população. Mais especificamente, e
como pertencente à primeira destas classes, Platão entende a figura do filósofo como aquele
que estaria em condições de dirigir seu estado perfeito. Conforme sintetizado por Petitfils
(1977:14):

[...] Platão pretende propor um modelo de cidade capaz de tornar os seres humanos
perfeitamente virtuosos. Para atingir este louvável objetivo, considera indispensável
separar o poder político do poder econômico. É por essa razão que retoma a divisão
em três categorias, feita por Hipódamo: os guardiães do Estado, os militares e os
trabalhadores, que se recrutariam por seleção natural e por cooptação. Todas as

23
Muito se fala de sua obra, mas não são muitas as vezes em que os olhares se voltam para o indivíduo Thomas
More. Em sua trajetória biográfica mesma podemos novamente ver a tensão que a sua utopia trazia consigo. Cabe
quanto a isto a passagem de Jacoby (2007:87): “O mundo muda depois de More escrever a Utopia. O luteranismo,
o anabatismo e as guerras camponesas varreram a Europa. O utopismo, que outrora parecia inócuo a More, agora
lhe parece uma especulação perigosa [...]. Na Utopia More defende, em parte com seriedade e em parte com
jocosidade, um tipo de comunismo. Mas, com a afluência da Reforma, ele passa a atacar o comunismo dos
anabatistas como uma heresia horrível – e a defender os ricos proprietários”.
52

riquezas seriam concentradas na terceira classe de cidadãos: a dos artesãos,


trabalhadores e comerciantes, que se dedicariam a atividades de produção e poderiam
ter propriedades privadas.

Mantendo-nos ainda no contexto da filosofia grega, é possível ainda identificarmos o


caráter utópico presente nas obras de Aristóteles, conforme nos aponta Carlos Lima (2008) em
seu Genealogia dialética da utopia, apoiando-se especificamente nas obras Ética e Política do
estagirita. Dito de modo bastante resumido, a primeira nos apresentaria uma teoria para a
aristóbios [vida melhor] e a segunda, uma teoria para a aristopólis [cidade melhor]. Estes são
dois elementos que se vinculam, na medida em que o bem do indivíduo enquanto aquele
responsável por suas condutas não se desvincula do sentido da pólis, que podemos entender,
mutatis mutantis, como a figura do Estado. O homem, enquanto ser social, é aquele que pertence
à pólis, que é cidadão, tornando-se assim humanizado. Ademais, Aristóteles entende que a
felicidade se encontra na prática completa da virtude, sendo esta a sabedoria prática da
prudência [phronésis] (cf. id., op. cit.:48).
Não cabe aqui nos aprofundarmos em cada obra em particular. Gostaríamos apenas,
neste ponto, de ressaltar dois aspectos centrais. Considerando os filósofos gregos, podemos
dizer que eles correspondem a um primeiro momento do pensamento utópico diretamente
vinculado ao pensamento filosófico; ao passo que é a partir de Thomas Morus que a utopia se
organiza em sua forma literária e passa a servir de matéria para a produção de obras narrativas.
Estas duas formas de materialização do conceito da utopia têm em comum o fato de não
pressuporem uma realização real e histórica dos ideais sobre os quais elas se apoiam – não
podemos dizer que a estas corresponde um programa específico. Isto é, trata-se de um exercício
ora de reflexão filosófica, ora de criação artístico-literária, sem uma perspectiva de aplicação
histórica concreta. Considerando as categorias anteriormente apresentadas, não se
configuravam enquanto programas utópicos concretos, por mais transcendentes à realidade que
o fossem.
Este quadro começa a ser paulatinamente alterado na medida em que o homem se lança
à história enquanto agente de seu destino – noção tão cara ao humanismo renascentista. Mesmo
com estreitas vinculações religiosas, é com Thomas Münzer que vemos o projeto utópico se
convertendo em ação efetiva. Este teólogo alemão foi uma das figuras mais importantes durante
as chamadas Guerras Camponesas, entre 1524 e 1525. Münzer via no campesinato uma força
transformadora, a partir da qual se formaria uma nova sociedade rebelando-se contra a opressão
por parte dos príncipes – ainda que a isso subjazesse uma determinação de caráter religioso.
Nas palavras de Lima (ibid.:82):
53

Pela primeira vez na história, a utopia emerge dos estratos oprimidos da sociedade.
Não é mais um filósofo que pensa a cidade perfeita em nenhum lugar ou nas regiões
supracelestes: são as condições concretas da sociedade da época que levam um gripo
social a se rebelar contra a opressão.

A materialidade histórica do projeto utópico ganhará posteriormente novos contornos


com o pensamento de Rousseau. O filósofo francês estabelecia uma distinção entre o homme
naturel e o homme artificiel, e opunha-se com isso à teoria hobbesiana de que o homem seria
naturalmente mau. É a esta artificialidade do homem, entendida aqui como resultante das
condições sociais e de sua ação histórica, que o corrompem e o desnaturalizam. Esta
desnaturalização diz respeito à violação do princípio da liberdade – todos nascemos livres – e
da igualdade de direitos – todos somos iguais. Somente uma forma de estado que respeite estes
princípios, em que o homem-egoísta e individual se converta no homem-cidadão, em que as
vontades particulares se convertam na vontade geral, poderá fazer com que o homem se remonte
à sua pureza original (cf. ibid.:104) – eis a face utópica da obra rousseaniana. Conforme aponta
Petitfils (op. cit.:28),

[...] temos de convir que numerosos escritores revolucionários e utopistas do século


XIX copiaram de Rousseau seus argumentos contra a sociedade e os temas principais
do Discurso sobre a origem e o fundamento da desigualdade entre os homens (1754):
a inocência e a bondade primitivas do homem, o papel corruptor e nefasto da
propriedade privada, causa de guerras, crimes e misérias, o papel dos fatores
econômicos na formação de desigualdades, a aspiração a uma sociedade perfeitamente
igualitária, etc. Sob muitos aspectos, Rousseau pode ser considerado um precursor do
socialismo ou do comunismo utópico [...].

O projeto utópico, com seu imperativo de transformação da sociedade, será conduzido


então por aqueles que tentaram colocar em prática aquilo que a tradição marxista denominou
posteriormente de socialismo utópico. Temos aqui, como nos aponta Lima (ibid.:111), três
grandes nomes a serem mencionados como os grandes representantes do socialismo utópico:
Saint-Simon, Robert Owen e Charles Fourier24.
Com Saint-Simon, “um aristocrata esclarecido [...] entusiasmado pelas consequências
vertiginosas que a industrialização do mundo deixava entrever (PETITFILS, op. cit.:52)”,
nascido em 1760, temos aquilo que é considerada a primeira expressão do socialismo utópico.
Partindo do princípio de que há uma tensão crescente entre patrões e desempregados, Saint-
Simon levará adiante um projeto de unificação do corpo social industrial que aproxime os

24
Para um estudo mais aprofundado acerca destes socialistas, suas vidas e obras, ver o texto integral de Os
socialismos utópicos de Jean-Christian Petitfils, citado aqui repetidas vezes.
54

homens através de relações comerciais e econômicas que tenham como finalidade maior uma
sociedade sem luta de classes e pautada na ciência da produção. Para Engels (1987:195), porém,
o projeto possuía suas debilidades:

[...] quem haveria de dirigir e governar? Segundo Saint-Simon, a ciência e a indústria,


unidas por um novo laço religioso, um "novo cristianismo", forçosamente místico e
rigorosamente hierárquico, chamado a restaurar a unidade das ideias religiosas,
destruída desde a Reforma. Mas a ciência eram os sábios acadêmicos; e a indústria
eram, em primeiro lugar, os burgueses ativos, os fabricantes, os comerciantes, os
banqueiros. E embora esses burgueses tivessem de transformar-se numa espécie de
funcionários públicos, de homens da confiança de toda a sociedade, sempre
conservariam frente aos operários uma posição autoritária e economicamente
privilegiada25.

Já Robert Owen, “principal representante do socialismo utópico inglês do início do


século XIX (LIMA, Op.Cit.:114)”, fez de sua posição social enquanto homem da indústria uma
via de ligação entre seus impulsos por uma reforma social e o movimento operário. Owen aboliu
castigos a seus trabalhadores, criou escola para os filhos destes, idealizou a construção de
aldeias para desempregados, ocupando-os com tarefas agrícolas e industriais e ficou conhecido
por sua experiência com a colônia New Harmony, inaugurada em 1 de maio de 1825 com cerca
de 900 pessoas. Nela, Owen tentou implantar a “comunidade da perfeita igualdade”, em que
“cada qual receberia, segundo suas necessidades, a mesma alimentação, as mesmas roupas, o
mesmo alojamento, a mesma educação. Era o comunismo integral (PETITFILS, op. cit.:79)”.
A experiência acabou por sucumbir às diferenças sociais prévias trazidas por indivíduos dos
mais distintos estamentos sociais e que foram povoar a colônia. O que não impediu Engels
(ibid.:200) de afirmar que “[t]odos os movimentos sociais, todos os progressos reais registrados
na Inglaterra em interesse da classe trabalhadora, estão ligados ao nome de Owen”26.
Quanto a Charles Fourier, nascido em 1772, trata-se de um homem com duras críticas à
sociedade de seu tempo. Para Fourier, o homem não se realizava plenamente em sua natureza,
vivendo em harmonia com suas paixões, por conta da repressão moral que sofria. Mas não era

25
No original em alemão: “Wer aber sollte leiten und herrschen? Nach Saint-Simon die Wissenschaft und die
Industrie, beide zusammengehalten durch ein neues religiöses Band, bestimmt, die seit der Reformation gesprengte
Einheit der religiösen Anschauungen wiederherzustellen, ein notwendig mystisches und streng hierarchisches
„neues Christentum" . Aber die Wissenschaft, das waren die Schulgelehrten, und die Industrie, das waren in erster
Linie die aktiven Bourgeois, Fabrikanten, Kaufleute, Bankiers. Diese Bourgeois sollten sich zwar in eine Art
öffentlicher Beamten, gesellschaftlicher Vertrauensleute, verwandeln, aber doch gegenüber den Arbeitern eine
gebietende und auch ökonomisch bevorzugte Stellung behalten”. Todas as passagens aqui transcritas de Engels
(1987) tiveram suas correspondentes traduções extraídas da versão digital em Português da obra disponível em
http://www.marxists.org/portugues/marx/1880/socialismo/index.htm.
26
No original em alemão: “Alle gesellschaftlichen Bewegungen, alle wirklichen Fortschritte, die in England im
Interesse der Arbeiter zustande gekommen, knüpfen sich an den Namen Owen”.
55

somente isto. Citemos o que Engels (ibid.:196) diz a seu respeito, em extensa, porém relevante
passagem:

Fourier pega a burguesia pela palavra, por seus inflamados profetas de antes e seus
Interesseiros aduladores de depois da revolução. Põe a nu, impiedosamente, a miséria
material e moral do mundo burguês, e a compara com as fascinantes promessas dos
velhos enciclopedistas, com a imagem que eles faziam da sociedade em que a razão
reinaria sozinha, de urna civilização que faria felizes todos os homens e de uma
ilimitada capacidade humana de perfeição. Desmascara as brilhantes frases dos
ideólogos burgueses da época, demonstra como a essas frases grandiloqüentes
corresponde, por toda parte, a mais cruel das realidades e derrama sua sátira mordaz
sobre esse ruidoso fracasso da fraseologia. Fourier não é apenas um crítico; seu
espírito sempre jovial faz dele um satírico, um dos maiores satíricos de todos os
tempos27.

O nome de Fourier ganhou ainda mais destaque com a criação de seu falanstério, a célula
elementar da sociedade em que poderão se ver concretizadas as ideias do socialista francês.
Nela, a economia é predominantemente agrícola e tudo se compartilha. Em seu programa
libertário esvanece a instituição da família e os indivíduos se encontram livres para saciarem
seus prazeres sensuais; sem que contudo o amor seja posto de lado, mantendo-se esse como
uma “combinação de sentimento e de inclinação sensual, tudo isso levando a uma religião
orgiástica que cultua o deus Eros (PETITFILS, op. cit.:103)”.
Discorremos brevemente sobre estes três nomes apresentando sistematicamente as
respectivas leituras feitas por Engels em seu Die Entwicklung des Sozialismus von der Utopie
zur Wissenschaft não de modo gratuito. Estes três socialistas, a despeito das especificidades dos
projetos de cada um, constituem a etapa histórica específica na qual o impulso utópico,
manifesto através de discursos proferidos nas obras dos três, adquire um programa utópico
concreto de transformação social objetiva e engajada, de ação política efetiva. Estes três
homens, cada um a seu modo, posicionaram-se diante de uma Europa em que efervescia a
Revolução Industrial e na qual o modo capitalista de produção já imprimia seus efeitos sociais,
especialmente visíveis nas grandes cidades e em meio a uma quantidade cada vez maior de
indivíduos pertencentes à classe proletária.

27
No original em alemão: “Fourier nimmt die Bourgeoisie, ihre begeisterten Propheten von vor und ihre
interessierten Lobhudler von nach der Revolution beim Wort. Er deckt die materielle und moralische Misere der
bürgerlichen Welt unbarmherzig auf; er hält daneben sowohl die gleißenden Versprechungen der frühern
Aufklärer von der Gesellschaft, in der nur die Vernunft herrschen werde, von der alles beglückenden Zivilisation,
von der grenzenlosen menschlichen Vervollkommnungsfähigkeit, wie auch die schönfärbenden Redensarten der
gleichzeitigen Bourgeois-Ideologen; er weist nach, wie der hochtönendsten Phrase überall die erbärmlichste
Wirklichkeit entspricht, und überschüttet dies rettungslose Fiasko der Phrase mit beißendem Spott. Fourier ist
nicht nur Kritiker, seine ewig heitre Natur macht ihn zum Satiriker, und zwar zu einem der größten Satiriker aller
Zeiten.”
56

Estas tentativas de transformação foram consideradas por Marx e Engels experiências


de um socialismo utópico – entendido aqui este adjetivo em uma acepção marcadamente
negativa – e que careciam de uma compreensão mais efetiva do sistema capitalista – era preciso,
segundo Engels, situar este socialismo na realidade. Sem nos adentrarmos na filosofia marxista
de modo mais aprofundado, o que se coloca aqui é uma distinção entre as tentativas socialistas
utópicas de transformação e aquelas propostas como o socialismo moderno, científico ou real.
Isto é, em termos comparativos, podemos dizer que o programa utópico conforme proposto pelo
imperativo de transformação da realidade, conforme se verifica nas obras de Marx e Engels, se
volta de modo integral para a realidade, pois só a compreendendo de fato é que será possível
então dispor de uma condição social tal em que os impulsos utópicos possam se materializar.
Neste sentido, o projeto emancipatório e revolucionário que se encontra subjacente à filosofia
marxista, e, por extensão, às obras de Engels, e que tem por objetivo a superação do sistema
capitalista e todas as suas mazelas é o paradigma utópico de maior vinculação com a ação
histórica concreta.
Retomemos brevemente nosso percurso.
Inicialmente, temos a materialização do conceito da utopia em suas formas filosóficas
ou literárias, sem que estas pressuponham um caminho de ação histórica efetiva para que estas
se convertam em realidade. Com Münzer e outros milenaristas28 aqui não mencionados – e cabe
dizer que o após 1516 “o milenarismo se afirma como via preferencial do utopismo (LACROIX,
op. cit.:37)” – era preciso ainda que “o homem fosse conduzido por Deus para conhecer a cidade
justa e feliz sobre a terra (id., ibid.:35)”; não se tratava ainda assim do bom lugar para o homem
tornado real pelo homem. Apropriando-se em grande medida do influente pensamento
rousseariano, diversas serão as tentativas de implantação do socialismo utópico, para,
finalmente, esta forma de socialismo ser assimilada, se podemos assim dizer, e aprimorada com
uma reflexão mais utopicamente programática e com perspectivas emancipatórias e
revolucionárias mais claramente definidas; pressupostas estas por um entendimento preciso da
realidade para que esta pudesse se ver transformada através de meios adequados e efetivos com
vistas a uma tal transformação. Assim, considerando a trajetória do pensamento utópico aqui
apresentada, consideramos apresentar-se com Marx e sua filosofia o ponto mais elevado de um
movimento de lançamento do homem em direção à história, ou de uma crescente transformação
do impulso utópico materializado em formas simbólicas, literárias ou filosóficas, em um

28
O milenarismo é uma doutrina religiosa que tem por fundamento, baseando-se em leituras dos textos sagrados,
o regresso de Jesus Cristo para a formação do Reino de Deus sobre a Terra, com duração de mil anos, o que
justifica o termo.
57

programa utópico voltado para a ação política concreta, historicamente situada a ser realizada
pelo proletariado, entendido como o sujeito histórico revolucionário a quem cabia, segundo
Marx em seu tempo, as rédeas da revolução.
A este “lançar-se na história”, conforme apresentamos aqui, vincula-se estreitamente o
conceito de modernidade conforme caracterizado por Reinhart Koselleck.
Para o historiador alemão, até o século XVI predominava, por forte influência do
cristianismo e do poder do qual gozava a instituição da Igreja católica, uma perspectiva de
futuro relacionada à ideia do fim do mundo. Nas palavras do autor:

A expectativa do fim do mundo tornou-se parte integrante da própria Igreja como


instituição, de tal modo que esta pôde se estabilizar tanto sob a ameaça de um fim do
mundo que poderia acontecer a qualquer momento como na esperança da parúsia. O
eschaton desconhecido deve ser entendido como um fator de integração da Igreja, a
qual pôde, dessa maneira, colocar-se temporalmente e moldar-se como instituição. A
Igreja é, em si mesma, escatológica (KOSELLECK, 2006:26).

O final dos tempos, permanentemente sendo adiado pela Igreja, transformando a sua história
na história mesma da salvação, foi, por diversos fatores, paulatinamente perdendo espaço para
uma nova configuração de futuro. Ao longo do século XVII o Estado passou a intervir mais
ativamente frente a movimentos proféticos que adquiriam cada vez mais um caráter de ação
política mais efetiva; além de ter se desenvolvido um “antagonismo literário entre os espíritos
humanístico e cético contra os oráculos e outras superstições do mesmo tipo (id., ibid.:30)”.
Neste contexto, o futuro passa a se mostrar como um campo de possibilidades, no qual
o homem passa a ser agente de sua própria história. Isto se dá, segundo o autor, especialmente
em razão de dois aspectos: os prognósticos racionais e a filosofia da história. Relacionado com
a situação política, o prognóstico racional, partindo dos acontecimentos temporais e mundanos,
atuou como um fato de integração do Estado, ao qual passou a caber o cálculo político de
possibilidades de ações. Estas ações políticas do Estado diante dos tempos vindouros baseada
em prognósticos racionais, porém, não o tornava totalmente desprendido de seu tempo. Como
afirma Koselleck (ibid.:36):

[...] o prognóstico político tinha uma estrutura temporal estática, enquanto operasse
com grandezas naturais, cuja capacidade potencial de repetição constituía o caráter
circular de sua história. O prognóstico implica um diagnóstico capaz de inscrever o
passado no futuro. Por essa qualidade futura continuamente garantida ao passado é
possível tanto assegurar quanto limitar o espaço de manobra do Estado. À medida que
o passado só pode ser experimentado porque ele mesmo contém um elemento de
futuridade — e vice-versa —, a existência política do Estado é tributária de uma
estrutura temporal que pode ser entendida como uma capacidade estática de
movimentação
58

Seria preciso então que surgisse a filosofia da história para tornar a modernidade desligada de
seu próprio passado, projetando para si uma perspectiva de futuro inédito. Este pensamento
filosófico, produto do século XVIII de espírito iluminista, passou a entender a história como
processo e a ela se liga a noção de progresso:

[...]o "profectus" espiritual foi substituído por um "progressus" mundano. O objetivo


de uma perfeição possível, que antes só podia ser alcançado no além, foi posto a
serviço de um melhoramento da existência terrena, que permitiu que a doutrina dos
últimos fins fosse ultrapassada, assumindo-se o risco de um futuro aberto
(KOSELLECK, ibid.:316).

Tomadas estas transformações, Koselleck (ibid.:314) apresenta então a sua tese de que
“só se pode conceber a modernidade como um tempo novo a partir do momento em que as
expectativas passam a distanciar-se cada vez mais das experiências feitas até então”. Para tanto,
o historiador alemão se vale da aplicação à história de dois conceitos por ele cunhados: o espaço
de experiência e o horizonte de expectativa. Quanto ao espaço de experiência, trata-se do
passado atual em que, a partir tanto de uma elaboração racional quanto de formas inconscientes
de comportamento, incorporam-se acontecimentos e experiências que são compartilhadas na
vida social concreta e historicamente situada. Já quanto ao horizonte de expectativa, trata-se do
futuro presente que se lança ao futuro enquanto aquilo que ainda não foi experimentado e
realizado, podendo tão somente ser previsto e imaginado. Nas palavras do autor: “[h]orizonte
quer dizer aquela linha por trás da qual se abre no futuro um novo espaço de experiência, mas
um espaço que ainda não pode ser contemplado (ibid.:311)”. Caracteriza-se, portanto, a
modernidade pelo distanciamento entre o experienciado e o esperado, adquirindo este último
um coeficiente de mudança que se desenvolve com o tempo (cf. id., ibid.:317).
Tendo sido exposta uma apresentação mais abrangente do discurso utópico ao longo da
história e as reflexões de Koselleck acerca da modernidade, eis então a síntese de nosso
argumento: o desenvolvimento do pensamento utópico ao longo da história relaciona-se
homologamente ao processo de descortinamento de um tempo futuro no qual a ação divina é
substituída pela ação do homem, centrado enquanto sujeito de sua própria história, e que,
impelido por uma noção de progresso, se lança à transformação da natureza e da sociedade29.

29
O mesmo argumento pode ser visto em Ianni (2006:12): “[...] no seio da modernidade, juntamente com o
empenho em conhecer, explicar e redimir o indivíduo e o povo, está presente ou subjacente a intenção de projetar
o que pode ser o futuro, a sociedade ideal, a comunidade por excelência, a utopia; em geral, com o empenho de
exorcizar os males do presente, sublimando o que poderia ser desejável, realizando imaginariamente o que se
revela impossível no presente”.
59

3.3. A virada distópica

Como pretendemos sustentar, a modernidade foi o seio para o florescimento das utopias
que, ao longo de seu percurso histórico, lançou o homem à transformação da realidade que o
cercava, situando a si próprio enquanto sujeito histórico. Defendemos também que o ápice deste
movimento se deu com a filosofia marxista e seu respectivo projeto emancipatório e
revolucionário. Contudo, desde algumas décadas, a utopia vem sendo esmaecida e dando lugar
a um espírito de conformismo, onde pensar um amanhã superior ao hoje parece não passar de
uma fantasia que não se deve ser levada a sério. Isto se verifica nos mais diversos autores. Para
Jameson (2010:23), “(…) a bandeira da utopia foi deixada para os críticos e inimigos da
globalização do livre mercado e se tornou o grito de guerra unificador ou o significante vazio
de todas aquelas forças políticas que estejam tentando imaginar como um outro mundo poderia
ser possível” [tradução própria]30. Hayden White (2007:17), conhecido historiador, também
constata:

Numa palavra, em nosso tempo, o discurso utópico, o discurso daquilo que poderia e
deveria ser - em contraste com o discurso do que é, de qual é o caso, realidade, o real,
as coisas como elas são, etc. - este discurso não é mais desejável, não é, do ponto de
vista da razão instrumental que prevalece em nossas ciências sociais, sequer possível
[tradução própria]31.

Lacroix (op. cit.:21) se questiona: “O tempo das utopias não acabou”? E prossegue: “A época
é de duro realismo, para não dizer desesperança. Os povos parecem não ter mais projetos
grandiosos, que são até mesmo rejeitados”. E como deixar de mencionar aqui Herbert Marcuse,
que em 1967 proferiu na Freie Universität Berlin a palestra de título Das Ende der Utopie (O
fim da utopia), vindo a ser publicada em livro com o mesmo título junto a outras conferências
no mesmo ano. E as transcrições e menções a autores aqui poderiam se multiplicar.
Se por um lado pensadores apontaram para o enfraquecimento da utopia – ou mesmo
seu fim – e os “utopistas evitam dar-nos a visão de um futuro maravilhoso (PETITFILS, op.
cit.:182)” – por outro, podemos verificar a formação de um conjunto de obras literárias que

30
No original em inglês: “(…) the banner of utopia has been passed to the critics and the enemies of free- market
globalization and has become the unifying rallying cry or “empty signifier” of all those varied new political forces
who are trying to imagine how another world might be possible”.
31
No original em inglês: “In a word, in our time, utopian discourse, the discourse of “what might be” and “what
ought to be” – in contrast to the discourse of “what is”, “what is the case”, reality, the real, things as they are,
etc. – this discourse we are told is not only no longer desirable, it is not, from the standpoint of that instrumental
reason which prevails in our social sciences, even possible”.
60

passaram a situar no futuro não mais o bom lugar, mas um lugar de caos, com ares pessimistas
e fustigado com catástrofes. Eis o que a história nos mostra: o impulso utópico, manifesto
anteriormente em ficções literárias ricas em detalhes sobre a organização social perfeita, cede
espaço para a representação de futuros distópicos, manifestos igualmente em formas literárias.
Voltemos nossos olhares para o início do século XXI. “What’s behind the boom in
dystopian fiction for young readers? (MILLER, 2010)” pergunta-se aqui. “Why is Teen
Dystopian Literature on the Rise? (MEINZER, 2011)” pergunta-se acolá. Ou ainda, “Why do
apocalyptic portrayals of existence dominate teen shelves? (SARNER, 2014)”. Tantas outras
perguntas similares poderiam ser aqui transcritas. Elas figuram em seções de crítica cultural e
literária de diversas revistas norte-americanas contemporâneas. No Brasil, há também quem o
diga: “Comum no início do século XX, livros com governos controladores e falta de liberdade
voltaram às livrarias e conquistaram o gosto dos jovens que, céticos, não se identificam mais
com finais felizes (CARNEIRO, 2013)”. A despeito da incerta credibilidade do site, se
examinarmos o artigo List of dystopian literature da Wikipédia em inglês, veremos que, ao
menos à época da produção do presente artigo, a seção correspondente à produção literária
distópica das primeiras décadas do século XXI conta com quase 90 títulos; já no que diz respeito
à produção de todo o século XX, verificamos que o total das obras não chega a 130. Estes são
apenas indícios concernentes ao fenômeno do expressivo aumento no século XXI da produção
e do consumo de obras de literatura32 que trazem em suas construções narrativas o elemento da
distopia33. Eis aqui apresentados apenas alguns dos exemplos reais daquilo que, à introdução,
apresentamos como sendo a inquietação inicial de nossa pesquisa, precisamente a presença
contemporânea de uma série de produções simbólicas nas quais se vê funcionalizado o conceito
de distopia.
Registrado pela primeira vez em 1868 por John Stuart Mill em um discurso parlamentar,
o conceito de distopia poderia ser simplesmente definido por meio de sua simples contraposição
ao conceito de “utopia”, o que não nos parece um procedimento adequado 34. Um método mais
válido para esta definição parece-nos ser o que confronta eutopia e distopia. Ou seja, trata-se
da oposição entre o “bom lugar” e o “lugar ruim”, com o prefixo dis- instaurando a avaliação

32
Referimo-nos aqui a obras literárias, mas não devemos deixar de mencionar que estas narrativas ganharam suas
versões em outras formas de produção artística como o cinema, histórias em quadrinhos, séries de televisão, e
mesmo em jogos eletrônicos.
33
Quanto à produção nacional, convém citar, inclusive para fins de divulgação, as obras Cyberbrasiliana (2010)
de Richard Diegues, Admirável Brasil Novo (2011) de Ruy Tapioca, A ilha dos dissidentes (2013) de Bárbara
Morais e A torre acima do véu (2014) de Roberta Spindler.
34
Como por exemplo George Mann (2001:477) em The Mammoth Encyclopedia of Science Fiction, que afirma
ser uma distopia o oposto de uma utopia.
61

negativa. Pois a distopia apresenta um componente de materialidade – trata-se, em sua maioria,


de lugares situados no tempo (geralmente no futuro) e no espaço – que o termo utopia não
pressupõe em igual medida; cujo oposto seria tão somente topia. Dito de forma resumida,
podemos então dizer que a distopia caracteriza-se pela extrapolação negativa do status quo à
época de sua funcionalização ficcional; não é cabível falarmos aqui em superação, como quando
o fizemos quanto ao conceito de utopia.
Abordamos anteriormente o desenvolvimento do pensamento utópico desde a Antiguidade
Clássica até a proposta revolucionária de Karl Marx, no século XIX. Nos parágrafos acima,
destacamos o considerado consumo e produção de obras distópicas no século XXI. Ademais, a
imaginação literária não somente se lança a futuros em que os problemas contemporâneos aos
autores são levados às últimas consequências, como também será infligido um duro golpe no
próprio espírito utópico, que ultrapassa suas manifestações literárias. Temos aqui então dois
elementos fundamentais: a virada distópica, um turning point no qual as obras utópicas em que
se vislumbrava um futuro melhor dão lugar a outras nas quais o futuro se vê negativamente
extrapolado, e o antiutopismo, uma postura em que o impulso utópico passa a ser visto com
grande desconfiança dados os rumos que experiências sociais e políticas realizadas em nome
deste acabaram por tomar. Tratemos destes dois elementos um a um.
Davis (1984:21) aponta para o fato de que a emergência e o desenvolvimento da ciência
moderna coincidem com a emergência da utopia moderna. Quanto mais os desenvolvimentos
tecnológicos e científicos se fazem visíveis para os homens, tanto maiores tornam-se suas
expectativas de que haja, por consequência, um paralelo aprimoramento moral e social. E,
inversamente, à medida que a fé na ciência dá espaço a uma postura mais cautelosa e mesmo
desconfiada, esmaecem-se também a certeza de que o futuro traga aos homens um mundo
necessariamente melhor. Reafirmando o papel da ciência na história do pensamento utópico e
de seu sucessor distópico, Booker (1994:6) menciona que, já entre os séculos XVII e XVIII,
período de considerável ascensão da ciência moderna, o escritor Jonathan Swift já alertava
“quanto aos perigos potenciais (especialmente espirituais) de uma confiança excessiva nos
métodos científicos e tecnológicos de pensamento e solução de problemas [tradução
própria]35”. Acrescentemos que, ainda no século XIX, tanto a obra Frankenstein de Mary
Shelley, inicialmente publicada em 1818, como Erewhon de Samuel Butler, publicada em 1872,
configuravam-se como indícios de que a crença no progresso trazido pelo conhecimento não se
punha como absoluta ou livre de suspeitas. Essa tendência atinge seu ápice no século XX, e

35
No original em inglês: “[…] writers like Jonathan Swift were already warning of the potential dangers
(especially spiritual) of an overreliance on scientific and technological methods of thought and problem solving”.
62

nele o espírito distópico se impõe como motivo em diversas obras. Se anteriormente a crítica e
a descrença quanto ao progresso surgiam como discursos periféricos, neste momento elas
passam a ganhar força, e seu lócus principal será a literatura. Consideramos aqui como os
principais romances distópicos do século XX: Nós de Yevgeny Zamyatin (1924); Admirável
Mundo Novo de Aldous Huxley (1932), 1984 de George Orwell (1949); Fahrenheit 451 de Ray
Bradbury (1953); Laranja Mecânica de Anthony Burgess (1962) e ainda O caçador de
androides de Philip K. Dick (1968). E isso se selecionarmos apenas os romances, que, pela
extensão própria do formato, transformaram-se em clássicos absolutos que influenciaram e
influenciam consideravelmente a produção de obras similares. Portanto, falarmos aqui em
virada distópica significa apontar para a profusão de obras de literatura distópica acompanhadas
– e com o que estabelece uma relação dialética – do esmaecimento das representações literárias
utópicas ou mesmo do impulso utópico per se, conforme apresentamos ao início desta seção.
Caberia então nos questionarmos: que fatores teriam condicionado esta virada?
Apresentaremos aqueles que se nos apresentam como os mais relevantes.
Em primeiro lugar, há que se considerar o impacto que a desilusão com as promessas
do socialismo teve no pensamento utópico. Conforme apontamos anteriormente, o ideal de uma
sociedade sem pobreza e exploração atingiu o seu ápice de concretude em Marx e sua
perspectiva revolucionária. Porém, conforme aponta Alexander (1990:23), “a desilusão
intelectual com as progressivas promessas do socialismo e do comunismo é um dos mais
distintivos elementos que se desenvolvem ao final do século XX” [tradução própria]36. Portanto,
na mesma medida em que o socialismo foi o componente central da utopia moderna, a sua
derrocada implica a derrocada da utopia. Conquanto houvesse uma distinção entre a utopia
ficcional e as formas das teorias sociais utópicas, o descrédito quanto às últimas corresponderia
também a um descrédito quanto às primeiras (cf. KUMAR, 1993). Este argumento é endossado
por Zaki (1984:124), quando afirma que o desaparecimento do pensamento utópico coincide
com a consolidação do poder da burguesia sem que houvesse qualquer força equivalente que se
colocasse como alternativa à sua hegemonia.
Em segundo lugar, e estes são os aspectos mais evidentes, há ao longo da história do
século XX uma série de eventos nos quais a humanidade se deparou com o potencial destrutivo
da tecnologia, fruto da utilização da ciência para fins militares. Poderíamos aqui listar uma série
de conflitos armados de menores proporções, mas basta que nos lembremos dos impactos das
duas grandes Guerras Mundiais, dos regimes totalitários nelas envolvidos, e do período da

36
No original em inglês: “Certainly intellectual disillusionment with the progressive promises of socialism and
communism is one of the most distinctive developments of the late twentieth century”.
63

Guerra Fria. Nesta, o temor de uma catástrofe nuclear rememorava sempre o lançamento das
bombas em Hiroshima e Nagasaki. Gerações se desenvolveram com o temor diário e cada vez
mais latente de que um confronto ocorreria a qualquer momento (cf. HOBSBAWN, 2012:224).
Segundo Feenberg (1995:41), “desde a segunda guerra [...] profecias do fim do mundo se
tornaram clichês na boca de qualquer um” [tradução própria]. Deve ser aqui mencionado ainda
o conceito de Big Science (REYNOLDS, 2012:378), ideia central para a década de 60 e que
denota a combinação de investimentos, equipamentos e capital humano em áreas de atividades
científicas, tecnológicas e industriais, que faz surgir o que podemos chamar de um complexo
governamental-industrial-acadêmico. Tem-se assim a noção de que a ciência e a tecnologia
poderiam ser apropriadas por grupos sociais em conflito para causar um ao outro nada além de
destruição e morte. Assim, o conhecimento no qual outrora se depositava a esperança de um
mundo melhor e mais justo para os homens, passou a se tornar um instrumento bélico e de
subjugo do homem pelo próprio homem.
Em terceiro lugar, podemos destacar na história do pensamento intelectual alguns nomes
que puseram em xeque a hegemonia do pensamento científico e racional, elementos
fundamentais do projeto iluminista. Trata-se, conforme aponta Marcondes (2004), da ruptura
com a tradição racionalista que se dá com o pensamento alemão pós-kantiano, com a tradição
romântica e especialmente através das figuras de Schopenhauer, Kierkegaard e, com maior
destaque, Nietzsche. Ou ainda, segundo Booker (1994:9), a figura de Freud, que, quando da
publicação de seu A Civilização e seus descontentes, sugere que a busca pela felicidade, por
mais que inerente ao homem, não poderia ser ela integralmente saciada, dado que uma
organização social civilizada pressupõe ela mesma uma contraposição a impulsos humanos
básicos. Mais do que isto, é com Freud que se perceberá que o homem não age em todos os
momentos de sua vida tão somente por conta de intenções racionais, dispondo ele de um
componente de irracionalidade que o constitui e que afeta em grande medida boa parte de sua
consciência. Portanto, podemos dizer que ao longo do século XIX e no início do século XX
com Freud, desenvolveu-se um complexo de ideias filosóficas que questionaram a centralidade
da razão no pensamento humano, o que, por conseguinte, converteu em desconfiança a crença
aqui já mencionada de que a razão e o progresso trariam inevitavelmente tão somente benefícios
para a humanidade.
Portanto, a apropriação concreta e efetiva de engenhos humanos proporcionados pelo
desenvolvimento dos conhecimentos científicos e tecnológicos que tiveram como resultado
mortes e destruições, somado a um corpo filosófico de autores que trouxeram questionamentos
acerca do papel do pensamento racional para a humanidade, forneceram os subsídios suficientes
64

para que a crença em um futuro melhor, ao qual se chegaria precisamente através da razão, do
progresso, da ciência e da tecnologia, desse lugar a uma perspectiva de futuro mais pessimista
e soturna, ocorrendo assim a profusão de obras de literatura distópica ao longo do século XX e
que se mantém nas primeiras décadas do século XXI.
Conforme dito anteriormente, não podemos dizer que a distopia é o oposto da utopia e
devemos falar agora de uma forma de pensamento antiutópica que se desenvolve a partir da
segunda metade do século XX, conforme nos aponta Jacoby (op. cit.:89), a partir da publicação
de algumas obras em meados do século XX que tiveram grande repercussão nos campos
intelectuais. São elas Na senda do milênio (1957) de Norman Cohn, A sociedade aberta e seus
inimigos (1945) de Karl Popper, The Origins of Totalitarian Democracy (1951) de J. L. Talmon,
As origens do totalitarismo (1951) de Hannah Arendt, além de alguns ensaios de Isaiah Berlin.
Desconsiderando suas especificidades37, sobre o que não há espaço para discutirmos aqui, estas
obras se prestam a expor os perigos do pensamento utópico. Em comum, a ideia era de que a
tentativa de realização de um ideal totalizante a partir de profecias salvacionistas acabaria
necessariamente por levar a formas ditatoriais. Com a estreita relação entre o pensamento
utópico e a perspectiva revolucionária presente no pensamento de Marx, não demoraria muito
para que este antiutopismo ganhasse traços antimarxistas\antissocialistas\anticomunistas na
crítica destes autores à experiência socialista em sua época.
A virada distópica e o pensamento antiutópico não se deixam reduzir um ao outro, e
mesmo uma relação de complementaridade ou homologia carece de bases mais sólidas, visto
que uma representação literária distópica não necessariamente trata o pensamento utópico como
algo a ser posto de lado. “Distopias que não deixam espaço para a esperança falham de fato em
sua missão” [tradução própria]38, afirma Vieira (2010:17). Fato é que algumas das principais
obras distópicas aqui citadas como paradigmáticas para o gênero partiram das experiências reais
soviéticas, a mais concreta das realizações de um projeto utópico revolucionário. Porém, estas
não se resumem a uma crítica do socialismo. Mesmo o modo de organização política e
econômica capitalista se tornou ele próprio matéria para extrapolações distópicas – como
podemos perceber em O caçador de androides de Philip K. Dick; apenas para nos remetermos
a uma das obras aqui citadas. Para além do sonho socialista posto em prática e os caminhos
tortuosos que este tenha tomado ao longo da história, a antiutopia é uma defesa explícita ou
implícita do status quo (cf. FITTING, 2010:141). O que podemos dizer, sem qualquer sombra
de dúvida, é que tanto o antiutopismo quanto o pensamento distópico dispuseram a um mesmo

37
Para um aprofundamento nos aspectos de cada obra em especial, ver o capítulo 2 em Jacoby (op. cit.).
38
No original em inglês: “Dystopias that leave no room for hope do in fact fail in their mission”.
65

momento de um conjunto de acontecimentos históricos e de elementos intelectuais que


forneceram subsídios suficientes para o surgimento e manutenção de ambas posturas,
propiciando assim o esmaecimento de formas literárias utópicas que deram lugar a
representações catastróficas do futuro.
Verificamos, até o presente momento, a profusão de obras de literatura distópica nestas
duas primeiras décadas do século XXI. Tentamos, porém, demonstrar que este fenômeno tem
suas origens no século XX, dados os eventos históricos que este abarcou, e mesmo certos
aspectos do pensamento intelectual originados no século XIX e que se prolongam até o século
seguinte. O que se conclui é que a distopia contemporânea pode ser vista como sendo um
prolongamento de um pensamento que se origina em um momento histórico anterior. Diante
disto, é preciso que nos coloquemos diante de uma outra inquietação. Passados quase 30 anos
desde o fim da URSS, por que permaneceria ainda uma perspectiva pessimista com relação ao
futuro? O que levaria então milhares de leitores dos mais diferentes países a consumirem com
algum prazer estético obras de ficção distópica? A que se deve a manutenção do
enfraquecimento dos ideais utópicos – ou mesmo ausência em certos casos – neste início de
século? Isto é, se o fim das utopias estava diretamente relacionado ao insucesso, em maior ou
menor medida, das experiências socialistas, não haveríamos de ter, com a consolidação e
adoção em escala global do sistema capitalista, uma perspectiva mais utópica de futuro? Se
muitos são aqueles que advogam estar o ser humano em seu estágio último de desenvolvimento
social, sob a égide do “fim da história”, por que ainda há estágios ficcionais históricos
posteriores à história – a princípio acabada – nos quais são representadas de formas extrapoladas
as contradições sociais do presente? Estas perguntas dizem respeito à manutenção do
esmaecimento do espírito utópico, bem como de programas utópicos que se apresentem ao ser
humano como uma proposta de transformação social de uma realidade que não deve ser tomada
como o ápice das possibilidades de organização política e econômica humana.
Apresentamos aqui a seguinte tese: a permanência na contemporaneidade do paradigma
pós-moderno, que se desenvolve no século XX, contribui, em termos filosóficos e culturais,
para uma legitimação implícita, ou mesmo inconsciente, do status quo capitalista. O paradigma
pós-moderno nos torna alheio e nos retira as ferramentas necessárias para a compreensão deste
mesmo status quo, e, assim, nos subtrai o impulso utópico da busca da concretização histórica
de determinados ideais. As mazelas deste status quo se veem com isso hiperbolizadas e
projetam-se como matéria bruta para a extrapolação distópica que vemos se concretizar nas
formas literárias.
66

O pós-modernismo é aqui entendido como um conjunto de pensamentos e posturas


intelectuais que perpassam as esferas da cultura, da política, das ciências e da filosofia. O termo
não pressupõe uma delimitação precisa de conceitos e características, nem uma unidade
sistemática que norteie o pensamento pós-moderno, não obstante ser possível que apontemos
para alguns de seus elementos fundadores, reproduzidos com alguma frequência. Seus
principais representantes são Jean-Fançois Lyotard, cuja obra La condition Postmoderne de
1979 se mantém como uma referência até os dias atuais, além de Foucault, Derrida, Deleuze,
Guattari, Jean Baudrillard, dentre outros39. Não podemos aqui propor nenhuma análise
exaustiva de um autor em específico, ou mesmo proceder à revisão bibliográfica dos autores
supracitados e de outros, cujas ideias consideramos aqui como pertencentes ao pós-
modernismo. Não obstante, é preciso que apontemos alguns dos aspectos mais gerais e
fundamentais do chamado pós-modernismo para, em seguida, nos posicionarmos diante deles.
Cronologicamente, conforme aponta Ahmad (2011:6), suas origens podem ser
identificadas entre alguns sociólogos norte-americanos que, ao início da primeira década da
Guerra Fria, nos anos 50, se empenhavam em colocar em xeque os pressupostos filosóficos e
políticos do marxismo, especialmente sua noção de luta de classes. Por outro lado, muitas foram
as transformações ocorridas dentro do próprio capitalismo que entra em sua era pós-industrial,
marcada a) pela mudança da economia focada na produção que se converte numa economia
focada no consumo, b) pelo papel exercido pela tecnologia de informação nas etapas de
produção e consumo, c) pelo constante aumento de empregos no setor de serviços, d) pelos
processos de computação e robotização que passam a requerer cada vez menos trabalhadores
para produzirem um maior número de mercadorias e e) pelo predomínio das corporações
multinacionais em função de um grupo específico de capitalistas (cf. id., ibid.:8). Estas
mudanças incidentes sobre o sistema de produção e a classe operária pareciam indicar que as
análises propostas por Marx não mais condiziam com a realidade econômica, o que enfraqueceu
sobremaneira a adesão intelectual às ideias do filósofo alemão. Isto pode ser observado na maior
parte dos principais representantes do pós-modernismo. As experiências socialistas na segunda
metade do século XX já não correspondiam ao sonho de outrora, e o capitalismo em si já não
se apresentava o cenário chapliniano de uma massa pobre de trabalhadores nos grandes centros
urbanos com seus patrões opulentos deglutindo pratos fartos. O movimento operário estava em
queda, e a utopia marxista se esmaecia. Com os movimentos sociais da década de 60, novos

39
Em todos os momentos nos quais ocorra o termo “pós-modernismo” neste trabalho, não estaremos nos referindo
ao movimento estético, e sim a um corpo heterogêneo de posturas intelectuais que se veem reverberadas ao longo
das mais diferentes áreas do saber e de diferentes produções simbólicas e culturais.
67

sujeitos e novas pautas políticas foram postas. As reivindicações se atomizam e os “atores


deixam de ser sociais e voltam-se para si mesmos, para a busca narcisista da sua identidade
(TOURAINE, 1994:198)”. Ocorre o que Santos aponta como a deserção do político e do
ideológico: “[...] a pós modernidade se interessa antes pelo transpolítico: liberação sexual,
feminismo, educação permissiva, questões vividas no dia a dia. Normalmente o indivíduo pós-
moderno evita a militância fogosa e disciplinada (SANTOS, 2008:92)”. Isto se expressa em
Lyotard (1986) como a grande recusa aos metarrelatos, ou às grandes narrativas. Há no pós-
modernismo o que Castoriadis (2006:24) aponta como sendo uma rejeição da visão global da
história: sem grandes ideais, não há mobilização política, luta revolucionária ou qualquer
grande projeto emancipatório a se apresentar ao homem como possibilidade aberta em seu devir
histórico.
Além da influência do pós-modernismo na esfera política, há que se destacar aqui o que
também nos aponta Castoriadis (ibid.) como a rejeição da ideia de uma razão uniforme e
universal. Isto, conforme aponta Sokal & Bricmont (1998:1) de modo mais preciso, equivale à
rejeição da tradição racionalista do iluminismo, à proliferação de discursos teóricos
desvinculados de qualquer verificação empírica, e à compreensão de que a ciência, partindo de
um relativismo cultural e cognitivo, deve ser vista como nada mais que uma narração, um mito,
uma construção social tão válida quanto qualquer outra. Para o indivíduo pós-moderno, todo
conhecimento é por si mesmo válido, sem que deva ser feita qualquer distinção valorativa entre
eles. Os saberes universais são substituídos aqui pelos singulares, sem que seja possível uma
apreensão totalizante da realidade. Enquanto postura filosófica, este ceticismo ao extremo se
aplicaria tanto à interpretação histórica e social – e considerando o que dissemos anteriormente
– quanto aos fenômenos naturais.
Dito de forma sintetizada, o pós-modernismo, com sua descrença em um projeto
histórico específico para o homem que o mobilize em termos da ação política, nos leva a
desconsiderar quaisquer ideais a serem realizados no futuro, encerrando-nos compulsoriamente
no imediatismo do presente, no consumo do efêmero e, quando muito, em lutas políticas
atomizadas. Ademais, a razão e o conhecimento científico perdem sua legitimidade em função
da não concretização das promessas do projeto iluminista, sendo vistas como um discurso como
qualquer outro. Estes dois aspectos, indissociáveis um do outro, se colocam, a nosso ver, como
as manifestações mais perniciosas do pós-modernismo. E é a partir destes que se configura um
quadro social, cultural e intelectual tal em que todas as perspectivas de uma transformação da
realidade, motivadas por um impulso utópico, acabam por serem a priori rechaçadas. Ou ainda,
qualquer tentativa de unificação dos grupos sociais, cujas especificidades tornaram-se ao longo
68

das últimas décadas cada vez mais complexas e atomizadas, acabam por ter seu caráter
totalizante compreendido como algo totalitário, que fere as liberdades individuais e as
peculiaridades de cada luta política em particular destes grupos. Mais do que isto, posta de lado
a racionalidade humana, a realidade passa então a ser vista como algo difuso e sem qualquer
elemento unificador que nos permita compreendê-la em seus funcionamentos internos mais
amplos e o singular toma o espaço do universal. Cada qual, por sua vez, a interpreta do jeito
que mais o apetece, sejam estas interpretações condizentes com a realidade de fato ou não. Tudo
se torna um joguete político onde toda e qualquer opinião se resume tão somente à legitimação
de um saber racional que atende unicamente a fins da manutenção da assimetria de poder entre
“aqueles que sabem” e “aqueles que não sabem”.
Há quem diga que aprendemos sobre a história para não cometermos os erros do passado.
Erros ou acertos ao longo do tempo, eles estão sempre, antes de suas realizações, situados num
futuro mais ou menos distante. Mas se “o centro de gravidade temporal de nossas sociedades
se deslocou do futuro para o presente (LIPOVETSKTY, 2004:59)”, de que nos serve o passado?
Passado e futuro perdem sua importância, o presente se cristaliza. O termo utopia atrofia-se e
passa a denotar a impossibilidade de qualquer transformação social mais radical. As
experiências do passado parecem apenas reafirmá-lo. Deveríamos porém nos perguntarmos:
não seriam precisamente estas experiências, necessariamente falhas e lacunares, que poderiam
nos apontar para uma via de aprimoramento? Sob a égide de um discurso silenciador, o homem
é visto como sendo incorrigível, e traz em si uma natureza tal que qualquer organização social
livre de exploração e de desigualdades sociais se apresenta como algo impensável. Decretado
assim o fim da história, o individualismo burguês atinge o seu ápice em uma total ruptura entre
as esferas da vida privada e pública. Em consequência, somos sistematicamente levados a
fechar os olhos para o mundo. Um mundo em que crises econômicas têm recorrência cíclica,
em que os Estados se veem submetidos ao controle da iniciativa privada e das megacorporações,
em que a lógica do lucro se sobrepõe às questões ecológicas e sociais, em que a desigualdade
social mantém-se em níveis elevados mesmo em países desenvolvidos. Renunciar ao futuro é
uma aceitação tácita – ou cínica – de todas as tendências nocivas que o sistema capitalista
apresenta em sua essência. Não se infira aqui que neste breve texto se trate de uma defesa
tacanha e ortodoxa deste ou daquele sistema político, mas da defesa e da revalorização da
imaginação utópica. É urgente que reconheçamos no presente a necessidade de transformações
sociais que nos aproximem de um ideal humanista, em cuja concepção postulamos a meta
libertária de sermos, e não de termos, de consumirmos, ou, simplesmente, de parecermos.
69

Não é possível, porém, que olhemos para o amanhã sem buscarmos no presente os
subsídios suficientes para desejemos o porvir. Querer o ainda-não-ser é, antes de mais nada,
conhecer aquilo que se é. Neste sentido, somente uma forma de pensamento que se debruce
sobre a realidade e tente compreendê-la em seus princípios universais, princípios que estejam
para além das subjetividades, pode pôr-nos em condições de transformar essa realidade. Para
tal, é imprescindível que nos valhamos de métodos rigorosos e de uma observação empírica, a
despeito de qualquer inclinação política – seja ela qual for.
É curioso que se inflamem certos discursos contra o conhecimento científico em tantos
casos, mas que recorramos imediatamente a ele quando nos vemos assolados por enfermidades
– ou ainda quando desejamos fazer valer o nosso ponto de vista. O que propomos aqui é,
portanto, uma ética mais responsável na avaliação axiológica do conhecimento científico –
indispensavelmente vinculado a qualquer programa utópico que se queira efetivo. Assim, à
guisa de conclusão, para uma defesa da utopia como contraposição ética ao pós-modernismo,
apresentamos as seguintes teses: a) a negação do futuro utópico é uma legitimação do status
quo capitalista contemporâneo e de todos os seus malefícios, b) o fracasso das experiências
alternativas a este status quo não o tornam mais desejável, c) o relativismo pós-moderno nos
ausenta de uma reflexão crítica em que se considerem os fenômenos em sua materialidade
objetiva, o que abre margens, inclusive, para a apropriação política de “verdades” que não
condizem com a realidade empírica e verificável, d) o materialismo, enquanto base
epistemológica presente em uma filosofia da práxis não contemplativa, se apresenta como a
devida alternativa a este relativismo, e) há uma confusão entre dois elementos de ordem
distintas: o pensamento racional e científico e a apropriação política destes conhecimentos; o
primeiro não deve ser recusado em função do segundo, f) questões que nos parecem centrais
em nossa contemporaneidade como a exploração, a luta de classes, os fenômenos da alienação
e da reificação, dentre outros, são sistematicamente postas de lado, e somente uma aproximação
com a filosofia marxista (de Marx a Žižek, com todas as suas contradições e aporias) pode nos
fazer refletir sobre elas, sem o que só nos resta fechar os olhos para males que afligem
diariamente milhares de indivíduos. Não nos iludimos com a ideia de que somente uma filosofia
da práxis, não contemplativa e materialista, nos ponha em condição de superarmos as mazelas
de nossa contemporaneidade. Acreditamos, porém, que sem ela renunciamos a um arsenal
crítico valioso para a constituição de nosso espírito utópico vivo e atuante.

