Você está na página 1de 6

934

TRIBUNAL DE JUSTIÇA
VIGÉSIMA SÉTIMA CAMARA CÍVEL
RELATOR: DES. MARCOS ALCINO DE AZEVEDO TORRES

APELAÇÃO CIVEL Nº 0036751-19.2016.8.19.0002


APELANTE 1: UNIMED SÃO GONÇALO NITEROI SOCIEDADE COOPERATIVA
DE SERVIÇOS MEDICOS E HOSPITALARES LTDA
APELANTE 2: FLEURY S.A.
APELADOS: VALENTINA MOREIRA MEDEIROS REP/P/S/PAIS, ALEXANDRE
MEDEIROS DA SILVA e ERICA HENRIQUE MOREIRA MEDEIROS DA SILVA

Apelação Cível. Ação indenizatória c/c obrigação de fazer.


Plano de saúde. Negativa de análise do material genético dos
genitores, por não serem contratantes do plano. Exame
imprescindível para o diagnóstico da criança. Impossibilidade.
Relação de consumo. Responsabilidade objetiva da seguradora.
Dano moral. Dever de indenizar. Critérios de arbitramento.
Ausência de responsabilidade do laboratório. Reforma parcial
da sentença.
1. Deve ser rechaçada a preliminar de ilegitimidade passiva
suscitada pela apelante 1, e isso porque os autores imputam
responsabilidade à recorrente pelos danos suportados, gerando o
interesse da demandada em opor resistência aos efeitos da tutela
jurisdicional contra ela invocada.
2. No mérito, restou incontroverso que não foi possível realizar o
diagnóstico correto da criança, porque o exame solicitado pelo
geneticista - CGH Array – necessitava da análise do material
coletado dos pais, como informa o laudo médico de fls.60, porém
o plano não autorizou o procedimento, porque os genitores não
fazem parte da relação jurídica.
3. Como se vê, o laboratório não contribuiu para a ocorrência dos
fatos narrados na inicial, agindo em exercício regular de direito
ao condicionar a entrega do exame à autorização da operadora
de saúde, razão pela qual não pode ser responsabilizado.
4. No que tange à conduta da operadora de saúde, porém, é
evidente a falha na prestação do serviço, pois como esposado, era
imprescindível a coleta do material genético dos genitores para
detectar anomalias na primeira autora, o que foi indevidamente
impossibilitado pela operadora de saúde.
5. O princípio da boa-fé objetiva, quando relacionado à
interpretação dos contratos, ensina que o juiz deve analisar o
negócio jurídico de forma global para verificar se, de alguma
forma, deliberada ou não, uma das partes teve sua expectativa
frustrada, pelo abuso da confiança por ela depositada.
6. Não pode a ré assumir o risco pelo tratamento de determinada
doença e restringir ou excluir sua responsabilidade quanto a
procedimento ou medicamento que, pelas circunstâncias do

MARCOS ALCINO DE AZEVEDO TORRES:9673 Assinado em 27/02/2020 18:02:58


Local: GAB. DES MARCOS ALCINO DE AZEVEDO TORRES
935

quadro clínico do segurado, se mostram indispensáveis para a


manutenção de sua saúde.
7. Há a necessidade de interpretar-se a situação existente
privilegiando os princípios da função social e da boa-fé objetiva,
da qual se extraem os chamados deveres anexos ou laterais de
conduta, tais como os deveres de colaboração, fidúcia, respeito,
honestidade e transparência, que devem estar presentes nas
relações contratuais como a que ora se examina, com o intuito de
reequilibrar-se a relação jurídica entre os ora litigantes; trata-se
de buscar o equilíbrio (equivalência) e a justiça contratual.
8. É inegável que a recusa de cobertura ao exame médico
necessário para o diagnóstico e tratamento de doenças além de
frustrar a legítima expectativa depositada pela consumidora,
provoca sofrimento e angústia, atentando contra a dignidade da
pessoa humana, ou caso se prefira, a um direito fundamental da
personalidade, gerando, assim, o dever de indenizar.
9. À luz dos critérios delineados pelo art. 944, caput, do Código
Civil, parece-me adequada a verba compensatória arbitrada na
sentença, que deverá ser mantida, aplicando-se ao caso a
orientação jurisprudencial contida no Verbete 383, da Súmula
desta Corte.
10. Desprovimento do 1º recurso e provimento do 2º.

