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1

PROJETO DE DOUTORADO – Processo Seletivo PPGMúsica/2020 - UFPR

Título:

GUITARRA EXPERIMENTAL: DINAMISMOS E LIMIARES DO SENSÍVEL EM


ESPAÇOS DE CRIAÇÃO E PERFORMANCE

Linha de Pesquisa: Criação Sonora

Nome do orientador: Prof. Dr. Felipe de Almeida Ribeiro

Resumo:

Este projeto estabelece um âmbito de pesquisa em criação e performance tendo


como fundamento a guitarra elétrica enquanto um hiper-instrumento apto a operar
novos dinamismos e limiares sensíveis dentro da música experimental contemporânea.
A este experimentalismo integra-se as atividades de composição e improvisação
confluindo na guitarra e seus dispositivos eletrônicos espaços concretos e específicos de
produção artística. Remontamos um espaço criativo a partir da guitarra preparada de
mesa e objetos diversificados, incluindo os pedais de efeitos, tomando como referência
o trabalho pioneiro do guitarrista Keith Rowe afim de, após também analisar obras
específicas para guitarra do repertório da música acadêmica de vanguarda, realizar
proposições de performances dando ênfase nos processos de interação, hibridismo,
multiplicidade, ambiguidade, anacronismo, indeterminismo, presença, atmosfera e aura.
Por fim, buscamos constituir uma fundamentação teórica a partir dos seguintes autores:
Giorgio Agamben, Hans Ulrich Gumbrecht, Walter Benjamin e Gilles Deleuze/Félix
Guattari.
2

Introdução

Este projeto de pesquisa propõe uma investigação a partir da realização de


trabalhos em criação para guitarra elétrica e dispositivos diversificados (objetos de
preparação, pedais de efeitos variados, instalações e vídeos). Existe já um âmbito
consistente de pesquisas em criação e performance tendo como base a exploração e
experimentação da escritura, do gesto e das sonoridades a partir da interface corpo-
guitarra e suas materialidades extensíveis. Dentro dessa tessitura híbrida, os limiares e
aberturas da idiomática da guitarra se interseccionam com diversas poéticas da música
de vanguarda e experimental, especialmente após 1950. Nosso interesse deve apontar
para uma relevância atual cada vez mais emergente de um tipo específico de dinamismo
e limiar do sensível (ou potência das relações sensíveis) tanto entre
compositor/intérprete e seus objetos de produção sonora (instrumentos, mídias etc),
quanto entre o contexto específico de uma performance e os expectadores.

1. A confluência entre composição, improvisação e a música experimental a partir


da guitarra elétrica como hiper-instrumento.

Segundo Ramírez (2018, p.46), a guitarra elétrica tem adquirido cada vez mais
um papel de relevo nos centros acadêmicos não somente refletindo nos processos
criativos em diversificados gêneros musicais, mas também “nas investigações que
buscam demonstrar a diversidade de opções composicionais e interpretativas deste
instrumento, inclusive dentro do campo específico da música acadêmica
contemporânea1”.

Este autor faz uma análise crítica de alguns trabalhos mais recentes 2 e estabelece
uma reflexão com o estado atual em que diversos autores têm desenvolvido seus

1
“Entende-se por Música Académica Contemporânea o repertório criado a partir da segunda metade do
século XX, vinculado à tradição acadêmica (também conhecida como clássica, erudita, culta, de arte ou
de concerto). Esta inclui a música acústica, mista (meios acústicos e eletrônicos), gêneros como a música
experimental, a arte sonora e seu emprego para outros campos artísticos como a dança, a arte áudio-
visual, o teatro e outros”. [tradução nossa] (Círculo Colombiano de Música Contemporánea, 2010, p.1.
Disponível em: https://ccmc.com.co/estatutos/ ).
2
Tomaro, R. “Contemporary Compositional Techniques for the Electric Guitar in United States Concert
Music”, 1994. Courribet, B. e Quintans, S. Guitarra eléctrica y creación musical contemporânea, 2010.
Mackie, Z. The Electric Guitar in Contemporary Art Music, 2013. Acrescentaríamos também este
trabalho não citado pelo autor: JAMESON, B. T. Negotiating the Cross-Cultural Implications of the
Electric Guitar in Contemporary Concert Music, 2017.
3

trabalhos artísticos3, projetando um cenário emergente muito rico entre novas formas de
se pensar a composição musical contemporânea integradas a práticas performáticas
multifacetadas e também como campo instigante de investigações nas artes.