3.4. Sobre os conceitos de utopia e de distopia


70

Apresentamos ao longo deste capítulo, após estabelecermos as principais características


do conceito, como o conceito de utopia se viu materializado ao longo da história e como ele
pode ser entendido como um movimento de lançamento do homem à história, entendido este
como o processo de centralização do ser humano enquanto sujeito histórico e livre de quaisquer
desígnios religiosos. Verificamos em seguida que este impulso utópico ao longo do século XX
– já sendo possível verificar indícios no século XIX – converte-se em um impulso distópico, se
podemos assim dizer por enquanto, que se vê materializado em formas literárias e de um modo
crescente até as primeiras décadas do século XXI. Pretendemos agora, nesta seção conclusiva
do capítulo, contrapor o conceito de utopia e de distopia. Esta última, por sua vez, ainda é um
fenômeno recente se compararmos à primeira, e por isso preferimos em nossa apresentação do
conceito neste trabalho apresentar inicialmente alguns aspectos históricos que justifiquem o seu
surgimento para somente então sugerirmos nesta seção um conjunto de características centrais
que o definam, tal como fizemos com a utopia. A distopia, enquanto fenômeno contemporâneo
e recente, não possui uma obra fundadora de referência nem ainda se colocou como objeto de
pesquisa e análise crítica tal como a utopia e suas dezenas de obras sobre o tema – ainda que
tenha sido e venha sendo alvo de destacados estudos, escritos em inglês em sua quase totalidade.
Apresentaremos a seguir, portanto, tão somente alguns poucos autores com os quais nos
deparamos ao longo de nossa pesquisa e que trazem reflexões pertinentes, para, em seguida,
finalmente, apresentarmos aquilo que julgamos ser as características mais essenciais do
conceito de distopia, considerando ainda alguns de seus traços narrativos.
A primeira reflexão que deve ser feita diz respeito às relações entre utopia, anti-utopia
e distopia. Trata-se de conceitos que podem estar um vinculado a outro e que requerem uma
compreensão plena de seus sentidos. Pois se entendemos que, dito de modo geral, a utopia é
uma superação positiva do status quo e a distopia, a sua extrapolação negativa, é possível, como
se verificou na literatura, que haja uma extrapolação negativa justamente daquilo que se
apresentava como a utopia – Sargent (1994:24) nos aponta para a tendência presente ao longo
do século XX em equiparar utopia com força, violência e totalitarismo; e fica clara aqui a alusão
a ser feita com a experiência socialista. Por outro lado, se considerarmos que uma narrativa
distópica deixa em aberto narrativamente uma possibilidade de superação positiva das
contradições daquele mundo ficcional, estamos a tratar aí de um impulso utópico que se vê
representado ainda que não pelas formas literárias utópicas tradicionais. Conforme aponta
Moylan (2000:147), a distopia negocia o terreno social da utopia e da anti-utopia. Como então
proceder com este problema de classificação?
71

Apresentamos aqui duas possibilidades: ou a distopia traz, por definição, implicitamente


um impulso utópico, não importando em que medida ele se veja materializado textualmente; ou
seu oposto – a distopia não é implicitamente utópica e, mais do que isto, pode ainda conter em
sua forma narrativa ficcional um discurso anti-utópico40. Quanto a isto, parece não haver
discordância quanto ao fato de que o anti-utopismo apresenta, de modo implícito ou explícito,
uma defesa do status quo (cf. FITTING, 2010:141). Se considerarmos tão somente a
composição do termo, limita-se a palavra distopia a significar um lugar negativamente
valorado; o que não significa dizer que neste mesmo lugar uma possibilidade de transformação
se encontre ausente ou presente. Portanto, nos parece cabível dizer que uma obra distópica pode
trazer consigo um impulso utópico ou um discurso anti-utópico, cabendo ao exercício
hermenêutico verificar se são as forças de transformação (utopia) ou de manutenção (anti-
utopia) as que predominam no texto. Endossando esta perspectiva, Moylan (op. cit.:155) aponta
como um dos movimentos a serem feitos ao se estudar a distopia narrativa é estabelecer a
diferença política entre os textos que partem de uma perspectiva de pessimismo utópico e
aqueles que são completamente anti-utópicos. Assim, a distopia pode tanto atuar com, quanto
contra a utopia41. O que não impede de vermos seu potencial de dispor de um “valor corretivo”
em relação à utopia, conforme aponta Booker (1994:177). Segundo o autor, ao mesmo tempo
que as utopias atuam como provocadoras de mudanças, podem elas também, como já
apontamos anteriormente, se degenerarem em dogmas ou sistemas, cabendo ao pensamento
distópico com sua força crítica desconstruir tais excessos para que se mantenham inabalados os
ideais anteriores a tais sistemas.
Considerada esta relação, antes de tratarmos as características centrais para o conceito
de distopia, é preciso que apontemos para aspectos narrativos que nos parecem ser
fundamentais, estabelecendo um diálogo com outros autores, e que se encontram presentes nas
materializações literárias distópicas.

40
A utilização dos termos impulso utópico em contraste com discurso utópico não é gratuita. Se o impulso utópico
pode se materializar sob a forma de um complexo textual discursivo, não podemos dizer que o complexo textual
discursivo distópico parta de um impulso distópico. Em termos de categorias, não há razão para falarmos em
“impulso distópico”.
41
Sargent, frequentemente citado em obras que tratem de distopia e utopia, resolve o problema de modo distinto.
Para o autor (1994:9) a utopia classifica-se em positiva e negativa – a primeira corresponde à eutopia e a segunda
à distopia. Não há, para o autor, a possibilidade de uma distopia anti-utópica, o que nos parece questionável. Já
Baccolini & Moylan (2003:7) partem do pressuposto de que os textos distópicos críticos mantém o impulso
utópico; o que nos levaria então a separar as distopias críticas das distopias não-críticas. Isto nos levaria a um
elemento distintivo de caráter, ao nosso ver, excessivamente subjetivo. Em uma perspectiva mais conservadora,
por exemplo, uma distopia anti-utópica poderia ser crítica no sentido de apontar as aporias dos projetos utópicos;
ao passo que aos olhos mais revolucionários ela de crítica nada teria.
72

O primeiro aspecto que aqui destacamos diz respeito ao protagonista – que pode ou não
ser narrador – comum nas narrativas distópicas. Diferentemente das utopias, não se trata mais
aqui de um indivíduo que, seja através de relatos ou de uma viagem, pôde estar em contato com
uma configuração social outra e superior em comparação àquela sua, e então para esta retorna
maravilhado e ansioso para apresentar ao resto do mundo o quão aquele lugar outro era melhor.
Conforme apontam Baccolini & Moylan (2003:5) e Moylan (op. cit.:148), se na terra utópica o
protagonista tende a ser um visitante, na distópica o protagonista se encontra já nela, como um
de seus habitantes, completamente imerso na sociedade que o cerca. Isto se torna fundamental
para a narrativa distópica, visto que esta imersão do protagonista é precisamente o que garantirá
a apreensão por parte do leitor da experiência do personagem em meio a seu caótico mundo (cf.
VARSAM, 2003:205). A descrição de um estrangeiro, típica da literatura utópica, converte-se
no relato biográfico de um habitante, e isto torna a representação do mundo ficcional distópico
ainda mais “verdadeira” para o leitor.
Em segundo lugar, destacamos aqui a posição de Varsam (op. cit.:206) e Booker (op.
cit.:19) ao afirmarem que a desfamiliarização42 é uma das principais técnicas exercidas pela
ficção distópica. Apoiando-se nesta aproximação entre leitor e protagonista, considerando a
reflexão do parágrafo anterior, o leitor se torna capaz de experienciar através do personagem as
contradições presentes no mundo distópico apresentado ficcionalmente. Estas contradições, por
sua vez, apresentam-se para o leitor enquanto extrapolações de sua própria realidade, e, uma
vez com elas confrontadas através da ficção, o seu olhar enquanto indivíduo (e não como
leitor43) passa a se deparar não mais diante de uma mesma realidade, mas de uma realidade
tornada outra, que se lhe tornou estranha. Com isso, estabelece-se aqui uma tensão entre aquilo
que o mundo de fato é e aquilo que ele poderia vir a ser.
Considerando que os elementos negativos representados em suas formas hiperbólicas
nas narrativas distópicas já se encontram potencialmente disponíveis na realidade do leitor,
decorre daí o terceiro aspecto que gostaríamos de mencionar aqui, e que diz respeito àquilo que
Vieira (op. cit.:17) denomina como sendo o caráter didático e moralista da narrativa distópica.
As imagens negativas do futuro nela presentes servem como um aviso para o leitor de que a
extrapolação ficcional pode vir a se tornar uma realidade concreta caso algo não seja feito para

42
Varsam utiliza o termo conforme proposto pelo formalista russo Viktor Chklovski (1999:82), para quem “[a]
finalidade da arte é dar uma sensação do objecto como visão e não como reconhecimento; o processo da arte é o
processo de singularização ostranenie - (estranhamento) dos objectos e o processo que consiste em obscurecer a
forma, em aumentar a dificuldade e a duração da percepção. O acto de percepção em arte é um fim em si e deve
ser prolongado; a arte é um meio de sentir o devir do objecto, aquilo que já se ‘tornou’ não interessa à arte.”
43
Ver seção 2.2.
73

que se o evite. Desta forma, propõe-se, em tese, que o leitor se sinta impelido a agir de algum
modo para que a representação catastrófica ficcional não encontre um equivalente em sua
própria realidade. Podemos ver esta característica da distopia no verbete “distopias” da
Encyclopedia of Science Fiction, segundo a qual as imagens distópicas proporcionam uma
“urgente propaganda de mudança de direção” (cf. STABLEFORD, 2015).
Devemos atentar para o fato de que estes três elementos apresentados – o protagonista
em in loco distópico, a desfamiliarização como técnica da literatura distópica e a função didática
desta – estabelecem entre si uma relação de complementariedade e juntos operam um processo
maior, o qual gostaríamos de chamar aqui de efeito de aproximação ou de familiarização.
Posicionamo-nos aqui de modo distinto a Booker e Varsam, pois ao nosso ver é este efeito que
se comporta como uma das marcas mais próprias da literatura distópica. Dissemos isto, pois o
que está em jogo nesta forma específica de fazer literário não é um estranhamento por parte do
leitor diante da sua realidade ou daquela ficcional; trata-se justamente do contrário. Este
processo de aproximação está presente a) na relação que se estabelece entre o leitor e a realidade
do mundo ficcional distópico, na medida em que este passa a observá-la com os olhos alguém
pertencente a este mundo; dito de outro modo, familiarizado com ele; b) na relação que se
estabelece entre o leitor e as contradições representadas hiperbolicamente, na medida em que a
distorção ficcional não se realiza sem um objeto primeiro a ser distorcido, objeto este
pertencente ao mundo real do leitor, àquele ao qual ele está familiarizado; confrontar-se com a
contradição extrapolada ficcionalmente é confrontar-se também com a própria realidade e c)
na relação que se estabelece entre o leitor e sua própria realidade, compreendida, a partir de
então, não mais somente em termos da realidade aparente, mas também em termos de realidades
possíveis, tornadas realizadas ficcionalmente através da literatura distópica. Neste sentido, o
leitor se familiariza com o protagonista; (especialmente em função disto) o leitor se familiariza
com a realidade ficcional do personagem, aproximando assim de sua própria realidade objetiva;
e, por fim, esta aproximação última se torna ainda mais intensa quando é acrescida à forma do
mundo tal como de fato ele é, formas potenciais de como o mundo pode vir a ser.
Por fim, para concluirmos este capítulo, a partir do exposto nesta seção podemos então
enumerar os elementos que nos parecem os mais fundamentais para uma definição do conceito
de distopia. Manteremos o mesmo formato de apresentação utilizado quando da definição do
conceito de utopia, de modo a realçar os contrastes entre os dois, estando implicitamente
contrapostos, quando possível, cada um dos pontos de cada conceito44. São então as

44
Ver final da seção 3.1.
74

características centrais da distopia: 1) a distopia é uma extrapolação negativa do status quo da


época em que se realiza, 2) não cabe falarmos em uma distinção entre programa distópico e
impulso distópico; é descabido falar em um projeto de agravamento de contradições sociais
reais (ao menos não-consciente ou cinicamente) ou ainda em uma força motriz ontológica que
nos impulsione a fazê-lo, 3) a distopia é o resultado de um processo imaginativo e que se
materializa em um suporte textual verbal literário, 4) as formas literárias distópicas não se
desvinculam das realidades históricas que as engendram sendo por estas últimas sempre
determinadas; não há distopia fora da história, 5) a presença do impulso utópico ou de um
discurso anti-utópico em um texto literário distópico diz respeito ao posicionamento social do
autor que o constrói e deve ser verificada a partir de um exercício hermenêutico, 6) a distopia
pode adquirir um caráter pedagógico e didático na medida em que tenta tornar o leitor ciente
das contradições de sua realidade histórica que se apresentam de modo velado ou de modo não
extrapolado como no texto ficcional, o que pode instigá-lo a agir concretamente em função de
minimizar estas contradições ou ao menos entender a si mesmo como um possível agente de
transformação, 7) a distopia não possui “um” caráter negativo, ela é por si própria
negativamente valorada e, por fim, 8) a narrativa distópica caracteriza-se por seu efeito de
aproximação ou familiarização, conforme apresentado anteriormente.
Uma vez percorridos os caminhos pelos conceitos de distopia e de utopia, suas relações,
suas materializações históricas, enfim, somente após as reflexões desenvolvidas neste capítulo
é que poderemos então nos lançar no mundo da Ficção Científica, que, como veremos,
apresenta-se como um lócus central para a materialização textual dos discursos utópico e
distópico.
75

4. O HOMEM, SUA CIÊNCIA E SEU FUTURO: A FICÇÃO CIENTÍFICA

Neste capítulo, apresentaremos as principais características da Ficção Científica e um


breve percurso histórico que aponta para as principais transformações dentro do gênero,
destacando ainda as especificidades deste tipo de literatura no Brasil, considerada tanto em
termos de produção quanto de recepção. Em seguida, partiremos das reflexões apresentadas no
capítulo anterior para verificarmos em que medida os discursos utópico e distópico são
apropriados por obras da Ficção Científica e que implicações isto traz para o nosso estudo.

4.1. Ficção Científica enquanto gênero

Como sugerimos logo na introdução e ao final do capítulo anterior, a FC é um gênero


literário que estabelece estreitas relações tanto com o conceito de utopia, quanto com o conceito
de distopia; inclusive de modo ainda mais especial quando se trata deste último. Adotando
metodologicamente uma perspectiva discursiva, considerando o discurso enquanto a menor
unidade de análise sob um olhar linguístico interdisciplinar45, consideraremos a FC como um
gênero discursivo, conforme apresenta Bakhtin (2010) em seu Os gêneros do discurso.
O autor toma como ponto de partida o fato de que toda a atividade humana é perpassada
pela linguagem e, uma vez que estas atividades se dão de modos e com finalidades específicas,
a elas correspondem iguais usos específicos da linguagem. Estando sempre vinculadas a
aspectos extralinguísticos, as realizações concretas da linguagem vinculam-se diretamente às
condições sócio-históricas de sua produção. Estas realizações, ainda que infinitas, tanto por
conta das incontáveis atividades humanas quanto por conta da especificidade histórica de cada
uma delas, organizam-se porém a partir de alguma regularidades. Daí afirmar Bakhtin
(ibid.:262), através da não pouco citada passagem, que “cada campo de utilização da língua
elabora seus tipos relativamente estáveis de enunciados, os quais denominamos gêneros do
discurso”. Estes tipos estáveis, acrescenta o autor, são compostos por três elementos: o conteúdo
temático, o estilo e a construção composicional; que, por sua vez, encontram-se
inseparavelmente vinculados às condições de produção do gênero como um todo. Propõe-se,
portanto, um modelo de análise que associa o componente linguístico-verbal de um
determinado texto com o componente histórico-social que o engendra.

45
Ver seção 2.3.
76

Aplicando a teoria ao nosso objeto, sustentamos que a FC a) apresenta como conteúdo


temático dois elementos fundamentais que estabelecem entre si uma relação de
complementariedade, sendo eles o binômio ciência\tecnologia e a ideia de futuro (enquanto
meio e não como fim), que se relacionam com o ser humano tanto em termos de seus aspectos
antropológicos mais fundamentais quanto de sua situação social e histórica, fortemente
influenciada pelos progressos da razão ao longo da história; b) possui como construção
composicional a forma ficcional narrativa literária por excelência, marcada pelo elemento
central da extrapolação e com primazia de romances e contos, dispondo ainda de um suporte
multi-semiótico que envolve produções cinematográficas, histórias em quadrinhos, animações
e desenhos, reverberados ainda seus conteúdos temáticos na música e em formas artísticas de
semiose não verbal e c) dispõe, de modo geral, de um estilo literário que abarca as
características que são próprias deste tipo de texto, às quais fizemos referência na seção 2.2
deste trabalho e que diz respeito ainda, de modo singular em cada obra, às especificidades de
estilo de cada autor.
Esta síntese aqui expressa é resultado de um trabalho de pesquisa e análise de definições
dos mais distintos autores daquilo que constituiria a FC. Uma vez dispondo de um conjunto
razoável delas – e nem todas serão nesta ocasião mencionadas, dado que o objetivo não é fazer
um trabalho de comparação exaustiva entre elas – foi então possível, a partir de nossa leitura e
interpretação, chegar aos três elementos (ciência\tecnologia, futuro e extrapolação) que nos
parecem centrais e que estão presentes, em maior ou menor medida, nas diferentes propostas
de definições encontradas.
Partiremos inicialmente de um dos maiores nomes em termos de literatura secundária
sobre o gênero, Darko Suvin (1979), em cuja obra Metamorphoses of Science Fiction – On the
Poetics and History of a Literary Genre, frequentemente citada, é definida a FC como a
literatura do estranhamento cognitivo, constituindo este seu formal framework. Justifica-se, por
um lado, o termo estranhamento, na medida em que o autor de FC produz uma representação
literária de um mundo que não é aquele de sua realidade empírica e histórica. Distinguindo-se
de outras formas literárias “naturalistas ou empíricas”, onde há uma preocupação com uma
representação da realidade que lhe seja a mais fidedigna possível, o mundo ficcional próprio da
FC, segundo o autor, dispõe de um novum; termo retirado declaradamente das obras de Bloch
e entendido, como sua forma latina aponta, como algo de novo, diferente do mundo do autor,
que lhe seja estranho. Este elemento distintivo atua de forma central para toda a narrativa do
gênero e vincula-se a uma perspectiva cognitiva por parte do autor, e mesmo de seus leitores.
Esta perspectiva cognitiva, que, segundo Suvin não se encontra presente em mitos, histórias
77

fantásticas ou folclóricas, corresponde à metodologia típica da FC e que é “crítica, geralmente


satírica, combinando uma crença nas possibilidades da razão com a dúvida metodológica nos
casos mais significativos. A afinidade com este tipo de crítica cognitiva com os fundamentos
filosóficos da ciência moderna é evidente (id., ibid..:10)”. Em outras palavras, o olhar racional
e científico – ainda que nem sempre levado até as últimas consequências, do contrário não se
trataria de um gênero ficcional – é central para FC, tanto por parte do autor e o processo de
construção ficcional por ele levado a cabo, quanto por parte da expectativa dos leitores de que
mesmo os mundos mais estranhos, no sentido aplicado por Suvin, disponham de uma
justificativa minimamente lógica e, ao menos para a recepção da obra, plausível.
Conquanto seja Darko Suvin, como já dito, um dos autores mais recorrentemente citados
quando se trata de tentar definir a FC, sua caracterização do gênero não se ausenta de críticas.
Não poderia deixar de constar neste trabalho tais apontamentos, exercendo eles uma função
negativa para nossa tentativa de definição do gênero; ao nosso ver, não cabe dizer que a FC é a
literatura do estranhamento cognitivo. Para tanto, baseamo-nos em dois autores, cujas
principais críticas serão aqui apresentadas.
Simon Spiegel, em seu artigo Things Made Strange: On the Concept of “Estrangement”
in Science Fiction Theory, destaca em primeiro lugar o problema conceitual envolvendo o termo
estranhamento. Suvin afirma textualmente que se baseia, para sua definição de FC, tanto do
conceito de ostranenie (остранение) de Viktor Chklovski quanto do V-Effekt
(Verfremdungseffekt) de Brecht, traduzidos em português e inglês como “estranhamento” ou
“desfamiliarização”, ou ainda “singularização”, quando se trata do neologismo de Chklovski46.
Conforme aponta Spiegel (2008:370), há uma diferença entre os dois conceitos e que não é
levada em consideração por Suvin.
Para Brecht, o estranhamento é um efeito didático específico e não um princípio geral
de toda e qualquer obra de arte, como para Chklovski. Brecht vê no conceito de Verfremdung
um modo de atingir suas intenções artísticas. O autor questiona o caráter a-histórico que a
realidade parece imprimir a si mesma. “Os homens encaram tudo o que vive entre si como
sendo um dado humano preestabelecido (1978:116)”, como se tudo o que existe sempre foi tal
qual como é. Para tentar desconstruir esta percepção, é preciso que ela pareça duvidosa; ela
“[t]em de fazer com que o público fique assombrado, o que conseguirá [o autor], se utilizar uma
técnica que o distancie [o público] de tudo o que é familiar (id., ibid.:117)”.

46
Não cabe aqui a tradução de “Verfremdung” como “alienação”, como se costuma ver em alguns lugares,
correspondendo esta à “Entfremdung” alemã; conceito, por sua vez, central na obra de Marx.
78

Para Chklovski, por outro lado, há uma relação entre o seu conceito de estranhamento e
a situação de automatização à qual ele se relaciona. Para o formalista russo, o ser humano tende
a transformar aquilo que lhe é habitual em algo automático, tanto em termos de suas ações
quanto em termos de seus próprios discursos. A arte, por sua vez, é justamente o momento em
que o natural, o automático, se torna estranho, desautomatizado47; o processo de percepção e
apreensão do objeto artístico é prolongado para que este seja sentido, e não simplesmente
reconhecido (cf. ROBINSON, 2008:79 et seq.).
Estes matizes de sentido quanto ao termo estranhamento, inseridos cada um em um
conjunto maior de ideias e perspectivas de cada autor, não somente não se faz presente como
Suvin comete ainda o equívoco, conforme aponta Spiegel (op. cit.:371), de confundir aspectos
ontológicos do texto ficcional per se com procedimentos formais de um gênero específico.
Como vimos na seção 2.2 do segundo capítulo deste trabalho, o texto ficcional pressupõe uma
alteração, reorganização, transformação ou rompimento da realidade objetiva do autor; não
seria descabido falar também em estranhamento desta realidade. O termo em Suvin se vê ainda
abrangendo a um mesmo tempo tanto um aspecto formal do gênero, quanto um efeito de
recepção por parte do leitor, na medida em que o novum ficcional permite com que este retorne
a sua realidade objetiva com uma nova perspectiva adquirida (cf. SUVIN, op. cit.:71).
Por fim, no que tange ao conceito de estranhamento, há, segundo Spiegel, uma inversão
de conceitos. Para Suvin, a FC se constitui narrativamente a partir do novum que concede à
realidade ficcional a qualidade de “estranhada”. Porém, o que ocorre é precisamente o contrário.
Quando, por exemplo, um personagem viaja no tempo através de uma máquina ou quando uma
bruxa de conto de fadas transforma um ser humano em um animal com sua vara de condão, não
se pode dizer que o primeiro é mais realista que o segundo. Porém, diferentemente do conto de
fadas, na FC há a expectativa por parte do leitor de que o mecanismo seja em alguma medida
racionalmente justificado, mesmo partindo de premissas que não se verificam empiricamente –
expectativa que é atendida por parte dos autores. Por isso afirma Spiegel (op. cit.:372) que na
FC “não é o familiar que é tornado estranho, mas sim o estranho é tornado familiar”.
Gregory Renault em seu artigo Science Fiction as Cognitive Estrangement: Darko Suvin
and the Marxist Critique of Mass culture também apresenta críticas à definição de Suvin, e nos
limitaremos aqui a apontar para a questão da cognição nela presente. Conforme Renault
(1980:131) aponta, o termo em Suvin apresenta um significado ambíguo, na medida em que,
vinculado às ideias de razão e de pensamento científico, são precisas o bastante para distinguir

47
A obra de arte, opondo-se ao habitual, é entendida sempre como algo singular – o que justifica a tradução de
ostranenie por singularização.
79

a FC do mito e das histórias fantásticas, mas, ao mesmo tempo, permite criaturas imaginárias e
eventos de textos utópicos – entendidos por Suvin como o subgênero sociopolítico da utopia.
Nesse sentido, o aspecto diferenciador do gênero acabar por se tornar amplo demais e perde sua
razão de ser.
Portanto, vemos que uma das definições mais correntes para a FC apresenta algumas
deficiências, conforme apontaram os autores supracitados. Não podemos, portanto, partir
exclusivamente de Darko Suvin para chegarmos aos três elementos que mencionamos
anteriormente (ciência\tecnologia, futuro como meio e não como fim e extrapolação) e que são,
ao nosso ver, as categorias centrais da FC. Considerando isto, tomemos aqui algumas
definições, apenas para fins de exemplificação, para que possamos então trazer de volta a
atenção para o elemento da extrapolação que apresentamos acima. Segundo L. David Allen
(1974:213), a FC é

[...] um subgênero da ficção em prosa que é distinguida de outros tipos de ficção pela
presença de uma extrapolação dos efeitos humanos de uma ciência extrapolada,
definida em termos gerais, assim como pela presença de “engenhos” produzidos pela
tecnologia resultante de ciências extrapoladas.

Tomemos agora uma passagem de Leo Godoy Otero em sua Introdução a uma história da
Ficção Científica:

[...] a FC trabalha, em princípio, a transformação tecnológica, portanto sua


consequente diferenciação no porvir, através da extrapolação do conhecido, do
futurível. Basicamente, apenas o lógico é o seu sustentáculo, embora fantasmas e exus
possam perambular nos seus escaninhos, quando racionalmente explicados; se não,
continuarão simplesmente fantasmas e que tais: tema de fantasia, folclore, ou fábula
(OTERO, 1987:14-5).

Por fim, como um último exemplo, citamos aqui a definição de George Mann em sua The
Mammoth Encyclopedia of Science Fiction, outra obra de considerável porte para o estudo do
gênero e não pouco citada:

FC é uma forma de literatura fantástica48 que tenta representar, em termos realistas e


racionais, tempos futuros e ambientes que são distintos de nosso próprio. Ela irá, não

48
Parece-nos questionável associar o gênero da FC com a da literatura fantástica, ao menos se consideramos os
escritos de Tzvetan Todorov em sua Introdução à Literatura Fantástica. Há dois momentos em que baseamos
nossa argumentação. Todorov afirma que “[o] fantástico é a hesitação experimentada por um ser que só conhece
as leis naturais, face a um acontecimento aparentemente sobrenatural (2010:30-1)”; para em seguida dizer que na
FC “o sobrenatural é explicado de uma maneira racional mas a partir de leis que a ciência contemporânea não
reconhece. [...] a partir de premissas irracionais, os fatos se encadeiam de uma maneira perfeitamente lógica
(ibid.:63). Consideramos inadequado falar em “sobrenatural” ou em “premissas irracionais”. Ainda que
ficcionalmente não se possa colocar em níveis diferentes, aproveitando o exemplo já utilizado aqui, uma vara de
80

obstante, mostrar-se ciente acerca das questões à época de sua produção e apresentar
comentários implícitos acerca da sociedade contemporânea, explorando os efeitos,
materiais e psicológicos que qualquer nova tecnologia pode ter sobre ela. Quaisquer
mudanças futuras que ocorram nesta sociedade, assim como quaisquer ocorrências ou
eventos futuros extrapolados serão avaliadas teoricamente, cientificamente ou de
outro modo. Autores de FC terão em seus mundos imaginativos e desfamiliarizados
[strange] um local de testes para novas ideias, considerando de modo pleno as
implicações de qualquer noção que seja proposta (MANN, 2001:6) [tradução
própria]49.

Levando em conta as definições acima transcritas, assim como a ideia de estranhamento


apontada por Suvin – que se vê presente nesta terceira definição – chegamos então à categoria
da extrapolação, que, conforme sustentamos, constitui-se como a forma de construção
composicional própria da FC (ainda que não exclusivamente). Dito de modo mais preciso para
nosso contexto, por extrapolação entendemos aqui o procedimento ficcional em que o referente
se veja representado de um modo tal que suas características mais essenciais e seus limites se
vejam consideravelmente intensificadas, exageradas, hiperbolizadas. Como se verifica, o termo
é mencionado literalmente nas três definições, e, mais do que isto, considerando as críticas
feitas ao termo estranhamento, podemos atualizá-lo, por assim dizer, pela ideia da extrapolação.
Na FC, o mundo é estranho por ser extrapolado; ainda que, como vimos, esta extrapolação tenda
a dispor de um respaldo racional que a naturalize. Substituir o estranhamento pela extrapolação
significa delimitar esta última enquanto um procedimento formal, sem que este se confunda
com um efeito receptivo por parte do leitor, como se verifica originalmente em Brecht.
É preciso que não percamos de vista o referencial bakhtiniano aqui utilizado. Pois uma
leitura a princípio mais atenta certamente apontaria para o fato de que a extrapolação, levada às
últimas consequências, e ainda mais considerando a reflexão apresentada na seção 2.2 do
capítulo 2, pode ser entendida como uma caraterística ontológica do texto ficcional em si, seja
ele pertencente ao gênero da FC ou não. Esta leitura pressupõe uma desarticulação da
construção composicional do gênero com o seu conteúdo temático. Isto significa dizer que a
FC não realiza pura e simplesmente um procedimento formal de extrapolação, mas sim que o
faz a partir dos elementos característicos de seu conteúdo temático, sejam eles, conforme

condão e uma máquina do tempo não se vinculam de igual com a temática da ciência; nem no que diz respeito às
suas funções diegéticas imaginadas pelo autor, nem às expectativas por parte do leitor. Poderíamos ainda citar
Amis (1976), quando afirma que o fantástico tende a abandonar a verossimilhança, enquanto que a FC tende a
preservá-la.
49
No original em inglês: “SF is a form of fantastic literature that attempts to portray, in rational and realistic
terms, future times and environments that are different from our own. It will nevertheless show an awareness of
the concerns of the times in which it is written and provide implicit commentary on contemporary society,
exploring the effects, material and psychological, that any new technologies may have upon it. Any further changes
that take place in this society, as well as any extrapolated future events or occurrences, will have their basis in
measured and considered theory, scientific or otherwise. SF authors will use their strange and imaginative
environments as a testing ground for new ideas, considering in full the implications of any notion they propose”.
81

apontamos acima, o binômio ciência\tecnologia e a ideia de futuro enquanto meio e não


enquanto fim. Neste sentido, tratemos destes dois componentes temáticos fundamentais.
Antes de nos aprofundarmos sobre os usos extrapolados por parte da FC, em primeiro
lugar, do binômio ciência\tecnologia, é preciso que façamos alguns breves comentários
separadamente sobre os dois termos que o compõem, apresentando uma definição breve de cada
um.
Para entendermos o que significa tecnologia, baseamo-nos em Pacey (2000:4 et seq.)
para dizer que a tecnologia é um complexo que envolve a) um aspecto cultural permeado por
questões de valores, objetivos, crença no progresso, criatividade etc., b) um aspecto
organizacional que pressupõe uma estrutura econômica com atividade industrial, funções
profissionais específicas, usuários e consumidores, organizações financeiras, firmas etc., e c)
um aspecto técnico que diz respeito ao conhecimento, às habilidades e técnicas, ferramentas,
máquinas, manipulação de elementos químicos, recursos e suas utilizações, produtos etc.
Considerados estes três aspectos, a definição apresentada pelo autor e por nós endossada é de
que a prática tecnológica é “a aplicação do conhecimento científico ou de outro tipo em tarefas
práticas através de sistemas ordenados que envolvem pessoas, organizações, seres vivos e
máquinas (PACEY, op. cit.:6)” [tradução própria]50.
Já no que diz respeito à ciência, não cabe aqui sequer almejar chegar perto de uma
definição que dê conta das especificidades de cada campo do saber que consideramos como
científicos. Dadas as diferenças de seus objetos e objetivos, não há como prever uma
caracterização que abarque todas as disciplinas. Se o aprofundamento nos campos da filosofia
e da história da ciência ou da própria epistemologia é necessário para que se tenha uma
compreensão a mais ampla possível das atividades científicas desenvolvidas pelo ser humano,
um conhecimento mais superficial e geral da ideia de ciência já bastaria se consideramos tão
somente autores e leitores da FC, que, por sua vez, não se constituem, em sua maioria, de um
grupo de filósofos, historiadores da ciência ou epistemólogos51. Neste sentido, parece-nos
satisfatório dizer simplesmente que uma noção mais ampla e comum de ciência, válida aqui
para nosso caso, pressupõe que ela se configure como um determinado corpo de conhecimentos
que tente apreender as leis da realidade material (natural e social) a partir de um determinado
conjunto de regras chamado de método científico. A ideia de um método rigoroso que supõe a

50
No original em inglês: “[…] technology-practice is thus the application of scientific and other knowledge to
practical tasks by ordered systems that involve people and organizations, living things and machines”.
51
O que não significa dizer que não haja cientistas entre leitores e autores. Também não podemos apresentar aqui
qualquer estatística ou dado mais preciso; considerando porém que muitas obras de FC figuram entre best-sellers
– especialmente nos E.U.A. – há de se imaginar que não somente este ou aquele grupo de acadêmicos as leia.
82

criação de hipóteses e experimentos e testes para verifica-la empiricamente é um dos mais


importantes elementos distintivos quando se compara o conhecimento científico aos
conhecimentos adquiridos por tradição cultural, por mitos ou pela religião. Paralelamente, não
se trata aqui de considerar a ciência somente em seus aspectos internos, se podemos assim dizer,
mas de entendê-la enquanto uma prática social concreta, perpassada por elementos da ordem
do histórico, político e social e que se organiza em estruturas institucionais próprias. Na FC,
todos estes elementos são levados em consideração em maior ou menor grau.
Devemos ainda tecer alguns breves comentários sobre a imbricação moderna entre
tecnologia e ciência, sendo hoje difícil estabelecer as fronteiras precisas de cada uma delas. Em
primeiro lugar, há de se considerar que muito do conhecimento científico depende
necessariamente de conhecimento e produção técnicas. Conforme aponta Salomon (1999:56),

[...] não é exacto que o processo parta invariavelmente da investigação [científica]


fundamental para chegar à tecnologia: é pelo contrário a tecnologia que origina muitas
vezes investigações fundamentais, como é ilustrado pelo apoio inestimável fornecido
a todos os domínios da investigação científica pelos progressos realizados no domínio
dos computadores e do software, ou ainda pelo desenvolvimento das tecnologias
espaciais, fontes das pesquisas em astronomia e em astrofísica das altas energias.

O autor aponta ainda, em uma perspectiva que não isola a ciência em seus princípios estruturais
internos, que no século XX, pontualmente à época da Segunda Guerra Mundial, a ciência, que
antes ocupava tão somente o lugar central do racionalismo de origem iluminista e estava voltada
exclusivamente para o bem da humanidade, acaba por vincular-se institucionalmente ao Estado
e seus militares e aos grupos sociais vinculados à atividade industrial52. Assim, o poder político
apropriou-se dos conhecimentos científicos para desenvolver aplicações militares-industriais e
já não se tornava mais possível separar a pesquisa civil da pesquisa militar – do que o Projeto
Manhattan foi o maior e mais desastroso exemplo. Salomon fala de um processo contínuo de
“fertilização cruzada” entre ciência e tecnologia, afirmando que

[m]uito poucas atividades científicas podem doravante ser dissociadas do apoio que
lhes é concedido pelo Estado ou pela indústria: o estatuto tradicionalmente autónomo
– ou que era reivindicado como tal – da ciência dentro das universidades é cada vez
mais contestado pelos laços de dependência que ela mantém em relação a instituições
que já não tem nada a ver com o sistema «acadêmico» (id., ibid.:141).

Se é possível falar de uma submissão da prática científica aos interesses do Estado,


bélicos ou não, não se deve também deixar de lado este mesmo tipo de submissão aos interesses

52
Ver conceito de Big Science mencionado na seção 3.3 do capítulo 3 deste trabalho.
83

do mercado no contexto da lógica econômica capitalista voltada para o lucro máximo e para o
consumo desenfreado de bens e serviços. Dito de modo bastante breve, dado que não se trata
aqui de investigar este problema mais a fundo – o que não impede que eles se vejam
representados em alguma medida nas narrativas de FC – pode-se destacar como aspectos
problemáticos da relação entre a produção científica e seus usos por parte do mercado e das
empresas, conforme aponta Vanderbeeken (2011:xi et seq.), o uso abusivo da “aura” da ciência
em ações de marketing (como quando se usa expressões do tipo “pesquisas mostram” ou “está
provado cientificamente que...”), a adoção de uma economia de publicações, em que a
produtividade científica é determinada muito mais pela quantidade do que pela qualidade, e,
por fim, a pressão exercida pelas patentes e pelas licenças no que diz respeito às descobertas
científicas53.
Em suma, ciência e tecnologia são práticas sociais complexas e imbricadas com valores,
instituições e pressões sociais, econômicas e políticas, não se encerrando no método científico,
na postura epistemológica racionalista que lhe é indispensável ou na aplicação prática do
conhecimento única e exclusivamente para resolver um determinado problema que aflige a
humanidade. Por outro lado, e é bom que isto seja deixado bastante claro, como apontamos na
seção 3.3 de nosso trabalho, não estamos aqui nos posicionando contra o conhecimento racional
ou descartando os princípios mais fundamentais da prática científica e que a distinguem de
outras formas de conhecimento que prescindem da verificação empírica de seus conteúdos,
usando a autoridade de certos homens ou de instâncias divinas como meio de legitimação
destes. No gênero da FC, estas duas perspectivas se veem presentes: a ciência pode tanto se ver
representada em função de suas corrupções e apropriações indevidas por parte de um grupo
social ou de todo um sistema, quanto pode ser justamente através dela junto a uma invenção
tecnológica que a tensão promovida pela narrativa seja resolvida. Como aponta Huntington
(1975:348), “[o]s dois polos ideológicos da FC diferem quanto às atitudes do público que eles
despertam: a FC pessimista apela para as inquietações da audiência acerca da ciência; a
otimista, para suas esperanças” [tradução própria]54.
Entendidas aqui ciência e tecnologia como os conteúdos temáticos a serem
ficcionalmente extrapolados, desfaz-se então o aparente paradoxo presente no próprio termo

53
Recomendamos aqui a leitura de toda a primeira parte do aqui citado Drunk on Capitalism – An Interdisciplinary
Reflection on Market, Economy, Art and Science para reflexões mais aprofundadas e dados acerca dos efeitos
nefastos que o capitalismo pode provocar à prática científica. Ver também The Perils, Rewards, and Delusions of
Campus Capitalism de Daniel S. Greenberg (2007).
54
No original em inglês: “The two ideological poles of SF differ in what public attitudes they engage: pessimistic
SF appeals to the audience’s anxieties about science, optimistic to its audience’s hopes for science”.
84

ficção científica. Pois, como aponta Suvin (op. cit.:65), se a FC requer e permite algum tipo de
explicação científica ou racional, não faria sentido esperar que esta se desse em um meio
ficcional. A ideia de extrapolação, porém, permite que a base temática científica seja mantida,
mas sem ser levada às últimas consequências.
A importância do eixo temático ciência\tecnologia também se verifica nas definições
que apontamos anteriormente e poderíamos dizer ainda que, para além do fato de o autor
preocupar-se em dar um tom racional aos elementos do mundo ficcional criado e de o leitor ter
a expectativa de se deparar com situações e inovações que, ainda que extrapoladas, justifiquem-
se racionalmente em alguma medida, a inovação tecnológica, o gadget ou a máquina dispõe de
uma importância especial para a própria narrativa enquanto elemento central de um problema
e/ou de sua solução ou ainda como aspecto caraterístico do cenário ficcional criado pelo autor.
Portanto, a FC apropria-se do binômio ciência\ tecnologia em suas formas extrapoladas e por
torná-lo um dos elementos temáticos central é que se distingue dos outros gêneros literários.
Resta-nos agora voltar nossos olhares para o elemento temático do futuro.
Fitting (2010:138) afirma que a característica que funda a FC é sua “habilidade em
refletir ou expressar nossas esperanças e medos quanto ao futuro, e mais especificamente de
vincular estes medos e esperanças à ciência e à tecnologia” [tradução própria]55. Nas definições
supracitadas também se verifica a ideia de futuro bem como em outras aqui não mencionadas.
Mais do que atestar a importância desta ideia para a FC, o que parece estar para além de
questionamentos, devemos dizer aqui que o futuro vincula-se muito mais ao tempo presente do
autor e do leitor do que a um exercício de previsão dos tempos vindouros, podendo apresentar
um tom profético e dispor de um caráter didático, o que pode ser entendido como um impulso
que surge na esfera do ficcional e que pode vir a se converter em uma ação concreta.
Esta vinculação com o presente apresenta-se descrito de modo bastante apropriado em
Huntington (op. cit.:345):

Ainda que a FC nos dê a sensação de estar diante do desconhecido, é no conhecido


que estão seus verdadeiros insights. Seu valor maior reside não na habilidade de nos
treinar para o futuro, mas em sua habilidade de engajar uma série determinada de
problemas engendrados pela ciência e que pertencem não ao futuro, mas ao presente
[tradução própria]56.