Vistos, relatados e discutidos os presentes autos da Apelação nº


0036751-19.2016.8.19.0002, em que figuram as partes supracitadas,

ACORDAM os Desembargadores que compõem a Vigésima


Sétima Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro em negar
provimento ao recurso da apelante 1 e dar provimento ao recurso do apelante 2, nos
termos do voto do relator. Decisão unânime.

Trata-se de Ação Indenizatória c/c obrigação de fazer na qual os


autores pleiteiam que os réus sejam condenados a viabilizar o exame solicitado pelo
médico assistente, bem como a pagar indenização por dano moral em razão de suposto
fato do serviço.

A sentença decidiu a lide nos seguintes termos:

“Isso posto, impõe-se JULGAR PROCEDENTE rol de pedidos


formulados na inicial para confirmar a tutela antecipada concedida, condenar a parte ré na
compensação pelos danos morais no valor de R$ 10.000,00 (dez mil reais), acrescidos de juros de
mora desde a citação e correção monetária a partir da publicação da sentença, e na obrigação de
fazer consistente na entrega dos resultados dos exames já realizados ou na realização de novos
exames, mantendo-se a multa cominatória já fixada na tutela antecipada.. Em consequência,

AL

2
936

condena-se a parte ré nas despesas processuais e em honorários de sucumbência de 10% (dez por
cento) do valor da condenação.”

Irresignadas, ambos os réus recorreram.

Em suas razões, a apelante 1 sustenta, preliminarmente, a sua


ilegitimidade passiva, ao argumento de que o problema narrado pelos recorridos
refere-se à realização e entrega dos exames no laboratório 2º Réu, de modo que não
contribuiu para a ocorrência de qualquer dano. No mérito, afirma que é legítima a
limitação dos riscos, não havendo causa para ser responsabilizada.

Por sua vez, o apelante 2 sustenta que não pode ser


responsabilizado, porque o exame solicitado não foi autorizado pelo plano de saúde.
Aduz que não há dano moral indenizável no caso.

Contrarrazões apresentadas às pastas 868, 878 e 894, do


indexador.

Parecer da Procuradoria de Justiça (pasta 921) opinando pelo


desprovimento aos recursos.

É o relatório. Voto:

Presentes os requisitos intrínsecos e extrínsecos de


admissibilidade, os recursos devem ser conhecidos.

Deve ser rechaçada a preliminar de ilegitimidade passiva


suscitada pela apelante 1, e isso porque os autores imputam responsabilidade à
recorrente pelos danos suportados, gerando o interesse da demandada em opor
resistência aos efeitos da tutela jurisdicional contra ela invocada.

Ademais, a existência das condições deve ser apreciada em


concreto, ou seja, deve o magistrado verificar, baseado nos fatos afirmados pelos
autores na inicial, mesmo sem produção probatória, se estão respeitadas as referidas
condições para o legítimo exercício do direito de ação. Nesse sentido, Fredie Didier Jr.,
in Curso de Direito Processual Civil – Volume I, 8ª edição, Editora Podivm, página 162:

“Sem olvidar o direito positivo, e


considerando a circunstância de que, para o legislador, carência de
ação é diferente de improcedência do pedido, propõe-se que a análise
das condições da ação, como questões estanhas ao mérito da causa,
fique restrita ao momento de prolação do juízo de admissibilidade
inicial do procedimento. Essa análise, então, seria feita à luz das
afirmações do demandante contidas em sua petição inicial (in
assertionis). Deve o juiz raciocinar admitindo, provisoriamente, e por
hipótese, que todas as afirmações do autor são verdadeiras para que se
possa verificar se estão presentes as condições da ação. O que importa é
AL