55
No original em inglês: “[…] the foundational characteristic of science fiction, namely its ability to reflect or
express our hopes and fears about the future, and more specifically to link those hopes and fears to science and
technology”.
56
No original em inglês: “Though SF often gives us a sense of facing the unknown, its true insights are generally
into the known, and its primary value lies not in its ability to train us for the future but in its ability to engage a
particular set of problems to which science itself gives rise and which belong, not to the future, but to the present”.
85

É neste sentido que Suvin (op. cit.:76) considera o futuro como tendo uma função secundária,
na medida em que ele se vincula muito mais ao presente do que ao futuro em si. Na FC, há de
fato um impulso que lança a imaginação do autor para o tempo vindouro, desconhecido, para
aquilo que ainda não é. Porém, considerada a própria maneira como apreendemos o tempo
cognitivamente, sendo impossível falar no presente do que ainda não se é, bem como a
impossibilidade de se desvincular a criação de um mundo ficcional da realidade objetiva do
autor, por mais a-histórico que este se proponha a ser57, não se pode dizer que se trata de um
futuro alheio ao presente.
Mais do que isto, considerada a materialidade da ciência e das inovações tecnológicas e
todas as implicações sociais que elas apresentam, o futuro serve como projeção de um ainda-
não-ser que de algum modo já se é – extrapolar a ciência e a tecnologia da sociedade do hoje é
percorrer imaginativamente os caminhos desta mesma sociedade no amanhã. É neste sentido
que se fala em um caráter profético do qual dispõe a FC e que faz com que ela ganhe uma
dimensão didática – uma forma literária de “aviso” quanto à permanência no futuro das
contradições do presente. Isto já se podia verificar em uma das primeiras e mais importantes
revistas de divulgação do gênero, a Amazing Stories de Hugo Gernsback, o qual, em sua
primeira edição, em abril de 1926, caracterizava a “scientifiction” (o termo “science fiction”
ainda não era utilizado para nomear o gênero) como “um atraente romance que mistura fato
científico e visão profética” [tradução própria]58. Com isso, sustentamos aqui que se trata de
uma ideia do futuro enquanto meio – de se repensar o presente – e não como fim – de se
representar um futuro por si mesmo desvinculado da realidade histórica do autor. Devem,
portanto, ser deixada de lado a ideia de que o gênero apresente uma perspectiva “futorológica”,
no sentido de tentar representar do modo o mais preciso o possível aspectos e elementos dos
tempos vindouros. Na FC, trata-se mais, como aponta Moylan (2000:25), de uma “negociação
dialética da tensão histórica entre o que foi, o que é e o que virá a ser” [tradução própria]59.
Assim, prever problemas – preocupação central para toda e qualquer forma de
pensamento racional quando de um evento em que ele se veja requerido – é uma forma de
possibilitar uma perspectiva de atitudes a serem tomadas justamente para se evitá-los; e recai
sobre a produção ficcional extrapolá-los para apresentar ao leitor a sua possível iminência,
convocando-o a agir. Por isso, afirma Parrinder (2003:72), que a FC, “idealmente, [...] não

57
Ver seção 2.2 do capítulo.
58
No original em inglês: “[...] a charming romance intermingled with scientific fact and prophetic vision”. Original
disponível para leitura em http://archive.org/details/AmazingStoriesVolume01Number01.
59
No original em inglês: “[…] diatectical negotiation of the historical tension between what was, what is, and
what is coming to be”.
86

somente facilita uma fuga imaginativa ou transcendente de uma determinada realidade social,
mas planta as sementes da insatisfação com esta e a determinação e habilidade para mudá-la”
[tradução própria]60.
Soma-se ainda à nossa reflexão quanto ao futuro e sua apropriação pela FC nossa leitura
de Formas de tempo e de cronotopo no romance de Bakhtin. Neste texto, o autor apresenta o
cronotopo (tempo-espaço) como sendo uma categoria conteudístico-formal da literatura através
da qual a percepção do tempo se torna visível através da forma artística. Partindo
declaradamente da teoria da relatividade de Einstein, Bakhtin entende o tempo não como sendo
uma “idealidade abstrata, mas como sendo representação da realidade material imediata
(CABRAL, 2012:17)”. Esta assimilação do tempo e do espaço por parte do homem pode ser
verificada na literatura, por isso o interesse do pensador russo no “modo como essa imagem do
mundo representado pelo texto literário deixa de ser uma consciência abstrata para se tornar
consciência concreta, adquirindo determinidade geográfica e inteligibilidade histórica (id.,
ibid.:22)”.
Portanto, verificar em que medida o tempo se vê representado na obra literária significa
dispor de vestígios sobre como esta obra materializa em sua forma artística uma determinada
percepção de tempo e espaço em um dado momento histórico. O que se torna especialmente
relevante para a FC e a centralidade do conteúdo temático do futuro para o gênero.
Especialmente se considerarmos duas passagens em específico do texto de Bakhtin. São elas:

Em Apuleio, o próprio mundo do cotidiano é, em si, estático, nele não há porvir (por
isso não há um tempo único da vida cotidiana), entretanto, revela-se nele uma
multiformidade social. Nessa multiformidade ainda não surgiram contradições
sociais, mas ela está prenhe delas. Se tais contradições se revelassem, o mundo
entraria em movimento, receberia um impulso para o futuro, o tempo receberia
plenitude e historicidade. Porém, na Antigüidade, particularmente em Apuleio, esse
processo não se concluiu (BAKHTIN, 1998:248-9) [grifo nosso].

E, mais adiante:

[...] o romance antigo contém frágeis embriões de novas formas de plenitude de


tempo, que possuem ligação com a descoberta das contradições sociais. Qualquer
descoberta desse tipo prolonga inevitavelmente o tempo para o futuro. Quanto mais
profundamente elas se revelam, conseqüentemente, mais madura, mais importante e
vasta pode tornar-se a plenitude do tempo nas representações do artista (id, ibid.:263)
[grifo nosso].

60
No original em inglês: “Ideally, a literature of cognitive estrangement not only facilitates an imaginative
‘escape’ from or transcendence of the given social environment, but sows the seeds of dissatisfaction with that
environment, and of the determination and ability to change it”. O autor utiliza a expressão de Suvin, a qual
omitimos aqui pelas razões apresentadas ao início desta seção.
87

Ao longo de seu texto, Bakhtin faz uma leitura de diferentes romances publicados em diferentes
momentos históricos, tomando como elemento central de análise o conceito de cronotopo. Daí
as menções ao romance antigo, na segunda citação e Apuleio, escritor da Roma Antiga. Não se
trata aqui de nem mesmo mencionarmos autores, obras e fases às quais Bakhtin se dedica. O
que importa para nós é a associação que se verifica nestas passagens entre as contradições
sociais e a projeção para o futuro que adquire uma representação ficcional, entendida aqui como
um indício de que aos tempos vindouros caberia não talvez a superação destas contradições,
mas ao menos alguma espécie de confrontação com estas.
Tomemos outro momento da obra bakhtiniana.
Em seu O romance de educação e sua importância na história do realismo, Bakhtin
argumentará que é precisamente no romance de educação (Bildungsroman) do tipo realista, do
qual Gargântua e Pantagruel de François Rabelais, O Aventuroso Simplicissimus de Jacob
Christoffel von Grimmelshausen e Os Anos de Aprendizado de Wilhelm Meister de Goethe são
exemplos mencionados pelo autor. Nestes,

[o] homem se forma concomitantemente com o mundo, reflete em si mesmo a


formação histórica do mundo. O homem já não se situa no interior de uma época mas
na fronteira de duas épocas, no ponto de transição de uma época a outra. Essa transição
se efetua nele e através dele. Ele é obrigado a tornar-se um novo tipo de homem, ainda
inédito. Trata-se precisamente da formação do novo homem; por isso, a força
organizadora do futuro é aqui imensa, e evidentemente não se trata do futuro em
termos privado-biográficos mas históricos (id., 2010:222).

Mais à frente, ao discorrer sobre Goethe, Bakhtin afirma que o autor alemão representou um
dos maiores pontos da visão do tempo histórico em toda a literatura, um produto do período do
Iluminismo. Isto, pois

[o] século XVIII se revela como uma época de pontente despertar do sentimento do
tempo, antes de tudo do sentimento do tempo na natureza e na vida humana. Até o
último terço do século predominam os tempos cíclicos, mas também estes, a despeito
de todas as suas limitações, revolvem com o arado do tempo o mundo imóvel das
épocas antecedentes. E nesse solo revolvido pelos tempos cíclicos começam a revelar-
se também os sinais do tempo histórico. As contradições da atualidade, quando
perdem seu caráter eterno e absoluto, dado por Deus, revelam na atualidade a
heterogeneidade temporal – os remanescentes e embriões do passado, as tendências
do futuro (id., ibid.:226-7).

Estas prolongadas citações tem por objetivo tão somente dar ainda mais fundamento para a
reflexão sobre o futuro e cujas sementes já se viram lançadas na seção 3.2, quando nos
remetíamos à história do discurso utópico à luz das reflexões de Koselleck. Vemos aqui em
88

Bakhtin endossada a ideia de um lançamento do homem à história que pode ser verificada a
partir das obras utópicas. Mas mais do que isto, e aí nos remetemos novamente à relação entre
contradição social e tempo futuro, se o homem se lança ao futuro tanto maiores forem as
contradições sociais, o que podemos então dizer de um gênero que tem no futuro um de seus
componentes temáticos fundamentais? Ora, não se trata aqui de uma pretensão em comparar o
gênero com os Bildungsromane mencionados por Bakhtin, mas sim sugerir a reflexão de que,
à luz das reflexões bakhtinianas, a FC enquanto um gênero que se consolida no século XX
(como veremos mais detalhadamente na seção a seguir) tem justificada a centralidade do futuro
enquanto seu componente temático por conta de uma apreensão histórica de um tempo em que
as contradições sociais são tão centrais e relevantes quanto. Dito de outro modo, verifica-se em
Bakhtin a ideia de que as representações do futuro se tornam cada vez mais possíveis e presentes
na medida em que se tornam reveladas as contradições sociais. Portanto, a representação
distópica do futuro é a reafirmação destas contradições, e a própria noção do futuro em si tem
suas representações justificadas na medida em que estas se revelem e se coloquem
potencialmente como passíveis de serem superadas, em um movimento, como já dizemos, de
lançamento do homem na história rumo a tempos vindouros melhores.
Portanto, para encerrarmos esta seção, sintetizemos nosso pensamento. O gênero da FC
tem como condições de produção uma sociedade fortemente marcada pelo conhecimento
científico e tecnológico, que não se limita a um conjunto de conhecimentos e aplicações, mas
que dispõe de uma materialidade social e institucional, perpassada por elementos de ordem
econômica, política e cultural, na qual os indivíduos se veem diante tanto de contradições
sociais herdadas do passado, quanto de outras novas promovidas pelo progresso levado a cabo
por estas mesmas ciência e tecnologia. Por conseguinte, é através da FC (não exclusivamente,
naturalmente), cujo elemento central de sua construção composicional é a extrapolação de seus
conteúdos temáticos ciência\tecnologia e futuro, que as posturas avaliativas diante destes
elementos se veem representadas e materializadas.

4.2. Percurso histórico

Nesta seção, apresentaremos, de modo bastante resumido, os principais momentos da


FC ao longo de sua história. Trata-se aqui de uma contextualização do gênero e seus
movimentos mais marcantes face às circunstâncias políticas e sociais do contexto histórico de
cada um deles. O percurso da FC não é uma trajetória homogênea ou contínua, apresentando
diferentes nuances temáticas, de produção e de consumo. Naturalmente, nosso trabalho aqui
89

não se propõe a produzir uma historiografia do gênero, para o que há obras específicas61.
Também não caberia nas circunstâncias de nossa pesquisa fazer uma análise da literatura
primária à qual os manuais e as obras introdutórias do gênero se remetem. Coube a nós,
entretanto, partir de textos dedicados especialmente à história da FC para então cotejá-los,
considerando ainda conhecimentos e leituras prévias próprias. Apresentaremos aqui o resultado
deste trabalho comparativo em que tentamos preservar o que há de mais consensual entre os
autores; ou ainda mencionar vez ou outros aspectos ainda não resolvidos. Os apontamentos aqui
feitos terão sua relevância para a apreciação da FC no Brasil, sendo esta de grande valor para
as análises desenvolvidas no capítulo 5 deste trabalho.
Adotar aqui um ponto de partida para a trajetória histórica da FC não é tarefa das mais
simples. Há diversos nomes, obras, estilos e gêneros que, dependendo de cada autor, podem ser
entendidos como precursores da FC. Há ainda a questão acerca do próprio termo ficção
científica (em inglês, originalmente). Ainda que tivesse surgido pela primeira vez já em 1851
no capítulo 10 intitulado Science-Fiction – R.M. Horne's Poor Artist – Notice of the Same (A
Foot Note) – The Modern Discoveries and Application of Science – The Electric Telegraph –
Phrenology do livro A Little Earnest Book upon a Great Old Subject: With the Story of the
Poet-Lover de William Wilson (1826-1886), poeta inglês, o termo só foi se tornar popular na
década de 30 com seu uso mais recorrente pelas revistas dedicadas ao gênero – a primeira ao
utilizar a expressão science fiction foi a Amazing Stories de Hugo Gernsback, figura central
para a divulgação da FC, como veremos mais adiante. Ou seja, há um aspecto institucional que
deve ser levado em consideração para a rubrica do gênero: é somente na década de 30 do século
XX que ele passa a designar um conjunto de obras específicas e que compartilham determinadas
características. Neste sentido, pode-se dizer que não caberia falar em obras de FC anteriores a
este momento no sentido estrito do termo. Naturalmente, ao lidarmos com fenômenos culturais,
não podemos simplesmente apontar uma data específica para que então surja toda uma nova
gama de produções simbólicas produzidas e consumidas a partir de um mesmo padrão. Há que
se considerar, portanto, que a consolidação do gênero distinto enquanto tal não pôde ocorrer
sem obras precedentes das quais ele se apropriava e que lhes servia de influência. Isto, porém,
nos leva a campos mais líquidos de interpretação, na medida em que qualquer obra de qualquer
tempo pode ser entendida como influenciando um determinado texto literário – e essa, aliás, é
uma das riquezas mais fundamentais da obra literária, a capacidade de estabelecer relações
intertextuais e interdiscursivas de infinitas maneiras. Para um crítico, uma obra de FC do século

61
Sugerimos aqui The history of Science Fiction de Adam Roberts, publicada em 2006.
90

XXI pode evocar desde aspectos bíblicos até elementos mais contemporâneos. E há mais. Se
entendemos que a técnica, entendida como um conjunto de conhecimentos práticos com os
quais o homem transforma a natureza ao seu redor, vincula-se estreitamente com a ciência,
determinados engenhos antigos com um funcionamento que veio a ser explicado posteriormente
podem ser entendidos como pertencentes a um conjunto de saberes – ainda não
sistematicamente organizados num corpo disciplinar científico – como pré-científicos. Uma vez
representados ficcionalmente, estas técnicas justificariam então seu pertencimento àquelas
obras que constituiriam “as origens da FC”. Neste sentido, iremos preferir esta expressão a
rotular de FC obras cronologicamente anteriores ao gênero institucionalmente já minimamente
consolidado. Endossamos aqui a ideia de que “[...] nada do que foi escrito, anterior ao século
XIX, mesmo no que se refere à literatura utópica, pode ou deve ser considerado, de modo
estrito, ficção científica, pela suprema razão de ela não existir, i.e., inexistir quanto à sua
sistemática, quanto às suas bases (OTERO, 1987:23)”.
Considerado isto, podemos dizer que as obras centrais que constituiriam as origens da
FC no século XIX tem como autores Mary Shelley, Júlio Verne e H. G. Wells.
Frankenstein (1818), a maior obra de Mary Shelley, pode ser considerada como a grande
primeira obra de FC. A história apresenta a criação por meios técnicos e científicos de um ser,
com características humanas, pelo Dr. Victor Frankenstein. A criatura é renegada por seu
criador por conta de seu terrível aspecto e se revolta contra ele – tem início aí o que mais tarde
veio a ser chamado de complexo de Frankenstein, um tema recorrente na FC e que denota o
temor que se pode ter diante das criações tecnológicas do homem, especialmente robôs e
autômatos. Muito influenciada pelos estilos do gótico e do horror, a história, porém, deixa de
lado explicações da ordem do fantástico, mitológico ou religioso para a criação do Dr.
Frankenstein, dotando-a de traços que se propõem científicos, o que pode ser entendido como
a diferença central entre a obra e suas contemporâneas. Seja dito, a obra teve sua recepção muito
mais em função das características do romance gótico que ela incorporava do que propriamente
no desenvolvimento do gênero da FC (cf. MANN, 2001:9).
Júlio Verne registra também seu nome na história da FC com sua produção literária que
misturava elementos das histórias de viagens e literatura fantástica com um otimismo diante da
ciência e tecnologia e que se tornaram um elemento central em suas narrativas; dentre as quais
se destacam Cinco semanas em balão e Viagem ao centro da terra, ambas de 1867 e Vinte mil
léguas submarinas, de 1870. A notabilíssima recepção de sua obra lhe rendeu o título de escritor
mais traduzido em toda a história. Verne não somente colocou cientistas atuando como
personagens centrais em sua obra, como também preocupou-se em dosá-las com um senso de
91

cientificidade. O realismo de suas obras se sobrepôs aos reinos da magia e da fantasia e o


maravilhoso converte-se em especulações baseadas na realidade (cf. id., ibid.:10), com seu
método consistindo na extrapolação meticulosa da tecnologia que lhe era contemporânea (cf.
STABLEFORD, 2003:20).
Júlio Verne, junto com H. G. Wells, foram os representantes do que se convencionou
chamar de romance científico, termo que entrou em uso com a publicação de A máquina do
tempo (1895) pelo escritor britânico. Com a publicação desta obra, o gênero da FC tem o que
costuma se considerar como o primeiro de seu registro – ainda que, como apontamos
anteriormente, não se tratasse de uma ficção científica em termos. Tal como Verne, a narrativa
se desenvolve a partir de uma premissa racional e sem qualquer explicação da ordem do
fantástico ou do religioso. Em A Máquina..., o personagem principal, conhecido apenas como
"o viajante do tempo", desenvolve uma máquina que é capaz de mover-se pela dimensão do
tempo, chegando então ao distante ano de 8.002.701 d.C., de acordo com os registros da própria
máquina. À tal época, se depara ele com dois grandes grupos ou raças de habitantes: os
Morlocks e os Elóis. Estes últimos viviam de modo pacato e com quase nenhuma atividade
intelectual, alimentando-se daquilo que a natureza lhes provia. Já os primeiros habitavam um
mundo subterrâneo e evitavam a luz de todas as formas, alimentando-se inclusive da carne dos
Elóis. Além de colocar como elemento central um maquinário construído à luz da razão e da
lógica – por mais inverossímeis que sejam – Wells extrapola ainda a teoria evolucionária que
atua como conceito de fundo para que, ficcionalmente, o ser humano venha a se desenvolver
em duas espécies (cf. MANN, op. cit.:11). Há de se considerar ainda, como aponta Carneiro
que há uma ampliação da temática científica em Wells, na medida em que não se trata neste
último de criar uma narrativa que prezasse pela plausibilidade dos engenhos técnicos que nela
se vissem representados. Wells dava um curso mais livre à sua imaginação na qual se viam
como temas centrais as implicações sociais e psicológicas decorrentes da relação entre homem
e máquina. “Filósofo e político (pois foi socialista militante) Wells procurava inventar, não
heróis de opereta (como o são alguns de Verne) mas figuras com um relevo psicológico e uma
vivência mais realista (CARNEIRO, 1968:42)”.
Os três autores podem ser considerados como os maiores nomes do período primitivo
da FC, ou de suas origens mais iniciais, sem que realizemos o exercício interpretativo de buscar
em obras mais antigas este ou aquele elemento que pode vir a ser interpretado como um prelúdio
da FC. Nas palavras de Otero (op. cit.:82-3),
92

[e]ste longo e amorfo “Período” não se apoiava, entretanto, em bases econômicas,


condição primordial para seu advento e expansão, principalmente nos Estados Unidos
da América. Até 1926, essa forma literária não possuía nenhuma trilha definhada,
precisa. Estórias, com bases ‘góticas’ e arremendos de ficção científica, tinham de se
albergar em periódicos devotados à publicação da literatura usual. Neles, publicava-
se tudo que viesse, mesmo de longe, a se semelhar a temas de antecipação, como
viagens interplanetárias; monstros marinho e extraterrestres; guerras espaciais; novos
‘frankensteins’ melhorados em laboratórios; vampiros siderais e locais em castelos
mal assombrados, com portas automáticas. Os aspectos fantásticos, fantasmagóricos
e mesmo míticos, arrancados ao gênero gótico, eram o inesgotável filão da moda para
a grande maioria dos autores, o que formal e estilisticamente convergia na mais
autêntica literatura suburbana, reticente e indeterminada.

Foi somente com o surgimento de um mercado editorial exclusivamente voltado à FC


que o gênero pôde então ganhar um corpo institucional próprio, criando assim um segmento
específico de leitores e estimulando o lançamento de novos escritores no gênero. Este mercado
dispôs de um aspecto material central e que permitiu a reprodução em larga escala dos
magazines, através das quais a FC ia se consolidando. As revistas eram produzidas com um
papel proveniente da polpa da celulose, o que, se por um lado, tinha como resultado folhas finas
que amarelavam rapidamente, por outro, eram produzidas a um custo bem baixo, permitindo
assim uma maior quantidade de exemplares e a um preço reduzido. Este formato de revista
ficou conhecido como “Pulp” e teve uma função inicial central para o gênero.
Em abril de 1926 surge a revista Amazing Stories, fundada por Hugo Gernsback, como
mencionamos anteriormente, e que representou “a primeira tentativa real de colocar a FC diante
do público leitor como um gênero distinto por si mesmo (MANN, op. cit.:12)” [tradução
própria]62. Gernsback já possuía alguma experiência como editor de magazines tendo fundado
a Modern Eletric e a Science and Invention, voltadas para a divulgação de assuntos científicos
e nas quais chegou a publicar narrativas de “scientifiction”, termo utilizado por ele
anteriormente para designar histórias de FC. O editor via em sua atuação profissional com o
gênero da FC uma ferramenta de divulgação da ciência e de sua influência na vida das pessoas.
Segundo o próprio, a FC poderia “prover um conhecimento que de outra forma não seria obtido
– e de uma forma bastante agradável (GERNSBACK apud ATTEBERY, 2003:33)”. Gernsback
conseguiu ainda os direitos legais para republicar obras de Edgar Allan Poe, Wells e Verne, o
que atraiu bastante o público leitor. Por conta de dificuldades financeiras, a Amazing Stories
acabou por ser vendida a outros proprietários, restando a Gernsback dedicar-se posteriormente
a outros magazines como Scientific Detective Stories e Air Wonder Stories, não tendo estas,
porém, atingido o mesmo alcance que sua revista anterior. Graças ao impulso editorial que teve

62
No original em inglês: “[…] the first real attempt to put SF before the reading public as a distinct genre in its
own right”.
93

em Gernsback seu grande nome, ao final da década de 30 o gênero de FC já era amplamente


reconhecido nos Estados Unidos, dispondo de revistas próprias do gênero e um público
específico.
Dois autores neste período podem ser destacados por conta de sua importância para o
que se convencionou chamar de “space opera”, um subgênero da FC caracterizado por
aventuras geralmente românticas que possuem como cenário o espaço sideral e no qual a
extrapolação tecnológica provê a criação ficcional de naves espaciais, armas laser e outros
gadgets similares; são eles Edgar Rice Burroughs e “Doc” Smith. Suas narrativas apresentavam
ao leitor um mundo ficcional que não se limitava a apenas uma publicação e o universo de
personagens e cenários por eles criados desdobravam-se em séries de publicações, com
destaque para a série Lensmen de Smith e Barsoom de Burroughs – cabendo ainda mencionar
que foi este último quem criou o conhecido personagem Tarzan, cuja história inicial foi
publicada em revista no ano de 1912. Especialmente através destes dois autores, e que vieram
a influenciar tantos outros, o épico espacial tornou-se uma forte tendência literária na década
de 30. Como aponta Otero, as engenhocas criadas anteriormente pelos autores de FC para poder
cruzar os céus foram finalmente deixadas de lado; “os termos inventados, relacionados
diretamente com artefatos e viagens interplanetárias, começam aí a se consagrarem. Propulsão
eletrônica, propulsão iônica, emprego de energia nuclear, antigravidade, foguete a fóton,
viagens no ‘espaço-tempo’, tudo foi retratado pela literatura [...] (op. cit.:101)”.
Seguindo a fórmula utilizada por Gernsback para o formato, caracterizado pelos
editoriais em tom de conversa, propagandas para kits, cursos por correspondência e outros e a
seção com as cartas dos fãs (cf. ATTEBERY, op. cit.:32), um nome se destacou ao final dos
anos 30 no ramo editorial da FC. Trata-se de John W. Campbell, tornado editor da revista norte-
americana Astounding Science Fiction em 1937, nome central para aquilo que a vasta maioria
dos manuais do gênero consideram como sendo a Golden Age da FC. Correspondendo desde
meados da década de trinta aos da década de 40, este foi o período quando

[...] alguns dos grandes escritores da FC americana moderna começaram a surgir,


quando novas ideias sobre o que de fato deveria ser a FC começam a emergir, quando
novos temas e ideias que predominavam na FC por um bom tempo começam a ser
exploradas em detalhes, quando os padrões de escrita começam a se aperfeiçoar,
quando o nível da precisão científica aumentou (JAMES, 1994:58)” [tradução
própria]63.

63 No original em inglês: “[…] when some of the great writers of modern American sf began to appear, when new
ideas about what sf actually should be began to emerge, when new motifs and ideas which were to dominate sf for
a long time began to be explored in detail, when standards of writing began to improve, when the level of scientific
accuracy increased […]”.
94

Durante estes anos, a FC se viu amadurecida e ampliou suas temáticas ficcionais para questões
sociais mais amplas, considerando o impacto de um progresso tecnológico vertiginoso que se
desenvolvia à época. Conforme aponta Otero (op. cit.:108), em comparação à temática
predominante anterior à dita Golden Age,

[p]redominarão nessa guinada para o social a preocupação com o realismo, o


alijamento da ‘ópera’, a marginalização do absurdo, a valorização do homem dentro
da sua normalidade limitada, a eliminação do individual na luta perfunctória entre o
vilão e o herói, naquela eterna guerra particular. O esconde-esconde do gato e rato
visando a posse do queijo lunar, sem se saber, exatamente, por que, desaparecia quase
por encanto da prosa social.

Neste momento publicam suas histórias nomes como Heinlein, Van Vogt e, um dos mais
conhecidos autores do gênero, Isaac Asimov. Nas décadas de 30 e 40, convém citar, publicavam
os britânicos Huxley e Orwell em seu país suas maiores obras: Admirável Mundo Novo (1932)
e 1984 (1949), com apropriações de temas da FC.
Com o fim da Segunda Guerra Mundial e o impacto causado pelo lançamento da bomba
atômica sob a cidade de Hiroshima em 6 de agosto de 1945, a FC passou a adotar um tom mais
soturno. Nas palavras de Otero (op. cit.115), “[a] descrença, o pessimismo e a autodestruição
vão campear quase toda uma subsequente produção literária desvairada, fabulando o
inescrupuloso uso da energia termonuclear”. Mantendo a tendência de inícios da década de 40,
a FC vai ampliar seus campos para tematizar de modo ainda mais profundo questões sociais e
o futuro já não apresentará mais o mesmo brilho, até certo ponto inocente, de outrora. Isto
ocorre paralelamente a uma mudança de olhar também por parte dos leitores, para quem a
década de 50 foi um momento de consternação por conta das perdas e dos traumas trazidos pela
guerra. Conforme aponta Mann (op. cit.16), “não havia mais espaço para a satisfação de desejos
nas histórias deste período, não havia tempo para grandes aventuras ou para bater em monstros.
As pessoas queriam apenas entender o mundo ao redor que se transformava” [tradução
própria]64.
Não foi somente o impacto da bomba que marcou o período. Durante a década de 50, a
sociedade americana se viu diante de uma enfática campanha anticomunista, que tinha no
senador Joe McCarthy seu principal porta-voz. Criou-se uma atmosfera de paranoia pautada
pela polarização entre os “valores americanos” e os comunistas. Esta polarização era um dos
elementos centrais da Guerra Fria, onde os países vitoriosos da Segunda Guerra se viram numa

64
No original em inglês: “There is no room for wish-fulfilment in the stories of this period, no time for high
adventure or monster-bashing. People only wanted to make sense of the changing world around them”.
95

incompatibilidade ideológica tal que as principais potências surgidas do conflito, Estados


Unidos e União Soviética, pareciam poder travar a qualquer momento uma batalha que, dada a
posse de armas atômicas por parte de ambos os lados, liquidaria com a raça humana. Mais do
que isto, como veremos mais à frente quando tratarmos de A Espingarda, havia à época uma
disputa política de influências por parte das grandes potências. Não por menos veremos nas
narrativas de FC uma tendência do imperialismo intergaláctico e da representação metafórica
do outro, do inimigo, através da figura do extraterrestre, do alien – do que é exemplo o romance
Body Snatchers de Jack Finney, publicado em 1955 e que posteriormente em 1956 ganhou sua
versão para o cinema com o filme Invasion of the Body Snatchers.
O gênero também viu um crescimento considerável de seu público leitor ao longo da
década de 50. A FC se tornara uma literatura mais madura e passou a contar não somente com
o suporte verbal literário, mas também com filmes e histórias em quadrinho. Mas não foi
somente isto. Durante o período, os editores começaram a utilizar o formato de brochura em
suas publicações, o que permitia um custo de produção menor para os livros. Isto fez com que
sua distribuição se visse aumentada e, graças ao desenvolvimento econômico e cultural da
sociedade americana, passou a haver um público para consumi-los (cf. JAMES, op. cit.:82). Os
romances foram, aos poucos, ocupando espaços que antes pertenciam aos magazines Pulp.
Este crescimento da FC acabou por levá-la a uma saturação do gênero e na década de
60 teremos um movimento de busca por novas ideias. A este tempo, a FC já contava com um
número considerável de publicações e autores – lembremo-nos que a consolidação do gênero
data do começo da década de 20 – e se tornava cada vez mais difícil produzir algo novo para
um gênero que aparentava dar sinais de exaustão. Surge então o que foi denominado de New
Wave da FC, termo surgido à época e com inspiração do similar nouvelle vague.
Na Inglaterra, o movimento teve como seu principal representante Michael Moorcock.
Moorcock chegou a ser convidado para fazer um editorial da revista New Worlds, que pertencia
anteriormente a John Carnell, e deixou registradas suas impressões quanto à saturação em voga
na FC. Em 1964, tornado editor da revista, Moorcock incentivou seus escritores a utilizarem
estruturas narrativas menos convencionais, preocupando-se com a forma e o estilo de suas
histórias e estes passaram também se preocupar mais com o impacto sociológico e psicológico
de suas ideias (cf. MANN, op. cit.:18). Enquanto autor, suas histórias também adquiriam um
tom de experimentalismo que as distinguisse das FCs mais tradicionais.
Neste momento, seguindo a tendência pessimista da década de 50, a ciência já não
passava a gozar da crença racional de que com o progresso tecnológico todos os problemas do
homem seriam solucionados. A própria ideia de uma realidade objetiva independente de nossas
96

percepções também passará a ser questionada e a FC se voltará cada vez mais para questões de
ordem subjetiva – as fronteiras entre a realidade e nossa percepção se tornarão imprecisas
especialmente se considerarmos o uso crescente à época das drogas psicodélicas. Um dos
principais nomes que explorarão esta temática de questionamento da realidade será o
consagrado Philip K. Dick; ainda que este, por sua vez, nunca tenha declarado ter se identificado
ou associado com a New Wave. Convém ainda mencionar que, ao longo da década de 60,
permaneceram os anseios de um conflito bélico de proporções atômicas envolvendo Estados
Unidos e URSS, ainda mais quando da crise dos mísseis de Cuba em 62.
Se o movimento na Inglaterra ficou marcado pela atuação literária e editorial de
Moorcock, ou ainda considerando as antologias England Swings SF (1968) organizada por
Judith Merril e Dangerous Visions (1967) por Harlan Ellison, que traziam textos que certamente
não seriam aceitos pelas revistas tradicionais do gênero, nos Estados Unidos não podemos dizer
que houve algum tipo de organização mais coesa em torno de um ideal específico a ser seguido
pelos escritores – ainda que houvesse ocorrido “a um mesmo tempo uma concatenação de
talentos, trazendo novas ideias e novos padrões para FC (JAMES, op. cit.:132)” [tradução
própria]65.
É preciso entendermos ainda que a década de 60 foi marcada, tanto nos Estados Unidos
quanto no resto do mundo por muitas preocupações e novos movimentos sociais; destruição
ecológica, superpopulação, envolvimento dos Estados Unidos no Sudeste Asiático em ações
bélicas amplamente divulgadas nos media, auge do terrorismo organizado, revolução sexual,
movimentos estudantis de 68 ou ainda o movimento hippie (cf. CARDOSO, 1998:24). A FC
não poderia ficar alheia a todas estas mudanças e transformações. E, desta vez, já como um
fenômeno de cultura popular.
O processo de renovação na FC ao longo da década de 60 tornou o gênero ainda mais
respeitado e consumido, com temáticas cada vez mais heterogêneas, indo desde a manutenção
dos clássicos de space opera a visões pessimistas do futuro, passando por romances explorando
os efeitos psicológicos da vida militar. Isto se estendeu pela década de 70 e o período trouxe
ainda para o gênero alguns novos traços. Em primeiro lugar, as mulheres passaram a ter suas
representantes no gênero, destacadamente Ursula Le Guin e Octavia Butler – o que não seria
nenhuma surpresa considerando a ascensão do movimento feminista à época. Em segundo
lugar, é na década de 70 que começa a ganhar corpo uma crítica acadêmica especializada em
FC; o que começara já nos anos 60 com Kingsley Amis, da Universidade de Princeton e seu

65
No original em inglês: “[…] a concatenation of talent occurring at the same time, and bringing new ideas and
new standards to the writing of sf”.
97

estudo New Maps of Hell (1960) e que ganhou ainda mais vigor com os periódicos Foundation
na Inglaterra e Science-Fiction Studies nos Estados Unidos. Por fim, foi também na década de
70 que a FC saiu das páginas de livros e revistas para se lançar nas telas do cinema. Como
aponta James (op. cit.:145), alguns dos maiores líderes de bilheteria à época foram de filmes de
FC: Star Wars (1977) de George Lucas, Close Encounters of the Third Kind (1977) de Steven
Spielberg e Alien (1979) de Ridley Scott.
Na primeira metade dos anos 80 duas obras marcarão a FC: o filme Blade Runner (1982)
de Ridley Scott – adaptação para cinema de Do Androids Dream of Electric Sheep? (1968) de
Philip K. Dick – e o romance Neuromancer (1984) de William Gibson. Estas obras se destacam
das demais em meio ao surgimento de um público de leitores que, entusiasmados pelas
produções cinematográficas com marcada influência da FC, como citamos anteriormente,
passam a buscar na literatura aventuras similares àquelas experienciadas através das grandes
telas. O gênero acabou com isso tendo boa parte das suas publicações muito mais marcadas
pelos imperativos comerciais de um mercado em crescimento, apropriando-se especialmente
dos temas mais tradicionais e das convenções da Golden Age do que dos avanços estéticos da
New Wave (cf. ROBERTS, 2006:302).
Nos anos 80, a forma como se representavam as interações entre sociedade e uma
tecnologia que se via cada vez mais como algo cotidiano, especialmente graças ao
desenvolvimento da computação, acabaram por se tornar um paradigma para um gênero que se
formava: o cyberpunk. Com sua estética noir e realista, suas obras apresentavam uma
preocupação tanto com a forma quanto com o conteúdo. Seus protagonistas não eram heróis
com habilidades ou inteligência especiais, mas homens comuns, citadinos e cercados por um
ambiente tecnológico; que, se por um lado oferecia uma série de gadgets, por outro, era descrito
em termos distópicos, em meio à criminalidade, pobreza e corrupção, tanto por parte de
corporações quanto por parte do governo (cf. MANN, op. cit.:22-3). Clute e Nicholls (1995),
em verbete sobre o gênero, partem do termo e suas unidades para caracterizar o movimento:

[...] [cyber] relaciona-se a cibernética: a um futuro onde blocos políticos e industriais


podem ser globais (ou centrados em habitats espaciais) mais do que nacionais, e
controlados através de redes de informação; um futuro no qual implantes maquinários
ao corpo humano são um lugar comum, assim como modificações corporais e mentais
proporcionadas por drogas e engenharia biológica [tradução própria] 66.

66
No original em inglês: “The ‘cyber’ part of the word relates to CYBERNETICS: to a future where industrial and
political blocs may be global (or centered in SPACE HABITATS) rather than national, and controlled through
information networks; a future in which machine augmentations of the human body are commonplace, as are mind
and body changes brought about by DRUGS and biological engineering”.
98

Já a expressão punk vem da terminologia do rock'n'roll dos anos 70: “neste contexto jovem”
conota “conhecimento da vida das ruas, agressivo, alienado e ofensivo ao Establishment (id.,
ibid.)” [tradução própria]67. Considerando as palavras de Morano (2010:9), pode-se dizer ainda
que muitas obras cyberpunks “dramatizam, exploram ou reagem contra o capitalismo
multinacional, construindo uma atmosfera distópica e paranoica de opressão, degradação do
meio ambiente e enfraquecimento dos ideais humanistas nas democracias ocidentais”.
Há ainda que se considerar que na década de 80 a FC continuou a imprimir
crescentemente suas marcas em produções simbólicas mais populares e em diferentes diversos
suportes. Não somente a produção cinematográfica continuou a assimilar as temáticas do
gênero, como também o fizeram séries de TV, histórias em quadrinhos e outros. E isto, como
aponta Cardoso (op. cit.:26), sem levar em conta também que todo este mercado em torno do
gênero envolve ainda bonecos, camisetas e outros produtos que movimentam um grande
montante financeiro em ações de marketing68.
Podemos dizer, de modo bastante abrangente, que o cyberpunk é, ao menos para a
historiografia da FC, o último grande marco ao longo de seu percurso em que um conjunto de
temas e características minimamente distintas daqueles de seus contemporâneos se destacou.
Isto é, não cabe falarmos aqui de uma tendência mais específica ao longo das últimas décadas
do século XX e nem estamos cronologicamente distantes o suficiente das primeiras do século
XXI para verificar suas especificidades. Pode-se dizer, não obstante, como apontam Clute
(2003:64) e Roberts (op. cit.:295), que o formato romance já não apresenta o mesmo vigor de
antigamente e não é mais o suporte semiótico central para a FC, que, nos últimos tempos, como
já destacamos, estendeu-se para as salas de cinema, televisão, e, mais recentemente, para a
internet e jogos de computador, dentre outros já mencionados. Caberia ainda falar aqui em uma
popularidade crescente da narrativa distópica – conforme apontamos na seção 3.3 – e que, como
veremos mais à frente, estabelece grandes vínculos com a FC, sendo, portanto, um equívoco
dizer que a FC tenha perdido seu vigor na contemporaneidade.
Dito de modo sintetizado e para que encerremos esta seção, pudemos verificar a) que a
FC finca suas raízes precisamente no século XX, quando tendências já presentes em outras
formas literárias anteriores são apropriadas por um gênero que aos poucos consolida-se como

67
No original em inglês: “The ‘punk’ part of the word comes from the rock'n'roll terminology of the 1970s, ‘punk’
meaning in this context young, streetwise, aggressive, alienated and offensive to the Establishment”.
68
Tomando o gênero cyberpunk como objeto de pesquisa, Amaral o decompõe a partir de quatro “ordens distintas:
literária (o movimento cyberpunk como subgênero da Ficção Científica), tecnológica e cultural (como elemento
estético da cibercultura), social (enquanto subcultura) e cinematográfica (AMARAL, 2006:17)”. Isto endossa a
caracterização feita na seção 4.1 da FC dispondo de um suporte multi-semiótico.
99

algo distinto, b) que a FC se coloca diante de seu público inicialmente através de revistas, em
seguida através de livros, para ao final da segunda metade do século XX fazer-se presente em
filmes, na TV e em outros suportes semióticos, sendo assimilada em termos mercadológicos e
c) que a FC não se absteve das transformações políticas e sociais ao longo de sua história, sendo
por ela fortemente influenciada, o que se verifica em suas obras.
Por fim, cabe aqui reconhecermos, criticamente, que boa parte das obras sobre a história
do gênero concentra boa parte de seus esforços de pesquisa e análise em obras de língua inglesa
e mais especificamente naquelas escritas e publicadas nos Estados Unidos – com alguma
menção, de maior ou menor destaque para a versão inglesa do gênero. Neste sentido, falar em
percurso histórico do gênero significa falar em percurso histórico do gênero nos Estados
Unidos. O que, se por um lado, acaba por dar menos relevância à FC produzida na Rússia, no
Japão ou na América Latina – sobre o que podemos, com algum esforço, encontrar literatura
adequada – justifica-se, por outro, por concentrar-se nos Estados Unidos o maior público
consumidor do gênero, cujas idas e vindas ao longo da história, escritores e obras serviram de
referência para a literatura produzida em outros países; cada qual, naturalmente, a seu modo,
abordando questões e contradições pertinentes às suas configurações sociais e a seu percurso
histórico.

4.3. Ficção Científica em solo tupiniquim

Falar de Ficção Científica Brasileira (doravante FCB) significa percorrer por caminhos
para muitos ainda desconhecidos. E nos referimos aqui não somente em termos de um público
específico que seja mais facilmente identificável, como também em termos de crítica
especializada, acadêmica ou não. Se há algo que parece ser inquestionável acerca da FCB é a
sua discreta presença. Não obstante, passados mais de um século desde as publicações das
primeiras obras a tematizar elementos da FC, podemos hoje dizer que, a despeito desta
discrição, há uma rica e prolífica história do gênero em terras brasileiras. Tal como fizemos na
seção anterior, o que será apresentado nas linhas a seguir corresponde a um trabalho de
cotejamento de textos voltados direta ou indiretamente para a história da FCB. Diferentemente
da FC produzida em língua inglesa, é escassa a produção de obras voltadas exclusivamente para
uma História da FCB – cabendo aqui, porém, mencionar Ficção Científica, Fantasia e Horror
no Brasil (2003) de Roberto Sousa Causo e Ficção Científica Brasileira – Mitos culturais e
Nacionalidade no País do Futuro (2005) de M. Elizabeth Ginway, professora da Universidade
da Florida; cuja obra é uma das de maior referência em literatura secundária de FCB.
100

Naturalmente, o que apresentamos aqui é tão somente um breve esboço historiográfico da FCB,
tanto para fins de contextualização do gênero no Brasil quanto para fins analíticos,
compreendido o fato de que cada obra apresentada no capítulo 5 relaciona-se com o momento
histórico da FCB de seu tempo.
Falando inicialmente dos precursores, ou de uma “proto-FCB”, o gênero tem seus
primeiros marcos na segunda metade do século XIX com as publicações do conto O imortal e
a novela O alienista, ambos publicados em 1882, do livro O Doutor Benignus (1875) do
português naturalizado brasileiro Augusto Emílio Zaluar e ainda Páginas da História do Brasil,
Escritas no ano 2000, publicada como folhetim de 1868 a 1872 no jornal O Jequitinhonha por
seu próprio dirigente, o jornalista Joaquim Felício dos Santos (cf. CAUSO, 2006). Em termos
estritos, não cabe dizer que neste período havia uma FCB consolidada, com um círculo de
produção ciente do gênero que estivesse consolidando. Podemos dizer, contudo, que uma
reflexão sobre o futuro, ciência e tecnologia já se via presente em autores brasileiros.
Isto ficou ainda mais latente durante as primeiras décadas do século XX, em que foram
publicados São Paulo no Ano 2000, ou Reneração Nacional (1909) de Godofredo E. Barnsley,
A Amazônia misteriosa (1925) de Gastão Cruls, o controverso O presidente negro69 (1926) de
Monteiro Lobato, A república 3000 (1930) de Menotti Del Picchia, o pouquíssimo conhecido
O outro mundo (1934) de Epaminondas Martins (cf. OTERO, op. cit.:188), Viagem à aurora
do mundo (1939) de Erico Veríssimo, dentre outros. No período, verificam-se influências dos
chamados romances científicos de Verne e Wells, termo que, como vimos anteriormente,
designava as primeiras obras de FC antes da consolidação do gênero e da utilização do termo
science fiction.
Destacam-se ainda os nomes de Berilo Neves e Jerônymo Monteiro, este de São Paulo
e aquele do Rio de Janeiro e que, enquanto pioneiros da FCB, “trouxeram uma sensibilidade
pulp” ao gênero (CAUSO, 2009:16). Berilo Neves foi o autor de várias publicações em revistas
e jornais nas décadas de 20 e 30, tendo feito bastante sucesso a seu tempo. Por sua vez,
Jerônymo Monteiro foi autor de 3 Meses no Século 81 (1947), A cidade perdida (1948), Fuga

69
Em sua narrativa, Lobato apresenta a invenção “porviscópio”, de um de seus personagens, através da qual era
possível ver o futuro. Neste futuro, conforme apresentado na obra, há uma vitória eleitoral dos negros nos Estados
Unidos, no ano de 2228. Inconformados, os brancos criam então um método para deixar os cabelos lisos – o que,
na narrativa, como esperado se tornou desejo dos negros. Entretanto, este método não se limitava a uma mudança
visual simples; através deles os negros se tornavam estéreis – eis a represália dos brancos por conta de sua derrota
nas urnas. A obra teve sua publicação recusada por editoras nos Estados Unidos, certamente por seu teor racista e
no Brasil, trata-se de uma obra pouquíssimo conhecida e ofuscada pelos outros clássicos de Monteiro Lobato. Vale
mencionar ainda o caso de tentativa de censura a algumas passagens dos livros Caçadas de Pedrinho e (1933) e
Negrinha (1920) por apresentarem um teor racista. Em 2012, o Instituto de Advocacia Racial e Ambiental (Iara)
levou à Secretaria de Promoção da Igualdade Racial a denúncia que foi levada ao Supremo Tribunal Federal. O
processo, ao que consta, ainda não foi concluído.
101

para parte alguma (1961), além de diversos outros contos e romances. Jerônymo ainda fundou
a Sociedade Brasileira de Ficção Científica, em 1964, trabalhou como editor da Magazine de
Ficção Científica (edição brasileira da revista norte-americana The Magazine of Fantasy and
Science Fiction), foi o criador do personagem Dick Peter, surgido em de radionovelas, gibis e
outros formatos, editou a antologia O Conto Fantástico e por muito tempo escreveu para o
jornal A tribuna, de Santos, sobre FC (cf. BOURGUIGNON, 2015).
Em 1958, foi publicada a primeira antologia de FC no Brasil, Maravilhas da Ficção
Científica, pela editora Cultrix, e que contava apenas com autores internacionais. Neste mesmo
ano, Rubens Teixeira Scavone publicou O Homem que Viu o Disco-Voador, e que, ao lado de
Jerônymo Monteiro, irá se associar a Gumercindo Rocha Dorea, editor responsável pela coleção
Ficção Científica GRD, um conjunto de publicações entre 1960 e 1965 que impulsionou o
mercado editorial da FCB e se tornou um marco para o gênero no país. Dorea representou um
dos maiores esforços para o lançamento de novos autores da FCB, além de ter incentivado
outros já consagrados a se aventurarem no gênero. Dorea foi o primeiro a reunir numa coletânea
contos nacionais de FC, publicados na Antologia Brasileira de Ficção Científica, em 1961, e,
no mesmo ano, a segunda, Histórias do Acontecerá. Diversos autores tiveram suas obras
publicadas graças a Dorea, tendo o próprio afirmado, como registrado em texto da seção
Literatura do Jornal do Brasil de 04/03/1961, página 3, que sua iniciativa “devia se converter
em obrigação moral de todos os órgãos de imprensa, visando fazer surgir novos elementos na
permanente evolução intelectual que é própria de todo e qualquer país que se preze”. Este
esforço de Dorea levou Fausto Cunha, crítico de literatura e escritor – cuja coletânea de contos
As Noites Marcianas foi publicada por Dorea em 1960 – a denominar toda a produção literária
de FCB da década de 60 de Geração GRD (cf. CUNHA, 1974:9), alcunha que se mantém até
os dias atuais e que dificilmente se ausenta de textos voltados para a história do gênero no
Brasil.
Gumercindo Rocha Dorea levanta ainda questões de ordem biográfica no mínimo
interessantes e sobre o que não costuma haver menções na literatura sobre a história da FCB.
Integralista que era, o editor, antes de aventurar-se na FC, chegou a publicar em suas Edições
GRD obras de Plínio de Salgado e outras vinculadas ao movimento integralista (cf.
CHRISTOFOLETTI, 2010:209). Mais do que isto, como registra o Jornal do Brasil em edição
de 27/06/1981, página 8, em reportagem baseada no livro 1964: a Conquista do Poder – Ação
Política, Poder e Golpe de Classe, escrito como tese de doutorado do professor uruguaio René
Armand Dreifuss, Dorea era vinculado à produção editorial do Instituto de Pesquisa e Estudos
Sociais (IPES). O instituto foi responsável por uma sistemática campanha de desestabilização
102

do governo de João Goulart pouco antes do golpe de 64, além de ter realizado uma série de
campanhas anticomunistas. O que nos chama a atenção, apenas para citar um exemplo, é a
vinculação de Dorea com Jerônymo Monteiro, que, em seu conto Copo de Cristal publicado
em sua coletânea Tangentes da Realidade pela Quatro Artes Editora em 1969, retrata a
violência sofrida pelos comunistas (e supostos comunistas). Ainda mais se levarmos em conta
o fato de que Monteiro publicou sob o selo GRD sua obra Fuga para parte alguma (1961), aqui
já mencionada. Como não se trata neste trabalho de nos aprofundarmos sobre esta questão,
deixemos registrado, entretanto, este aspecto pouco comentado e sobre o que já há um trabalho
publicado70.
Além do trabalho editorial de Dorea, a FCB contou, também década de 60, com as
publicações da Edart, dentre as quais se destaca a antologia Além do Tempo e do Espaço: 13
contos de Ciencificção, publicada em 1965; bem como outros autores que se tornaram
consagrados para a FCB através de sua coleção Ciencificção (cf. CAUSO, 2007:17).
Cabe mencionar que ainda neste período, precisamente em 1965, ocorreu em São Paulo
a primeira Convenção Brasileira de Ficção Científica, que contou também com a publicação do
primeiro fanzine de FCB, de nome O CoBra. Nela foi também fundada a Associação Brasileira
de Ficção Científica. Outro evento importante foi o Simpósio de FC, em 1969, de âmbito
internacional e no qual estiveram presentes Harry Harrison e Brian Aldiss, tratando-se do
primeiro enconto internacional da história da FC (cf. id., ibid.:20).
Como não poderia deixar de ser, a instauração da ditadura militar não tardaria a imprimir
seus efeitos na história da FCB. Se até a segunda metade da década de 60 ainda se podia
verificar uma produção consistente para o gênero, o mesmo não pode ser dito da década de 70
– não nos esqueçamos da promulgação do Ato Institucional de número 5, o mais autoritário do
regime. Dada a circunstância histórica tão peculiar, a reflexão feita por Ginway (2005) sobre o
período nos parece ser digna de menção. Tomando como centro de suas análises as obras
Fazenda Modelo (1974) de Chico Buarque de Holanda e o Fruto do Vosso Ventre (1976) de
Herberto Sales, Umbra (1977) de Plínio Cabral e O Homem que Espalhou o Deserto e Não
Verás País Nenhum, ambos de Ignácio Loyola Brandão, a autora argumenta que o tema da
distopia71 será um dos elementos que marcará a produção da FCB na década de 70. A
funcionalização literária do conceito de distopia será uma forma de crítica ao projeto militar de

70
Ver artigo completo, ao qual fizemos referência neste parágrafo, de Rodrigo Christofoletti, com o título A
controvertida trajetória das Edições GRD – entre as publicações nacionalistas de direita e o pioneirismo da
Ficção Científica no Brasil. Nele encontramos inclusive passagens do próprio Dorea sobre a questão.
71
Ver seções 3.3 e 3.4 deste trabalho.
103

modernização forçada72 do país e ao próprio regime em si. A ideologia tecnocrática via na


extrapolação ficcional negativa do usos da tecnologia seu contraponto literário; do que as
ecodistopias, como Umbra, a primeira distopia brasileira focada especialmente na questão
ecológica, são um exemplo.
Com a gradual abertura política ocorrida no Brasil ao longo da década de 80,
culminando com o marco do fim da ditadura em 1985, o Brasil se via em condições de voltar a
produzir literatura sem os temores dos anos de chumbo. Para a FCB, os anos 80 foram um
marco de expansão do público consumidor do gênero se considerarmos o surgimento do Clube
de Leitores de Ficção Científica, fundado por Roberto César do Nascimento no ano de 1987,
em São Paulo, bem como a criação de um fandom – termo de origem inglesa para designar um
grupo de fãns – para o gênero. Conforme aponta Bourguignon (op. cit., s.p.), “[e]sse movimento
de fãs foi o pilar para enraizar a presença do gênero em suas diversas manifestações no cenário
brasileiro, editando revistas, livros e fanzines, além de criarem prêmios econcursos (Nova,
Argos, entre outros)”. Dentre estas revistas, destacam-se a Star News e o Boletim Antares,
surgidas por volta de 1981-82. Este crescimento de público leitor vincula-se a um mesmo
crescimento experienciado pela FC de língua inglesa, cuja mola propulsora foi a apropriação
dos temas do gênero por outros suportes semióticos de cultura de massa, especialmente as
produções cinematográficas, muitas das quais tiveram sua reprodução também no Brasil.
Destaca-se ainda a produção de literatura secundária sobre o gênero, com a publicação de
Ficção Científica: Ficção, Ciência ou uma Épica da Época de Raul Fiker em 1985, O Que É
Ficção Científica de Braulio Tavares no mesmo ano, Ficção Científica de Gilberto Schoereder
em 1986 e Introdução a uma História da Ficção Científica de Léo Godoy Otero em 1987 – um
indicativo da consolidação do gênero no Brasil.
Até o momento, mantendo-se nas linhas de boa parte dos textos utilizados aqui como
base para este nosso esboço da história da FCB, atentamos muito mais para os elementos extra-
literários do gênero do que para movimentos temáticos mais específicos, como se pôde verificar
na seção anterior sobre a FC de língua inglesa. Isto pode se justificar tanto pela discreta força

72
Cabe aqui a longa, porém precisa passagem de Ferreira & Bittar (2008:335): “Os governos militares adotaram
um movimento político de duplo sentido: ao mesmo tempo em que suprimiam as liberdades democráticas e
instituíam instrumentos jurídicos de caráter autoritário e repressivo, levavam à prática os mecanismos de
modernização do Estado nacional, no sentido de acelerar o processo de modernização do capitalismo brasileiro.
Em síntese: propugnavam a criação de uma sociedade urbano-industrial na periferia do sistema capitalista mundial,
pautada pela racionalidade técnica. No lugar dos políticos, os tecnocratas; no proscênio da política nacional, as
eleições controladas e fraudadas; no âmbito do mundo do trabalho, a prevalência do arrocho salarial; na lógica do
crescimento econômico, a ausência de distribuição da renda nacional; na demanda oposicionista pela volta do
Estado de direito democrático, a atuação sistemática dos órgãos de repressão mantidos pelas Forças Armadas: eis
como a ditadura militar executou o seu modelo econômico de aceleração modernizadora e autoritária do
capitalismo no Brasil”.
104

literária que o gênero apresenta no Brasil, quanto pelo fato de ter este se fixado no país em um
momento em que a FC produzida nos Estados Unidos e Inglaterra já tinha explorado uma série
de temas e experienciado diferentes tendências ao longo de sua história. Isto significa que
aqueles que porventura partissem de obras estrangeiras para obterem alguma inspiração já
dispunham de uma pluralidade de motivos para suas obras. Sem correntes definidas no Brasil,
caberia então a cada escritor se apropriar daquilo que mais se lhe adequasse para suas
composições literárias. É o que podemos verificar em Otero (op. cit.:185):

Sob outro prisma, tendências, situações, dentro dos ‘Períodos’ da história dessa
literatura, não podem ser especificadamente determinadas, pela razão ponderável de
ser a FC relativamente verde no País. Assim, de um modo geral, todas as teses são
retratadas: hibernação, Parapsicologia, Cibernética, tecnocracias futuras, atomismo,
viagens espaciais, temas ecológicos, tudo envolto por aquele sentido de cunho
nacional, onde se insere a filosofia do povo [...].

Já não cabe, porém, manter esta postura quando voltamos nossos olhares para os anos
80 e 90 na FCB. Pois, inicialmente naquela década e mantendo-se nesta, haverá uma
assimilação do gênero cyberpunk por parte de autores brasileiros – especialmente, como dito,
por conta das produções cinematográficas mais marcantes do gênero, consumidas aqui de modo
muito mais imediato do que suas obras literárias. Desenvolve-se então no Brasil, entre 1985 e
1995, utilizando o termo de Roberto de Sousa Causo, o gênero tupinipunk – fusão dos termos
tupiniquim e cyberpunk. Três obras são mencionadas pelo autor (2010:10) como sendo as mais
marcantes: os romances Silicone XXI de Alfredo Sirkis publicado em 1985 – com declarada e
notável inspiração do filme Blade Runner, aqui já mencionado – Santa Clara Poltergeist de
Fausto Fawcett publicado em 1991 e Piritas Siderais: Romance Cyberbarroco de Guilherme
Kujawski publicado em 1994. No tupinipunk, as tendências do gênero que lhe deu origem são
mantidas, com a diferença de que as produções brasileiras apresentam menos ação no
cyberespaço, concentrando suas narrativas mais nos espaços urbanos (cf. CAUSO, op. cit.:12).
Nas palavras de Ginway (op. cit.:157),

[o] cyberpunk brasileiro retrata um mundo no qual apenas os protagonistas têm corpos
fisicamente melhorados, e onde o foco está no submundo urbano de suas maiores
cidades e nas conspirações complexas, nacionais ou internacionais, em que eles estão
envolvidos, com uma ênfase na sexualidade e na violência física, ao invés de estar nos
eventos que se dão virtualmente.

O que não deve se colocar como uma surpresa, dado que nossas grandes metrópoles, assim
como em outros países desenvolvidos, mas em escala muito maior, são as grandes expositoras
de todas as contradições sociais engendradas pelo sistema capitalista ou mesmo pelo fenômeno
105

da globalização em que local e global estabelecem entre si uma relação de constante tensão; ou
ainda, se considerarmos o desenvolvimento científico nacional, cujos efeitos mesmos os mais
imediatos parecem ainda não atingir a população como um todo de modo mais efetivo.
A despeito da consideração que Fernandes (2007:74) faz acerca da década de 90, para
quem a produção de FCB foi escassa e limitada a fanzines ou “em uma ou outra coletânea
publicada às expensas de seus próprios autores e vendidas em (literalmente) menos de meia-
dúzia de livrarias em todo o Brasil, apenas pelo sistema de consignação”, a temática cyberpunk
se manteve enquanto uma tendência que se extendeu até a primeira década dos anos 2000.
Destacam-se nesta as obras Labirinto Digital de Mario Kuperman publicada em 2005, Os dias
da peste de Fábio Fernandes (o mesmo da citação anterior) publicado em 2009, Cyber
Brasiliana de Richard Diegues publicada em 2010 e a antologia Cyberpunk: Histórias de um
Futuro Extraordinário, publicada em 2010 e sendo a primeira do gênero no país – da qual,
inclusive, o conto O Trainee, que será por nós analisada no capítulo 5, faz parte. Outro sintoma
da permanência desta tendência são as obras de literatura secundária A Construção do
Imaginário Cyber: William Gibson, Criador da Cibercultura, também de Fábio Fernandes e
Visões Perigosas: Uma Arque-Genealogia do Cyberpunk de Adriana Amaral, ambas
publicadas em 2006.
Tal como fizemos ao final da seção anterior, cabe comentar que ainda não estamos em
condição de visualizar quais rumos a FCB tomará nestas primeiras décadas do século XXI. Se
anteriormente as tendências da FC de língua inglesa não eram recebidas de modo imediato por
autores e fans do gênero em solo tupiniquim, hoje já não podemos negar que as tendências dos
Estados Unidos ecoem imediatamente por aqui. Portanto, cabe aqui falarmos que o destacado
consumo de literatura distópica no exterior reverbera no Brasil; de que são exemplos as obras
anteriormente mencionadas em nota Admirável Brasil Novo (2011) de Ruy Tapioca, A ilha dos
dissidentes (2013) de Bárbara Morais e A torre acima do véu (2014) de Roberta Spindler.
Deve ainda ser levado em conta o trabalho das editoras Tarja e Devir na primeira década
do século XXI com as já mencionadas Cyberpunk: Histórias de um Futuro Extraordinário e a
antologia FcdoB: panorama 2008-2009 (2010), resultante de seleção feita através de concurso
literário, publicadas pela primeira; e Os Melhores Contos Brasileiros de Ficção Científica
(2007), Os Melhores Contos Brasileiros de Ficção Científica – fronteiras (2009) e Assembléia
Estelar: histórias de ficção científica política (2010), com contos de autores nacionais e
internacionais, publicadas pela Devir. E isto apenas para citar algumas obras. Não pecaríamos,
portanto, por excesso ao dizer que neste início do século XXI estamos experienciando um
aquecido mercado editorial para a FCB.
106

Considerados estes breves apontamentos acerca da história da FCB, não poderíamos


encerrar esta seção sem abordar um aspecto que é central para o gênero. Trata-se da sua
invisibilidade, de seu não-lugar, de sua marginalização. Algo que pode ser constatado sem
grandes esforços: tanto o indivíduo leigo, o leitor comum ou mesmo muitos acadêmicos
pesquisadores de literatura desconhecem qualquer nome consagrado do gênero ou dificilmente
se vê o rótulo de Ficção Científica em livrarias. Razões para tanto parecem não faltar.
Branco (2008) em seu artigo Por que a Ficção Científica Brasileira é invisível e
marginalizada? afirma, inicialmente, que pode haver três razões pelas quais a FCB ainda não
tenha alcançado o grande público: a) o fato de as pessoas não gostarem de ciência, b) de a FC,
enquanto uma “literatura importada”, poder não ser adequada à nossa realidade nacional e c)
de sermos um país com indicadores educacionais e tecnológicos baixos, o que mitigaria nosso
interesse por obras que em alguma medida envolvessem elementos tecnológicos. O autor
argumenta que estas justificativas não se aplicam mais à sociedade brasileira – cada vez mais
próxima das inovações tecnológicas no dia a dia e dispondo de universidades nacionais de
qualidade; e que não podemos dizer, especialmente considerando a história da FC no Brasil
conforme apresentamos aqui, que o gênero não tenha adquirido seus próprios traços brasileiros.
Para Branco, o que falta no país é um contexto editorial sólido que proporcione aos autores uma
divulgação atuante que conquiste o leitor e desenvolva o gênero, incentivando assim novos
autores a se insererem no meio, promovendo uma sadia competição por histórias de qualidade.
Esta carência do meio editorial indica ainda a falta de “lideranças intelectuais engajadas em
torno de um projeto idealista, ligado à ficção científica (ibid.)”, de que Gumercindo Roca Dorea
é um exemplo a se ter em mente. Isto faz com que o os autores não sejam reconhecidos tanto
por parte dos próprios editores, quanto por parte da imprensa cultural, igualmente carente de
tais lideranças voltadas ao gênero.
Mont’alvão Júnior (2009) também se remete à questão do mercado editoral
mencionando o fato, anteriormente citado, de inexistir sequer um rótulo adequado ao gênero da
FC, cujas obras chegam a ser classificadas como literatura infanto-juvenil (cf. ibid.:385). O
autor menciona ainda o caráter elitista da crítica literária nacional que desconsidera o trabalho
do fandom, por não considerá-lo dispondo de um nível profissional adequado – a crítica dos
leitores de FC passa então a ficar restrita tão somente a seus próprios círculos, já inicialmente
limitados no Brasil. No meio jornalístico, seguindo o pensamento de Branco, a FC é posta de
lado junto a outras obras da cultura pop ou voltada para o estreito nicho dos tecnófilos. O que
também se verifica no meio acadêmico, em cujas faculdades de Letras ao longo do país o gênero
107

é deixado de lado em função da preferência por obras pertencentes à literatura canônica, sendo
considerada a FC uma literatura de menor prestígio.
Pereira (2005:118) destaca ainda a tradição marcadamente naturalista do cânone
brasileiro, o que levou a cultura brasileira a privilegiar “expressões estritamente realistas”73 – o
que nos parece válido se considerarmos até mesmo o pequeno espaço ocupado pela literatura
fantástica, mais ampla em termos do que a FC. Este mesmo cânone, prossegue a autora,
apropria-se das expressões populares tão somente na medida em que os mitos de nacionalidade
nelas representadas atendam a interesses das elites eruditas, que então passam a considerá-las
positivamente. Neste sentido,

[...] a literatura de massa de origens estrangeiras, e com ela a ficção científica,


simplesmente não se encaixa no equilíbrio simbólico das importações culturais. Não
é suficientemente erudita, nem enraizada no solo popular mestiço, dois aspectos
institucionalmente valorizados como características genuínas da cultura nacional (id.,
ibid.:119).

Acreditamos serem pertinentes todas as perspectivas aqui apresentadas e estas somadas


seguramente nos dão uma dimensão bastante precisa das origens do problema de
reconhecimento diante do qual a FCB se encontra. Nossas esperanças de que este quadro seja
alterado não é tão somente uma questão de filiação literária. Como argumenta Ginway (op.
cit.:35), “[p]elo fato de ser ao mesmo tempo brasileira e internacional, local e global, popular e
erudita, a ficção científica pode ser o meio cultural ideal, servindo tanto como sintoma quanto
cura para os males surgidos com a modernização e sua última encarnação, a globalização”. É
neste sentido que salientamos aqui a relevância da FCB para uma compreensão efetiva acerca
da história de nosso próprio país, especialmente considerando todas as transformações sofridas
ao longo do século XX e cujos efeitos são vistos até hoje. Não por menos optamos por uma
seleção de corpora que nos fizessem dialogar de um modo peculiarmente válido com tempos
nacionais passados e mais ainda com nossa própria contemporaneidade.

4.4. Utopia e distopia na Ficção Científica

Apresentamos no capítulo 3 deste trabalho os conceitos de utopia e distopia. Neste


momento, tendo já sido esclarecidos alguns dos aspectos mais centrais da FC enquanto gênero,

73
Um mesmo argumento se encontra em Ginway (op. cit.:29): “[...] a ficção científica brasileira, eu creio, tem
sofrido duplamente, primeiro por suas associações com ‘arte baixa’ e ficção popular, e segundo, por ser um gênero
imaginativo em um país que dá um alto valor ao realismo literário. A popularização do realismo mágico e do
fantástico tão prevalente em outros países da América Latina não é um princípio dominante na literatura brasileira”.
108

além de termos feito apontamentos acerca de sua história, mais detidamente nos Estados Unidos
e no Brasil, cabe aqui apresentarmos as interseções entre estes dois conceitos, verificando em
que medida os discursos utópico e distópico têm seu lugar na FC. Dando continuidade ao modo
de exposição que temos utilizado ao longo deste trabalho, apresentaremos aqui os apontamentos
que, ao longo de nossa pesquisa, consideramos os mais relevantes para, enfim, posicionarmo-
nos diante destes e desenvolvermos nossa própria perspectiva. Não será nosso objetivo
apresentar os diferentes momentos históricos em que a utopia ou a distopia se fizeram presentes
em maior ou menor grau ao longo da história da FC; realizaremos aqui uma reflexão de ordem
conceitual, considerando o que já apresentamos até o momento.
Comecemos por simplesmente “olharmos ao nosso redor”. Sem grandes esforços,
tomemos apenas alguns títulos (alguns inclusive citados ao longo deste trabalho), resultantes
de uma pesquisa bibliográfica mais superficial: Science between Utopia and Dystopia (1984)
de Everett Mendelsohn e Helga Nowotny, Phoenix Renewed - The survival and mutation of
Utopian Thought in North American Science Fiction 1965-1982 (1984) de Hoda Moukhtar
Zaki, Escalera al cielo – Utopía y ciência ficción (1994) de Daniel Link, Scraps of the
Untainted Sky – Science Fiction, Utopia, Dystopia (2000) de Tom Moylan, Learning from
Other Worlds – Estrangement, Cognition and the Politics of Science Fiction and Utopia (2000)
de Patrick Parrinder, Political Theory, Science Fiction, and Utopian Literature (2008) de Tony
Burns, Demanding the Impossible - Utopia, Dystopia and Science Fiction (2009) de Matthew
Ryan e Simon Sellars; e a lista certamente poderia ser ampliada se considerarmos artigos em
periódicos ou publicados em coletâneas com títulos menos chamativos. O que salta aos olhos,
mesmo àquele que nunca soube de quem se tratariam Wells ou Verne, é a estreita relação que
parece haver entre a FC, a utopia e a distopia. Entretanto, a despeito da quantidade de obras
sobre esta relação, elas tendem a apresentar duas lacunas. Em primeiro lugar, até onde se
verifica, não há ainda uma obra dedicada exclusivamente a traçar a história da FC em paralelo
com a dos conceitos de distopia e utopia. Em segundo lugar, e mantendo talvez um próprio
estilo do formato, a literatura secundária tende a dedicar boa quantidade de páginas com
análises mais aprofundadas acerca das principais obras que exemplifiquem a relação. Ao passo
que, por outro lado, são poucas as linhas dedicadas a uma explanação mais sistemática e
conceitual acerca do que justificaria esta imbricação, muitas vezes mostrada como algo já dado,
previamente sabido pelo leitor e sobre o que parece não haver grandes questionamentos. Por
conta disto, considerando estas duas lacunas mencionadas, nossa tarefa aqui já se coloca de
antemão como um desafio. Ademais, não pretendemos aqui reproduzir o formato que privilegia
as singularidades desta ou daquela obra; para o que, repetimos, já há vastas fontes. De modo
109

distinto, apresentaremos reflexões de caráter mais conceitual, valendo-se do que


desenvolvemos neste trabalho até o momento.
Capas de livros lidas, ousemos abrir alguns.
Suvin (1979:61) atesta taxativamente que a utopia não é um gênero em si, mas um
subgênero sociopolítico da FC. Ginway (2005:93) afirma que a ficção distópica é “geralmente
considerada um subgênero da FC”. Já, Sargent (1994:11) coloca a utopia em um mesmo nível
que a FC, estando ambas submetidas à categoria de ficção – em contraponto às de mito e textos
não-ficcionais – e sendo a distopia (ou “utopia negativa” nas palavras do autor) um subgênero
da utopia. Booker (1994:19), por sua vez, ainda que reconheça a semelhança que há entre a
distopia e a FC, distingue aquela desta por conta de seu marcado conteúdo social. Como
podemos verificar, e certamente há diversos outros nomes por serem citados que o reafirmem,
não são consensuais os níveis de classificação aos quais são submetidos, uns em comparação
aos outros, a FC, a utopia e a distopia.
Posicionamo-nos de maneira bastante pragmática acerca da questão. Consideradas as
características fundamentais tanto da distopia quanto da distopia, conforme apresentamos neste
e no capítulo anterior, aos nossos olhares, basta que, através de um exercício hermenêutico,
estas características sejam verificadas em cada obra em questão, considerando todas as
implicações discursivas – nos três níveis, conforme a teoria tridimensional de Fairclough74 –
daí decorrentes. Cremos que o trabalho analítico e interpretativo não deve se preocupar com
relações de hierarquia entre FC, utopia e distopia. Estes, enquanto gênero discursivo\conceitos
adquirem uma materialização verbal literária que não é e nem deve ser hermética, sob risco de
perderem seu valor estético e singularidade artístico-criativa. Neste sentido, dispondo eles
igualmente de um mesmo suporte verbal literário, trata-se muito mais de se verificar as relações
de complementariedade que estabelecem um com o outro nas obras do que determinar qual é
subgênero de qual. Portanto, há obras que apresentam a um mesmo tempo componentes da FC
e da literatura utópica ou distópica.
Considerado este aspecto classificatório, devemos tomar como ponto de partida para
entendermos a relação entre, primeiramente, a utopia e a FC seus percursos históricos e
materializações literárias. Como verificamos anteriormente, a utopia, enquanto conceito, pode
ser entendida a partir de sua forma de impulso e que se vê materializada verbalmente, seja
através de textos filosóficos, políticos, míticos\religiosos ou, enfim, literários. Apresentamos
ainda o argumento de que, tal como a ideia de um lançamento do homem na história, mobilizado

74
Ver seção 2.3.
110

pelas transformações sociais, políticas, culturais e filosóficas levadas a cabo inicialmente pelo
Renascimento e em seguida pelo Iluminismo, o impulso utópico, que inicialmente adquiria
formas de explanação filosófica ou literária, adquire traços cada vez mais políticos e de atuação
mais concreta na realidade. Com Marx e seu projeto emancipatório, o impulso utópico ganhará
seus traços mais objetivos de transformação social, o que fará com que, como aponta Kumar
(2000:251), as utopias em suas formas literárias, que atingiram seu auge no século XVIII,
cedam lugar aos programas utópicos socialistas.
Contudo, é neste momento de profusão e obras literárias que verificaremos uma
relevante mudança de paradigma, fundamental tanto para a FC quanto para a história do
discurso utópico. Trata-se do momento em que a eutopia converte-se em eucronia, ou, dito de
outro modo, quando a utopia se torna ucronia. Isto é, trata-se de uma transformação da
imaginação utópica que, se num primeiro momento, situava o bom lugar em algum topus
distante, desconhecido, outro, passará a situar o bom lugar em um tempo distante, porém o
tempo mesmo. Se as contradições se viam superadas até então em uma ilha distante, com o
viajante acabando por voltar à sua Heimatland posteriormente, caberá ao futuro reservar esta
superação. Esta mudança de pensamento ocorre na segunda metade do século XVIII, tendo seu
marco com a publicação de L'An deux mille quatre cent quarante: Reve s'il enjut jamais,
publicado em 1771 anonimamente pelo francês Louis Sébastien Mercier (1740-1814).
Tomando as palavras de Alkon (1987:127), Mercier

[...] inicia um novo paradigma para a literatura utópica, não somente por apresentar a
ação de sua narrativa num futuro específico cronologicamente conectado com nosso
passado e presente, mas, de modo ainda mais crucial, por caracterizar este futuro como
estando vinculado à ideia de progresso, ligado imediatamente, portanto, de modo
causal ao tempo do leitor [tradução própria]75.

Nas utopias literárias anteriores, conforme argumenta Baczko (1979:159-60), a fratura


topográfica que existe entre o espaço do narrador e aquele da ilha a ser visitada – ou qualquer
“lócus isolado” (cf. SUVIN, 1979:50) – é antes uma fratura temporal, na medida em que não
há uma vinculação histórica entre esta ilha e aquele espaço. O tempo em que decorre a narrativa
se torna vazio uma vez que não se configura como uma experiência histórica real, pois ele não
corresponde ao tempo do narrador e do leitor. O que já não ocorre em L’an..., quando a viagem
imaginária substitui a categoria do espaço pela do tempo (cf. Baczko, op cit.:170).

75
No original em inglês: “Mercier's resort to uchronia, on the other hand, initiates a new paradigm for Utopian
literature not only by setting action in a specific future chronologically connected to our past and present but even
more crucially by characterizing that future as one belonging to progress and thus linked causally if not
immediately to the reader's time”.
111

Com esta mudança na materialização literária da utopia, o conceito passa a apresentar


um elemento em comum com o gênero da FC: a ideia de futuro. E esta categoria, que, como
vimos, constitui um dos elementos temáticos centrais da FC, tal como no gênero não é
instrumentalizada na ficção utópica enquanto um fim, mas como um meio. É no futuro que a
realidade objetiva à época do autor da utopia literária pode se ver, ficcionalmente, extrapolada
e apresentando assim a superação positiva do status quo.
Mas o que deve ainda ser mais especialmente apreciado para que possamos verificar as
interseções entre a FC e a utopia é o fato de que L’an... pode ser considerada como uma das
obras fundadoras do gênero – cerca de 50 anos antes de Frankenstein de Mary Schelley. E não
poderia deixar de sê-lo. Não poderíamos falar de qualquer progresso futuro – progresso esse
com tons utópicos na narrativa76 – sem que nos remetêssemos também ao desenvolvimento da
ciência e da técnica à época. Trata-se precisamente do momento de florescimento da
modernidade, em que a crença de que o desenvolvimento do conhecimento humano poderia
levá-lo a uma organização social ideal. Mercier, sem que ao dizê-lo se diminua a importância
de seu nome, é um fruto das ideias de “Voltaire, Rousseau, Diderot, Montesquieu, Raynal, o
abade de Saint-Pierre ou Beccaria”, enfim, da “fração esclarecida” do século XVIII
(TROUSSSON, 1982:3). Mercier traduz em sua obra a concepção de história surgida na
modernidade que rompe com as escatologias religiosas anteriores e vincula-se a uma nova ideia
de progresso. Pois, “[s]omente com o progresso moderno, como fato e ideia, surge a
possibilidade de se considerar que todo o passado é uma etapa preparatória para o presente e de
que todo o presente é uma etapa preparatória para o futuro (JONAS, 2006:55)”. Portanto,
verificamos com L’an... o compartilhamento da categoria do futuro entre a literatura utópica e
aquela que posteriormente se desenvolveria e se consolidaria como literatura de FC.
Stableford e Langford (2015) no verbete “Utopias” da Encyclopedia of Science Fiction
sustentam ainda que é possível considerar que todas as utopias sejam FC na medida em sejam
exercícios de hipóteses sociológicas e de ciência política. Uma perspectiva mais plausível seja
a de incluir a literatura utópica no gênero somente se estas trazem consigo alguma noção de
avanço científico – o que, em nossa perspectiva, corresponderia à extrapolação do elemento
temático da ciência ou da tecnologia.

76
Segue breve resumo do caráter utópico da obra: “En 2440, le déisme raisonnable est devenu la religion
universelle, l’enseignement a dépouillé tout pédantisme, les sciences ont permis à l’homme de maîtriser la nature
et d’accroître son bien-être, la justice a été rénovée, la littérature épurée, la monarchie révisée selon le principe
de la séparation des pouvoirs, l’économie (essentiellement agricole) assure à chacun un honnête confort et la paix
universelle a fait de tous les hommes « une seule et même famille rassemblée sous l’œil du père commun »
(TROUSSSON, 1982:1)”.
112

Williams (1994:110) sustenta que as ficções utópicas podem ser classificadas em quatro
tipos: o paraíso, o mundo modificado externamente, o mundo modificado via transformação
voluntária e o mundo transformado pela tecnologia. Ora, se a noção de progresso que
possibilitou a assimilação por parte da literatura utópica da categoria do futuro, elemento
temático central da FC, está diretamente vinculada aos crescentes avanços técnicos e científicos
do século XVIII e é possível que a ficção utópica tenha ficcionalmente a sua superação positiva
do status quo por vias da ciência e da tecnologia, fica então clara a vinculação desta com o
gênero da FC.
Ainda nos baseando na tipificação de Williams, há para uma das quatro formas utópicas
anteriormente apresentadas um correspondente antagônico; basta inverter a valoração positiva
para a negativa mantendo suas especificidades. Com isto, se o mundo pode ser positivamente
transformado por vias científicas e tecnológicas, estas podem ser de igual modo um meio para
uma transformação negativa. É neste sentido que os extremos utopia x distopia são aplicados à
FC em função do tipo de valoração que a extrapolação científica\tecnológica se verifica na obra
em questão. É como sustenta Fiker (1985:53):

No âmbito da FC propriamente dita, as utopias e distopias se referem frequentemente


ao destino do desenvolvimento tecnológico: as primeiras em termos de progresso e
harmonia com as máquinas, que satisfariam as necessidades do homem liberando-o
da carga do trabalho; as segundas tratando do descontrole tecnológico, da catástrofe
ecológica, do domínio da máquina sobre o homem.

Portanto, não somente a utopia e a distopia (e especialmente esta última) compartilham com a
FC o componente temático do binômio ciência\tecnologia, como os discursos utópico e
distópico são formas de valoração deste mesmo componente temático extrapolado no gênero.
Mais especificamente quanto à distopia, é uma consequência quase que direta e
inevitável que esta tenha sido assimilada pela FC. Se boa parte das representações negativas do
futuro do ser humano e de seu planeta têm como razão de ser o mau uso da ciência e da
tecnologia, somente um gênero que tivesse como seus conteúdos temáticos centrais o binômio
ciência\tecnologia e a ideia de futuro poderia fornecer os subsídios mais que necessários para a
literatura distópica. Mais do que isto, historicamente verificamos que a atitude distópica
imbrica-se com a FC já em seus primórdios; lembremo-nos de Frankenstein ou da Máquina do
tempo.
Portanto, sustentamos aqui que os conteúdos temáticos da FC se tornam comuns às
literaturas de utopia e de distopia, estabelecendo estes três relações de complementariedade
entre si em termos de produções literárias específicas. Isto é, uma obra pode ser considerada
113

como sendo de FC e dispondo de elementos utópicos ou distópicos – ou ainda, por ser uma
literatura de utopia ou de distopia dispondo de elementos de FC. Em termos de classificação
das obras, isto acaba por nos levar a uma tensão entre o quão FC pode ser uma obra utópica ou
distópica, ou o quão distópica ou utópica pode ser uma obra de FC. Como argumentamos
inicialmente, cada obra apresentará em diferentes medidas os elementos mais característicos da
utopia, da distopia ou do gênero da FC, cabendo tão somente a um exercício analítico mais
preciso verificar quais destes elementos se sobressaem e quais destes não.
Há ainda três temas77, que são compartilhados, em maior ou menor grau, pela FC e pelas
ficções utópicas e distópicas, reafirmando assim a relação de proximidade que há entre as três
formas literárias. São eles a cidade, a viagem e o mundo paralelo. Tratemos deles um a um.
Conforme aponta Delgado (2011:13), a cidade é um elemento substancial para a
literatura utópica, sendo impossível dissociar esta daquela. A cidade representa a nova formação
histórica e social que caracteriza a modernidade. Nas palavras de Teixeira (2007:46):

A cultura da modernidade é, eminentemente, urbana e comporta duas dimensões


indissociáveis: por um lado, a cidade é o sítio da ação social renovadora, da
transformação capitalista do mundo, e por outro lado, a cidade torna-se, ela própria, o
tema e o sujeito das manifestações culturais e artísticas. Dessa forma, é na correlação
modernidade-cidade que encontramos a passagem da idéia [sic] da urbe como local
onde as coisas acontecem. A metrópole é a forma mais específica da realização da
vida moderna.

Será a cidade o espaço no qual haverá uma crescente concentração humana, intensa
industrialização e crescimento demográfico, em um processo que se estende até o ponto em que
as áreas urbanas tendem a se tornarem maiores que as agrícolas. No século XIX, verifica-se “o
início da hegemonia urbana voltada para a industrialização, o progresso tecnológico, a ocupação
maciça dos espaços urbanos, a cultura urbana e a vida na cidade (VILLAC, 2006:1)”, resultado
de um processo que se inicia com a crise do Feudalismo. É na cidade que comércio, indústrias,
política e atividades culturais e artísticas se desenvolvem e será nela que as contradições
provocadas pelo processo de urbanização irão se ver superadas através da literatura utópica.
Na FC, a cidade pode ser representada tão somente para fins de cenário da narrativa – o
que não poderia deixar de ser, uma vez que se trata de um gênero fortemente vinculado à ideia
de progresso tecnológico e científico e suas implicações sociais. Não caberia assim dizer que a
apropriação do ícone da cidade enquanto mero plano de fundo corresponderia a uma operação

77
Atentar aqui para a distinção entre tema, entendido como assunto ou matéria para a construção da narrativa
ficcional, menos central para o gênero, e componente temático (na perspectiva bakhtiniana), determinante do
gênero.
114

distintiva do gênero. Por outro lado, porém, a cidade ganha contornos mais específicos quando
se torna um ícone vinculado à extrapolação tecnológica desenvolvida ficcionalmente, seja na
FC, seja na literatura utópica. Na medida em que são apresentados indícios de progresso
tecnológico no cenário urbano, este deixa de ser o espaço geográfico em que se passa a narrativa
para atuar como um elemento próprio do gênero. Será ainda através da cidade que
narrativamente verificaremos a valoração que a obra apresenta quanto à extrapolação
tecnológica, fazendo com que esta apresente, ainda que inicialmente como um texto pertencente
à FC, elementos utópicos ou distópicos, a boa ou a ruim cidade.
Se é no ambiente urbano que as contradições sociais serão positivamente superadas na
literatura utópica, na literatura distópica caberá a este um papel absolutamente central. Em seu
artigo Urban Spaces in Dystopian Science Fiction, Savoye (2011) argumenta que o paradigma
urbano é uma ferramenta estrutural capaz de distinguir a FC distópica de outros gêneros. É
especificamente nesta que a cidade deixa de ser um simples cenário para adquirir uma função
diegética própria, na medida em que intervém na progressão do sistema narrativo (cf. id.,
ibid.:137) e passa a se constituir como um veículo semiótico, representando valores tais como
“coletividade, progresso, industrialização ou tecnologia (id., ibid.:138)”. Verifica-se aqui um
aumento considerável de relevância e importância estrutural do ambiente urbano na ficção
distópica em comparação àquele da FC; na qual, como apontamos anteriormente, tal relevância
já se verifica. Este paradigma urbano será o motivo narrativo por excelência de todo o
sentimento de descrença quanto ao progresso que ao longo do século XX serviu de matéria para
a produção da literatura distópica. Nas palavras de Savoye (ibid.:147):

A cidade, originalmente projetada para administrar o mais alto nível de informação e


intercâmbio humano, tornou-se uma entidade em si mesma que tomou para si o
controle de todo este processo de intercâmbio, despojando humanos de seu livre-
arbítrio e condenando-os a uma corrida infinita e acelerada, reminiscente dos
imperativos intransigentes do capitalismo liberal que se desenvolve exclusivamente
em função de sua máxima expansão e produção [...] [tradução própria]78.

Já no que tange ao tema da viagem, na literatura utópica, onde, como vimos, se tratava
inicialmente de apresentar um lugar outro, tal tema já se apresentava como um elemento
diegético indispensável. Com a conversão da eutopia para a eucronia, ele se manteve presente
e não por menos passou a depender de um dispositivo tecnológico que o possibilitasse. Sem

78
No original em inglês: “The city, originally designed to administer the highest level of informational and human
exchange, has become an entity in itself that has taken control over the entire exchange process, dispossessing
humans from their free will and condemning them to an endless, accelerated race, reminiscent of the hard-line
imperatives of liberal capitalism, which thrives exclusively on maximum expansion and production”.
115

grandes surpresas, somente a especulação científica poderia prover aos autores o engenho
necessário para se atingir os tempos futuros; sendo assim substituído o recurso mais típico da
viagem onírica, em que o narrador acorda no futuro, sem que isto seja racionalmente explicado
na narrativa. Com isso, podemos dizer que o motivo da viagem é um ponto de interseção
temático e histórico entre a FC e a literatura utópica. Temático, pois na FC, temos a viagens no
tempo como um de seus principais temas (cf. CARNEIRO, 1968:61); e histórico pois a primeira
narrativa que apresenta um dispositivo racionalmente justificado através do qual se realiza a
viagem ao futuro – decorrência da substituição na literatura utópica da categoria do espaço pela
do tempo – é precisamente uma das obras fundadoras da FC, A máquina do tempo de H.G.
Wells. E se a viagem no tempo é uma forma de atualização tecnológica da literatura utópica, a
viagem espacial, um outro tema principal da FC, é um retorno ao motivo utópico da viagem a
um lugar outro; ainda que este outro não seja representado positivamente, dizendo respeito
muito mais a nossos medos e anseios, projetados em aliens, mutantes e outros seres
extraterrestres, do que à superação positiva de um determinado status quo, como pressupõe o
conceito da utopia.
Cabe dizer, porém, que no que tange à literatura distópica, o tema da viagem não dispõe
da mesma importância que na FC e na literatura utópica. Isto, pois como vimos anteriormente,
uma das especificidades da narrativa distópica é apresentar o personagem, narrador ou não,
como já pertencendo ao mundo ficcional. Não há, em termos diegéticos, a necessidade de um
deslocamento do personagem para o mundo distópico; o que, naturalmente, não impede que
haja uma narrativa em que se verifique o contrário.
Por último, resta-nos o tema do mundo paralelo. Beltrame (2011:49) argumenta que a
categoria do mundo paralelo está sempre presente na literatura utópica na medida em que esta
se coloca como uma contraposição ao mundo real, cujos problemas e carência são abordados
ficcionalmente. Há um traço de subversão neste procedimento, cabendo a ele despertar uma
sensação de estranhamento no leitor. Ora, se nos remetermos novamente à reflexão
desenvolvida na seção 2.2 deste trabalho, em que postulamos que o mundo ficcional pressupõe
uma transformação do mundo objetivo, tornando-se lhe outro, paralelo, parece não se justificar
o fato de que só os textos utópicos, distópicos ou da FC realizariam este procedimento.
De fato, não é possível dizer que uma narrativa centrada, por exemplo, em torno da
relação de um grupo de amigos ou de um casal seja menos ficcional do que a de um viajante a
uma ilha perdida ou um astronauta a outros planetas. Considerando que os personagens da
primeira história não tenham sido baseados em indivíduos históricos reais, cabe dizer aqui que,
enquanto ficção, operou-se uma transformação da realidade; mesmo que esta história não
116

envolva fenômenos sobrenaturais ou extraordinários, ou ainda astronaves que viajam à


velocidade da luz rumo a outras galáxias. Neste sentido, por se tratarem de textos ficcionais,
ambas as narrativas pressupõem, em sentido estrito, um mundo paralelo; por mais reais que
sejam as referências espaciais e históricas nelas presentes. Contudo, há entre elas uma clara
diferença entre os níveis de transformação da realidade, bem como a importância diegética da
qual elas dispõem. Nas narrativas de FC, de utopia e de distopia esta transformação da realidade
é indispensável para seu desenvolvimento. Nestes casos, como o fizemos já anteriormente neste
trabalho, cabe muito mais falarmos não mais em uma simples transformação, mas na ideia de
extrapolação. Esta, como vimos, é elemento central da construção composicional do gênero e
figura na definição mais central do conceito de distopia, enquanto extrapolação negativa de um
determinado status quo; e mesmo a ideia da superação, por sua vez associada ao conceito de
distopia, pode ser entendida como uma “extrapolação positiva”. Não se trata mais de um
processo criativo que envolva personagens fictícios (e suas características psíquicas) em
eventos históricos fictícios e em um mundo fictício regido pelas mesmas leis objetivas do
mundo real e com uma configuração social semelhante. Nas narrativas de FC, de utopia e de
distopia, estas leis objetivas e configurações sociais se encontram extrapoladas; ainda que, no
primeiro caso, partindo de premissas lógicas e racionais, sejam elas em alguma medida
possíveis e verificáveis empiricamente.
Considerados os três elementos destacados anteriormente e que são comuns às
literaturas de FC, de utopia e de distopia, podemos ainda argumentar que há uma especificidade
subjacente a estas três: a primazia do plano objetivo em função do subjetivo. O mundo paralelo,
extrapolado, não serve tão somente de plano de fundo para eventos que dizem respeito muito
mais às interações interpessoais das personagens e os efeitos psicológicos daí decorrentes do
que do próprio mundo que os cerca. Pelo contrário, a configuração deste mundo paralelo é a
razão de ser destas formas de literatura79, uma vez que podem ser dotadas de funções diegéticas
especiais e que cujas formas de representação acabam por servir de receptáculo de questões
centrais a cada uma destas literaturas. Isto é, o mundo da utopia abarca em sua configuração
mais própria a superação positiva do mundo do autor e do leitor; o mundo da FC traz consigo
em alguma medida elementos de características científicas e tecnológicas extrapolados e o
mundo da distopia é por excelência o lócus central em que se dá a extrapolação negativa do

79
Não podemos, evidentemente, dizer que esta especificidade seja elemento suficiente para caracterizar uma obra
como FC, de utopia ou de distopia. A primazia do plano objetivo deve, necessariamente, no primeiro caso estar
vinculados aos componentes temáticos e à construção composicional própria do gênero; no segundo caso, à
representação ficcional de um mundo sem as contradições do tempo de seu autor e no terceiro caso à extrapolação
negativa deste mesmo mundo.
117

status quo do autor e do leitor. Não é por menos que estas formas de literatura tenham muito
mais a contribuir com questões de ordem sociológica e política – ou mesmo da ordem das
ciências naturais – do que de ordem psicológica; ainda que este aspecto possa ser contemplado,
não obstante, em menor grau.
Considerada a centralidade do plano objetivo em função do plano subjetivo nas obras
destas três formas de literatura, não seria descabido aqui fazermos referência ao conceito de
realismo conforme apresentada por Lukács (1965:11 et seq). O termo não designa, no âmbito
da estética marxista, uma escola ou determinado movimento literário restrito a um determinado
momento histórico; trata-se mais de um certo caráter específico do qual uma obra pode dispor
em maior ou menor medida. Para Lukács, uma obra realista é aquela que consegue materializar
em termos de forma e de conteúdo as contradições sociais, adotando assim uma perspectiva
“progressista da evolução humana (id., ibid:39)”, sendo ricas por disporem “de um conjunto
complexo e englobante de relações entre homens, a natureza e a história (EAGLETON,
1976:44)”. Dentro da tradição marxista, há a questão filosófica central da relação entre o
fenômeno e a essência e que adquire contornos políticos próprios na sociedade capitalista. Isto,
pois as relações fundamentais entre os homens e seus diferentes papéis e posições de classe na
base estrutural da sociedade não se lhes coloca de modo verdadeiro. As formas simbólicas
(superestruturais), produzidas e consumidas socialmente, não expõem as relações de dominação
concretas às quais os homens são submetidos, mas sim uma realidade outra. “Na consciência
humana o mundo aparece completamente diverso daquilo que na realidade ele é: aparece
alterado na sua própria estrutura, deformado nas suas efetivas conexões (LUKÀCS, op.
cit.:20)”80. Caberia, então, a uma literatura realista expor a realidade tal como ela é, em seus
processos de funcionamento interno menos visíveis.
Digno de ser mencionado ainda é Bertold Brecht (1989-1956), considerado um dos
maiores artistas do século XX e cuja maior parte de sua produção se deu na forma de peças de
teatro. Vindo de uma formação marxista, suas visões de mundo e reflexões sobre a sociedade
capitalista ganhavam corpo mais sob a forma artística em si do que teórica e seu objetivo era
estimular seu público a refletir sobre a realidade e momento histórico que os cercava. Uma de

80
Não abordaremos neste momento questões em torno do conceito de ideologia ou de seus mais diferentes usos.
Partiremos apenas do pressuposto de que nem todas as relações de dominação e assimetrias de poder tornam-se
sempre evidentes a todos aqueles nestas envolvidos – quanto a que a literatura pode ser uma forma de tomada de
consciência acerca desta realidade.
118

suas preocupações principais era a de produzir uma arte realista, compartilhando, de certa
forma81, dos aspectos colocados por Lukács. Para Brecht,

Ser realista significa: tornar expostos os complexos causais da sociedade / relevar que
os pontos de vista dominantes são os pontos de vista dos dominantes / escrever do
ponto de vista da classe que apresenta as mais amplas soluções para as mais urgentes
dificuldades que lhe são infligidas pela sociedade / acentuar o momento do
desenvolvimento / possibilitar o concreto e a abstração (BRECHT, 1967:326)
[tradução própria]82.