3
937

a afirmação do autor, e não a correspondência entre a afirmação e a


realidade, que já seria problema de mérito.
Não se trata de um juízo de cognição sumária
das condições da ação, que permitiria um reexame pelo magistrado,
com base em cognição exauriente. O juízo definitivo sobre a existência
das condições da ação far-se-ia nesse momento: se positivo o juízo de
admissibilidade, tudo o mais seria decisão de mérito, ressalvados fatos
supervenientes que determinassem a perda de uma condição da ação.
A decisão sobre a existência ou não de carência de ação, de acordo com
esta teoria, seria sempre definitiva. Chama-se de teoria da asserção ou
da prospettazione.”

Ultrapassada a preliminar supra, passa-se a análise do mérito.

O caso dos autos retrata nítida relação de consumo, em virtude


da perfeita adequação aos conceitos de consumidor (art. 2º), fornecedor (art. 3º, caput) e
serviço (art. 3º, § 2º), contidos na Lei 8.078/90, entendimento firmado pelo verbete 469,
da Súmula do STJ, verbis:

Súmula 469 do STJ: “Aplica-se o Código de Defesa do Consumidor aos


contratos de plano de saúde"

No caso, restou incontroverso que não foi possível realizar o


diagnóstico correto da criança, porque o exame solicitado pelo geneticista - CGH Array
– necessitava da análise do material coletado dos pais, como informa o laudo médico
de fls.60, porém o plano não autorizou o procedimento, porque os genitores não fazem
parte da relação jurídica.

Como se vê, o laboratório não contribuiu para a ocorrência dos


fatos narrados na inicial, agindo em exercício regular de direito ao condicionar a
entrega do exame à autorização da operadora de saúde, razão pela qual não pode ser
responsabilizado.

No que tange à conduta da operadora de saúde, porém, é


evidente a falha na prestação do serviço, pois como esposado, era imprescindível a
coleta do material genético dos genitores para detectar anomalias na primeira autora, o
que foi indevidamente impossibilitado pela operadora de saúde.

Com efeito, entre as normas e princípios que buscam proteger o


consumidor e equilibrar a relação jurídica havida entre as partes, merece destaque
aquele que afirma que as cláusulas contratuais devem ser interpretadas da maneira
mais favorável ao consumidor.

Por todos, convém transcrever o seguinte julgado deste E.


Tribunal de Justiça:

AL

4
938

AÇÃO DE NULIDADE DE CLAUSULA CONTRATUAL COM


PEDIDO DE INDENIZAÇÃO. PLANO DE SAÚDE. EXCLUSÃO
DE COBERTURA DO TRATAMENTO MÉDICO PRESCRITO.
LIMITAÇÃO AO NÚMERO DE SESSÕES DE FISIOTERAPIA.
RELAÇÃO DE CONSUMO. SEGURADA IDOSA. CLÁUSULAS
ABUSIVAS. VIOLAÇÃO DO PRINCÍPIO DA BOA-FÉ OBJETIVA.
INTERPRETAÇÃO MAIS FAVORÁVEL AO CONSUMIDOR.
DANO MORAL CONFIGURADO. MAJORAÇÃO DO
QUANTUM ARBITRADO. Tratando-se de relação de consumo, as
cláusulas contratuais devem ser interpretadas da forma mais favorável
ao consumidor, considerando-se abusivas aquelas que limitem ou
restrinjam seus direitos. A negativa de custeio de sessões de fisioterapia,
prescritas por medico conveniado, para complementar tratamento de
lesão ocorrida por acidente sofrido pela segurada, fere o próprio objeto do
contrato. Há inafastavel abusividade nas clausulas que excluem a
cobertura deste tratamento complementar ou que limitam o numero de
sessões de fisioterapia, recomendada indicadas pelo profissional de
saúde. A conduta da ré atenta contra o princípio da boa-fé objetiva, na
medida em que contraria o fim primordial do contrato, que é a proteção
da saúde do segurado, frustrando a confiança e a legítima expectativa
depositada pelo mesmo ao longo de vários anos de vigência do contrato,
de receber o atendimento médico que se mostrar necessário. A negativa
do tratamento necessário que fez com que a segurada idosa precisasse
arcar com seus próprios recursos financeiros a continuidade do
tratamento, agravou todo seu sofrimento, que alem de físico, também
moral, devendo, porquanto majorar-se a verba reparatória arbitrada pelo
juízo a quo. Conhecimento dos recursos para negar seguimento ao
primeiro e dar provimento ao segundo, na forma do artigo 557 do
Código de Processo Civil. (0022121-94.2008.8.19.0209 - APELACAO -
1ª Ementa DES. ROGERIO DE OLIVEIRA SOUZA - Julgamento:
05/04/2010 - NONA CAMARA CIVEL)