Entendemos aqui que a literatura atinge um dos seus mais altos graus de humanismo
quando se verifica, em termos da estética marxista, realista. Isso é, para nós, o fenômeno
estético mais positivamente humano é aquele que torna o homem consciente de configurações
sociais nas quais suas liberdades são tolhidas, que o convida ao despertar para uma nova
realidade que se apresente como possível, que o permita sonhar diurnamente. Neste sentido, a
obra literária não deve ser programaticamente política ou conter palavras imediatas de
revolução, mas sim apropriar-se de seu potencial estético para uma reflexão despertada no leitor
de intensidades distintas daquela que se verifica quando este se depara com panfletos partidários
ou manuais científicos. Neste sentido, não é de se surpreender que alguns dos grandes
intelectuais pós-marxistas, isto é, que partem das obras de Marx, atualizando-as em função das
transformações ocorridas ao longo dos séculos XX e XXI não experienciadas pelo pensador
alemão, tenham voltado seus olhares para a literatura de FC, de utopia e de distopia – como é o
caso de Raymond Williams, Fredric Jameson e o próprio Darko Suvin, que também conta com
escritos sobre marxismo. Pois não há como deixar de estabelecer uma nítida relação entre a
primazia do plano objetivo face ao subjetivo, como apontamos anteriormente, e os pressupostos
de uma literatura realista que se volta precisamente para a realidade material objetiva. Nas três
formas literárias em questão, mesmo os elementos mais subjetivos encontram-se inseridos em
uma totalidade maior que os vincule com aspectos de ordem sociológica. Não temos aqui por
intenção dizer que toda e qualquer obra pertencentes a elas possam ser rotuladas como
pressupondo um posicionamento mais à esquerda por parte do autor, ou que isto é algo que

81
A despeito da identificação de ambos com a ideia de uma arte realista que apresente ao leitor ou ao expectador
“a integridade do homem, as contradições da ordem econômica capitalista, a problemática da civilização capitalista
(LUKÁCS, op. cit.:38)”, identificação esta que destacamos em nosso trabalho, Lukács adota uma postura mais
conservadora e considera o realismo de autores como Balzac e outros superior às produções artísticas modernistas;
dentre elas a de Brecht. Este, reagindo a Lukács, questiona sua ortodoxia ao privilegiar um determinado grupos de
autores e uma forma mais historicamente situada de se produzir uma arte realista.
82
No original em alemão: “Realistisch heißt: den gesellschaftlichen Kausalkomplex aufdeckend / die herrschenden
Gesichtspunkte als die Gesichtspunkte der Herrschenden entlarvend / vom Standpunkt der Klasse aus schreibend,
welche für die dringendsten Schwierigkeiten, in denen die menschliche Gesellschaft steckt, die breitesten Lösungen
bereit hält / das Moment der Entwicklung betonend / konkret und das Abstrahieren ermöglichend”.
119

possa interferir na avaliação estética que dela se faça. O que se valoriza em um exercício
hermenêutico dentro de uma perspectiva estética marxista é a capacidade de a obra de arte expor
a realidade de uma forma que comumente ela não se vê exposta; sendo precisamente este efeito
de velamento que atua como um dos elementos de manutenção desta realidade com todas as
assimetrias de poder e contradições sociais que ela traz consigo. Por entendermos que é através
da FC distópica especificamente que as contradições sociais de nossa contemporaneidade se
tornam as mais escancaradas o possível, é que optamos aqui por limitarmos nossas análises a
textos desta forma literária e não de outra. Não por menos, foram justamente elas as que mais
nos chamou atenção quando dos momentos iniciais em que as inquietações primeiras
começavam a determinar os rumos que nossa pesquisa viria a tomar.
Concluamos, portanto, nosso argumento. Os elementos da cidade, da viagem e do
mundo paralelo, enquanto compartilhados pelas formas literárias da FC, de utopia e de distopia,
estabelecem entre si relações de complementariedade: não se pode falar da cidade utópica sem
o tema da viagem, nem se pode falar das cidades utópica ou distópica sem que estas se insiram
em um mundo paralelo mais amplo e totalizante; ou que estas estabeleçam com tal mundo uma
relação metonímica. Ademais, entendemos aqui que, a princípio, estas três formas de literatura
tendem a apresentar um caráter realista, conforme a concepção estética marxista do termo,
graças à primazia do plano objetivo, representado ficcionalmente a partir de seus aspectos
sociais e histórico, em função do plano subjetivo, mais individualizante e com traços mais
psicológicos.
Um último aspecto deve ainda ser mencionado quanto à relação entre FC e a literatura
utópica. Cronologicamente, há a anterioridade por parte da última com relação a primeira, tendo
a FC, como vimos, se apropriado de elementos que já se encontravam presentes na literatura
utópica. Devemos, contudo, observar de igual modo que a literatura utópica, de sua parte,
também se viu aprimorada em sua relação com a FC. O resultado, como comentamos
anteriormente, é a existência de obras híbridas: textos de FC utópica – ou utopias de FC. Ou
ainda, é possível argumentar ter havido uma assimilação da utopia literária por parte da FC.
Seja como for, esta imbricação trouxe duas consequências para as obras literárias utópicas: um
“aprimoramento racional” e uma transformação em termos de forma narrativa.
Este aprimoramento racional diz respeito tanto à apropriação de elementos científicos e
tecnológicos na construção da utopia literária quanto de um posicionamento mais crítico por
parte do autor. Como aponta Freedman (2000:79), “a racionalidade cognitiva (ao menos em
termos literários) da ficção cientifica possibilita que a utopia emerja de modo mais pleno,
genuinamente crítica e transformativa”. Assim, a utopia, por sua vez mais racional, deixa de ser
120

“meramente sugerida” para ser “delineada em detalhes completos e precisos (ibid.:82)”. Por
outro lado, se torna indispensável realizar o exercício da projeção utópica sem que sejam
levados em consideração aspectos científicos e tecnológicos presentes na sociedade – o que nos
permitirá falar em utopias de transformação tecnológica, como vimos anteriormente com
Williams. Estas formas recentes de utopia terão como objetivo não mais o mundo ideal, mas
um mundo melhor. É o que argumenta James (2003:222):

Um mundo melhor pode ser alcançado pelos autores de ficção científica em grande
parte através da educação sobre a ciência, mas também através da apresentação de
possibilidades alternativas. A maior parte destas dizem respeito mais à revolução
tecnológica do que à política: a construção de arranjos políticos e constitucionais,
matéria prima da utopia clássica, pouco atrai os escritores de FC [tradução própria]83.

Vemos, portanto, especialmente através desta passagem, estabelecida uma distinção entre as
utopias clássicas e as utopias moderna. As primeiras partem de uma condição humana entendida
como um dado a priori, com a esperança de que esta atinja seu ideal utópico a partir de leis e
de educação; ao passo que últimas o almejam a partir dos progressos tecnológicos (cf. id.,
ibid.:227).
Já quanto à transformação da forma narrativa, trata-se da mudança do formato
tradicional da literatura utópica para o do romance. Como aponta James (ibid.:222), utopias
clássicas não dispunham de uma caracterização mais aprofundada de seus personagens, com
papéis previamente estabelecidos e com pouca variação (o visitante, o expositor da cidade
utópica etc.); não apresentavam qualquer tipo de conflito a ser esclarecido nas páginas finais;
limitavam-se com o estilo expositor em que predomina a descrição – em suma, aspectos
contemplados pelo formato romance.
Para concluirmos esta seção, resta apenas dizermos que, se à primeira vista a vinculação
entre a literatura de FC, de utopia e de distopia parecia se dar de modo mais imediato, uma
verificação mais aprofundada de alguns de seus temas e de seus percursos históricos justificam
suas inter-relações.

83 No original em inglês: “A better world could be achieved by ‘science-fictioneers’ mostly through education
about science, but also through the presentation of alternate possibilities. Most of those alternate possibilities are
about technological rather than political revolution: the construction of constitutions and political arrangements,
the staple of classic utopia, have little appeal for most sf writers”.
121

5. ALGUNS CASOS DE FICÇÃO CIENTÍFICA DISTÓPICA BRASILEIRA

Chegado o presente momento de nosso texto, cabe fazermos uma breve retrospectiva.
Ao longo do capítulo 3, apresentamos uma reflexão acerca dos conceitos de utopia e de distopia,
bem como suas materializações discursivas ao longo da histórica. Verificamos que
precisamente no século XX graças a uma sensação de desencanto com o progresso e os
desenvolvimentos científico e tecnológico o impulso utópico e suas formas discursivas,
literárias ou não, foi cedendo espaço para a produção de textos literários distópicos.
Apresentamos algumas justificativas para o fenômeno, tanto de ordem factual histórica, quanto
de ordem intelectual, reafirmando a presença ainda considerável da literatura distópica no início
do século XXI. Argumentamos quanto a isto que o fenômeno do pós-modernismo, ainda que
difuso, oferece, graças à sua negação da racionalidade iluminista e da recusa a qualquer grande
narrativa de emancipação humana, uma justificativa – evidentemente não a única – para o
Zeitgeist distópico.
Nossas considerações acerca da utopia e da distopia se fizeram necessárias tendo em
vista a relação que estas estabelecem com o gênero da FC. E se falamos em FC, não poderíamos
apresentar o conceito como algo já dado, tendo sido necessário também chegarmos a categorias
que pudessem definir inicialmente esta forma de literatura, nos baseando centralmente, em
termos teóricos, no conceito bakhtiniano de gênero discursivo. Além disso, apresentamos ainda
um breve percurso histórico do gênero tanto nos Estados Unidos, país com um maior nicho de
consumidores deste tipo de literatura; bem como no Brasil, onde, a despeito do pouco
reconhecimento do gênero, a produção de obras de FC contribui para uma melhor compreensão
das contradições e especificidades de um país, cujos efeitos de uma modernização tardia se
fazem presentes até os dias de hoje.
Com base em uma pesquisa que levasse em conta as contribuições de grandes
pesquisadores sobre utopia, distopia e FC, além de um respectivo posicionamento crítico de
nossa parte acerca destas, podemos então dispor de elementos característicos suficientes para
lançarmos nossos olhares às obras literárias que serão objeto de análise em nosso trabalho.
Através delas, verificaremos como os parâmetros mais gerais da distopia e da FC se vem
materializados de modo singular nas obras – afinal, é delas que partem as reflexões teóricas
acerca do gênero.
Esta inserção das obras no gênero da FC distópica corresponde à instância da prática
discursiva conforme a teoria tridimensional do discurso apresentada na seção 2.3. Como
apontamos anteriormente, entender o texto como uma prática discursiva significa atentar para
122

os processos de produção, distribuição e consumo textual que lhe são inalienáveis. Na teoria de
Fairclough, a estas somam-se as categorias de contexto, força, coerência e intertextualidade.
Em nossas análises, utilizaremos as categorias da produção, distribuição e intertextualidade,
com dedicada atenção a esta última84. Para o autor (op. cit.114), [i]ntertextualidade é
basicamente a propriedade que tem os textos de ser cheios de fragmentos de outros textos, que
podem ser delimitados explicitamente ou mesclados e que o texto pode assimilar, contradizer,
ecoar ironicamente, e assim por diante.
As análises que apresentaremos nas próximas linhas terão como padrão a apresentação
da obra em termos de sua produção e distribuição, da relação que ela estabelece com a literatura
de FC distópica e por último, mais extensamente, em termos de sua dimensão de prática social
– quais discursos sócio-históricos à época do autor se encontram representados na obra e em
que medida isto configura uma atitude responsiva da parte deste diante destes discursos. É
válido ressaltarmos aqui, especialmente considerando as reflexões desenvolvidas na seção 2.2
deste trabalho, que não se trata de apresentarmos o “ponto de vista do autor”, mas sim de
verificarmos, baseando-nos em evidências textuais aplicadas a uma pesquisa histórica do
contexto de produção e consumo das obras, que posicionamentos nestas se fazem possíveis de
serem verificados. Por se tratar de textos literários, que representam a realidade objetiva
estética, ficcional e conotativamente, é evidente que não se trata aqui de uma interpretação
definitiva. O que, por outro lado, não equivale a dizer que toda e qualquer leitura subjetiva é
válida per se, sem que haja um exercício hermenêutico que leve em conta a totalidade social
em que a obra se encontra – precisamente o que buscamos aqui realizar.
Portanto, as análises a seguir atendem a dois objetivos específicos: a) observar em que
medida os princípios gerais do conceito da distopia e do gênero da FC se veem materializados
nas obras e b) verificar, através de um exercício de análise que leve em consideração a dimensão
da prática social da obra literária, que discursos à época dos autores das obras se viam nos
contos representados e de que maneira estas representações correspondem a posicionamentos
avaliativos por parte do autor possíveis de serem identificados textualmente.
Antes de prosseguirmos às análises, devemos ainda registrar aqui, a despeito de não
citarmos diretamente, nem fazermos menção direta a termos e conceitos nela apresentados, a

84
O fato de lidarmos com textos literários faz com que algumas das sete categorias apresentadas por Fairclough
para a prática discursiva se tornem um tanto quanto menos relevante para a análise que desenvolvemos neste
trabalho. Seremos breves em nossa justificativa: o texto literário não realiza atos de fala (força) como aqueles
ocorridos em contextos institucionais específico, em que haja assimetria de poderes entre os envolvidos; sequer há
como estabelecermos qualquer regularidade sócio-discursiva quanto aos leitores, em que contexto eles realizam
suas leituras ou que pressupostos de coesão eles trazem na instância do consumo das obras.
123

importância da obra Espaço e Literatura – Introdução à topoanálise (FILHO, 2007) no


desenvolvimento de uma leitura mais atenta para as construções espaciais nas narrativas 85.
Como veremos, os espaços internos e externos gozam de uma importância considerável não
somente nos textos que analisamos; o que reafirma a primazia de um olhar mais objetivo no
gênero da FC e em sua vertente distópica, como vimos anteriormente.

5.1. A Guerra Fria: A espingarda (1966) de André Carneiro

O conto A Espingarda (doravante AE) foi escrito por André Carneiro (1922-2014),
considerado um dos maiores nomes em termos de FC no Brasil e no exterior86, e que se destacou
dentre aqueles pertencentes à “Geração GRD”, e publicado no ano de 1966 em São Paulo pela
editora Edart, que, como vimos anteriormente, inseriu-se em um dos momentos mais profícuos
do gênero no país, aproveitando o impulso editorial motivado pelo trabalho de Gumercindo
Dorea Rocha. O conto figura ainda na coletânea aqui já mencionada Os Melhores Contos
Brasileiros de Ficção Científica editada por Roberto de Sousa Causo, publicada em 2007 – ano
em que André Carneiro foi agraciado com o título de “Personalidade do Ano de 2007” pelos
editores do Anuários Brasileiro de Literatura Fantástica.
AE apresenta dois personagens principais, o protagonista e seu antagonista, ambos sem
nome mencionado, e um narrador em terceira pessoa. A narrativa se desenvolve a partir de uma
errante caminhada do protagonista em meio a um cenário urbano de destruição que, por entre
cadáveres e avenidas destruídas, busca a sua sobrevivência. O clímax da narrativa se dá quando
protagonista e antagonista se encontram, em uma interação pouco amistosa com direito a troca
de tiros.
Tratemos agora de justificar a inserção da obra no gênero de FC distópica.
O primeiro elemento a ser destacado diz respeito à forma de apresentação da narrativa,
especificamente logo o primeiro parágrafo. Este goza de uma importância ímpar, sob vários
aspectos: em termos da apresentação do cenário, do clima psicológico que este imprime aos
personagens e da sua função diegética no desenrolar dos eventos da narrativa. Mais do que
satisfazer estas exigências, podemos perceber que para a economia do texto a opção de

85
Mesmo em linhas gerais, a apresentação da obra e de suas principais categorias analíticas representariam um
indesejado acréscimo quanto à extensão deste trabalho; o que nem de longe tornaria uma análise mais aprofundada
nos termos de Filho (op. cit.) menos relevante.
86
Assim registra a Encyclopedia of Science Ficition em verbete dedicado ao autor: “The best known exponent of
Brazilian sf since the 1960s and to date Brazil's most widely anthologized author”.
124

apresentar ao leitor o parágrafo tal como ele se apresenta em AE intensifica o papel que o
cenário possui na narrativa. Eis sua transcrição integral:

Silêncio. Até onde sua vista alcançava, centenas de carros parados, na avenida.
Esgueirava-se por entre eles, a mão roçando carrocerias cobertas de poeira. Pneus
murchos, manchas de óleo feitas gota a gota, no chão de asfalto. Inclinou-se sobre um
para-choque cheio de barro ressequido. Pequenas folhas cresceram ali, as raízes
descobertas se esgueirando entre a ferrugem que avançava. Continuou a andar para a
frente, parando de vez em quando. A paisagem era a mesma, de um tempo muito
diferente. Estava ao lado de um carro conversível, a chave de partida no lugar, porta
aberta, o estofamento se estragando ao vento, vidros sujos e opacos. Encostou-se em
sua frente, a carcaça fez um ruído de juntas enferrujadas. Em ambos os lados, casas
de luxo, com jardins isolados. O mato invadia as passagens, verde misturado com
folhas secas, transformando as construções em ilhas tristes e esquecidas (AE:76).

A primeira coisa que devemos perceber é a riqueza descritiva da passagem, na qual as


ações do personagem, descritas por uma mínima quantidade de verbos (esgueirava-se \
inclinou-se \ continuou a andar \ encostou-se), tem por função tão somente para dar
prosseguimento à enumeração dos elementos que compõem a paisagem narrativa. Elementos
estes que, atendendo à função descritiva, são devidamente qualificados. E ao olharmos com
alguma atenção maior aos substantivos, perceberemos que o parágrafo se organiza centralmente
a partir do caráter antonímico que pode ser estabelecido entre seus pares, adjetivados e não
adjetivados. Por um lado, temos nomes de objetos construídos graças à tecnologia do homem,
e, por outro, elementos naturais: [carros parados, avenida, carrocerias, pneus murchos, manchas
de óleo feitas gota a gota, chão de asfalto, para-choque, ferrugem, carro conversível, chave de
partida, porta aberta, estofamento, vidros sujos e opacos, carcaça, juntas enferrujadas, casas de
luxo] x [poeira, barro ressequido, pequenas folhas, raízes descobertas, vento, jardins isolados,
mato, verde misturado com folhas secas, ilhas tristes e esquecidas].
Os verbos também merecem atenção especial. Reparemos que não há verbos no tempo
presente, somente nos pretéritos perfeito e imperfeito do indicativo e em suas formas de
gerúndio. Nas formas verbais do pretérito imperfeito, o aspecto imperfectivo traz uma
semântica processual, indicando a contínua duração da ação expressa pelo verbo. Um efeito
semelhante é obtido com o uso das formas no gerúndio, do que se depreende a ideia de que as
ações não tiveram seu fim. No parágrafo em questão, tanto os verbos no imperfeito quanto os
no gerúndio apresentam como sujeito o protagonista (de modo metonímico ou não), uma
construção tecnológica humana ou um elemento da natureza: [(vista) alcançava \ (protagonista)
esgueirava-se \ (ferrugem) avançava \ (protagonista) estava \ (mato) invadia], [(mão) roçando\
(raízes) esgueirando \ (protagonista) parando \ (estofamento) estragando \ (verde)
transformando]. Se desconsiderarmos os casos em que o sujeito corresponda ao protagonista,
125

todos estes processos, de duração contínua por conta dos usos verbais do pretérito imperfeito e
do gerúndio, possuem em comum a ideia de degradação, de perecimento. Retomando a
antonímia anteriormente mencionada, trata-se aqui da natureza retomando os espaços que
foram transformados pelo homem, com seus aparatos e constructos tecnológicos abandonados.
E, mais do que isto, as ideias de degradação ou perecimento se apresentam como um processo
contínuo, correntes ao tempo narrativo do protagonista: o cenário de destruição que o cerca não
está degradado ou perecido, ele se degrada, perece. Os adjetivos também reforçam esta ideia:
[(carrocerias) cobertas de poeira \ (barro) ressequido \ (raízes) descobertas \ (vidros) sujos e
opacos \ (juntas) enferrujadas \ (jardins) isolados \ (ilhas) tristes e esquecidas].
Como argumentamos anteriormente, a cidade exerce uma função narrativa especial na
FC distópica – que é precisamente o que verificamos no conto. Não somente esta ambientação
de uma cidade destruída causa um impacto inicial no leitor, como boa parte da narrativa se
desenvolve no cenário urbano87, que a todo momento apresenta perigos ou dificuldades para o
protagonista. Na Tabela 2 do Anexo de nosso trabalho verificamos a quantidade de
substantivos, adjetivados ou não, que dizem respeito ao cenário da narrativa e que podem ser
inseridos no campo semântico maior da cidade. Mais de 25% destes substantivos constam no
primeiro parágrafo aqui mencionado, reafirmando sua importância.
Argumentamos também que na FC há uma predominância da instância objetiva em
função da subjetiva. Isto se verifica em AE de distintas maneiras. Em primeiro lugar, conforme
aponta a Tabela 1 do Anexo, há uma predominância considerável de construções qualificativas
descritivas em comparação às avaliativos88. Em segundo lugar, podemos mencionar a reduzida
quantidade de falas do protagonista antes dos diálogos travados com o antagonista no momento
de clímax do conto. Na edição que utilizamos, de cerca de 14 páginas, o personagem principal
terá uma fala própria somente na quinta: “[...] vou dormir, preciso dormir (AE:80-1)”. Por mais
uma vez sua fala será expressa pelo narrador que, ainda assim, o faz mesclando a marcação das
aspas, indicando graficamente o discurso direto, com verbos no pretérito imperfeito do
subjuntivo: “Chamou mais uma vez, gritando que ‘se ninguém aparecesse, destruiria a porta’
(ibid.:84)”. Isto pode ser entendido, por um lado, como uma escolha por parte do autor pelo não
aprofundamento psicológico do personagem, cabendo-lhe muito mais a descrição de suas ações
em meio ao cenário da narrativa. Por outro lado, pode-se sustentar que o próprio silêncio do

87
Na narrativa, o protagonista realiza um deslocamento que começa na parte alta da cidade\subúrbio e vai até o
campo\pequena cidade. Nesta última ocorre o encontro com o antagonista.
88
Utilizamos aqui a expressão “construção qualificativa” para englobar adjetivos, locuções adjetivas e sintagmas
oracionais com valor de adjetivo.
126

protagonista é seu traço psicológico central. Partindo deste ponto, parece-nos que este silêncio
se dá, em grande parte, pela ambientação que o cenário de destruição lhe imprime; não por
menos a primeira palavra do texto figura como a única de uma frase que lhe dá o tom de
desolação: silêncio.
Por último, nos resta mencionar a presença do conteúdo temático do binômio
ciência\tecnologia, que se dá de duas formas específicas em AE, em uma forma extrapolada e
outra não extrapolada. A forma extrapolada diz respeito ao cenário de destruição presente no
conto que tem como causa uma explosão nuclear. Isto, tanto pelo momento histórico em que o
texto foi publicado, como veremos mais detidamente a seguir, e pelas pistas textuais de que
neste cenário haveria água e alimentos contaminados pela radiação, a que também nos
remeteremos novamente a seguir. Já a forma não extrapolada diz respeito à importância
diegética do ícone da espingarda, que não por menos dá título ao texto. A arma é o elemento
que reafirma o caráter antagônico dos personagens. O protagonista é acusado pelo antagonista
de estar ao lado daqueles que trouxeram a “desgraça” ao local – em momento algum é dito
explicitamente que se tratou de uma explosão nuclear ou algo do tipo. Por mais que ambos já
estivessem anteriormente em lados opostos das trincheiras, é o elemento da espingarda –
protagonista e antagonista dispõem de uma – que os impede de terem uma relação minimamente
harmoniosa, ou ao menos egoistamente colaborativa.
Observada a representação distópica do conto, podemos dizer que AE é um relevante
exemplo da “desconfiança básica da ciência e da tecnologia nas mãos dos humanos, por conta
de uma falta de confiança no poder da razão em controlar os excessos das emoções humanas
(GINWAY, 2005:39)”, característica que, segundo a autora, teria marcado a FC da década de
60 produzida no Brasil.
Observada a inserção da obra no gênero da FC distópica, devemos prosseguir com a
análise na dimensão da prática social.
Considerando a data da publicação do texto, 1966, há de se imaginar que o contexto da
Guerra Fria imprima as suas marcas. Mais do que partir do fenômeno sócio-político iniciado
no pós-segunda guerra e findado em 1989 e considerá-lo como um mero pano de fundo para a
obra, é indispensável compreender sua relevância na produção de uma complexa, extensa e
penetrante gama de discursos e significações em um amplo contexto político internacional.
Conforme aponta Biagi (2001:62), a Guerra Fria representou “um novo referencial para as
sociedades dessa segunda metade do século, de uma nova condição que justificaria muitas
políticas e níveis de atuação – a Guerra Fria era uma ‘realidade’ a ser discutida e vivida pois
havia sido criada, inventada, instituída”. Nosso intuito neste trabalho não é de abarcar
127

discussões historiográficas mais profundas quanto ao desenrolar dos fatos no período histórico
em questão ou refletir sobre suas implicações, que, deve-se dizer, podem ainda ser consideradas
como latentes. Entendemos aqui a Guerra Fria como um imaginário social (cf. id., ibid.), isto é,
um complexo amálgama de significações, ideologias, imagens e discursos; ou seja, em sua
instância simbólica, dialeticamente relacionada com elementos de ordem política. Para nossa
análise, traçaremos três eixos temáticos próprios da configuração social, política e cultural à
época: a bipolaridade política, o discurso anticomunista e a ameaça nuclear.
Ao final da Segunda Guerra Mundial, temos no contexto político internacional duas
grandes potências bélicas: os Estados Unidos da América (E.U.A.) e a União das Repúblicas
Socialistas Soviéticas (U.R.S.S.), tendo ambas desempenhado um papel fundamental no
desfecho da guerra recém terminada. Estas potências divergiam uma da outra por suas
organizações políticas, sociais e econômicas: os EUA se baseavam no modelo capitalista e a
URSS teve uma estrutura de base socialista implantada a partir da Revolução bolchevique de
1917. Não se tratava somente de estruturas econômicas distintas, mas de organizações sociais
antagônicas e incompatíveis entre si. Tal tensão entre elas acabaria por promover a hegemonia
de uma em detrimento de outra. Essa tensão é vista de distintas formas pela historiografia do
período. Por um lado, considera-se o expansionismo soviético como uma ameaça ao resto do
mundo capitalista; ao passo que, por outro, a construção de um inimigo soviético foi apenas
uma justificativa para a intervenção norte americana em nações que não se dispusessem de uma
estrutura política e econômica capitalista.
Com isto, um dos motores da Guerra Fria foi a incompatibilidade entre sistemas
políticos distintos, uma bipolaridade que legitimava e sustentava o conflito,

[...] um jogo de opostos na origem, que acabou por criar um único sistema: uma
dinâmica auto-reprodutora com regras próprias. A idéia de origem comum remete a
uma reciprocidade de intenções em ambas as potências do conflito. Sua origem está
em forças militares-sociais internas em ambos os blocos, que constroem o conflito
como o seu próprio objeto. Esta é a garantia da estase da guerra, nunca levada a termo
(HEIN, 2008:9).

Esta bipolaridade pode ser identificada no texto através da utilização dos pares [esquerda x
direita] e [norte x sul] e do adjetivo “vermelho”.
Este último consta no texto qualificando os substantivos [clarão, reflexos, luz, onda]89 e
merece alguma atenção. Aqui podemos argumentar que o vermelho possui um significado

89
O adjetivo “vermelho” qualifica ainda o substantivo “chamas” ao final do conto (AE:88), tal como faz o adjetivo
“azul”. Não entendemos, porém, que este adjetivo relacione-se a uma representação mais imediata da bipolaridade
política, ainda que seja possível argumentar, com algum esforço, que a imagem das chamas vermelhas e azuis, a
128

simbólico, ou, considerando a teoria bakhtiniana, que se trata de um signo ideológico90, e que
nos remete ao polo da URSS e países a ela alinhados. Quando qualificando os substantivos
clarão e reflexo, a cor vermelha se encontra diretamente associada ao cenário da narrativa: “O
clarão vermelho destacava as fachadas, automóveis, gotas deslizando nos fios elétricos. [...]
Faróis distantes devolviam-lhe reflexos vermelhos (AE:80)”. Já quando se trata da luz
vermelha, há uma importância diegética ainda maior. Como já apontamos, o clímax da narrativa
se dá com o encontro do protagonista (sul) com o antagonista (norte), o que só ocorre pelo fato
do primeiro, em dado momento da narrativa, observar que “[a]baixo da linha do horizonte havia
uma luz vermelha (AE:82)”, motivando-o a ir em direção a esta luz na esperança de encontrar
outro ser humano vivo. Portanto, o desenrolar da narrativa depende centralmente deste símbolo
da luz vermelha. Mais do que isto, não nos parece coincidência que esta luz fosse visível da
janela esquerda na construção em que se encontrava o antagonista: “Da janela esquerda já não
filtrava nenhuma luz. O outro dormia (AE:85)” [grifo nosso].
Em “onda vermelha”, mais do que uma referência ao cenário da narrativa, temos ainda
uma referência interna àquilo que parece ter sido o impacto inicial de um ataque que, na
dimensão histórica da narrativa, causou toda a destruição nela descrita: “Lembrava-se de
histórias, homens atingidos mortalmente a correr, tombando fulminados, de repente. Seu sangue
pulsava, via a rua, as casas passando, entre a onda vermelha de raiva e desespero (AE:87)”.
Considerando o uso do adjetivo vermelho, nos parece haver fortes indícios de que o
cenário da narrativa corresponderia a um espaço geográfico alinhado à URSS – ou até mesmo
a própria URSS. Nossa interpretação tende mais para esta última possibilidade graças a uma
sutil “pista” textual, e que não nos pareceu aleatória. Tem-se no texto: “Estava bem ali, mas
tinha um continente para explorar, embora mentalmente isolado em uma ilha (AE:82)” [grifo
nosso]. Não conseguimos imaginar um uso metafórico para o termo “continente”, ainda mais
em uma época em que o conflito entre EUA e URSS e suas diferenças ideológicas tinham papel
de destaque na imprensa nacional91. Como sabido, a extensão geográfica do bloco socialista

um mesmo momento, possa se referir à ideia de que em um contexto de conflito nuclear de fato, ambos os lados
sofreriam consequências terríveis – as “chamas”, metonímia para destruição causada pelas armas nucleares,
caberiam às duas grandes potências.
90
“Em si mesmo, um instrumento não possui um sentido preciso, mas apenas uma função: desempenhar este ou
aquele papel na produção. E ele desempenha essa função sem refletir ou representar alguma outra coisa. Todavia,
um instrumento pode ser convertido em signo ideológico: é o caso, por exemplo, da foice e do martelo como
emblema da União Soviética. A foice e o martelo possuem, aqui, um sentido puramente ideológico. Todo
instrumento de produção pode, da mesma forma, se revestir de um sentido ideológico: os instrumentos utilizados
pelo homem pré-histórico eram cobertos de representações simbólicas e de ornamentos, isto é, de signos
(BAKHTIN, 2009:31-2)”.
91
Um exemplo disto pode se verificar em Cestari (2013), com seu artigo A pedagogia política anticomunista no
jornal Notícias Populares (1963-1964).
129

tinha dimensões continentais, portanto, nos parece aqui clara a sua representação em AE,
considerada ainda a dimensão simbólica da cor vermelha, também associada ao cenário da
narrativa.
No que concerne ao par [norte x sul], trata-se de mais uma forma de oposição
antagônica, uma vez que dizem respeito às origens dos dois personagens – o primeiro vindo do
sul e o segundo, do norte. Se tomarmos a fala deste último – “Vinham os do sul, morreram
todos, todos (ibid.:86)” – o que podemos pressupor é que o ataque inicial, ao qual nos
remetemos anteriormente, teria sido efeito de uma invasão por parte daqueles do sul em terras
do norte. Curiosamente, quando confrontado pelo antagonista acerca da responsabilidade do
protagonista quanto a este ataque, este afirma: “Não matamos ninguém, os culpados estão longe
(AE:87)”. Uma explicação plausível que poderíamos argumentar como possível é a de que
tratou-se previamente tanto de uma invasão militar da parte daqueles do sul, quanto de um
fulminante ataque – certamente de grandeza nuclear, como veremos mais adiante. Interessante
quanto a este ataque é não haver pistas textuais para dizermos se foram os próprios do norte
que lançaram bombas em seu território, ou se aqueles do sul é que o fizeram, mesmo cientes de
haver homens seus em terras inimigas.
Esta questão não resolvida nos impede, num primeiro momento, de verificar se em AE
temos uma valoração positiva ou negativa do bloco soviético – se liderado por forças políticas
que combateram uma ameaça, atacando-a em seu próprio território, ceifando a vida de sua
população; ou se tendo sido a vítima de um ataque externo. Ainda nos baseando nos usos dos
pares que correspondem à circunstância histórica da polarização política, tratemos de [esquerda
x direita].
Como dissemos anteriormente, o antagonista, do norte, encontrava-se em uma
construção de onde a luz vermelha era emitida, através de uma janela à esquerda. Portanto, fica
claro aqui, seguindo nossa interpretação, que o grupo [vermelho, esquerda, norte] diz respeito
ao bloco soviético. Além da referência à janela, o par [esquerdo x direito] também se faz
presente na seguinte passagem: “Era longe, podia distinguir pontos claros de construções, entre
a neblina difusa. Estavam situados entre um morro mais alto à esquerda e pedras salientes à
direita. Era um ponto de referência (AE:83)”. O narrador se refere aqui ao local de onde era
possível ver a luz vermelha, ou seja, onde se encontrava o antagonista. O que nos salta aos
olhos, porém, é que poucas linhas depois o narrador repete o uso do par: “O crepúsculo se
aproximava quando entrou na pequena cidade, costas inclinadas a barba úmida de suor. Os
passos mantinham a força. O morro à esquerda, as pedras à direita. Fora dali, não havia engano
(AE:loc. cit.)”. Não nos parece gratuita a repetição, nem menos a distinta valoração pressuposta
130

pelo par [morro (esquerda) x pedras salientes (direita)]. Aqui, para nós, trata-se uma valoração
mais positiva quanto a “morro” e menos positiva quanto a “pedras” – obviamente, em um
sentido metafórico pouco imediato.
Nosso argumento da valoração positiva subjacente à representação do polo soviético da
obra é reforçado pela ausência de uma avaliação negativa quanto a este e que poderia se fazer
presente. Especialmente se considerarmos o eixo de análise do discurso anticomunista,
elemento fundamental para o momento histórico da Guerra Fria e que se constituiu como uma
das mais diversas faces do imaginário social construído material e discursivamente. Esta
postura ganhou repercussão e aceitação não somente através de ações políticas governamentais,
mas também em diversos outros meios de comunicação no Brasil. Entendamos inicialmente,
porém, suas origens norte-americanas.
Como já dito, ao fim da Segunda Guerra Mundial, duas grandes potências figuravam no
contexto político internacional mundial: os E.U.A. e a U.R.S.S. Mais do que poderes
econômicos, ambas dispunham de forte potencial armamentista, ainda mais se considerarmos
que foi precisamente a aliança entre ambos que contribuiu de forma significativa para a derrota
da Alemanha nazista e as consideradas Potências do Eixo. Se antes lutavam ambos contra um
inimigo em comum, agora se apresentavam no plano político internacional como extremos
excludentes. Tratava-se de uma luta por influências, na qual o expansionismo de um polo
passou a ser visto como ameaça para o outro. Quanto à URSS, perspectivas de expansão
pareciam fazer pouco sentido após tudo o que haviam sofrido anteriormente: “saíra da guerra
em ruínas, exaurida e exausta, com a economia de tempo de paz em frangalhos, com o governo
desconfiado de uma população que, em grande parte fora da Grande Rússia, mostrara uma nítida
e compreensível falta de compromisso com o regime (HOBSBAWN, 2012:230)”. Já para os
EUA,

[...] o inimigo não mais era representado pelos antigos regimes autoritários de
tendência nazifascista, mas pelos governos reformistas ou pelos movimentos sociais
que pudessem pressionar por reformas políticas e sociais que implicassem a redução
da capacidade de intervenção dos EUA no continente (MUNHOZ, 2003:2).

Em terras norte-americanas, a construção discursiva e ideológica de um inimigo supriu em


grande medida suas necessidades políticas interna e externa. Conforme aponta Hobsbawn (op.
cit.:232), ao contrário do que ocorria no governo soviético, o governo americano tinha a
preocupação de garantir sua influência no Congresso, com vistas às eleições presidenciais e
parlamentares. Para tanto, a demonização de seu antagonista era uma forma de fortalecer o
131

governo diante de um inimigo externo e que atendia ainda a boa parte dos anseios populares
em um país “construído sobre o individualismo e a empresa privada, e onde a própria nação se
definia em termos exclusivamente ideológicos (“americanismo”) que podiam na prática
conceituar-se como o polo oposto do comunismo”. Discursos anticomunistas passaram então a
circular por entre revistas, jornais, programas de televisão, livros, filmes e tantos outros meios
quanto possíveis. Estes discursos tinham como origens grupos sociais distintos, mas que
compartilhavam de um mesmo temor diante da ameaça vermelha:

No plano mundial, pode-se afirmar que o século XX assinala a presença de diferentes


matizes de inspiração anticomunista. As principais são: a democrática, que condena o
seu caráter autoritário; a fascista, que centra as suas atenções no combate ao caráter
desagregador que o comunismo provoca na sociedade; a conservadora, que visa a
manutenção do status quo; a anticlerical, dada a antireligiosidade do comunismo; e,
por último, a liberal, em função da condenação à propriedade privada e da livre
iniciativa que o marxismo apresenta. Em muitos momentos da história esses matizes
apresentam-se interligadas e mescladas (MENDES, 2004:81).

A primeira consideração a ser feita diz respeito às relações políticas entre os EUA e o
Brasil após a Segunda Guerra Mundial, na qual Brasil e América Latina desfrutaram de certa
importância estratégica. Esta importância acabou por ficar reduzida, devido ao país estar
geograficamente distante daqueles que pudessem sofrer algum tipo de ataque por parte dos
EUA (cf. ROLIM, 2012). Contudo, o alinhamento com os EUA se manteve na Guerra Fria:

A política econômica brasileira, no imediato pós-guerra, caracterizou-se pela


implementação de medidas norteadas pelos princípios liberais que dominavam o
contexto internacional. Ao mesmo tempo, expandiam-se as relações comerciais com
os Estados Unidos; nos anos 1947-50 60% das exportações brasileiras destinavam-se
ao mercado norte- americano, enquanto o café era o produto responsável por mais de
60% das vendas externas (HIRST, 2011:24).

Este alinhamento se realizava não somente através de relações comerciais ou de pactos


políticos, tratava-se de um alinhamento ideológico: o mesmo discurso anticomunista propagado
nos EUA pôde ser visto também no Brasil. No país, determinadas instituições também
apresentavam um caráter declaradamente anticomunista, especialmente o Instituto de Pesquisas
e Estudos Sociais (IPES), “um organismo eminentemente de propaganda e mobilização contra
o perigo próximo de comunização e de ameaça à democracia que estariam afetando o país
(MENDES, op. cit.:82)” – ao qual, lembremo-nos, estavam vinculadas as ações editoriais de
Gumercindo Rocha Dorea – e o Instituto Brasileiro de Ação Democrática (IBAD), que gozavam
de importante influência política durante o contexto histórico de nosso trabalho.
132

Em uma configuração religiosa majoritariamente cristã da população brasileira, a


instituição da Igreja Católica também tem papel de destaque. Conforme aponta Rodeghero
(2002:464), esta foi uma das instituições “que mais se dedicaram ao combate ao comunismo no
Brasil”, através de uma propaganda anticomunista que se materializava em pronunciamentos
de autoridades católicas em jornais, alocuções radiofônicas, solenidades de inauguração, missas
especiais, livros, revistas, cartazes, panfletos e santinhos, impressos nas gráficas e editoras
católicas, enfim, em uma série de suportes semióticos através dos quais se criava um atmosfera
de ameaça comunista que demandava uma ação combativa mais enérgica.
À época, houve ainda outras instituições e produções simbólicas veiculadas na grande
mídia e que reproduziam e legitimavam o discurso anticomunista no país. O que deve ser
entendido de modo claro é a relevância que tal postura teve tanto enquanto formas de
justificativa dentro em um contexto de ações políticas norte-americanas, como em um discurso
reproduzido por diferentes setores e instituições da sociedade brasileira.
Inicialmente, mais do que considerar o que se faz presente no texto, devemos pensar
também no que ele torna ausente. Se houve à época da Guerra Fria tanto nos EUA quanto no
Brasil uma empreitada contra o comunismo, materializada inclusive em produções artísticas
como cinema, literatura, charges e outras, é de se esperar que um direcionamento político “mais
à direita” estivesse presente através de uma representação negativa do polo soviético. Não é o
que encontramos no texto e quanto a isto cabem algumas reflexões.
Como vimos na seção 2.2 deste trabalho, o processo de seleção é um elemento
fundamental na construção do mundo ficcional e é precisamente o que, segundo Iser (op. cit.),
aponta para a intencionalidade de um texto. Porém, se a seleção de um elemento condiciona a
intencionalidade, a não seleção de outro o faz da mesma maneira: “os elementos presentes no
texto são reforçados pelos que se ausentaram. Assim, o elemento escolhido alcança uma posição
perspectivística, pelo que dele se ausenta, o julgamento que o texto fazia de seu mundo (id,
ibid.:961)”. Retomando então as escolhas lexicais presentes no texto e que fazem referência
direta ao polo comunista, percebemos que não há quanto a esta qualquer valoração negativa
mais evidente.
Como vimos anteriormente, há uma relação antitética entre os dois únicos personagens
do conto. Seria possível argumentar que o antagonista estaria negativamente representado, visto
que a aproximação do protagonista se dá de modo pacífico e é retribuída com tiros. Assim, seria
possível caracterizar o antagonista com traços de intransigência e agressividade. Contudo, se
partimos do pressuposto que este personagem adquire o papel de vítima de um ataque militar –
o que se apresenta como uma interpretação possível, conforme apontamos anteriormente,
133

parece-nos compreensível sua reação face à sua condição de sobrevivente, para quem o temor
parece ser uma constante. O que justificaria, por exemplo, mesmo a recusa em aceitar a
cooperação do protagonista, cuja proposta rebate: “Não quero ouvir coisa nenhuma. Estou cheio
de mentiras. Não aguento mais (AE:87)”.
O desfecho da narrativa também deve ser posto em evidência: “Estava no fim da cidade.
Havia uma estrada em direção às montanhas. Parou alguns instantes, olhando, depois seguiu
com passos cansados. A estrada levava para o norte. Para lá o homem partiu, com mantimentos
e uma espingarda (AE:89)”. Neste momento, o protagonista sai de seus limites enquanto
personagem para se tornar, metonimicamente, símbolo de toda a humanidade; trata-se agora do
destino desta. O símbolo da estrada acentua a ideia de continuidade histórica. Se não há
elementos textuais que possam sustentar esperanças quanto ao futuro, tão simplesmente que
haja a possibilidade de estas se concretizarem no “norte” (e não no sul), já nos impediria de
situar este desfecho em uma perspectiva de um discurso anticomunista.
Como se pôde observar, tanto com relação ao dito do texto quanto ao seu não-dito, não
há motivos, segundo nossa interpretação, para entendermos a obra como legitimando uma
postura anticomunista, tal como se verifica em uma série outros meios à época da Guerra Fria.
Tratemos agora do eixo de análise da ameaça nuclear.
Um dos principais elementos constituintes do imaginário da Guerra Fria foi o constante
temor de uma catástrofe nuclear, dado o grande potencial bélico do qual dispunham as duas
grandes potências à época. Conforme aponta Hobsbawn (op. cit.:224):

Gerações inteiras se criaram à sombra e batalhas nucleares globais que, acreditava-se


firmemente, podiam estourar a qualquer momento e devastar a humanidade. [...] à
medida que o tempo passava, mais e mais coisas podiam dar errado, política e
tecnologicamente, num confronto nuclear permanente baseado na suposição de que
só o medo da "destruição mútua inevitável" [...] impediria um lado ou outro de dar o
sempre pronto sinal para o planejado suicídio da civilização. Não aconteceu, mas por
cerca de quarenta anos pareceu uma possibilidade diária.

Para nos aprofundarmos sobre o caráter discursivo da ameaça, precisamos anteriormente


nos debruçar sobre um aspecto material e objetivo à época: o desenvolvimento tecnológico
ocorrido durante a Guerra Fria. Algo que é de extrema importância em nosso trabalho, uma vez
que um dos grandes atrativos da FC é justamente, conforme citado anteriormente, refletir sobre
as relações entre o ser humano e a tecnologia por ele produzida. Como já o vimos anteriormente,
Reynolds (ibid.:loc. cit.) traz o conceito da Big Science como um conceito-chave para a década
de 60, entendido como uma combinação de investimentos, equipamentos e capital humano em
áreas de atividades científicas, tecnológicas e industriais. Esta produção industrial, cada vez
134

mais pautada pelo aperfeiçoamento tecnológico promovido pelo avanço científico, passa a se
integrar ao governo, sendo o complexo governamental-industrial-acadêmico o “motor da Big
Science para a maior parte da era da Guerra Fria (id., ibid.:379)”. Não se pode perder de vista
ainda o fato de que o poderio militar de uma potência se relaciona diretamente com o seu
respectivo poderio político. Retomando a ideia do antagonismo excludente, estar à frente em
termos bélicos era quase que uma necessidade para evitar a hegemonia do inimigo; em especial
quando falamos dos discursos anticomunistas e da tentativa de os EUA impedirem a expansão
geopolítica do bloco soviético. Investimento e produção tecnológica para fins militares tinham
assim uma justificativa no âmbito político internacional; bem como não se pode desconsiderar
a importância econômica de se manter a todo vapor a indústria militar norte-americana.
Foi à época da Guerra Fria que o ser humano se deparou diante de uma ameaça de
destruição nunca antes vista. Mais do que uma simples questão dicotômica de E.U.A. versus
U.R.S.S., o componente bélico do qual dispunham as duas grandes potências, isto é, armas
atômicas e termonucleares, não era somente “um ‘lubrificante’ espalhado nos mecanismos de
toda a “máquina” da “Guerra Fria”, mas sim, na verdade, “um elemento vital daquele
mecanismo, aquele que imprime sentido ao medo e a (sic) angústia, aos orçamentos bilionários
de defesa e ao temor seja do comunismo ou do capitalismo (ROLIM, 2012:18)”.
Outro conceito relevante presente em boa parte dos estudos sobre a ameaça nuclear à
época da Guerra Fria e que merece ser aqui citado é o da Mutual Assured Destruction (M.A.D.).
A ideia, associada à administração do presidente Dwight D. Eisenhower em meados dos anos
50 e reforçada pelo secretário de defesa Robert McNamara (cf. TUCKER, 2008:1423), pode
ser definida como uma doutrina que propagava

a noção de que cada lado tinha um mesmo poder de fogo e que, se um ataque
ocorresse, a retaliação seria em igual medida ou ainda maior que a do ataque inicial.
Daí que nenhuma das duas nações daria um primeiro golpe pois seu adversário poderia
garantir uma sobrepujante resposta imediata e automática consistindo de um sinal de
alerta, também conhecido como fail deadly. O resultado final seria a destruição de
ambos os lados (ARNOLD, 2012:147) [tradução própria]92.

O medo reforçava-se por conta da expectativa de que um ataque que seria respondido com
outro, levando à total destruição para ambos os lados. Nas palavras de Weart (2012:123): “com

92
No original: “the notion that each side had equal nuclear firepower and that if an attack occurred; retaliation
would be equal to or greater than the initial attack. It followed that neither nation would launch a first strike
because its adversary could guarantee an immediate, automatic, and overwhelming response consisting of a
launch on warning, also known as a fail deadly. The final result would be the destruction of both sides”.
135

o advento de bombas de hidrogênio, cidadãos começaram a suspeitar que o fim da humanidade


não era uma história de ficção científica, mas uma possibilidade iminente” [tradução própria]93.
No Brasil, não há como dizermos que produções simbólicas amplamente consumidas
pela população tenham se ausentado de trazer representações e valorações próprias acerca do
conflito. Para entendermos como esse imaginário da ameaça nuclear estava presente no país,
cabe aqui relevante passagem de Rolim (2012:288):

No Brasil, ao nosso modo, criávamos ameaças que, mesmo parecendo improváveis,


eram o nosso recurso de inserção naquilo que acontecia no mundo lá fora: uma bomba
atômica poderia explodir em Nova Iorque ou Moscou? Então façamos o nosso "e se..."
com a cidade de São Paulo. Discos voadores apareciam no mundo todo? Então por
que também não no Brasil? A ciência e a técnica militares desenvolveram bombas de
hidrogênio? Então por que o Brasil não poderia ser o "pai da criança"? Bombas
atômicas eram testadas nos Estados Unidos e Pacifico? Então por que não testá-las
também no Nordeste brasileiro? A Europa parecia o "teatro de operações" mais
provável para a Terceira Guerra Mundial? Ora, então por que não criar um 'teatro de
operações" no Nordeste brasileiro? As bombas atômicas e termonucleares inebriaram
e povoaram a imaginação das pessoas na "Guerra Fria", e isso aconteceu devido a sua
concretude, uma vez que não se falava em armas do futuro, mas em armas do presente:
a ameaça e a possibilidade estavam logo ali e os próprios militares faziam questão de
divulgar a invenção de dispositivos mais letais e poderosos.

Coloca-se, portanto, claro para nós que mesmo no Brasil a ameaça se via representada,
e que não poderíamos deixar de supor que a “desgraça” ocorrida em AE seja um exercício
especulativo ficcional, especialmente no contexto do gênero da FC em que ciência, tecnologia
e futuro se vejam extrapolados. No conto, como vimos anteriormente, antes do momento em
que se desenvolve a narrativa houve um ataque, certamente de proporções nucleares, atingindo
homens mortalmente, “fulminados, de repente”. Há ainda outro indício textual que nos leva a
deduzir que este ataque teria trazido contaminação ao ambiente – tal como as bombas lançadas
sobre as cidades de Hiroshima e Nagasaki tiveram como um de seus efeitos, além da destruição
mais imediata, o envenenamento radioativo. Seguindo nossa linha de interpretação, há dois
momentos no conto em que os efeitos radioativos se veem representados. A certa altura da
narrativa, nos diz o narrador: “Passou a mão pelo rosto barbado, recomeçou a procura. Vitrinas
e espelhos refletiam um mendigo cabeludo e sujo. Tinha medo de limpar-se com água. Fazia-o
com álcool ou perfumes, embebidos em algodão (AE:78)”. Mais adiante, diz o antagonista,
dirigindo-se ao personagem principal: “Você veio do sul, está contaminado. [...] Veja, a cidade
inteira morreu contaminada (AE:86)”. Considerando o temor plenamente justificável em
tempos de Guerra Fria, uma construção ficcional como a de AE legitima não somente que a

93
No original: “[…] with the coming of hydrogen bombs, citizens began to suspect that the end of humanity was
not a science-fiction story, but an imminent possibility”.
136

ameaça poderia se concretizar como forja, literariamente, uma antecipação do caos, destruição
e desolação da raça humana; consequências de seu próprio agir.
A destruição representada no conto supera ainda as relações antagônicas que se travam
metonimicamente através das figuras do protagonista e antagonista. Se tomarmos o momento
em que aquele afirma “Não há sul nem norte. Tudo é a mesma coisa. Não existem fronteiras,
só gente morta e toda parte [...] (AE:87)”, fica claro, retomando o conceito da M.A.D., que
independe de que lado cada personagem se encontre no conflito, assim como independe qual
potência global atacaria primeiro: a destruição atingirá a humanidade como um todo,
igualmente. Nem mesmo os verdadeiros culpados – lembremo-nos de quando o protagonista
afirma “Não matamos ninguém, os culpados estão longe, talvez mortos (AE:loc. cit.)” – se
viram livres de terem sua morte ceifada pela “desgraça”. O que se pretende destacar aqui é o
elevado nível de risco concreto que o potencial bélico das potências oferecia ao ser humano de
um modo geral, o que se aplicava tanto aos E.U.A. quanto à U.R.S.S.
Não se trata, contudo, de neutralizar um direcionamento por parte do autor, não ao
menos a partir de nossas linhas interpretativas. Na narrativa, o protagonista tenta se aproximar
duas vezes do antagonista de modo pacífico, inclusive mandando uma mensagem escrita à mão
dizendo que queria apenas cooperar com o outro personagem, sendo em ambas as vezes
recebido a tiros. Porém, nos dois momentos em que os disparos foram efetuados, estes foram
precedidos de avisos por parte do antagonista – que, como argumentamos, parecia dispor de
motivos suficientes para não confiar ou temer o outro personagem94. Além disso, ao invés de
tão somente ignorar o outro personagem, cujo espaço, se respeitado, o tornava inofensivo, opta
o personagem principal por confrontá-lo, evocando um direito que, segundo o próprio, lhe
cabia: “Se somos dois vivos, metade me pertence [...]. Tenho direito de entrar nessa fortaleza
de mentiras. E vou trazer o argumento que você entende, a espingarda (AE:loc. cit.)”.
Não cabe aqui fazermos uma transposição automática da dualidade histórica política
para a dualidade ficcional dos personagens [EUA x URSS = protagonista x antagonista]. Há
diversas nuances que tornam esta operação mais complexa. Dada as circunstâncias históricas
da massiva propagação do discurso anticomunista, uma ausência deste mesmo discurso na
representação ficcional é uma opção responsiva ativa, ainda que se realize pela ausência. Há
aqui dois traços psicológicos distintos: de um lado o personagem do norte, desconfiado, e com

94
O primeiro tiro disparado pelo antagonista não foi precedido de qualquer aviso. Este disparo, porém, foi em
resposta à ameaça por parte do protagonista que, tendo tentado se comunicar com o outro personagem, mas sem
sucesso, ameaçou que “se ninguém aparecesse, destruiria a porta (AE:84)”. Mais do que isto, este primeiro disparo
parece não ter sido realizado com a intenção de matar, dado que, imediatamente após a ele, adverte o antagonista:
“Desapareça daqui senão eu mato (ibid.)”.
137

alguma razão; e, do outro, o do sul, que, ainda que buscasse cooperação, acabou por optar pelo
confronto direto. Em termos diegéticos, a narrativa depende do clímax do encontro, e é
precisamente por isso que não poderíamos dizer que o protagonista poderia ter tomado outro
caminho: as motivações e a maneira beligerante através da qual ele resolve o conflito já estão
presentes, virtualmente, desde o primeiro momento da narrativa; do contrário, ela não ocorreria
e uma outra possibilidade de desenrolar de eventos só seria imaginável com outro personagem.
Por esse motivo, não cabe aqui entendermos os elementos dos pares [EUA x URSS] e
[protagonista x antagonista] como recebendo, na narrativa, valorações iguais – cabendo aos
últimos as mais positivas. O que, seja dito, nos parece muito mais coerente com a verdadeira
situação política da U.R.S.S., cujos interesses em uma guerra de tais proporções são pouco
factíveis. Como vimos anteriormente, nenhuma pretensão de expansionismo por parte do bloco
soviético se sustentava. Este saíra da Segunda Guerra Mundial “quase aniquilado, sangrando
profusamente por todas as feridas” e era esse “colosso branco sangrante, quase aniquilado, que
se supunha criar uma grande ameaça militar para a Europa (DEUTSCHER, 1969:15)”. O que
se vê endossado pelas palavras do próprio Kruschiov, secretário-geral do Partido Comunista da
União Soviética (PCUS) entre 1953 e 1964:

[...] se existe uma ameaça à coexistência pacífica dos países com diferentes sistemas
político-sociais, essa ameaça não parte de forma alguma da União Soviética, do campo
socialista. Tem o Estado socialista o menor motivo para desencadear uma guerra
agressiva? Existem, por acaso, em nosso país classes e grupos interessados na guerra
como um meio de enriquecimento? Não. Foram há muito suprimidos em nosso país.
Teremos nós pouca terra e riquezas naturais, carecemos de fontes de matérias-primas
ou mercados de venda para nossas mercadorias? Não, temos tudo isso de sobra. Para
que necessitamos, então, da guerra? Não precisamos da guerra, rechaçamos por
princípio a política que arrasta à guerra milhões de seres em holocausto aos interesses
egoístas de um punhado de multimilionários. Sabem de tudo isto os que gritam sobre
os "propósitos agressivos" da URSS? Sim. Naturalmente o sabem. Para que
continuam, então, com sua velha flauta rachada, o estribilho da suposta "agressão
comunista"? Unicamente para turvar as águas, para encobrir seus planos de
dominação mundial, de "cruzada" contra a paz, a democracia e o socialismo
(KRUSCHIOV, 1956).

Portanto, sustentamos aqui que a criação de um inimigo comunista em vias de expansão por
parte dos E.U.A. teve justificativas muito mais de ordem retórica e política do que militares.
Em suma, verificamos, a partir dos eixos analíticos selecionados e considerando a
interpretação que desenvolvemos, que AE consegue, com grande qualidade estética, seja dito,
representar em suas obras questões à ordem do dia da época e diante das quais é possível
verificar um claro posicionamento por parte do autor, considerando exclusivamente o conto em
sua forma e seu conteúdo.
138

5.2. O Brasil pós-ditadura: Feliz Natal, 20 bilhões (1989) de H. V. Flory

O conto Feliz Natal, 20 bilhões (doravante FN) foi escrito por Henrique V. Flory,
nascido em 1968 e ex-aluno do Instituto Tecnológico da Aeronáutica, e figura na coletânea
Enquanto houver natal – oito estórias de ficção científica, publicada em 1989 pelas Edições
GRD, do editor aqui por vezes citado Gumercindo Dorea Rocha. Três das obras de Flory, Só
sei que não vou por aí (1989), Projeto Evolução (1990) e A pedra que canta (1991)95, chegaram
a ganhar destaque ao serem resenhadas nas colunas de Jorge Luiz Calife, romancista de FC e
redator da editoria de ciência no Jornal do Brasil, respectivamente nas edições deste de
20/05/1989, 14/07/1990 e 04/05/1991. FN se insere em um momento de ressurgimento da FC
brasileira após o hiato da década de 70 por conta dos anos de ditadura. Com a publicação da
obra Padrões de Contato (1985), do mesmo Jorge Luiz Calife, resenhada inclusive pela revista
Veja, ocorreu um o aumento de visibilidade da FC produzida no Brasil, tanto no cenário
nacional quanto no internacional (cf. GINWAY, op. cit.:142); do que a coletânea em que figura
FN é exemplo.
FN, assim como todos os outros contos presentes na coletânea, tem, a princípio, o Natal
como elemento temático central e certamente, também como os outros, foi escrito
exclusivamente para esta publicação. Os eventos da narrativa ocorrem, precisamente, como
aponta um narrador em terceira pessoa, entre as 21 horas do dia 24 de dezembro (de um ano
não mencionado) e poucos minutos antes da 1 da manhã do dia 25. Em FN, Alê, o personagem
principal, é requisitado por uma organização intitulada de “Agência” para cometer o assassinato
de um político – algo que se supõe que ele faça com alguma frequência através de outros
serviços para a tal Agência. O crime deveria ser levado a cabo pelo protagonista graças a seu
disfarce de Papai Noel e uma vez infiltrado na casa de seu “alvo”. No último momento, porém,
após ter liquidado com todos na casa, Alê poupa o político por ter se identificado com suas
ideias, anteriormente expressas em diálogos.
A obra se insere no gênero de FC distópica por diferentes motivos, que apresentaremos
agora.
Em primeiro lugar, podemos destacar a relação entre o cenário apresentado na narrativa
e a ideia extrapolada da superpopulação, central para a narrativa, como sugere o título. Neste

95
FN foi posteriormente publicado nesta coletânea.
139

sentido, cabe uma das falas do político – apresentado apenas como “Careca” – que deveria ser
morto por Alê, em meio a uma discussão sobre o tema com os outros personagens:

A humanidade atingiu hoje um ponto que beira o colapso populacional puro e simples.
É o fenômeno da reversão do caráter gregário da espécie, com o aparecimento de
‘elementos de controle social’, psicopatas homicidas, desesperados com a falta de
espaço mínimo que um ser humano necessita para ser psicologicamente saudável. Isso
acontece nas experiências com ratos (FN:62).

O elemento central para o caráter distópico da narrativa é a extrapolação demográfica, que traz
consigo uma série de implicações, como violência e desigualdade social, e sobre o que
lançaremos nossos olhares mais à frente do texto, situando esta especificidade narrativa na
realidade social do Brasil à época. É ainda relevante mencionar a precisão da cifra de 20 bilhões
presente no título – à época da publicação de FN, segundo documento da Organização das
Nações Unidas (ONU)96, a população mundial estimada era de cerca de 5 milhões e 320 mil
pessoas. Não seria descabido imaginar que o autor não tenha chegado aleatoriamente ao número
de 20 bilhões. Seja como for, mesmo para os dias atuais, em que há acesso facilitado a
informações de organizações mundialmente reconhecidas, trata-se de um número bastante
exagerado – segundo o mesmo documento, a população mundial em 2010 era de mais de 6
bilhões e 900 mil pessoas.
Um outro aspecto que justifica a inserção da obra no paradigma da FC é o nível de
cientificidade, se podemos assim dizer, da explicação que o “Careca” dá ao fenômeno da
população:

Em certas experiências com populações de rato, simula-se uma explosão demográfica


em ambiente fechado: um prédio ou viveiro, por exemplo, de tal forma que os ratos
tenham sempre comida suficiente para todos, mas estejam impossibilitados de sair.
Após um determinado limite populacional aparecem certos ratos, os ‘elementos de
controle’, que se tornam assassinos, infanticidas e até mesmo canibais – sem
necessariamente precisar disso, lembre-se de que eles possuem comida suficiente –
apenas porque o espaço mínimo requerido pela individualidade da espécie foi violado.
Estas reações começam com os indivíduos instáveis e depois vão se alastrando por
toda a população (FN:63).

Assim, o elemento narrativo central – cuja extrapolação dá o tom distópico ao texto – apresenta-
se justificado em termos científicos.

96
Disponível em: http://esa.un.org/wpp/Excel-
Data/EXCEL_FILES/1_Population/WPP2012_POP_F01_1_TOTAL_POPULATION_BOTH_SEXES.XLS.
140

Ainda que não haja qualquer menção ao ano em que se passa a história, podemos
verificar o mesmo recurso da extrapolação sendo aplicado ao nível de desenvolvimento
tecnológico presente à época dos eventos da narrativa, o que leva o leitor a considerá-la como
se passando no futuro. Logo nas primeiras passagens do conto é feita menção à “Estação Orbital
Hohm”, com três mil habitantes, sendo ficcionalmente representado, portanto, o tema da
colonização de outros planetas. Remetendo-nos ao percurso histórico da FC, como vimos na
seção 4.2 deste trabalho, se antes as histórias de space opera apresentavam aventuras
intergalácticas em que um dos motivos centrais era o contato do ser humano com o outro (com
sua própria alteridade) representado na figura do alienígena, no contexto do movimento
cyberpunk os outros planetas perderam sua característica de “território desconhecido a ser
desbravado” para ganharem o estatuto de “lugar a ser colonizado” e precisamente em função
das contradições sociais latentes no planeta Terra. Houve uma mudança da ideia da “exploração
intergaláctica” para a de “fuga da Terra”. Isto ganhou notoriedade com o já citado filme Blade
Runner (1982), também famoso no Brasil, que apresentava, ainda que não centralmente, a
temática da colonização extraterrestre. Verifica-se em FN a influência da vertente cyberpunk
que ao longo dos anos 80 desenvolveu-se nos Estados Unidos e pouco a pouco veio sendo
assimilada por autores brasileiros.
Vários gadgets tecnologicamente mais desenvolvidos do que os da época do autor,
também ajudam na composição dos cenários da narrativa: uma TV que se conecta diretamente
ao cérebro através de um neuroconector que permitia ao usuário “receber as imagens, sons e
cheiros diretamente no cérebro (FN:53)”, um cartão inteligente que registrava as compras em
estabelecimentos – algo como nossos atuais cartões de crédito e\ou débito97, uma máquina de
armazenamento de cocaína governamental (e certamente de outras substâncias estimulantes
e\ou psicotrópicas comumente rotuladas de “drogas”), um super-ônibus elétrico com
capacidade para cerca de cento e cinquenta pessoas, carros autodirigidos com motoristas
eletrônicos, portas automáticas e semiautomáticas98, um dispositivo emissor de ruídos
eletromagnéticos (para evitar o acionamento de redes de alarmes antirroubo presentes na casa
do político), patinhos-robô (dado como presente de Natal a uma criança presente na casa do
político) e pistolas de altíssima pressão municiadas com pequenas setas metálicas que poderiam
perfurar “até um centímetro de aço-titânio 35N (FN:64)”.

97
Leitores mais atentos quanto à plausibilidade dos gadgets apresentados em obras de FC poderão verificar que
há uma “falha técnica” em FN. Em dado momento da narrativa (FLORY, op. cit.:57), Alê pergunta ao garçom se
sua máquina não possui “timer” – o que é tecnicamente impossível se considerarmos nossas máquinas atuais que,
uma vez conectadas à internet, possuem inexoravelmente registros de todas as transações realizadas.
98
Na narrativa, estas portas se encontram em residências, o que mesmo atualmente seria algo incomum.
141

Destaca-se ainda a importância do cenário urbano como lócus central das contradições
sociais oriundas da superpopulação. A cidade em FN não serve tão somente de plano de fundo
para os eventos – ela própria, como seus personagens, é expressão do conflito maior para a
narrativa. Como sistematizamos nas Tabelas 3 e 4 do Anexo, há uma clara relação antitética
entre o cenário externo dos bairros pobres e a padaria situada em um deles, e o cenário externo
dos bairros ricos, em um dos quais se situa a casa do político. Mesmo a apresentação dos
cenários, internos e externos, se dá de modo em certa medida simétrico, com a seguinte
sequência: [espaço interno do bairro pobre > bairro pobre > bairro rico > espaço interno do
bairro rico]99. Esta importância da cidade reafirma a validade da inserção de FN no gênero da
FC distópica, para além da razão editorial mais imediata de ela figurar numa coletânea de
“estórias de ficção científica”.
Como apresentado anteriormente, as décadas de 80 e 90 foram momentos para a FC,
tanto no Brasil quanto nos EUA, de florescimento da vertente cyberpunk, em que as
contradições sociais passam a ser mais exploradas pelos autores e a presença dos engenhos
tecnológicos se tornam parte da realidade cotidiana. Podemos dizer que ambos os elementos se
verificam em FN e faz jus à tendência que se desenvolvia à época. Devemos, contudo, reafirmar
que o cyberpunk no Brasil – ou o tupinipunk, como vimos anteriormente, “não tenta mostrar
uma versão brasileira do ciberespaço, mas, ao invés disso, enfatiza conspirações em seu próprio
meio (GINWAY, 2010:36)”. O que pode ser entendido se levarmos em conta o elevado grau
das contradições sociais brasileira, bem como o desenvolvimento tecnológico tardio,
considerando que somente a partir dos anos 2000 computadores pessoais com acesso à internet
passaram a fazer parte do cotidiano dos brasileiros – e, ainda assim, não necessariamente do de
todos (até hoje...).
Voltemos nossos olhares a partir de agora para a dimensão da prática social de FN.
Pautaremos nossa análise, tal como fizemos anteriormente, em eixos temáticos centrais,
relacionados à configuração histórica do Brasil pós-ditadura. Em FN, consideraremos a crise
econômica da década de 80 e a superpopulação100.

99
Podemos dizer que há um espaço interno entre o bairro pobre e o bairro rico. Antes de chegar a este último, Alê
recebe as coordenadas de seu serviço diretamente na “Agência”, “uma simples biblioteca de software de aparência
bastante inocente (AE:59)”. Para chegar até ela, foi necessário que o personagem tomasse uma condução, o que
nos leva a pressupor que a tal biblioteca se localizasse na região do centro da cidade ficcional. Omitimos nas
tabelas 3 e 4 do Anexo o espaço interno da “Agência” não somente por não haver qualquer adjetivo a ela
relacionado – com exceção de “simples” e “inocente” presentes na transcrição anterior – como por termos
priorizados nelas o caráter antagônico dos bairros pobres e ricos. Ademais, não há como afirmar se a “Agência”
se localizaria nestes ou naqueles.
100
Há dois outros tópicos presentes no conto que mereceriam um exercício analítico tal como o que realizamos
com os três eixos temáticos escolhidos. São eles a AIDS e as drogas. Dentre outras referências quanto aos dois
primeiros, em FN há uma determinada passagem em que um Arcebispo, em uma transmissão de TV, menciona o
142

A crise econômica da década de 80, frequentemente nomeada na literatura histórica e


econômica de a “década perdida”, tem como um de seus principais efeitos a desigualdade social,
e para podermos compreendê-la é necessário que recuemos alguns anos, precisamente à
primeira metade da década de 70, em que entra na cena política econômica do Brasil o chamado
milagre econômico.
À época, o regime militar apresentava sua fase mais reacionária e autoritária, havendo
uma busca incessante por cifras econômicas que pudessem dar credibilidade ao governo,
chegando ao ponto, por exemplo, de haver manipulações quanto ao índice de inflação – em
1973 foi apresentada a cifra de 12,6% no ano, quando, conforme apontaram pesquisas
posteriores, tratava-se de mais de 20% (cf. LUNA & KLEIN, 2007:66). Em 1974, com o general
Geisel no poder, o governo optou por reagir à crise do petróleo de 1973 com estímulos à
economia através de programas de investimentos financiados por sistemas de empréstimo do
estrangeiro, tendo como resultado uma inflação cada vez maior, aumento da dívida externa e
esgotamento da capacidade financeira do Estado (cf. id., ibid.:68). Em suma, o cenário futuro
para a década de 80 no Brasil apresentava um quadro de profunda crise econômica e de
agravamento dos problemas sociais no país, encerrando o período de crescimento que se
verificou ao longo das duas décadas anteriores. E não haveria de ser diferente. A década de 80,
com suas idas e vindas políticas ao longo dos anos, sobre as quais não caberia agora tecer
comentários mais aprofundados, ficou marcada pelas crises da inflação e da dívida externa –
ainda que em termos políticos, não deixemos de mencionar, tenha sido um momento de abertura
democrática com o marco histórico do ano de 1985, que teve seu fim o período autoritário com
a vitória de Tancredo e Sarney no Colégio Eleitoral em 15 de janeiro.
Em termos sociais, a herança da década de 70 foi um crescimento na desigualdade social
e uma piora na distribuição de renda ao longo de toda a década seguinte (cf. SANTAGADA,
1990:124), uma tendência inexorável de acentuação dos problemas sociais por conta da crise
econômica. Mais do que isto, com o desenvolvimento urbano ao longo dos anos 70, bem como
o processo de mecanização da agricultura e o declínio da lavoura de subsistências (cf. LUNA
& KLEIN, op. cit.:216), uma grande parcela da população rural foi sendo atraída pelas

fato de ter sido a Igreja responsável por ter salvado “a humanidade do flagelo da AIDS reafirmando os valores
fundamentais e imutáveis da sacralidade do Casamento e da Família (AE:53)”. Quanto ao tema das drogas, no
futuro ficcional do autor, estas teriam seu consumo liberado em determinadas quantidades previstas pelo governo.
Mesmo o consumo de tais substâncias não ausenta trazer consigo a questão da desigualdade social. Isto se verifica
em dois momentos: na padaria da narrativa, diz o narrador, não se poderia encontrar a cocaína americana, de
melhor qualidade; e na casa do político alguns personagens fazem uso do “‘paraíso vermelho’, droga sensual de
custo extremamente elevado e inexistente nos bairros pobres (AE:64)”. Por não tratarmos deste tema, o que
tornaria a parte dedicada a FN maior do que a desejada em nosso trabalho, omitimos os termos [bandeja de drogas],
presente textualmente, da coluna “casa do político” na tabela 4 do Anexo.
143

oportunidades nas grandes cidades. Isto acarretou um aumento considerável da população


urbana – em 1980 “nove capitais de Estados tinham já mais de 1 milhão de habitantes; esse
número subiu para onze em 1990, com São Paulo à frente, seguido pelo Rio de Janeiro, Belo
Horizonte e Porto Alegre (FAUSTO, 1995:535)”. A consequência foi a transferência da pobreza
do campo para as cidades, com estas sofrendo um processo de crescimento demográfico para o
qual não estavam preparadas:

Inserem-se aí as questões referentes a saneamento básico, moradia, transportes,


segurança, abastecimento alimentar e favelização, entre outros. O impacto desses
fluxos populacionais e o modelo de crescimento econômico posto em prática
consolidam de forma indelével as desigualdades sociais (SANTAGADA, op.
cit.:133).

Esta contextualização histórica, ainda que absolutamente breve, parece nos dar
subsídios para que possamos entender os elementos objetivos dos quais o autor de FN parte em
seu exercício ficcional de extrapolação. Não será por menos que teremos no conto, como
apresentamos anteriormente, uma apresentação extremada – ou talvez nem tanto – da
desigualdade social através dos espaços interno e externo, por um lado, da padaria e de um
bairro pobre, e, do outro, da casa do político e de um bairro rico. Considerando as construções
qualificativas presentes na Tabela 3 do Anexo, podemos verificar que o bairro rico não somente
conta com duas construções positivamente avaliativas [de civilização / suaves e agradáveis],
como o bairro pobre dispõe tão somente de construções meramente descritivas. Ademais, salta
aos olhos o cuidado descritivo do qual dispõe o autor para apresentar as ruas do bairro rico:
[cortadas por duas faixas cintilantes, de aproximadamente um palmo de largura e profundidade,
feitas de material acrílico e fibras ópticas que auxiliavam os carros autodirigidos]. Como se
pode ver também na Tabela 4, repete-se nos espaços internos da padaria e da casa do político a
desigualdade aguda verificada nos externos, onde podemos perceber quase que uma mesma
quantidade de referências espaciais para ambos os extremos sociais representados pelos dois
espaços interno. Ademais, há ainda o efeito da violência por conta da desigualdade, quando o
narrador menciona a existência de “gangues de marginais que infestavam a cidade (FN:56)”,
quando este se encontrava em um dos bairros pobres – certamente tais gangues encontrariam
mais dificuldades para agirem nos bairros ricos, onde havia, por exemplo, as guaritas de
segurança.
Algo que deve ser mencionado é a distribuição em semelhante medida, em termos da
economia do texto, de termos que fazem referência aos dois espaços internos e aos dois espaços
externos. Disto conclui-se que o conto não apresenta uma preferência pelo extremo mais rico
144

ou pelo extremo mais pobre – trata-se, ao contrário, de uma semelhante quantidade de material
linguístico para a apresentação de cada um destes, o que pode ser entendido como um efeito de
ênfase na contradição social extrapolada no conto, e que dispões de referências objetivas
bastante claras, considerado o momento histórico da produção do texto.
É válido ainda percebermos que boa parte dos elementos referentes ao espaço interno
do bairro rico corresponde aos objetos que compõem o cenário da casa do político, em
contraposição aos elementos da padaria que em grande parte correspondem às pessoas do
ambiente. Ou ainda, observa-se o antagonismo entre o conjunto de itens tecnológicos versus o
[copo engordurado]. Isto reafirma a ideia de que o desenvolvimento tecnológico não
necessariamente chega a todas as pessoas de modo igual, uma vez que estão subjugados à lógica
econômica do mercado, na qual dispõem de certos bens de consumo aqueles que se encontram
em estamentos econômicos mais elevados da sociedade e dispondo de um poder aquisitivo
maior.
Verificamos algo similar em outro momento. Se observarmos novamente a Tabela 4, há
uma considerável parte dos termos referentes ao bairro pobre que diz respeito ao “super ônibus
elétrico do transporte popular gratuito (FN:57)”. Trata-se aqui de uma extrapolação a princípio
positiva, precisamente graças ao efeito do adjetivo “super”; ou mesmo se atentarmos aqui para
a válida previsão por parte do autor do uso de fontes alternativas ao diesel no futuro da narrativa.
O que se verifica, porém, é que mesmo a aparente qualidade do veículo não é capaz de superar
as contradições sociais. No conto, cerca de duas páginas são dedicadas ao trajeto de Alê até a
“Agência” no super ônibus, correspondendo, por assim dizer, a uma cena da narrativa.
Tratemos, por enquanto, de seu momento mais descritivo (voltaremos a ela mais à frente):

Algumas pessoas já haviam morrido naquelas condições em que os ônibus dos bairros
pobres circulavam. A maioria caindo do carro, mas algumas literalmente asfixiadas e
outras pisoteadas. Depois de alguns minutos sendo comprimidas, empurradas e
machucadas, mesmo as pessoas mais calmas já queriam se morder umas as outras.
Recomendava-se aos velhos e crianças pequenas não viajarem em ônibus muito
lotados, mas não lhes davam quaisquer outras alternativas (FN:58).

Três pontos devem ser destacados. Em primeiro lugar, tem-se o recurso da extrapolação por
conta das mortes – algo, felizmente, consideravelmente extremado. Em segundo lugar,
podemos identificar, especialmente por conta do verbo “morder”, uma relação com a explicação
em tons científicos que posteriormente será apresentada no texto através do personagem do
político, transcrita aqui anteriormente. Por fim, a despeito da qualidade tecnológica do tal super
145

ônibus, presume-se aqui uma deficiência em termos quantitativos para que outros pudessem dar
conta da quantidade de pessoas que desses dependessem.
Retomando nossos apontamentos iniciais de ordem econômica, não poderíamos deixar
de mencionar a referência explícita à crise financeira que assolou o país ao longo da década de
80. Como apontamos anteriormente, um dos elementos tecnológicos que nos dão a ideia de
futuro no conto é a Estação Orbital “Hohm”, mencionada uma única vez, mas o bastante para
que se fizesse registrado no conto um dos principais problemas econômicos que o país possuía
à época:

A estação Orbital “Hohm”, com três mil habitantes, apresenta problemas de


subsistência devido ao colapso de um dos seus coletores solares e deve pedir ajuda à
Terra, provavelmente ao governo americano ou ao japonês. Isto certamente causará
um aumento dos juros da dívida brasileira, mesmo ... (FN:52)

Cabe aqui dizermos que nem mesmo num futuro em que a colonização espacial tenha se tornado
uma realidade colocou-se para o autor uma perspectiva de liquidação da dívida externa
brasileira – o que só reafirma o quão presente se fazia à época os efeitos da crise econômica. E,
seja dito, com reflexos até os dias atuais.
Verificamos até o presente momento que a crise econômica vincula-se estreitamente à
desigualdade social e que o crescimento demográfico das grandes cidades do país propicia em
grande medida uma reflexão sobre a capacidade destas de suportarem uma grande quantidade
de indivíduos. Esta questão se vê representada em FN através do tema da superpopulação, que,
como vimos, constitui o elemento extrapolado central para o conto. Vimos também que esta
superpopulação assimila os problemas da desigualdade social, representadas no conto através,
especialmente, dos espaços internos e externos onde decorrem os eventos da narrativa. Há,
porém, outros aspectos a serem considerados.
Como dissemos anteriormente, o personagem Alê opta por poupar a vida do “Careca”
por ter simpatizado com as ideias do político, cujas falas durante a conversa em sua casa
parecem verbalizar grande parte das opiniões de Alê. Mais do que apresentar uma explicação
em tons científicos, como vimos anteriormente, o político ainda relaciona o contexto de uma
população em excesso com o interesse da Igreja, dos “políticos tradicionais” e dos “países
ricos”. Tomemos o fragmento a seguir:

O fato é que nem os políticos tradicionais nem a Igreja querem dar melhores condições
de vida à grande massa; eles precisam, politicamente, que elas cresçam e se
estupidifiquem cada vez mais. [...] Mesmo o Arcebispo, vocês devem ter notado, se
viram o debate de hoje, está cego quanto à inexorabilidade do culposo, se mantido o
146

crescimento populacional. Eles todos só pensam em ter mais e mais massa votante,
para aproximar a média das previsões estatísticas – ou fractais, se preferirem – e assim
trabalharem com mais precisão. Não aceitam que, mesmo sem falta de comida, há
uma população limite. E a sociedade está provando que há! [...] Mesmo que
objetivássemos a tingir uma população estável de cinquenta bilhões de habitantes,
deveríamos iniciar um controle demográfico já. Mas nem isso a Igreja se preocupa em
fazer, pela simples razão, de que não querem parar o crescimento. E pior, nem os
países ricos desejam que os pobres controlem seu crescimento; é uma segurança e
estabilidade a mais para eles. (FN:61-2)

Outra referência presente no texto quanto à perspectiva que o político possui acerca do
problema é a presença de dois discos ópticos separados em seu quarto; ao que parece, uma
espécie de e-book em dois volumes, com o título de “A Explosão Demográfica: Mais Causas
Políticas do que Culturais” – que foram, inclusive, coletados por Alê.
De modo mais impulsivo, se podemos assim dizer – “Os religiosos lhe inspiravam
repulsa, ódio quase incontido (FN:53)” – Alê, tal como o político, percebe o vínculo existente
entre a questão da manutenção retórica da superpopulação com a instituição da Igreja. Quanto
ao debate televisivo ao qual o político fez referência, o narrador nos diz: “Alê excitou-se. Aquilo
prometia. Ele esperava que alguém defendesse a eutanásia e o aborto discriminados e usados
como método de controle populacional (FN:loc. cit.)”. É relevante percebermos aqui que FN
toca em temas considerados tabus e que mesmo contemporaneamente ainda não foram
totalmente esclarecidos, não tendo ainda chegado a sociedade a uma postura definitiva a se
adotar diante deles. Atualmente, falar em aborto ou eutanásia significa inserir-se em um
fervoroso debate no qual atrás de uma das trincheiras encontram-se em grande quantidade
segmentos religiosos, não somente católicos como também especialmente evangélicos, que
correspondem hoje a uma parcela da população maior do que há 20 ou 30 anos. Em nossa
interpretação, parece válido dizer que há uma atitude responsiva por parte do autor (considerado
exclusivamente o conto em questão) de se criticar a postura da Igreja em impor barreiras a
controles mais efetivos de natalidade, aproveitando-se de um número de pessoas pobres cada
vez maior, proporcionando-lhes um ganho político. Crítica esta, aliás, extremamente pertinente
aos dias atuais, em que uma grande quantidade de pessoas chega a dedicar boa parte de seus
rendimentos a instituições religiosas em troca da realização de bênçãos e milagres em suas
duras vidas.
Como vimos, foi através de uma emissão televisiva que o arcebispo e o político
“Careca” travaram um debate. Voltemos agora nossa atenção à representação da força dos
meios de comunicação em massa, à qual cabe especial destaque no conto. Ao longo das duas
primeiras páginas do texto, o autor cria um efeito de intertextualidade manifesta (recorrência
explícita em um texto a outro específico (cf. FAIRCLOUGH, op. cit.:114)) ao “transcrever”
147

integralmente o que é veiculado pela televisão. Isto se verifica ao longo de seis parágrafos, o
que corresponde, em termos econômicos do texto, a uma considerável parcela do conto. Mais
do que isto, houve ainda o cuidado em se grafar em negrito o que era dito, e em itálico,
informações extra-verbais sobre a transmissão; do que a passagem a seguir é exemplo:

TV neuroconectada. o [sic] Apresentador fala da onda de crimes. (som de tiros e


gritos; cheiro de sangue e pólvora). “Não há nada mais preocupante nos dias de
hoje do que a terrível série de assassinatos gratuitos que assolam o País”,
gorgolejava o ícone tridimensional em tom emocionado. “Principalmente se
levarmos em cota que hoje é véspera de Natal. Mas temos a certeza que, com a
ajuda de Deus,...” (FN:52) [formatação original] 101

Esta importância das transmissões televisivas na economia textual do conto se coloca


como um indicativo da amplidão do espectro de influência que a TV possui na sociedade
brasileira, com intensa penetração “na paisagem urbana e rural, nas páginas de revista, na
profusão de aparelhos nos interiores das casas, nas mansões de alto luxo, nos barracos das
favelas das cidades grandes, nas casas modestas e nas praças públicas de cidades pequenas
(HAMBURGER, 1998:440)”.
A história da TV brasileira se inicia com a inauguração da primeira emissora de televisão
em 1950, por Assis Chateaubriand, e em 1991, pouco tempo depois da publicação do conto, já
contava com cerca de 98,7 milhões de espectadores, atingindo 71% dos domicílios brasileiros
(cf. id., ibid.:448). Isto representou um movimento acelerado de ampliação do público
telespectador, cujos efeitos se verificam até hoje e sob diferentes aspectos. Quanto a isto, cabem
as palavras de Mello & Novais (1998:640-1):

Exposta ao impacto da indústria cultural, centrada na televisão, a sociedade brasileira


passou diretamente de iletrada e deseducada a massificada, sem percorrer a etapa
intermediária de absorção da cultura moderna. Estamos, portanto, diante de uma
audiência inorgânica que não chegou a se constituir como público; ou seja, que não
tinha desenvolvido um nível de autonomia de juízo moral, estético e político, assim
como os processos intersubjetivos mediante os quais se dão as trocas de idéias e de
informações, as controvérsias que explicitam os interesses e as aspirações, os
questionamentos que aprofundam a reflexão, tudo aquilo, enfim, que torna possível a
assimilação crítica das emissões imagéticas da televisão e o enfrentamento do
bombardeio da publicidade.