O princípio da boa-fé objetiva, que está ligado à interpretação


dos contratos, ensina que o juiz deve analisar o negócio jurídico de forma global para
verificar se, de alguma forma, deliberada ou não, uma das partes teve sua expectativa
frustrada, pelo abuso da confiança por ela depositada.

Destarte, ressai evidente dos autos que a falha na prestação dos


serviços da operadora provocou danos aos autores que devem ser indenizados, nos
termos dos artigos 186 e 944 do Código Civil c/c art. 14, caput, do CDC.

A situação explanada nos autos não pode ser considerada como


proveniente de mero ilícito contratual.

Esse é o entendimento firmado por este E. Tribunal de Justiça


através da súmula n.º 75, que expõe que o descumprimento de dever legal ou
contratual, em princípio, não causa dano moral, ressalvando expressamente: “salvo se
da infração advém circunstância que atenta contra a dignidade da parte.”
AL

5
939

O sentido da súmula, como se vê, é apenas assentar que o


descumprimento de dever legal ou contratual, por si só, não é capaz de gerar dano
moral. Todavia, isso não pode servir de ensejo a que se sustente, como em geral fazem
as seguradoras de saúde, que não há, em hipótese alguma, possibilidade de se
reconhecer dano moral por descumprimento de contrato.

Ora, parece inegável que a recusa de cobertura a exames


médicos necessários para o diagnóstico e tratamento de doenças além de frustrar a
legítima expectativa depositada pelos consumidores, provoca sofrimento e angústia,
atentando contra a dignidade da pessoa humana, ou caso se prefira, a um direito
fundamental da personalidade, gerando, assim, o dever de indenizar.

Nesse sentido, cumpre destacar a jurisprudência deste E.


Tribunal de Justiça:

A recusa injustificada de internação dá motivo à indenização por dano


moral, arbitrada de forma a refletir a aplicação sensata, justa e
equilibrada das regras jurídicas, capaz de compensar a angústia, a
aflição e o risco de vida daí decorrentes, além de representar a justa
punição, de caráter pedagógico e prevenção geral. (AC 24751/2003,
Des. Sérgio Cavalieri, 2ª Câmara Cível)

À luz dos critérios delineados pelo art. 944, caput, do Código Civil,
parece-me adequada a verba compensatória arbitrada na sentença, que deverá ser
mantida, aplicando-se ao caso a orientação jurisprudencial contida no Verbete 383, da
Súmula desta Corte.

Ante o exposto, encaminho meu voto no sentido de negar


provimento ao primeiro recurso e dar provimento ao segundo recurso, para julgar
improcedente o pedido em relação ao apelante 2.

Com fundamento no art. 85, §11, do CPC, majoro a condenação da


apelante 1 ao pagamento de honorários advocatícios no importe de 15% sobre o valor
da condenação. Nos termos do art. 85, § 2º e § 11, do CPC, condeno os recorridos ao
pagamento de honorários advocatícios ao patrono do apelante 2, no valor de
R$1.500,00 (mil e quinhentos reais).

Rio de Janeiro, 19 de fevereiro de 2020.

MARCOS ALCINO DE AZEVEDO TORRES


DESEMBARGADOR RELATOR

AL

Você também pode gostar