101
Para além de um exemplo textual, nos salta aos olhos a atualidade daquilo que se vê representado na transcrição,
face à grande audiência que possuem programas policialescos de TV nos dias atuais, cujo formato é a apresentação
sistemática e contínua de ocorrências criminais ou infortúnios de terceiros que causem comoção no expectador.
Seu efeito mais nefasto é o reducionismo quanto às questões sociais subjacentes à violência e a criminalidade
marginal e a construção de uma atmosfera de constante temor diante destes. Destaque para “os sons de tiros e
gritos” e o “cheiro de sangue e pólvora” e seu efeito de nos remetermos quase que imediatamente a imagens de
programas do tipo.
148

Mais do que isto, devemos ainda nos lembrar do poderio político e econômico centrado na mão
de alguns poucos grupos empresariais do ramo, bem como a capacidade de os programas de
TV em suas produções simbólicas, com destaque para as telenovelas (e sobre o que há uma
considerável literatura), em legitimar e reproduzir matizes de desigualdade e discriminação (cf.
HAMBURGER, 1998:441). Neste sentido, coloca-se como um dos grandes desafios da
atualidade fazer com que um número cada vez maior de pessoas possam ter acesso a todo um
complexo cultural de costumes, opiniões, visões de mundo etc. alternativos àqueles oferecidos
pelas grandes corporações midiáticas, cujos tentáculos se estendem por outros suportes
semióticos para além da televisão, como revistas, jornais e, mais recentemente, a internet.
No conto, além da menção ao uso do espaço televisivo para a propagação das ideias da
Igreja – ainda que tão somente ao nível do debate, dado que Flory não poderia ter tido contato
à sua época com as transmissões de cultos religiosos durante boa parte da grade de programação
de algumas emissoras – pode ainda ser identificada, de modo bastante jocoso, uma referência
aos programas de auditório, que fizeram grande sucesso nos anos 80 e 90. Tomaremos a
liberdade de transcrever o extenso fragmento:

TV Tela. O Apresentador sorridente abraça a magérrima Mulher do Povo, que chora


emocionada. Seis pirralhos de diferentes idades amontoam-se entre eles,
esqueléticos. (música "Jingle Bells" misturada a arrotos, exclamações, gritos, etc;
cheiro de padaria e suor humano). "E a Dona Guilhermina foi a grande vencedora
do "Natal Milionário" deste ano! Dona Guilhermina, o que a senhora teria a
dizer para os telespectadores?" "Eu... eu não sei nem o que dizer, sabe, Seu
Flávio, só que eu sempre confiei em Deus e paguei a "Arca de Natal" em dia...
E.„" "Pois é, esta é a Dona Guilhermina, a Grande vencedora. Agora seus seis
filhinhos e seu marido vão ter um Natal como o dos milionários lá dos bairros
ricos, com Papai Noel e tudo. O que a senhora acha disso, Dona Guilhermina?"
“Sabe, Seu Flávio, meu marido ainda tá desempregado e eu sempre confiei em
Deus, nunca tirei meu filho da barriga, será que não dá para arrumar um
emprego...” E esta é a Dona Guilhermina que ganhou o "Natal Milionário" da
Arca. Aqui chegou o Papai Noel, e vamos começar a festa!” Alê sentiu-se
demoniacamente enjerizado pelas respostas da mulher. Estava a ponto de jogar um
copo na tela quando se conteve. Tremia, indignado e impotente. "Grande Idiota, isto
sim. Não tirou nenhum filho da barriga, sua vaca parideira? Deixa que eu te furo o
útero!" — pensou remoendo-se (AE:55). [formatação original]

Um pequeno detalhe deve aqui ser mencionado: esta é a única passagem em que se verifica a
transmissão de uma “TV Tela”, correspondendo todas as outras à transmissão da “TV
neuroconectada” graças ao neuroconector de Alê – o único a possuir um no espaço interno da
padaria onde se encontrava a “TV Tela” tradicional. Portanto, não somente o nível tecnológico
do gadget é um indicador socioeconômico como, pode-se ainda argumentar, há um sutil
contraste entre a programação da TV tradicional e daquela que Alê portava: com aquela
149

exibindo programas populares de auditório e esta um debate ou um jornal de notícias


internacionais (onde há menção à estação orbital, sobre a qual falamos anteriormente)102.
Face ao exposto, parece-nos clara aqui a crítica expressa através do texto quanto à força
dos meios de comunicação e de sua apropriação por parte deste ou daquele grupo social de
modo que se leve adiante a manutenção de sua influência e seu poder.
Já quanto à vinculação da superpopulação com o interesse dos países ricos, não
desejando estes que os países pobres controlem sua densidade demográfica, torna-se de grande
relevância trazermos aqui as reflexões acerca do conceito de superpopulação relativa, ou, dito
de outro modo, do exército industrial de reserva – conceito apresentado por Marx como algo
indispensável para o funcionamento do modo de produção capitalista.
Dito de modo mais geral, segundo a análise de Marx apresentada em seu O Capital, o
sistema capitalista pressupõe uma acumulação de capital extraído a partir da mais-valia103, que
passa a ser investido no desenvolvimento de meios de produção com um nível de produtividade
cada vez maior. Assim,

[a] medida que se implementam inovações técnicas poupadoras de mão-de-obra, tais


ou quais contingentes de operários são lançados no desemprego, em que se mantêm
por certo tempo, até quando a própria acumulação do capital requeira maior
quantidade de força de trabalho e dê origem a novos empregos. Assim, a própria
dinâmica do capitalismo atua no sentido de criar uma superpopulação relativa
flutuante ou exército industrial de reserva (MARX, 1996:41).

Evidentemente, seria extremamente tendencioso dizer que em FN verificamos um


posicionamento baseado nas análises de ordem econômica desenvolvidas por Marx quanto ao
modo de produção capitalista. Não obstante, cabe destacar aqui que não verificamos em
qualquer passagem do conto a tendência comum de se naturalizar a pobreza – que estabelece

102
Para sermos exatos, das seis passagens com a transcrição da transmissão, três delas correspondem ao debate
com o arcebispo e o político “careca”, uma ao jornal internacional, uma ao programa de auditório e uma àquilo
que parece ser um programa policialesco. A que se refere a este último foi a primeira citada neste trabalho e com
características que em nada devem aos mesmos programas policialescos que temos atualmente, com todos os
efeitos culturais e sociais que eles causam; desde a reprodução sistemática de discursos que tendem a ridicularizar
criminosos marginais (não os que vestem fardas ou paletós) justificando seus atos a partir da má índole que estes
parecem apresentar desde o nascimento, até a extrapolação dos usos da coerção por parte dos agentes do Estado –
um complexo de revanchismo e “justiçamento” que recebe o apoio de boa parte da população.
103
“A mais-valia é a parte do trabalho excedente e não pago ao trabalhador que, na sociedade capitalista, aparece
sob a forma mistificada de lucro. Portanto, a mais-valia é retirada do sobretrabalho, trabalho abstrato e não trabalho
concreto. Marx vai revelar esta relação apontando os seus elementos constitutivos. Para ele, a produção de mais-
valia é a razão de ser da produção capitalista. Mas esta não aparece revelada, pois, na aparência, o capitalista paga
ao trabalhador o valor diário do seu trabalho. Mas, na essência, este valor diário da força de trabalho não é o valor
necessariamente pago, pois o capitalista toma horas de trabalho excedentes e que não são pagas ao trabalhador,
permitindo obter daí uma lucratividade maior. Para acrescer lucratividade, o capitalista busca extrair o máximo de
produtividade do trabalhador (OLIVEIRA, 2010:277)”.
150

uma relação de mão dupla com um crescimento demográfico em grande escala – ou de se


“considerar tais desigualdades como responsabilidade dos sujeitos que as vivenciam
(OLIVEIRA, 2010:277)”, perspectiva esta que apresenta considerável força discursiva,
reproduzida em grande medida quando se trata do debate sobre problemas sociais. Neste
sentido, considerando o nível de dependência internacional do país no futuro ficcional da
narrativa e a ausência de qualquer discurso de culpabilização de indivíduos mais pobres por sua
condição social – lembremo-nos da importância dos elementos que não são ditos, podemos
dizer que se verifica em FN uma razão muito mais sistêmica para a desigualdade social (quanto
a que cabe a contribuição de Marx) do que de outra natureza.
Tomemos agora o ponto dos “políticos tradicionais”. Estes são apresentados em FN,
através da fala do político “careca” – que deles parece buscar se distanciar – como preocupados
tão somente com a manutenção de seus poderes, aproveitando-se das grandes massas. O
narrador chega a mencionar meios de ofuscar a riqueza que seus cargos públicos lhes
proporcionavam: na casa do político havia uma porta “semi-automática, pois os políticos não
podiam parecer ostensivamente ricos para não perderem os votos dos pobres” [grifo nosso] e a
barriga um tanto saliente do político “careca” justificava-se “pois um político não pode parecer
aos pobres que gasta fortunas seguindo modismos e os ditames da estética para corrigir seus
defeitos físicos (FN:61)”.
Somemos a isto a atuação da “Agência” no mundo ficcional do conto. Ainda que não
sejam expostos seus motivos e intenções, esta organização realiza em FN “ataques maníacos
homicidas” a políticos, criando um clima de paranoia entre eles (FN:61). Sem, contudo, deixar
claro que se tratam de atentados:

Para que o crime parecesse obra de um assaltante maníaco homicida e não um atentado
político, como a “Agência” queria que fosse, Alê passou a revirar a casa. Retirou as
jóias das mulheres, atravessou a sala e revisitou os quartos (com todo o cuidado para
não acionar os alarmes anti-roubo, é lógico), coletando tudo o que tivesse algum valor
e jogando-os no saco do Papai Noel (FN:66).

O que se percebe é que se trata de uma organização com intenções políticas, mas com um modus
operandi nem um pouco politicamente ortodoxo. Consideradas a valoração negativa com a qual
são representados os “políticos tradicionais” e os meios através dos quais a Agência crê atingir
seus objetivos políticos, não expressos em momento algum, sustentamos aqui que em FN se faz
representada a chamada crise de representatividade política. Com isto, queremos dizer que
contemporaneamente há uma descrença cada vez maior por parte dos indivíduos no poder
político exercido de fato por seus representantes através dos meios democráticos
151

institucionalmente legitimados. Distintas são as justificativas para um tal quadro e gostaríamos


aqui de apontar apenas algumas delas.
Em primeiro lugar, há na contemporaneidade (e nela se insere FN) uma complexidade
de atores sociais com diferentes reivindicações, crenças e valores. Não cabe mais falarmos de
modo mais estanque em classes sociais fixas e sobre suas distinções inerentes graças aos
diferentes papéis exercidos por elas no complexo produtivo econômico de uma sociedade. À
complexificação do mundo do trabalho, bem como o despertar político de grupos sociais ditos
minoritários, seja por ordem étnica, de gênero, religiosa etc, não correspondeu uma ampliação
dos quadros representativos que fosse capaz de dar voz, política e institucionalmente falando,
às distintas reivindicações destes grupos e das diferentes categorias trabalhistas.
Em segundo lugar, a função representativa dos partidos se vê abalada diante de uma
crescente desilusão quanto à sua atuação política. Enquanto elemento central de uma
democracia representativa, especialmente no Brasil, “existe uma percepção generalizada de que
eles [os partidos] não desempenham um papel protagônico enquanto atores da política no país
(BAQUERO & VASCONCELOS, 2015)”. Isto se verifica nos baixos indicadores de filiação
político-partidária e acaba por engendrar a produção e reprodução de discursos
apartidários\apolíticos ou de questionamento do funcionamento tradicional institucional dos
partidos. Como exemplo, basta nos remetermos às manifestações de 2013 e a recorrência do
mote “não me representa”, presente em falas, cartazes e mensagens em redes sociais. Ou ainda,
mencionarmos os escândalos de corrupção que frequentemente preenchem os espaços
noticiários das grandes mídias, contribuindo ainda mais para a descrença nos políticos e no uso
feito por eles da máquina pública104.
Por último, deve-se mencionar aqui o “esgotamento de conceitos e ideologias, que, até,
pouco tempo atrás, serviram de fundamento e de legitimação para as formas de organização
social e de ação política (WOLKMER, 2003:93)”. Este esgotamento se encontra sob a égide do
paradigma pós-moderno – como vimos, um conjunto difuso de pensamentos e posturas
intelectuais que atingem esferas da cultura, da política, das ciências e da filosofia. Conforme
aponta Santos (2008:92), “a pós modernidade se interessa antes pelo transpolítico: liberação
sexual, feminismo, educação permissiva, questões vividas no dia a dia. Normalmente o
indivíduo pós-moderno evita a militância fogosa e disciplinada”. Centrada cada vez mais no

104
Seja dito, não reproduziremos aqui a ingênua e comum ideia, sistematicamente reproduzida em nosso país, de
que a corrupção política é a raiz de todos os males sociais ou de que o mau uso da máquina pública por parte de
representantes que dela se apropriam para multiplicar seus patrimônios corresponda a uma ineficácia que seja
inerente ao Estado.
152

indivíduo em função das grandes narrativas de emancipação social dos tempos de outrora, a
participação política se vê cada vez mais fragmentada e distante das instituições partidárias
tradicionais.
Portanto, é possível observar que os meios de ação política tradicionais, partidários,
institucionalmente organizados, se encontram representados negativamente em FN. Seria
também possível dizer que a forma como a “Agência” atua poderia representar uma
extrapolação do clima de descrença diante das formas tradicionais de se fazer política: se o
Estado não é capaz de atuar em função do bem estar coletivo, meios alternativos de ação
poderão surgir. Neste sentido, podemos interpretar o surgimento da “Agência” como o resultado
da insatisfação de um determinado grupo diante das contradições sociais que no futuro ficcional
da obra não se viram superadas, ou mesmo como resultado da permanência de uma forma
ineficaz de se fazer política. A extrapolação da desigualdade social presente no conto parece
endossar este argumento.
Por fim, um último ponto a ser destacado, e que não se trata necessariamente de um eixo
temático central para nossa análise, é a complexa composição psicológica do personagem Alê.
Se por um lado há diversos momentos que propiciam ao leitor uma sensação mesmo de repulsa
– como aponta a Tabela 5 do Anexo; por outro, há três momentos em FN nos quais Alê parece
demonstrar algum tipo de humanidade ou compaixão pelo próximo, ainda que de modo bastante
contraditório: 1) quando, após pisar no pescoço de uma criança que se perdeu na mãe em meio
à típica confusão que ocorre ao desembarcar do ônibus, expressa o narrador, com marcação
entre aspas, em discurso direto, o pensamento de Alê: “Quem sabe eles se conscientizam de
que esta situação não pode continuar (FN:59)”, 2) quando Alê se compadece do político
“careca”, não o matando e 3) quando, ao final do conto, expressa o narrador: “[...]
diferentemente das outras vezes, desta Alê não sentia nenhum prazer pelo que fizera (FN:67)”.
Bastante relevante é ainda a fala de Alê após poupar o político:

Não sou homem de muitas palavras, mas acho que posso te dizer o seguinte: eu ia
mata-lo, a “Agência” me incumbiu e eu topei, mas depois de te ouvir eu não posso
fazer isso. Sabe, agora que a sua família foi morta, eu acho que suas opiniões vão ter
um peso político muito maior. E a partir de hoje você vai passar a sentir na carne o
problema, ter o meu fogo dentro de si... (FN:loc. cit.) [grifo do autor]

Não nos parece descabido dizer, ainda mais considerando o grifo original, que a passagem
sugere ter ocorrido a Alê o mesmo que ao político: perder sua família; fazendo assim com que
ambos passem a “sentir na carne” as contradições sociais que culminaram com a morte dos
familiares. O político é vítima de um mundo onde os meios tradicionais de se fazer política são
153

substituídos por outros, em função do insucesso do Estado em conter a desigualdade social


sistemicamente engendrada; e Alê, supõe, perdeu seus parentes por conta dos problemas
gerados por esta mesma desigualdade – talvez em um super ônibus, talvez por conta de gangues
de marginais.
O que interpretamos acerca do complexo caráter psicológico de Alê é a perda quase que
total de sua humanidade por conta de um agravo anteriormente sofrido, cujos aparentes
responsáveis tornaram-se então inimigos: os políticos conservadores, os religiosos e aqueles
não se opõem ao crescimento populacional desenfreado. O conto se encerra não com uma
defesa de Alê ou com uma justificativa para seus atos, mas ao menos convida o leitor a refletir
sobre a influência que as contradições sociais podem ter sobre um indivíduo; ao invés de tão
somente direcionar críticas ao protagonista105.
Com base na análise desenvolvida ao longo destas últimas páginas, verifica-se que FN
traz consigo representações da crise econômica, focando no problema da alta densidade
demográfica nas grandes cidades, agravado pelo processo de modernização nacional que atraiu
um grande contingente de moradores das áreas rurais para as urbanas, sem que estas gozassem
de condições suficientes para prover ao chamado exército de reserva, necessária para o devido
funcionamento do sistema capitalista, condições básicas de subsistência. Estes traços tão
marcantes para a década de 80 exercerão suas influências até os dias atuais. Convém ainda
apontar para a mordaz crítica aos meios de comunicação em massa e à Igreja, cuja ocorrência
em uma obra literária, e na medida em que se dá no conto, pressupõe um país já livre da censura
e da repressão que marcaram negativamente as décadas passadas.

5.3. O capitalismo contemporâneo: O trainee (2010) de Ubiratan Peleteiro

O conto O trainee (doravante OT), que figura na coletânea Cyberpunk, publicada em


2010, foi escrito por Ubiratan Peleteiro (2010), nascido em 1973, formado em Engenharia da
Computação, com publicações nas antologias Ficção de Polpa – Volume 3 (2009) e Paradigmas
– Volume 2 (2009). O conto se insere no contexto da atual FC brasileira, cujas principais

105
Ginway (2010:78) afirma, em breve análise do mesmo conto, que “Alê também encarna a desumanidade da
nova ordem neoliberal, mostrando-se vencedor, individualista, cumprindo seu serviço com a ambição de
enriquecer para morar num bairro de luxo”. Como se tentou argumentar aqui, esta configuração neoliberal pós-
ditadura, com efeitos de medidas políticas tomadas décadas anteriores, de fato corrompe Alê, cuja intenção de
ascensão social é expressa claramente pelo narrador (não citamos aqui a passagem). Entretanto, Ginway deixa de
lado o implícito de que Alê possa ter se tornado este “individualista ambicioso” para fugir de sua condição de
origem, na qual as contradições sociais que, em nossa leitura, causaram a perda da sua família, se apresentam de
modo intenso.
154

características ainda não se colocaram distantes o suficiente de nossos olhares para que melhor
possamos compreendê-las. Cabe dizer, contudo, como já o fizemos anteriormente, que a
primeira década dos anos 2000 foi marcada pela relevante quantidade de antologias e
publicações do gênero, especialmente graças ao trabalho de Roberto de Sousa Causo e das
editora Devir e Tarja Editorial, tendo sido a coletânea na qual figura OT publicada por essa
última. Como de imediato seu título indica, OT compõe a lista de obras que mantém vivas a
tendência cyberpunk desenvolvida mais intensamente nos anos 90 no Brasil e na década anterior
nos Estados Unidos; vertente ideal para abordar as contradições e os problemas sociais da
contemporaneidade, em tempos nos quais o modo de produção capitalista é adotado quase que
por todo o globo, com suas nações cada vez mais dependentes de instituições e organizações
financeiras globais e do mercado internacional. Cabe ainda aqui o comentário feito por Ginway
e que citamos ao início da seção anterior: por se tratar de uma obra cyberpunk produzida no
Brasil, não há, como costuma se verificar nas produções em língua inglesa, uma opção por parte
do autor de ambientar suas obras no cyberespaço, em ambientes virtuais, mas sim no ambiente
urbano.
Em OT, é apresentada a história de Hermes, o protagonista, em seu primeiro dia como
Trainee na fábrica Cybermind. Como qualquer primeiro dia de trabalho, um superior lhe
apresenta as instalações, explica as etapas de produção, as especificidades de seus produtos,
dentre outros. Hermes se dá conta de que as mercadorias produzidas pela fábrica são humanos
anencéfalos com interfaces cranianas sintéticas e cérebros eletrônicos, produzidos com alta
tecnologia e que o superior que lhe apresentara seu novo local de trabalho era um deles. A partir
daí, tem início uma fuga desesperada e motivada por ataques de outros funcionários, quando
estes percebem que o recém contratado sabia demais.
Como apontamos anteriormente, a cidade é um elemento temático comum às literaturas
utópicas, distópicas e à FC. Na vertente cyberpunk, ela se torna ainda mais relevante. Como
aponta Amaral (2006:65):

Se analisarmos a cidade como elemento integrante da vida como pensavam os


decadentistas, veremos que a metrópole e o desenvolvimento tecnológico caminham
lado a lado. É por isso que, à medida que ela vai crescendo e se desenvolvendo, mesmo
que de forma desordenada, sua importância vai aumentando exponencialmente dentro
da FC, ocupando um lugar de figura central no cyberpunk.

Tal como nos outros contos, a descrição que se faz da cidade contribui em considerável medida
para a ambientação da narrativa, assimilando o cenário ele mesmo as contradições sociais
urbanas. Em OT, há um espaço interno e um externo, podendo este primeiro ser dividido em
155

dois espaços menores. Como se pode verificar na Tabela 7 do Anexo, a quantidade de termos
que fazem referência ao cenário externo urbano é várias vezes maior do que aqueles utilizados
na composição dos outros cenários. Como não fosse o bastante, deve-se ainda considerar, em
termos da economia do texto, que somente na, aproximadamente, metade da oitava página
Hermes sai da fábrica e então visualiza o espaço externo urbano que o cerca – de um total de
doze páginas que o conto ocupa na edição utilizada. Ou seja, mesmo em uma fração de texto
reduzida, há um cuidado descritivo maior com o espaço externo urbano. Mantém-se aqui a
preocupação por parte dos autores, como verificamos também anteriormente nos dois outros
contos, com a apresentação dos cenários urbanos. Em OT, vale transcrever a passagem mais
emblemática acerca do mundo ao redor da Cybermind:

Estavam sobre uma alta construção de concreto. Concreto maciço, sem janelas, sem
nada. Olhou em volta. Havia outras construções como aquela. Em cima de cada uma,
um prédio cúbico, de aparência monolítica e indestrutível, cercado por muros.
Imaginou que eram todas fábricas como a Cybermind, todas produzindo produtos
importantes, talvez algumas delas com linhas de montagem de anencéfalos, ou outras
mercadorias mais hediondas. Era aquele então o mundo. Um mundo de montanhas de
concreto, cercada de viadutos gigantes e fortalezas produzindo monstros (OT:119).

Verifica-se aqui a forma noir de representação do espaço urbano, tipicamente apropriado pela
literatura distópica e especialmente pelo cyberpunk. Conforme aponta Prakash (2010:1),

[d]esde a virada do século vinte, imagens distópicas figuraram proeminentemente nas


representações literárias, cinematográficas e sociológicas da cidade moderna. Nestas
representações, a cidade aparece em tons escuros, rebelde (ou forçada à total
obediência), disfuncional (ou forçada a funcionar como uma máquina), afundada em
crises ecológicas e social, seduzida pelo consumo capitalista, tolhida pelo crime e por
conflitos de classe, gênero e raça, sujeita a excessivo controle tecnológico e
tecnocrático. [tradução própria]106

Seja dito, este tipo de ambientação noir não representa uma extrapolação distópica no sentido
estrito do termo, sendo percebida em OT a funcionalização do conceito de distopia muito mais
em função do tema da engenharia genética.
Se considerarmos a história da FC, conforme apontam Slonczewski e Levy (2003:174),
ao longo dos anos 90 alguns escritores do gênero passaram a considerar a biologia como a
ciência do futuro. Assim, se anteriormente os alienígenas eram os invasores a serem

106
No original em inglês: “Since the turn of the twentieth century, dystopic images have figured prominently in
literary, cinematic, and sociological representations of the modern city. In these portrayals, the city often appears
as dark, insurgent (or forced into total obedience), dysfunctional (or forced into machine-like functioning),
engulfed in ecological and social crises, seduced by capitalist consumption, paralyzed by crime, wars, class,
gender, and racial conflicts, and subjected to excessive technological and technocratic control”.
156

combatidos, tornam-se agora os inimigos as doenças humanas, as armas biológicas, além de se


desenvolver um crescente temor diante da manipulação genética e seus efeitos no ser humano.
Ou ainda, conforme se verifica em Hollinger (2009:273), ao longo das décadas 80 e 90 o
movimento cyberpunk apresentou uma série de personagens ciborgues em meio a um futuro
onde as biotecnologias se faziam cotidianamente presentes, seja através de próteses, drogas ou
engenharia genética, com impactos direto quanto àquilo que consideramos ser a natureza
humana.
OT é um exemplo desta mudança de olhares do espaço distante para nosso próprio corpo
biológico, tendo como tema central a engenharia genética e a figura do ciborgue. Quanto a este,
cabe a definição de Stableford (2006:114): “[u]ma contração de ‘organismo cibernético’, criado
para descrever produtos de uma quimera orgânica/inorgânica, particularmente em termos de
um aprimoramento do corpo humano com dispositivos mecânicos” [tradução própria]107.
No conto, a extrapolação do binômio ciência\tecnologia através da temática da
engenharia genética e da criação de seres em parte humanos e em parte máquinas adquirem
função diegética central – o destino de Hermes está diretamente ligado aos eventos ocorridos
no interior da fábrica; ou mesmo sua própria existência, como veremos a seguir. O título é uma
alusão metonímica à Cybermind, cujo processo de produção das mercadorias é descrito na
seguinte passagem:

A lógica é simples – disse o gerente. – Movimentos humanos são difíceis de


reproduzir plenamente através da robótica, e os robôs que se aproximam disso são
muito caros. Como a interface eletro-biológica é tecnologia amplamente dominada,
produzimos anencéfalos, implantamos interfaces cranianas e os conectamos a
equipamentos com funções cerebrais básicas. As crianças crescem se exercitando e se
nutrindo para se tornarem adultos saudáveis. Entre dezoito e vinte anos, instalamos o
cérebro eletrônico com a programação que o cliente solicitar. Mordomos, cozinheiros,
motoristas, zeladores, operário como os que temos aqui. Trabalham bem até os
sessenta e cinco, depois a manutenção fica muito cara, então são desativados. Simples
(OT:113).

Outro aspecto que cabe ser mencionado quanto à inserção da obra no gênero da FC
distópica é a presença de elementos tecnológicos mais desenvolvidos do que aqueles à época
do autor. Neste sentido, ainda que não haja no conto qualquer referência temporal precisa, trata-
se de um tempo futuro próximo. O que, por sua vez, se configura como uma das características
da vertente cyberpunk, que, ainda que se aproprie da ideia de futuro, apresenta-o como não tão
distante do presente à época do autor e do leitor. E não é por menos que esta vertente, enquanto

107
No original em inglês: “A contraction of ‘‘cybernetic organism’’, contrived to describe products of
organic/inorganic chimerisation, particularly the augmentation of the human body with mechanical devices”.
157

um dos movimentos mais recentes da história da FC, apresente perspectivas de futuro cada vez
mais próximas do presente. Como aponta Koselleck (2003), com o advento da modernidade a
aceleração se torna uma categoria específica do tempo histórico, que, condicionado pelas
transformações científicas, tecnológicas e industriais e marcado por uma filosofia do progresso,
passa a descortinar um futuro em um intervalo de tempo a partir do presente cada vez menor.
Assim, o cenário de OT pouco tem a dever àqueles que as grandes metrópoles contemporâneas
nos apresentam; mesmo que nos dias atuais (ainda) não verifiquemos manipulações de
anencéfalos tal como são apresentadas no conto, ou mesmo naves como veículos urbanos e
guardas que voam através de jatos em seus corpos – os únicos dois elementos de tecnologia
extrapolada apresentados no conto além da biotecnologia utilizada pela Cybermind na produção
de seus ciborgues.
Justificada a inserção de OT na literatura cyberpunk, em que se comumente o conceito
de distopia se vê funcionalizado, prosseguiremos com nossa análise. Adotaremos aqui três eixos
temáticos centrais a se verificarem na instância da prática social do conto. São eles: a
reafirmação das classes sociais no capitalismo contemporâneo, a questão bioética e a questão
da ideologia.
Para levarmos adiante uma leitura que consiga identificar em OT questões de classe,
inseridas no contexto maior do modo de produção capitalista, é preciso que deixemos de lado
uma outra possível interpretação. Neste sentido, a defesa de uma interpretação que coloque
como um dos eixos temáticos centrais a manutenção das classes sociais no capitalismo
contemporâneo pressupõe necessariamente uma negação de leituras outras que não o façam.
Como apontamos anteriormente, a Cybermind é uma fábrica que produz indivíduos
anencéfalos, nos quais são inseridos cérebros eletrônicos e através deles estes indivíduos
tornam-se aptos a, exclusivamente, exercerem determinadas funções previamente escolhidas
por seus compradores. Em dado momento da narrativa, Hermes, o protagonista, se dá conta de
que ele próprio é um destes ciborgues produzidos pela Cybermind, e, em sua tentativa de fuga
da fábrica, acaba por ser perseguido por seguranças. O desfecho da narrativa se dá com Hermes
sendo salvo por um “sujeito estranho” que pilotava uma nave em forma de motocicleta e que
pôde dar cabo dos seguranças que perseguiam o protagonista. O tal sujeito convida Hermes a
acompanhá-lo caso quisesse continuar vivo, quanto a que expõe o narrador: “Hermes hesitou.
Lembrou da conversa que tivera com o finado gerente, sobre os clones que se revoltavam e
fugiam para viver na marginalidade, em gangues. Ele, afinal, era um produto com a mesma
desvantagem (OT:122)”. Hermes opta por seguir viajem com o tal sujeito, indo com ele para o
underground.
158

Uma das questões que poderiam ser levantadas acerca do destino de Hermes – e, por
consequência, de sua origem – seria o temor de que as máquinas, por algum motivo tendo sua
existência não mais totalmente determinada pelos parâmetros iniciais a partir dos quais elas
foram criadas, poderiam vir a se rebelar contra os seres humanos. Trata-se aqui do clássico
complexo de Frankenstein em que a criatura, despida de maiores controles, se volta contra seu
criador. Ou ainda, outra linha de interpretação a se traçar a partir da figura de Hermes, visto que
no conto não se verifica uma revolta dos ciborgues contra seus donos, seria o possível estatuto
de marginalidade que estes seres em parte humanos e em parte máquinas poderiam adquirir
uma vez não se comportando mais como foram programados para se comportarem. Colocar
estas questões como centrais equivaleria a interpretar o conto a partir da tensão que este sugere
entre o homem e a máquina – o que equivaleria, por extensão metonímica, à tensão mais ampla
e abrangente entre o ser humano e seu progresso tecnológico. O que não deixa de ser um roteiro
de análise válido. Contudo, cremos que de tal modo não atingiríamos a profundidade da crítica
social que o conto potencialmente apresenta; e, por conseguinte, não poderia se verificar o eixo
temático de análise quanto às classes sociais.
Em primeiro lugar, a premissa da qual parte o conto, se levada a uma verificação mais
aprofundada, carece de um grau de verossimilhança mínimo para considerarmos o conflito
presente em OT entre homem versus máquina plausível. Ainda que a temática da vingança do
criador sobre a criatura seja corrente na FC, há a premissa lógica de que uma máquina não opera
senão sob parâmetros anteriormente estipulados e caso haja algum tipo de influência externa
que cause a alteração destes parâmetros o que teremos como resultado é um mau
funcionamento, e não um funcionamento em natureza distinto daquele previsto: uma cafeteira
com defeito não passa, por isso, a produzir refrigerante; assim como um complexo sistema de
software tem como efeito de um parâmetro de funcionamento não respeitado um crash. Tendo
esta premissa em mente, voltemos nossos olhares novamente para OT. No conto, Hermes é uma
máquina com defeito, causado, segundo o narrador em discurso indireto livre, por “[u]m
miserável curto-circuito! (OT:120)”. Hermes, portanto, é um dos anencéfalos que se manteve
vivo graças à interface craniana que nele foi implantada. A despeito de seu defeito, Hermes
possui todas as funções vitais indispensáveis à vida de um ser humano, e, mais do que isto,
possui uma consciência além daquela previamente programada. Isto, pois em dado momento
da narrativa, quando percebe que é mais um dos produtos da Cybermind, Hermes se dá conta
de que toda a sua vida era uma grande ilusão – deduz-se, ainda que o narrador não o expresse,
159

que suas memórias foram tecnologicamente forjadas e indexadas em seu cérebro eletrônico108.
É interessante percebermos que se estas memórias são necessárias, é por haver por parte dos
criadores dos ciborgues como Hermes o temor de que estes possam se tornar conscientes de sua
origem, rebelando-se. Ora, não faria nenhum sentido dizer que a programação do cérebro
eletrônico contenha em si um parâmetro que possibilitasse um comportamento rebelde.
Portanto, se considerarmos a premissa anterior de que uma máquina não apresenta, em termos
estritos, comportamentos distintos daqueles que foram previstos, logo, o parâmetro que permite
um comportamento rebelde não se encontra no cérebro eletrônico. Onde mais estaria então?
Em termos biológicos, não podemos dizer que a “consciência rebelde” – ou mesmo a
“humanidade” dos ciborgues, uma vez conscientes de suas origens – é produzida em qualquer
outro local do corpo senão no cérebro. A esse respeito, convém citarmos Penna (2005:97), que
parte do conceito presente na literatura médica de morte neurológica. Esta impossibilita a
consciência, fazendo com que um indivíduo que a tenha sofrido mantenha-se biologicamente
ativo109 tão somente com a ajuda de aparelhos ou outras substâncias químicas. Baseado nisto,
a autora sustenta que

o feto anencefálico é um feto morto, segundo o conceito de morte neurológica. Esse


feto, mesmo que levado a termo, não terá nem um segundo de consciência, não poderá
sentir dor, ver, ouvir – em resumo, não poderá experimentar sensações. É, portanto,
um feto morto porque não há potencialidade de se tornar uma pessoa, não há
possibilidade de consciência devido à ausência de córtex cerebral (ibid.:101).

Portanto, ficcionalmente, levando as premissas lógicas até as últimas consequências, a


consciência de Hermes desenvolve-se ex nihilo: ele não possui cérebro um cérebro que o
possibilite dispor de consciência, nem cabe dizer que esta mesma consciência se apresente como
possível no cérebro eletrônico, visto que não há lógica em dizer que o tenham programado com
a possibilidade de apresentar um comportamento rebelde ou uma consciência de si que o fizesse
questionar suas origens e razão de ser.
É por sustentarmos a impossibilidade lógica de o conflito entre homem e máquina se
dar na realidade objetiva tal como no mundo ficcional, que partirmos aqui do pressuposto de
que os produtos da Cybermind devem ser entendidos, a nosso ver, em sua forma metafórica,

108
Podemos nos remeter aqui, como exemplo de extrapolação ficcional que trate da implantação de memórias, ao
conto de Philip K. Dick We Can Remember It for You Wholesale (1966) e que serviu de base para o filme Total
Recall (1990), no Brasil lançado no mesmo ano com algum sucesso como O vingador do futuro.
109
A autora utiliza o termo biologicamente ativo para evitar a confusão com o termo vivo e a “aparente contradição
entre pessoa morta e organismo vivo (PENNA, 2005:97)”. Assim, falar em um indivíduo biologicamente ativo
corresponde às funções mais básicas do corpo, ainda que a morte neurológica, que o impede de dispor de qualquer
forma de consciência, tenha ocorrido.
160

representando toda uma classe de profissionais cujas tarefas e serviços dispõem de menor
prestígio social e que não são, via de regra, realizados por aqueles que possuem um poder
aquisitivo mais elevado. Portanto, entendida esta perspectiva metafórica, podemos argumentar
que tal metáfora constitua o que definimos como o eixo temático de análise da reafirmação das
classes sociais no capitalismo contemporâneo.
Adotarmos este eixo temático não se justifica somente pela impossibilidade lógica de
levar até as últimas consequências a premissa dos ciborgues da Cybermind, como acabamos de
ver. Há ainda outros aspectos textuais que endossam nosso olhar sobre o conto. Cabe, antes de
irmos a eles, tecermos alguns comentários sobre o conceito de luta de classes, conforme
apresentado por Marx e Engels.
Ou autores alemães (2005:40) afirmam em seu Manifesto Comunista de 1848 – em
passagem não pouco reproduzida – que “[a] história de todas as sociedades até hoje existentes
é a história da luta de classes”. O conceito de luta de classes pode soar para alguns hoje como
um anacronismo, que pouco teria a acrescentar em nossa compreensão hodierna da realidade e
da vida social – e, portanto, disfuncional em termos ficcionais. Pois conforme apontam
Boltanski e Chiapello (2009:316),

[a] elevação do nível de vida dos operários depois do pós-guerra, seu acesso ao
consumo de certos bens, tais como automóvel ou televisão, a melhoria do conforto
das habitações, assim como o decréscimo regular do efetivo operário a partir de 1975,
tudo isso abriu caminho para a teoria da absorção de todas as classes (da classe
operária em particular) por uma ampla classe média.

O que se verifica é que vem ocorrendo nos últimos tempos um crescente desuso do termo luta
de classes, ou da categoria de classe como um instrumento analítico para as ciências sociais. E
isto por diversos fatores, dentre os quais podemos destacar, como adequadamente sintetiza Braz
(2012:483):

[...] o consenso em torno da constatação do declínio do movimento operário


tradicional em todo o mundo e, em particular, na Europa Ocidental [...]; a ineficiência
dos métodos e dos modelos de organização política adotados até então por tal
movimento [...]; a ideia de que as lutas sociais têm crescentemente extrapolado a
esfera produtiva stricto sensu, configurando um relativo deslocamento das lutas
sociais para a esfera da reprodução social [e] a noção de que temos, desde os anos
1970, um crescimento indiscutível de “novos sujeitos” portadores de inúmeros
interesses, configurando uma verdadeira explosão de novas particularidades sociais.

Ocorre que, se por um lado, há de se considerar a complexificação do mundo do trabalho, não


mais restrito a capitalistas burgueses de um lado e massa operária do outro, por outro, o que se
161

verifica com o desenvolvimento do sistema capitalista ao longo dos anos é que a desigualdade
social não somente não se viu superada (cf. SANTOS, 2001:39, DUPAS, 2008, BRAZ, op. cit.)
– a maior parte mundo, nem de longe, se tornou uma grande “classe média” – como ainda,
argumentam alguns110, tem mantido níveis crescentes. Evidentemente, não há espaço aqui para
desenvolvermos uma discussão acerca dos problemas de distribuição de riqueza, da exploração
do homem pelo homem que é inerente ao sistema capitalista, da natureza totalitária do mercado
e suas instituições e organizações globais, enfim, de pouca valia seria apontar aqui os efeitos
nefastos que o sistema econômico capitalista imprime à vida de milhões de pessoas diariamente.
Optaremos por verificar como as classes sociais se veem representadas no nosso conto em
questão.
Em OT, verificamos uma reafirmação das distinções sociais entre classes – o que deve
ser entendido aqui como um posicionamento por parte do autor não necessariamente em termos
de um anti-capitalismo raso ou da defesa de modelos econômicos alternativos, mas de uma
exposição de contradições que são da ordem do dia e para as quais não faltam estratégias
discursivas que tentem ocultar suas origens.
De início, devemos considerar os dois espaços internos da Cybermind. Eles se vinculam
diretamente à distinção que há entre os diferentes indivíduos que nela trabalham. Tomemos a
seguinte passagem: “Se quiser ser engenheiro da Cybermind, tem que ter estômago. Mas fique
tranquilo. A maior parte do nosso trabalho é atrás de uma mesa, ou em reuniões, ou atendendo
clientes e executivos em vídeo-conferência. (OT:112)”. A simples existência de diferentes
funções dentro de um processo produtivo, dito de modo mais ingênuo, por assim dizer, não
necessariamente se configuraria como um problema de distribuição social da riqueza produzida
por uma sociedade. Porém, enquanto trainees e os engenheiros ficam apenas “atrás de uma
mesa”, os outros funcionários trabalham em espaços internos tal como o de número 2 na Tabela
7 do Anexo. Consideradas as representações destes espaços interno, constrói-se assim
textualmente uma dualidade evidente entre os termos [corredor branco, limpo, bem iluminado]
e corredor [escuro e imundo]. Assim, diferentes funções são diferentemente valoradas e seus
respectivos espaços o comprovam.
Como apontamos menos especificamente acima, a fábrica é apresentada a Hermes
através de um gerente que, subitamente, apresenta um mau funcionamento de seu cérebro

110
Inevitável não deixar de mencionar aqui Thomas Piketty e seu Le Capital au XXI siècle (2013), onde, dito de
modo absolutamente sucinto, se argumenta que há uma tendência de concentração de riqueza na medida em que o
retorno do capital investido tende a ser maior do que o crescimento econômico dos países.
162

eletrônico, fazendo com que Hermes solicite ajuda por um interfone. Chegam então os
funcionários:

Então a porta se abriu. Para sua surpresa entraram dois homens vestindo macacões
cinzentos, pareciam mecânicos. Na frente vinha um negro baixo e gordo, de cabelo
meio grisalho, seguido por um rapaz moreno, magricela, de sobrancelhas e lábios
grossos, que carregava pela alça uma caixa de metal, a qual parecia uma caixa de
ferramentas (OT:114).

Esta passagem é de fundamental importância para nosso argumento quanto à questão das
classes. Logo de início é possível verificar a clara referência racial: não se trata de mecânicos
brancos, altos e com corpos bem cuidados. Suas funções de menor prestígio correspondem aos
indivíduos pertencentes aos grupos étnicos de um igualmente reduzido prestígio social.
Devemos atentar quanto ao fato de que não se trata aqui da legitimação de que determinados
grupos sociais e étnicos ocupem apenas funções subalternas – o que se verifica é precisamente
a denúncia da condição social desigual na qual se encontram os indivíduos destes grupos antes
mesmo de seu nascimento. E é através desta passagem que vemos endossado o argumento de
que a crítica social presente em OT adquire tons metafóricos, isto é, digamo-lo novamente, não
se trata aqui de como a humanidade tratará as máquinas do amanhã que realizam serviços
indesejados, mas com tratamos hoje os seres de carne e osso que o fazem.
Verifica-se ainda nesta passagem um sutil detalhe diegético. Consideremos, e o conto
permite dizê-lo, que todos os funcionários da Cybermind são eles próprios produtos da fábrica.
Como vimos anteriormente, tratam-se de fetos anencéfalos nos quais posteriormente são
implantados cérebros eletrônicos. Entretanto, os traços étnicos originais do feto herdados de
sua progenitora são mantidos – não parece haver entre os procedimentos de produção dos
“produtos” uma etapa de alteração da aparência. Assim, cabe a pergunta: que mulheres seriam
as mães dos fetos anencéfalos? Definitivamente não aquelas pertencentes aos grupos sociais de
maior prestígio – brancos, altos e de traços finos no rosto. Portanto, os fetos anencéfalos da
Cyermind trazem consigo os traços étnicos de suas progenitoras e estas, por sua vez, são
indivíduos pertencentes às classes sociais de menor prestígio social, a quem caberia a função
infausta de gerar a mão de obra para serviços indesejados. Se olharmos para o mundo objetivo
que nos cerca, não seria necessário grande esforço para que reafirmemos a operação de que os
produtos da Cybermind representam metaforicamente os trabalhadores da base da pirâmide
social.
Outro discreto detalhe que deve aqui ser mencionado é a opção do autor por utilizar –
consciente ou inconscientemente – ao longo do texto os termos “operário”, “fábrica” e
163

“mecânicos”, evocando assim a configuração social dos primórdios da Revolução Industrial


onde a ideia de uma luta de classes se mostrava de modo muito mais evidente.
Por fim, deve também ser destacada a última oração do parágrafo mais simbólico para
a descrição do cenário urbano ao redor da fábrica, intencionalmente omitida na citação que
apresentamos anteriormente deste. Ao final da apresentação do cenário noir de tons distópicos,
diz-nos o narrador em comparação a este: “Mas provavelmente havia lugares melhores, onde
moravam as pessoas que compravam os monstros (OT:119)”. Há, portanto, no mundo ficcional
de OT claras distinções entre os indivíduos pertencentes às classes sociais mais pobres e aqueles
no topo da pirâmide social que se apropriam de seu trabalho. Considerado exclusivamente o
conto OT e as distinções sociais e étnicas de seu mundo ficcional, reafirma-se assim o
posicionamento por parte do autor e que dizem respeito àquelas mesmas distinções sociais e
étnicas que se verificam diariamente em nossa realidade objetiva.
Prosseguindo com nossos eixos de análise, tratemos agora da questão bioética,
disciplina do conhecimento que em sua origem trouxe para si o desafio de “articular as
capacidades do conhecimento científico com as ideias filosóficas, com o conhecimento dos
valores humanos que orientam o mundo ou, como posteriormente outros dirão, de subordinar o
progresso biotecnológico à finalidade dos homens (NEVES, 2006, p. 30)”.
Se, por um lado, tentamos com algum esforço nos afastar de uma interpretação que
considerasse como plausível haver em nosso mundo objetivo gangues de ciborgues com
defeitos de fábrica andando por aí, por outro, é relevante que no mundo ficcional de OT a
manipulação genética tenha, mais do que se desenvolvido a ponto de ser possível construir um
cérebro eletrônico, se submetido aos ditames do mercado e se tornado uma das etapas de
produção de uma mercadoria. E isto não se aplica somente aos produtos da Cybermind, mas
também aos de seus concorrentes, que, ao invés de ciborgues, produzem clones, cujo maior
problema é se rebelarem e agredirem seus proprietários (cf. OT:113). O que se verifica em OT
é a utilização dos conhecimentos biotecnológicos sem qualquer escrúpulo por parte de uma
minoria que foi capaz de converter estes conhecimentos em lucro: “Nosso presidente é um
gênio, não é? Teve essa visão, e agora é bilionário. E nós temos estes empregos bem
remunerados (OT:113)” – afirma o narrador referindo-se à Cybermind.
Deve-se ainda se mencionar o fato de que, no futuro não tão distante da narrativa, a
manipulação de anencéfalos adquiriu o estatuto de algo legalmente permitido, por pior que este
pudesse ser: “É repugnante, é duro, mas é lícito e necessário. É a única mão de obra barata que
existe hoje em dia (OT:112)” [grifo nosso] – diz o gerente sobre o que se faz na fábrica.
Interessante aqui perceber que no horizonte de expectativa do autor, para usarmos o conceito
164

de Koselleck anteriormente apresentado111, caso um dia se fizesse necessário não haveria


quaisquer limites institucionais que pudessem se colocar contra os imperativos produtivos do
mercado capitalista. Isto é endossado pelo argumento de Nunes (2010:s.p.), quando afirma que
um dos fatores de influência no desenvolvimento da bioética e do biodireito é a

[...] globalização e o sistema capitalista, que diferentemente das instituições religiosas


que são diversas, o sistema capitalista é detentor da hegemonia absoluta enquanto a
globalização é uma realidade comum a grande maioria do mundo. O perigo da
influência destes sistemas se dá pelo fato de se preservarem à custa da exploração do
ser humano, não dando importância para questões como a dignidade do ser humano,
pois respeitar tal fato prejudicaria muitas vezes o ritmo desenfreado do progresso do
capitalismo e do avanço da globalização.

Seria possível ainda argumentar, em uma perspectiva extremamente utilitarista, que a


“manutenção produtiva” da vida de um anencéfalo através de um cérebro eletrônico seria uma
forma de prolongar a vida de um indivíduo portador de uma malformação congênita,
possibilitando ainda que este desempenhasse funções úteis a outros seres humanos. O que, ainda
que eticamente questionável112, não significa dizer que isto deva se realizar em escala industrial,
com a produção em série de anencéfalos. Portanto, a questão central no conto, a partir de nossa
análise, não são somente os limites éticos da manipulação do corpo de um ser humano em
termos biológicos113, mas sim a extrapolação ficcional de haver um sistema econômico e social
que se sobreponha a estes limites e os desconsidere em função da manutenção de seu
funcionamento interno. Coloca-se, portanto, através de OT, a reflexão acerca de quem estaria
em condições para apontar os limites da manipulação biológica do homem pelo próprio homem,
quanto a que cabe relevante passagem de Salomon (1999:279-80), ainda quando do século
passado:

O novo século verá com toda a certeza realizar-se a clonagem humana e muitas outras
proezas da engenharia genética, sejam quais forem os interditos lançados pelas
Igrejas, pelos comités de ética ou pelas legislações. É a humanidade inteira que correr
a partir de agora o risco de ficar prisioneira da elite biotecnológica e do complexo
econômico-industrial ao qual ela está associada. «Exercer um controlo» sobre a
pesquisa, seja ela qual for e sejam quais forem as consequências dela, surge num
contexto liberal como um acto de ditadura: «não há remédio para o progresso», por
que as razões que podem ser invocadas para andar para a frente são sempre
irresistíveis – o progresso do saber, da medicina, da terapêutica, a liberdade da
pesquisa, a democracia, as necessidades alimentares da humanidade, a salvação dos
países em desenvolvimento e muito simplesmente o próprio prazer de andar para a
frente [...].

111
Ver seção 3.1.
112
Se, como argumentamos anteriormente, um feto anencéfalo não possui consciência, seria eticamente correto
imputar-lhe uma “vida pré-estabelecida” indexada em parâmetros de funcionamento de um cérebro artificial?
113
Não cabe falar aqui em uma pessoa, em termos filosóficos, dado que não há consciência.
165

Voltemos agora nossos olhares para o último eixo de análise, que diz respeito à questão
da ideologia. Segundo Rossi-Landi (1987), há três grupos principais de significados do conceito
de ideologia. Tais significados certamente não esgotam a questão, mas nos parecem relevantes
para apontar os seus principais matizes. São eles: ideologia como ciência das ideias, ideologia
como visão de mundo e ideologia como falso pensamento. O primeiro remete às origens do
termo, a partir de Destutt de Tracy, filósofo parisiense que tinha como intuito fundar uma
ciência das ideias, imbuído ainda pela ilusão da neutralidade da ciência no tratamento de seus
objetos. O segundo significado traz consigo a neutralização do conceito na medida em que diz
respeito ao conjunto de ideias e a formas de compreensão da realidade social de um determinado
grupo historicamente situado. Neste sentido, a ideologia não é positiva nem negativa, mas
apenas um agrupamento de elementos ideais. Por fim, a terceira acepção de Rossi-Landi nos
remete a Marx, para quem as ideias dominantes de uma sociedade em um determinado
momento histórico são precisamente as ideias da classe dominante, visto que é ela quem dispõe
das condições materiais reais que permitem uma produção de formas de consciência que as
legitimam. As ideias tendem a não apresentar de forma explícita as relações materiais concretas
que se estabelecem entre os homens e que instauram uma relação de dominação – daí o caráter
de falseamento.
Ao longo da história intelectual, passou-se a se questionar sobre a força que produções
simbólicas teriam em criar para aqueles que a consomem e reproduzem uma realidade por
demais distinta daquela que se verifica objetivamente. Isto corresponderia a uma operação de
falseamento deveras eficaz e que só seria possível caso fosse deixada de lado toda e qualquer
avaliação empírica crítica que um indivíduo pudesse fazer de sua realidade social. Mais do que
isto, argumenta-se, seria exagerado uma percepção social ilusória o bastante que não dispusesse
de qualquer justificativa minimamente válida para que pudesse ser tida como válida. Pois

as ideologias dominantes podem moldar ativamente as necessidades e os desejos


daqueles a quem elas submetem; mas devem também comprometer-se, de maneira
significativa, com as necessidades e desejos que as pessoas já têm, captar esperanças
e carências genuínas reinflecti-las em seu idioma próprio e específico e retorná-las a
seus sujeitos de modo a converterem-se em ideologias plausíveis e atraentes. Devem
ser “reais” o bastante para propiciar a base sobre a qual os indivíduos possam moldar
uma identidade coerente, devem fornecer motivações sólidas para a ação efetiva, e
devem empenhar-se, o mínimo que seja, para explicar suas contradições e
incoerências mais flagrantes. Em resumo, para terem êxito as ideologias devem ser
mais do que ilusões impostas e, a despeito de todas as suas inconsistências, devem
comunicar a seus sujeitos uma versão da realidade social que seja real e reconhecível
o bastante para não ser peremptoriamente rejeitada (EAGLETON, 1997:26-7).
166

Em suma, não cabe mais, nos dias de hoje, falarmos na construção de uma percepção da
realidade social completamente alheia a uma reflexão crítica que se possa desenvolver mesmo
em meio àqueles que se encontram na condição de explorados. Estes podem ter plena
consciência – e não uma falsa consciência – acerca das relações sociais nas quais se veem
imbricados; ainda que não disponham de meios objetivos efetivos para transformá-las. Abordar
a questão da ideologia a partir desta perspectiva significa lançar olhares para o impulso crítico
e transformador que possa surgir em meio a relações de dominações, ao invés de simplesmente
imputar ao explorado uma completa ignorância da realidade social que o cerca.
Consideradas estas breves reflexões, retornemos ao conto.
Em OT, como verificamos anteriormente, deduz-se que haja um processo de implante
de memórias na fase de produção do cérebro eletrônico. No caso de Hermes, quando este se dá
conta de que era mais um produto da Cybermind, há um momento em que o protagonista
recorda-se de tudo o que ilusoriamente experienciara:

Um calafrio percorreu sua espinha. Então era isso. Uma ilusão. Ele não veio para a
Cybermind dirigindo seu carro. Não estacionou numa vaga reservada. Não foi bem
recebido pelas belas recepcionistas no balcão de granito. Não lhe deram um crachá de
identificação. Não lhe disseram aonde ir e com quem falar. A casa da qual lembrava
não existia, nem seus pais, nem o cachorro, nem o peixe dourado. Sentiu vertigem
com esses pensamentos (OT:117).

Momentos antes, Hermes depara-se com um espaço interno da fábrica do qual julgava se
lembrar. Face à percepção real deste mesmo espaço, Hermes então se dá conta do que lhe
ocorrera. Verificamos nestes dois momentos da narrativa uma clara contraposição entre a
memória de Hermes e a realidade tal como ela de fato se apresentava – conforme podemos
observar na Tabela 6 do Anexo. Trata-se, por um lado, de uma realidade ilusória positivamente
valorada, e, por outro, de uma outra, a real, negativamente valorada.
Hermes chega ainda a se mostrar resistente diante de sua descoberta, nela não crendo
em absoluto. Quando da fuga dos guardas, que, em meio a uma perseguição, pareciam brincar
com o protagonista em uma “ciranda macabra” (cf. OT:119), diz-nos o narrador:

Recusou-se a ser um brinquedo. Não faria esse papel, apesar de agora saber que era
em parte objeto, mesmo isso se apresentando a ele como um pesadelo. Talvez fosse
isso. Ainda estava dormindo, o nervosismo pelo primeiro dia como trainee sujeitara
seu subconsciente àquelas loucuras. Melhor deixar o guarda acertá-lo. Morreria no
sonho e acordaria em sua confortável cama, pronto para encarar um dia de realidade,
no emprego promissor que tanto havia desejado (OT:120).
167

Posteriormente, o protagonista opta por sua sobrevivência, ainda que como mais um ciborgue
exercendo o papel de trainee na fábrica que o produziu:

Será que o seu defeito não compensava o custo da reparação? O defeito que lhe
permitira saber a verdade. Um curto. Um miserável curto-circuito! Preferia não ter
descoberto a verdade. Continuar naquela fantasia, dormir à noite num armário de
vidro e pela manhã ter lembranças de uma vida feliz que nunca existiu. Ao menos o
trabalho seria real. Poderia amar as ilusões, se elas continuassem mentiras perfeitas.
Gritou: - Por favor! Levem-me de volta! Consertem-me! Eu posso trabalhar! Eu quero
trabalhar! (OT:120-1)

Verifica-se ao longo destas três passagens um movimento de descoberta, seguida de


uma não aceitação dos fatos e, por fim, uma resignação. É nesta última fase que, segundo nossa
interpretação, reside o potencial crítico presente em OT acerca do conceito de ideologia. O que
está sendo representado no fragmento acima é a mais plena submissão a uma vida de fantasias
que, ainda que conscientemente falsas, ao menos garantem-lhe a existência. A força do caráter
de falseamento de uma realidade construída verifica-se na passagem acima através dos termos
[lembranças de uma vida feliz / amar as ilusões / mentiras perfeitas], o que nos leva a identificar
em OT um movimento de retorno às origens do conceito de ideologia, com todo o seu caráter
ilusório; e ao mesmo tempo minimamente confortante para prover ao indivíduo uma mera
subsistência resignada.
Neste momento da narrativa, Hermes se vê diante da escolha de uma vida de ilusões ou
de simplesmente não mais viver. Não há aqui a possibilidade de dar prosseguimento à sua
existência em uma ordem social alternativa àquela que lhe foi predestinada. Não até que então
surgisse o sujeito estranho pilotando uma nave em forma de motocicleta que pôde então
aniquilar os guardas ciborgues, oferecendo-lhe uma indispensável via alternativa: ir para o
underground, tornar-se marginal em meio a uma sociedade que o queria tão somente como uma
máquina a desempenhar uma função previamente estabelecida.
Em OT, tem-se, ao mesmo tempo, tanto a força ilusória das produções ideológicas que
ocultam as relações de dominação presentes na sociedade – do que os ciborgues e clones que
não se rebelaram são exemplo – quanto a representação de uma forma de vida em que se fazem
cientes das relações de poder que estabelecem socialmente, mas que, ao mesmo tempo, garante-
lhes a inserção no funcionamento do sistema social e, por conseguinte, como dissemos
anteriormente, uma subsistência resignada.
Para concluirmos nossa análise, percebamos aqui que todos os três eixos analíticos que
consideramos os mais relevantes encontram-se relacionados entre si em uma totalidade que os
engloba e que aqui se apresenta como o capitalismo contemporâneo (ou tardio) em sua fase
168

atual global. Conforme apontamos anteriormente, não há no universo da narrativa qualquer


menção a datas, mas, parece-nos inquestionável, por conta dos componentes temáticos
presentes, que se trata de questões de nossa contemporaneidade.
Neste sentido, para concluirmos, é relevante ainda destacar a importância das funções
diegéticas que possui a Cybermind: a) a fábrica se constitui como espaço interno central da
narrativa, b) seus espaços internos reproduzem as contradições sociais do mundo ficcional, c)
as relações institucionais entre os personagens o fazem de igual modo e d) a fábrica relaciona-
se diretamente às origens e destino do protagonista. Esta importância pode ser entendida em
termos dos gênero e vertente nos quais se insere o conto: a Cybermind é um elemento ficcional
que por extensão metonímica diz respeito ao binômio ciência\tecnologia a ser extrapolado na
FC, assim como torna-se exemplo da tendência presente na vertente cyberpunk de se representar
a força das grandes corporações diante dos indivíduos, inclusive às quais se submete mesmo o
poder do Estado.
Tal tendência é o efeito de um mundo que após a queda do muro de Berlim passou a
adotar o modo de produção capitalista em escala global e diante do qual toda e qualquer
expectativa de transformação passaram a ser recusadas em nome de uma ordem social que
julgam ser a mais adequada o possível para a humanidade. Contraposições ao imperativo de
que nos encontramos no fim de nossa história, ainda que em tensão constante com as forças
discursivas e materiais que tentem reafirmá-lo, não poderiam deixar de se fazerem presentes, e,
segundo nossa análise, OT parece ser um dos exemplos destas formas de contraposição, cujo
meio é a extrapolação ficcional das contradições engendradas por uma organização social
dividida em classes, na qual restam àqueles a quem cabe a base da pirâmide tão somente
serviços e tarefas indesejadas e ilusões que os impeçam de se rebelarem contra a ordem vigente.
169

6. À GUISA DE CONCLUSÃO OU SOBRE QUANDO TUDO DÁ ERRADO

Buscamos ao longo do último capítulo realizar uma análise que considerasse a unidade
discursiva dos contos em suas três instâncias – texto, prática discursiva e prática social –
segundo a teoria de Fairclough (op. cit.). Tentamos ao máximo apresentar elementos textuais
que justificassem nossas interpretações sem que nunca tivéssemos a pretensão de esgotar as
leituras possíveis – sendo justamente esta amplitude de interpretações que, ao nosso ver,
caracteriza a obra de arte. Buscamos estabelecer articulações entre o momento histórico de
produção dos contos e os principais aspectos sócio-históricos às épocas, bem como com o
percurso histórico do gênero da FC de um modo mais geral. Quanto à representação distópica,
verificamos a funcionalização do conceito na forma literária nos três contos e seguindo o
mesmo padrão de se focar no espaço urbano a extrapolação negativa ficcional que caracteriza
o conceito. Como argumentamos anteriormente, a cidade é um elemento central para a literatura
distópica e também possui especial relevância para a FC.
Considerando os posicionamentos por parte dos autores, ao menos levando em conta
exclusivamente os textos analisados, nos parece válido sustentar a tese de que a distopia,
funcionalizada em suas formas literárias, tende a trazer à tona discursos contra-hegemônicos.
Isto é, a extrapolação negativa de um determinado status quo é, em tese, uma denúncia das
contradições sociais já neste presentes, ainda que de forma mais tênue – e assim respondemos
a primeira pergunta que se colocou diante de nós nos momentos primeiros da pesquisa e que
mencionamos na introdução de nosso trabalho. Como estamos tratando de obras literárias, seria
equivocado, naturalmente, postular isto como uma regra absoluta a ser seguida – o que não nos
impede de dizer que se trata de uma tendência predominante, pressuposta pelo próprio conceito
de distopia per se.
Em AE, vimos que não somente um discurso anti-bélico incorporando o temor da
ameaça nuclear se fez presente, mas também pôde-se argumentar que houve por parte do autor
uma valoração mais negativa por parte de um dos lados do conflito, ainda mais por esperarmos
em uma produção nacional à época que se vissem reverberados os discursos anticomunistas
massivamente reproduzidos.
Em FN, o autor não economizou referências à crise econômica que assolava o país ou à
crescente força dos meios de comunicação em massa. Também foram alvos de crítica políticos
que se valem da máquina pública para enriquecimento próprio e a interferência de setores
religiosos – seja dito, com grande aceitação popular no Brasil – em questões sociais ou a busca
pela manutenção de seu poder social a todo custo. A todos estes aspectos vincula-se a questão
170

central da densidade demográfica, elemento extrapolado central para a narrativa. Vimos


também que o personagem Alê traz em sua configuração psicológica a humanidade corrompida
pelas contradições sociais presentes em um país que começava a sofrer os impactos de sua
modernização tardia, cuja economia já se encontrava submetida ao mercado internacional.
Em OT, verifica-se a centralidade das grandes corporações capitalistas em um contexto
de globalização no qual não se vislumbram em maior ou menor medida quaisquer alternativas
sistêmicas. Com o fim da União Soviética e do sonho socialista, o grande capital pôde então
exercer sua força totalizante a nível global, abstendo-se de qualquer limite, institucional ou
ético, para a manutenção de seu desenvolvimento – o que não amenizou suas contradições
sociais. Foi possível ainda perceber o retorno a categorias – a luta de classes e a questão da
ideologia como falsa consciência – que hoje tendem a ser deixadas de lado em uma aceitação
tácita ou cínica do capitalismo como o estágio mais avançado e desenvolvido da humanidade.
Nas três obras selecionadas, podemos dizer ainda que se fez presente um certo tom mais
universalista, ainda que fosse possível verificar nelas traços especificamente brasileiros. O que
pretendemos argumentar ao dizê-lo é que os conflitos sociais, sobre os quais as literaturas de
FC, de utopia ou de distopia se debruçam, dizem respeito ao ser humano de modo geral, a
despeito das especificidades locais que, inexoravelmente, se farão presentes. Isto significa dizer
que a FC produzida no Brasil, conquanto possa trazer temáticas próprias de nosso país, tende a
promover reflexões em alguma medida semelhantes a leitor outros de quaisquer países, a
despeito de sua história e configuração social e cultural distinta. Isto, pois as imbricações entre
o ser humano e as técnica e ciência por ele produzidas são aspectos de ordem antropológica, e
que dizem respeito aos mecanismos mais essenciais aos quais recorremos para garantirmos
enquanto espécie nossa preservação na natureza.
Ainda que reafirmemos aqui o caráter universalista das obras apresentadas, seria injusto
deixarmos de mencionar alguns de seus elementos que adquirem um tom muito mais local do
que global.
Em FN, conquanto se infira de antemão que se trata de uma metrópole do Brasil –
provavelmente São Paulo, como de modo um tanto quanto assertivo demais, afirma Ginway
(2010:78) – podemos encontrar a presença de duas bebidas muito consumidas no país: “Olhou
à direita e viu três homens tomando cerveja e pinga (FN:54)”. Um detalhe absolutamente
discreto, mas que certamente traria ao leitor uma sensação de familiaridade com o cenário da
narrativa. O que se reafirma com a extensa passagem supracitada sobre um programa de
auditório – cujo showman dificilmente deixaria de ser identificado por um leitor que tivesse
passado algum tempo em frente à tela de TV ao longo dos anos 80 e 90.
171

Em OT, o aspecto mais local do conto se apresenta quase como imperceptível. Prevalece
no conto seu caráter global, na medida em que o cenário distópico e um capitalismo sem limites
sejam elementos que se verifiquem na vasta maioria do globo, especialmente a partir, como já
dissemos, da queda do muro de Berlim, marco central para a história da humanidade do
momento a partir do qual o sistema capitalista estabelece sua hegemonia no planeta. Porém,
atentemos para a passagem de Penna (2005:97):

Aqueles que advogam a possibilidade de interrupção da gravidez o fazem diante da


inviabilidade do feto para a vida extra-uterina, enquanto os que advogam continuidade
da gestação acreditam que o feto com anencefalia seja um indivíduo vivo que merece
a proteção do Estado, negando que se trata de morte encefálica devido à presença de
parte do tronco cerebral. A discussão dos aspectos éticos envolvidos nesse cenário
não acontece na literatura internacional, já que a maioria dos países europeus e os
Estados Unidos permitem o aborto, ou seja, a interrupção voluntária da gravidez.

Ainda que não possamos afirmar com toda a certeza, não seria improvável pensar que o
autor tenha partido da temática dos fetos anencéfalos por ser esta no Brasil uma questão que
mobiliza diversos grupos sociais com alguma cobertura pela mídia hegemônica sem que um
horizonte para a sua resolução possa atualmente ser vislumbrado. De fato, o conto não apresenta
diretamente a questão do aborto, sejam eles anencéfalos ou não, não obstante, considerada a
passagem acima, cremos ser difícil que o conto deixe de evocar no leitor a existência desta atual
querela médica\ética no país.
Já em AE, não conseguimos identificar qualquer mínima referência a algo
especificamente brasileiro. Há uma interpretação outra do conto (cf. GINWAY, 2005:89-90)
que sugere corresponder à dualidade norte e sul presente na narrativa a distinção entre a parte
sul mais industrializada do país e a parte norte, menos industrializada, sendo a mensagem
central da obra que a tecnologia havia separado o país. Ainda que sendo esta última válida e
virtualmente possível, como se percebeu, nossa análise tomou caminhos um tanto quanto
diferentes.
Considerada esta tensão entre local e universal, houve ainda uma curiosa coincidência
nos três contos, nem de longe prevista quando da seleção das obras. Identificamos, em meio
aos eventos das narrativas, a presença de uma cena grotesca em cada conto e que, cada uma a
seu modo e com funções diegéticas próprias, tendem a causar certa repulsa no leitor. Neste
sentido, nos parece válida aqui, antes de tratarmos das cenas, a passagem de Sodré e Paiva
(2002:17), quando estes afirmam que o grotesco é
172

operado por uma combinação insólita e exasperada de elementos heterogêneos, com


referência frequente a deslocamentos escandalosos de sentido, situações absurdas,
animalidade, partes baixas do corpo, fezes e dejetos – por isso, tida como fenômeno
de desarmonia do gosto ou disgusto, como preferem estetas italianos – que atravessa
as épocas e as diversas conformações culturais, suscitando um mesmo padrão de
reações: riso, horror, espanto, repulsa. [grifos dos autores]

Tomaremos aqui a liberdade de fazer a transcrição integral das cenas. Em AE, em dado
momento o protagonista adentra um apartamento e acaba por experienciar o que se segue:

Entrou em um apartamento do segundo andar. Duas baratas saíram correndo.


Ofegando por trás da máscara, olhou ao redor. No canto, um divã, ocupado por um
volume envolvido em cobertor. Perto do chão, pendiam dois sapatos, presos por
cartilagens. Desviou a vista, caminhou para uma porta que deveria levar à cozinha.
Mais baratas cruzavam em sua frente, sem direção, como se estivessem tontas.
Corriam pelas paredes, tombavam no chão, deslizando para todos os lados. Achou
uma vassoura, foi brandindo-a na frente, as baratas mais excitadas, centenas, vindo de
baixo dos móveis, pelas frestas das portas, pondo rastos minúsculos na poeira do chão,
com um barulho rascante, subiam pela vassoura, ele desviava os pés, procurava
escapar com passos largos, esmagando-as com os sapatos. Mal podia andar, tornaram-
se milhares, agitando-se nas superfícies como um pesadelo. Gritava enquanto batia a
vassoura, chutando aquele exército de patas, sua voz atravessava corredores, perdia-
se lá fora, com a enxurrada invadindo as ruas. Não chegou até a cozinha. Recuou em
saltos, sacudindo-se dos bichos que subiam nas pernas, procuravam entrar pelas
mangas, as mãos amassando corpos tontos esgueirando-se pela roupa. Saiu do
apartamento, desceu as escadas pulando degraus, voltou até a porta de vidro. Puxando
o ar através da máscara, com um som rouco, sacudia o paletó, quase tirou a roupa até
saber que não havia mais nenhum inseto. A chuva havia parado. Sentou-se no saguão,
vazio e calmo. Não via baratas (AE:79).

Em FN, Alê sai da padaria em que se encontrava no começo do conto para dar uma caminhada,
quando então se depara com uma cachorrinha que amamentava seus filhotes:

Uma cachorrinha acuada amamentava cinco filhotes. Quando Ale aproximou-se ela
arreganhou os dentes rosnando ameaçadoramente, pronta para defender suas crias. —
Ora, Ora, Ora — murmurou ele docemente, curvando-se para observar a cachorra. —
Uma amiguinha que também está cuidando do "Crescei e Multiplicai-vos", hein?
Continuou falando mansamente, afastando-se devagar. A cachorra pareceu adquirir
confiança c parou de rosnar (conquanto Alê ficasse longe de seus filhos). Alô recuou
mais um passo, até finalmente achar o que queria. Tomou de um golpe o cano
encostado à parede, segurou-o com ambas as mãos, levantou-o e, com todo o seu peso
e impulso, enterrou na barriga da cachorra. O sangue jorrou e as perninhas se
mexeram, acompanhadas de um ganido cortante. Alê sentiu-se inebriado, tremendo
de satisfação. Perfurou ainda mais três vezes o corpo da cachorra. Agora só restavam
os cinco filhotes. Estes, parece, já haviam entendido o que acontecia e ganiam em
desespero. Alê sorriu-lhes cinicamente, o rosto contorcendo-se de felicidade, e passou
para o "Gran Finale". Rearrumando-se com indisfarçado deleite, golpeou com a barra
de ferro até que entre a cachorra e filhotes só se distinguisse uma massa disforme de
carne vermelha, silenciosa. O trabalho estava feito sem que Alê tivesse se sujado com
sequer uma gota de sangue. Abandonou o beco e voltou contente, quase saltitante, à
padaria (FN:56).
173

Por fim, em OT, logo após presenciar uma das cenas de parto na Cybermind, Hermes observa
o trabalho de um dos robôs de limpeza:

Uma portinhola se abriu na parede, próxima ao rodapé e um robozinho saiu de lá.


Tinha rodinhas e era achatado como um besouro. Começou a se mover sobre o vômito,
sugando-o, limpando o chão. Parecia estar comendo o vômito. Era uma cena tão
desprezível que teve vontade de chutar o robô. Porém, era apenas o trabalho daquela
máquina não-pensante. Seria uma idiotice danificar à toa equipamento da Cybermind,
ainda mais com o chefe olhando (OT:112).

Em termos diegéticos, os eventos apresentados acima não gozam de uma inexorabilidade


narrativa – a supressão de tais cenas não comprometeria em nada o decorrer dos eventos
apresentados nos contos. Trata-se aqui de uma função estética, na medida em que se enfatizam
determinados aspectos próprios a cada narrativa. Em AE, podemos interpretar a figura das
baratas como uma metáfora para o abandono do cenário após sua destruição, ou ainda para a
retomada de espaços levada a cabo pela natureza em meio a construções e objetos criados pelo
homem, mas que por hora pereciam e se deterioravam – o que verificamos logo na primeira
passagem no conto, citada integralmente logo nos primeiros momentos de nossa análise. Em
FN, a ira desmedida, quase bestial, de Alê reafirma a perda de sua humanidade, explicada – não
necessariamente justificada – como se verifica ao final do conto, por ter o protagonista perdido
sua família, muito provavelmente em função das contradições sociais que permeavam o mundo
ficcional que o cercava. Por fim, em OT a cena apresenta a tensão entre ser humano e
maquinário a ser desenvolvida posteriormente pela narrativa. Hermes projeta sua humanidade
no pequeno robô, gerando assim um conflito entre a imagem feita deste pelo protagonista e
aquilo que a máquina de fato é – o mesmo conflito a ser encarnado pelo próprio personagem,
que na condição de ciborgue acaba por perceber emergida sua humanidade, prevalecendo esta
sobre sua parte eletrônica.
Com a análise dos contos foi possível também verificar a aplicação das categorias que
fundam a FC enquanto um gênero discursivo, sob a ótica bakhtiniana: com conteúdo temático
centrado nas categorias de futuro enquanto meio e do binômio ciência\tecnologia e construção
composicional centrada na categoria da extrapolação.
Outro aspecto fundamental ao qual intencionalmente não demos destaque anterior diz
respeito aos finais das narrativas. É graças a eles que podemos sustentar que a representação de
quando tudo dá errado não implica necessariamente em uma atitude de pessimismo resignado.
Neste sentido, a representação distópica, centralmente situada nas produções simbólicas do
gênero da FC, é a reação essencialmente humana, materializada na forma discursiva dos textos
174

literários, que se tem diante de um mundo em que o progresso tecnológico e científico ao mesmo
tempo que nos permite sonhar com a cura de doenças ou com condições melhores de vida sendo
proporcionadas a um número cada vez maior de pessoas, também se coloca à mercê de jogos
de poder e acabam por potencializar assimetrias sociais, pelas quais não podem ser diretamente
responsabilizados. Esta reação tem como suporte verbal e discursivo obras em que contradições
e conflitos humanos se vejam extrapolados e adquirem um caráter de denúncia destas mesmas
contradições e conflitos, considerado ainda em especial medida o fato de que não são poucas
as forças discursivas que tendem a naturalizá-los, convertendo-os em uma realidade imutável e
sempre justificável. Esta denúncia, exposição direta das incongruências sistêmicas do mundo
social que nos cerca, imputa à FC distópica o caráter refratário da realidade objetiva da qual o
gênero extrai seu material literário – eis aqui a resposta para a segunda pergunta que nos fizemos
quando dos primeiros momentos de nosso trabalho de pesquisa à qual se fez menção na
introdução deste texto.
175

7. PALAVRAS FINAIS E SOBRE O SONHO DIURNO NECESSÁRIO

Se tivemos como objetivo central ao longo deste trabalho apresentar uma reflexão
acerca dos conceitos de utopia, distopia e de FC, cujas sistematizações conceituais foram
submetidas a uma verificação textual concreta realizadas através das análises realizadas, há de
se expor agora os objetivos paralelos que acreditamos ter atingido ao longo da exposição do
resultado de nossas pesquisas. Estes serão expostos nas linhas que se seguem, bem como
aproveitaremos para mencionar de forma bastante breve os efeitos que desejamos fazer surtir
com o que foi apresentado até então, resultado de nosso trabalho de reflexão, pesquisa e análise.
Em primeiro lugar, reafirma-se aqui a importância do gênero da FC, compreendidas em
suas categorias mais centrais a partir da funcionalização do arcabouço teórico oferecido por
Bakhtin em sua teoria acerca dos gêneros discursivos. Trata-se de uma forma específica de se
fazer literatura, cujo percurso histórico não deve ser rememorado tão somente em termos de um
registro historiográfico do gênero per se, mas sim como um sintomático complexo de produções
simbólicas que dizem respeito em grande medida a questões universais – e, evidentemente, em
alguma medida, sempre locais – diante das quais o ser humano vem se colocando com maior
intensidade a partir do advento da modernidade, período no qual a noção de progresso e os
crescentes avanços científicos e tecnológicos possibilitam que se vislumbre um futuro cada vez
menos distante do presente. Com isso, queremos dizer aqui que, conquanto cada obra do gênero
ao longo do decorrer histórico da FC traga consigo inexoravelmente marcas das circunstâncias
sociais, políticas, culturais, econômicas etc de seu momento de produção, as questões que esta
forma específica de literatura tende a suscitar dizem respeito fundamentalmente à nossa
contemporaneidade e às contradições ainda não superadas em tempos de modernidade tardia.
Reafirmada esta importância, devemos desde já questionar certas posturas de setores
mais tradicionais do meio da crítica literária que tendem a diminuir a relevância das obras de
FC; algo, a nosso ver, justificado tanto por uma tendência conservadora de lançar olhares tão
somente aos textos já consagrados quanto por um desconhecimento da riqueza literária que o
gênero possui. É evidente, e em momento algum o negaríamos ao longo de nossos
apontamentos, que a literatura de FC, enquanto um fenômeno de massa (especialmente nos
Estados Unidos), estabeleceu-se em grande medida através da produção de obras de pouco valor
estético ou que através da repetição de certas fórmulas contribuíram tão somente para a exaustão
do gênero e a perda de seu potencial reflexivo. O que, em medida alguma, torna menor a
qualidade de obras que escaparam aos imperativos editoriais pautados exclusivamente pela
venda de exemplares e buscaram fornecer a seus leitores questionamentos em vez de
176

entretenimento imediato e experimentação literária em vez da reprodução de uma moldura


textual pré-determinada que se quisesse literária.
Portanto, é com algum orgulho que o trabalho aqui apresentado, fruto de nossas
dedicadas pesquisas, na medida em que estas se apresentaram possíveis, figurará, nem que
como um mero registro, no conjunto de artigos, dissertações e teses que precisamente nestas
primeiras décadas dos anos 2000 voltaram seus esforços para pesquisas envolvendo o gênero e
suas obras – algo que se verifica com uma rápida pesquisa na internet, com diversos trabalhos
acadêmicos disponíveis para acesso. As linhas que se seguiram somam-se a tantas outras
circuladas no meio acadêmico e que vêm despertando entre os leitores, estudantes ou
pesquisadores a curiosidade acerca de um gênero com pouco espaço editorial no país e com um
tratamento intelectual muito aquém do potencial reflexivo que suas obras possuem. Soma-se a
isto o anteriormente citado impulso editorial que se verifica neste início de século XXI com um
número cada vez maior de autores tendo seus trabalhos publicados; e ainda, dispondo de igual
relevância, com a republicação, especialmente na forma de antologias de contos, de obras
clássicas do gênero, cujo acesso só seria possível mediante um trabalho de “garimpo” por entre
sebos ou por conta da boa vontade de alguns poucos colecionadores. Seja dito ainda, não fosse
este impulso editorial por nós experienciado, muito provavelmente nossas linhas teriam um
colorido menos verde e amarelo e teríamos pautado nossas análises em obras de língua
estrangeira – o que, de modo algum, diminuiria o valor de um tal trabalho.
Esperamos contribuir ainda com o incentivo à leitura de obras de FC em espaços
escolares como um meio de intermediação entre os alunos e determinados conhecimentos
disciplinares, cujas formas de exposição nem sempre são efetivas em despertar-lhes o interesse.
Propomos assim, como discreta sugestão de extensão das reflexões de ordem conceitual,
histórica e analíticas aqui apresentadas, projetos que propiciem a nossos jovens o contato com
obras literárias alternativas àquelas diante das quais tradicionalmente eles se veem nas aulas de
língua portuguesa e literatura114. Especialmente se levarmos em consideração o quanto as
gerações mais recentes estão imersas em um mundo cada vez mais tecnológico, cujos prelúdios
das décadas passadas materializados em obras de FC certamente despertariam alguma atenção.
Não poderíamos aqui levantar uma bandeira em defesa e de divulgação da FC sem que
dispuséssemos de olhares mais amplos que a inserissem em uma totalidade social maior, com
a qual o gênero estabelecesse uma relação não somente de reflexo, mas também de refração.

114
Há obras em língua inglesa que se dedicam à utilização da FC como forma de mediação entre o conhecimento
científico. Ver Luokkala (2014) e Dubeck et al. (1994). Em língua portuguesa podemos citar Machado (2008),
Gomer-Maluf & Souza (2008) e Piassi & Pietrocola (2007).
177

Na medida em que se constitui enquanto uma produção simbólica literária, esta assume
inevitavelmente um caráter avaliativo responsivo tornado material através da individualidade e
criatividade do autor; que, por sua vez, enquanto produtor de um discurso, realiza através desse
uma prática social concreta e efetiva, atuando, portanto, na realidade que o cerca e que permite
que seus olhares e percepções, fonte última de sua produção literária, se realizem de uma
determinada forma e não de outra. E quando falamos aqui de olhares mais amplos, trata-se de
uma escolha deliberada por uma filosofia materialista da linguagem da qual partiram nossas
perspectivas acerca do objeto literário, por sua vez narrativo e ficcional. Se uma produção
linguística em sua realização concreta, social e historicamente situada é perpassada por todo
um complexo conjunto de elementos extralinguísticos, o mesmo não deixaria de ocorrer com
os textos literários, consideradas aqui suas especificidades e quanto a que cremos ter
apresentado um nível de reflexão teórica minimamente considerável.
Acreditamos que, para além da fruição estética que o leitor possa ter com a obra de arte,
a literatura é uma produção simbólica que se distingue das demais pela existência de uma
característica que lhe é fundamental: a de atuar como um convite ao pensar, um impulso à
reflexão. Na singularidade de suas formas, resultado sempre único dos olhares do escritor
acerca da realidade que o cerca, esta mesma realidade se mostra reconfigurada, outra; e aos nos
depararmos com esta realidade outra, torna-se igualmente outra aquela realidade que
objetivamente nos cerca. De fato, isto não é privilégio da FC, da literatura distópica ou da
literatura utópica. Devemos sustentar aqui, contudo, que, quanto mais esta representação outra
se volte – independentemente dos recursos que para tal são utilizados – para a realidade mesma,
mais desta nos aproximamos e melhor passamos a compreendê-la. Conforme sustentamos
anteriormente, neste sentido a FC em sua primazia pelo caráter objetivo da realidade em função
de aspectos subjetivos tende a se aproximar de uma forma realista, segundo a tradição marxista,
de se produzir literatura, e que expõe as contradições que nem sempre se apresentam como
evidentes de modo mais imediato.
É em função disto que acreditamos ser tarefa do pesquisador na área dos ED, uma vez
dotado de uma perspectiva multidisciplinar, tomar para si todos os campos do conhecimento
necessários para se fazerem reverberar os discursos que se encontram velados na obra literária,
cuja natureza plurissignificativa apresenta um vasto – ainda que não infinito – espectro de
interpretações possíveis. Muito mais que defender uma opção teórica ou metodológica ou ramo
disciplinar dentro de uma dentre tantas as áreas que se debruçam sobre o fenômeno da
linguagem, trata-se aqui de uma postura epistemológica que considere o objeto linguístico –
literário ou não – na complexidade que lhe compete. Buscamos aqui, tendo este objetivo em
178

mente, dialogar com distintas áreas do conhecimento para, de forma, ao nosso ver,
minimamente convincente e consideradas as limitações e extensão deste trabalho, atingir
instâncias do fenômeno literário que não se encerram em seu componente textual e estético.
Por fim, é preciso salientar que a escolha por obras de FC distópica não deve ser
traduzida aqui – como, conforme afirmamos anteriormente, sequer o próprio conceito da
distopia o pressupõe – como uma resignação tácita diante das contradições e conflitos humanos
que a realidade objetiva nos apresenta e que se tornam matéria de exercício literário. Ainda que
as forças de transformação tenham se dissipado e não apresentem mais símbolos, nomes, siglas
ou quaisquer outros contornos mais precisos e centralizados, sustentamos aqui que a
humanidade passa por um momento no qual o impulso utópico, a esperança de tempos
vindouros melhores, não perdeu seu lugar ou razão de ser – o sonho diurno se mantém presente.
Se a história nos mostra que do bom lugar fomos ao futuro catastrófico, não cessou neste último
de se manter viva “a esperança, este afeto expectante contrário à angústia e ao medo, [...] a mais
humana de todas as emoções e acessível apenas a seres humanos (BLOCH, 2005:77)”.
Conquanto haja de se reconsiderar os caminhos traçados ao longo das experiências históricas
em nome dos ideais de outrora, não devemos nos abster de, enquanto sujeitos históricos, nos
impormos como aqueles que traçam caminhos, como aqueles que se recusam a aceitar a força
ideológica, monologizante e legitimadora de um status quo que se faz presente em discursos
que tentem pôr a baixo os sonhos diurnos dos bons lugares, resumindo-os, sistemática e
equivocadamente, a meras quimeras sem valor. Se em nossa pós-modernidade, por diversos
motivos, vimos sendo tomada de assalto a consciência acerca de nossos papéis enquanto
sujeitos históricos e os sonhos utópicos do futuro dando lugar às denúncias extrapoladas do
presente, isto só nos leva a reafirmar que em dias atuais, mais do que nunca, o sonho diurno se
faz necessário.
179

8. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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9. ANEXO

BASE LEXICAL – “A ESPINGARDA”

Tabela 1

Construções qualificativas descritivas

carros [parados] tabuleiro [com restos embolorados de frutas comidas por


carrocerias [cobertas de poeira] lesmas amarelas]
pneus [murchos] parte [alta] [da cidade]
manchas [de óleo feitas gota a gota] [enorme] caminhão
chão [de asfalto] escuridão [completa]
pára-choque [cheio de barro] fumaça [no horizonte]
ferruguem [que avançava] pés [retorcidos]
carro [conversível] formigas [subindo pelos cabelos]
estofamento [se estragando] abrigo [à beira da estrada]
vidros [sujos e opacos] nuvens [de moscas]
juntas [enferrujadas] cachorros [de boca aberta]
casas [de luxo] casa [depois de uma curva]
barro [ressequido] barulho [ritmado de motor longínquo]
[pequenas] folhas caminho [cimentado]
verde [misturado com folhas secas] hélice [de um avião de maneira pregado em um poste]
centro [da cidade] telheiro [mais recuado]
postes [tombados] móveis [empoeirados]
cargas [abandonadas] sala [de estar]
prédios [tombados pelos incêndios que ninguém montanhas [encobertas por bruma seca]
apagava] morro [mais alto à esquerda]
cadáveres [jaziam pelos cantos] pedras [salientes à direita]
braços [retorcidos] amontoado [de casas, cidade ou povoado]
garrafas [empoeiradas] [de refrigerante] [pequena] cidade
miasmas [de sepultura fechada] praça [com grande construção, cercada de muros altos]
nuvens [negras] portão [muito grande de tábuas grossas]
[grande] edifício casa [dos muros altos]
porta [de vidro] [do prédio] sombras [compridas]
cheiro [inconfundível] {de cadáver} sala [de visitas]
fios [elétricos] quarteirão [de muros altos]
cozinhas [cheias de bolor] retratos [nas paredes]
cadáveres [debruçados nas mesas, empurrados pelas armário [de armas]
portas] manhã [fria]
cadeiras [quebradas] névoa [clara]
peças [de roupa] janela [à esquerda]
debaixo [dos móveis] rua [banhada de sol]
frestas [das portas] casas [silenciosas]
apartamento [do segundo andar] cidade [vazia]
saguão [vazio e calmo] chão [com pingos de sangue]
céu [desfalcado de nuvens] fim [da cidade]
peças [sujas] estrada [em direção às montanhas]
clarão [vermelho]

Construções qualificativas avaliativas

jardins [isolados]
ilhas [tristes e isoladas]
luz [mortiça da tarde]
cheiro [pesado]
nuvem [invisível]
horizonte [de limites curtos]
193

Tabela 2

Campo semântico “cidade”

carros [parados]
prédios [tombados pelos incêndios que ninguém apagava]
avenida
bares
carrocerias [cobertas de poeira]
mercearias
pneus [murchos]
cadáveres [jaziam pelos cantos]
manchas [de óleo feitas gota a gota]
trapos
chão [de asfalto]
braços [retorcidos]
pára-choque [cheio de barro]
farmácias
ferrugem [que avançava]
casas
carro [conversível]
[grande] edifício
estofamento [se estragando]
rua
vidros [sujos e opacos]
fios [elétricos]
carcaça
prédio
juntas [enferrujadas]
árvores
casas [de luxo]
mercearia
jardins [isolados]
apartamentos
barro [ressequido]
restaurantes
[pequenas] folhas
subúrbio
raízes [descobertas]
abrigo [à beira da estrada]
verde [misturado com folhas secas]
estrada
construções
casa [depois de uma curva]
ilhas [tristes e isoladas]
amontoado [de casas, cidade ou povoado]
centro [da cidade]
[pequena] cidade
obstáculos
ruas
calçadas
casas [silenciosas]
estradas
cidade [vazia]
postes [tombados]
farmácia
caminhões
fim [da cidade]
cargas [abandonadas]
estrada [em direção às montanhas]
buraco

BASE LEXICAL – “FELIZ NATAL, VINTE BILHÕES”

Tabela 3

bairro pobre bairro rico

ruas [mais escuras e desertas] guarita [de segurança]


solidão [do beco] ruas [limpas, vazias]
ônibus [lotado e espremido] cheiro [de civilização]
profusão [de pessoas comprimidas] {no ônibus} sons [suaves e agradáveis]
fedor [exalado] {no ônibus} ruas [cortadas por duas faixas cintilantes, de
{pessoas} [literalmente asfixiadas e outras aproximadamente um palmo de largura e
pisoteadas] profundidade, feitas de material acrílico e fibras
{pessoas} [comprimidas, empurradas e ópticas que auxiliavam os carros autodirigidos]
machucadas] motorista [eletrônico]
ônibus [muito lotados] carro [autônomo]
194

Tabela 4

padaria casa do político

sala [ampla e espaçosa]


parede [de eletrônicos]
padaria [sufocante] [repleta de gente suja e fedida]
central [de defesa da casa]
fedor [da padaria]
vários [transmissores de neuroconexão]
fealdade [do ambiente]
confortáveis [sofás]
calor [da padaria lotada no verão tropical]
árvore [de natal toda enfeitada]
abafamento e multidão [do interior da padaria]
porta [semi-automática]
copo [engordurado]
guarita [de segurança]

Tabela 5

personagem Alê

sorriso [cínico] {quanto à transmissão sobre a "terrível série de assassinatos gratuitos que assolam o país"}
inquietação e pletora [sanguinolenta] {a} borbulhar nas veias ao ver o jornal, as cenas de violência e a multidão
comprimida na porta padaria
repulsa, ódio [quase incontido] {pelos religiosos}
sarcasmo [amargo]
raiva [cega] {por conta da música Jingle Bells}
[irritado] {por conta da imagem do arcebispo}
detestava {tipos "Show-man"}
[demoniacamente enjerizado] {pelas respostas da mulher no programa de auditório}
invocação com as vestes do Papai Noel
[contente], [quase saltitante] {após matar uma cachorra e seus cinco filhotes a golpes de um cano}
raiva contra o ser humano, contra a reprodução desenfreada, contra os religiosos e políticos "conservadores"
vontade de matar alguém {quando dentro do ônibus}
sorriso [divertido num triscar de lábios] {após pisar no pescoço de uma criança perdida da mãe na saída do ônibus}
[excitado e irritado] {por ter de trabalhar como papai noel}
frieza dos mestres {para preparar o plano de ataque na casa do político}
ganas de retalhar o útero {da "morena" que mencionou a cifra dos cinquenta bilhões de indivíduos}
obstinação [homicida]
[nenhuma] emoção na voz {após matar duas crianças na casa do político}

BASE LEXICAL – “O TRAINEE”

Tabela 6

espaço interno real espaço interno ilusório

detalhes arquitetônicos do prédio


sala escura
imponente recepção
muitas portas de vidro que selavam cada qual uma
balcão de granito
pessoa adormecida
belas recepcionistas
finas sondas pelas narinas
altivos guardas de segurança
armários
plantas ornamentais {da} decoração do hall
195

Tabela 7

Cybermind
espaço externo urbano
espaço interno 1 espaço interno 2

noite ou dia [escuro]


nuvens [espessas]
sereno [denso e gelado]
muro [alto, sujo, coberto por musgo]
reboco [quebrado em várias partes]
arame [farpado no topo]
pistas [suspensas em largas colunas
de concreto]
{pistas suspensas} se entrecruzando
como viadutos
veículo [escuro e comprido]
passando em alta velocidade, como
um trem bala, emitindo um ruído
[ensurdecedor]
caixas
pedaços de madeira
ferragens
toda a sorte de entulho
(não havia) janelas no corredor
lugar para dispensar o lixo
{corredor} [branco, limpo, bem
[pesada] porta
iluminado]
caixas [menores]
Cybermind
corredor [escuro e imundo] {caixas} [maiores]
ambiente [rigidamente controlado]
porta [giratória] [de vidro espelhado] poeira
isolamento [hermético]
sala [escura] pilha [de entulho, papel, madeira e
janelas {[brancos]}
muitas portas [de vidro] [que outras imundices]
aventais {[brancos]}
selavam cada qual uma pessoa lixo
toucas {[brancas]}
adormecida] [alta] construção [de concreto]
portas [automáticas] no corredor
finas sondas pelas narinas concreto [maciço, sem janelas, sem
sala [de parto]
armários nada]
portinhola na parede
outras construções {de concreto
uma das empresas [que mais crescia
maciço, sem janelas, sem nada}
na atualidade]
prédio [cúbico de aparência
escritório
monolítica e indestrutível]
mundo [de montanhas de concreto,
cercadas de viadutos gigantes e
fortalezas produzindo monstros]
lugares [melhores], onde moravam
as pessoas que compravam os
monstros
estrutura {rangia} como se estivesse
prestes a desabar
escadaria [de metal]
escadas
degraus [carcomidos]
corrimão
abismo entre viadutos e colunas de
concreto
underground
breu
luzes de néon
196

NOTAS QUANTO ÀS TABELAS

Nota 1: Os termos presentes nas tabelas 1, 2, 3, 4 e 7 foram extraídos de seus respectivos contos e são referências
aos cenários das narrativas.

Nota 2: Os termos presentes na tabela 5 dizem respeito a substantivos e construções qualificativas referentes à
composição psicológica do personagem Alê.

Nota 3: Os termos presentes na tabela 6 dizem respeito a substantivos e construções qualificativas referentes ao
espaço interno real da Cybermind em comparação à imagem que dele tinha Hermes em sua memória.

Nota 4: Foram grafadas entre colchetes as construções qualitativas junto aos substantivos aos quais estas se referem
com o simples objetivo de destacá-las visualmente.

Nota 5: Foram grafados entre chaves termos que foram omitidos nos textos em questão – retomados por inferência
– e que tornam completo o sentido expresso pelos termos citados.

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