Também o trabalho de Martins (2015) busca estudar a guitarra como interface de


criação e o uso de novas tecnologias aproximando a música experimental, a
improvisação e a composição num ambiente aberto de experimentação, formando uma
rede de interações híbridas e complexas:

“O som processado e manipulado pelos aparatos tecnológicos nasce no


ambiente acústico, energia mecânica no ar, e se dispersa no universo digital,
podendo nos atingir de forma única, quando o mesmo retorna novamente ao
ambiente acústico e chega aos nossos ouvidos. Ao nos atingir, reagimos
alimentando uma espécie de conversa, que é exatamente onde acontece parte
importante do processo da improvisação, mesmo quando o performer se
encontra em formato solo, improvisando livremente a partir do material que ele
compõe e que pode ou não ser processado pelo computador, pela máquina
digital, e que retorna a ele através de alto-falantes, compondo um sistema
híbrido acústico-digital composto por performer, instrumento acústico,
microfones, captadores, pedaleiras, computadores, softwares, pedais de
expressão, mixers, alto-falantes. Molda-se a um ambiente mais complexo, que
pode ser constituído e incluir o espaço, a arquitetura, a acústica do lugar, as
disposições internas emocionais dos performers, etc. – ou seja, um ambiente
aberto, experimental, fenomenológico.” (MARTINS, 2016, p. 70)

Nesse âmbito da música experimental, destacamos a ideia de considerar a


guitarra como um hiper-instrumento4, ou instrumento expandido (aumentado5 ou
3
Por exemplo: “Sheer Pluck Data Base atualmente reconhece 67.403 peças, das quais 47.338 são visíveis
ao público geral e, aproximadamente 5.113 delas foram compostas por compositores ao redor do mundo
que incluíram a guitarra elétrica dentro de sua instrumentação. ” (RAMÍREZ, 2018, p.48)
4
Machover T. “hyperinstruments homepage”. http://www.media.mit.edu/hyperins/ . Massachusetts
Institute of Technology, Hyperinstruments. http://opera.media.mit.edu/projects/hyperinstruments.html .
5
“the electric guitar can be seen as an augmented acoustic guitar where the electromechanical and digital
lutheries are over-layered to the acoustic one. The electric guitar’s various sound shaping and
amplification modules form a set of augmentations concatenated to the initial acoustic sound source. Thus
the electric guitar presents a long history of instrument augmentation starting with the analog technology
and expanding to the digital domain with hardware effects units and, more recently, software modules and
programming environments. The electric guitar as an augmented instrument displays a wide range of
sonic possibilities such as sustained sounds (feedback, compression and overdrive/distortion,
electromagnetic sustainers like the “e-bow”), timbral alterations (filtering, chorus/flanger effects), and
time-based effects and processes (delays, echoes, non real-time loops). By its modular and augmented
nature as well as its sonic versatility, the electric guitar questions the notions of instrument, composition,
and that of a musical tool for live and studiocontexts in a resolutely contemporary manner. Its hybrid
4

modular), distanciando-se das estratégias mais convencionais das técnicas de


instrumentação acústicas (incluindo as técnicas estendidas) e abrindo um outro contexto
de criação onde elementos como a multiplicidade, a ambiguidade, o hibridismo e a
expansão dos campos de referencialidades se tornam também seus outros articuladores.

Posto esta primeira condição de abertura, propomos uma primeira questão: quais
seriam os elementos fundamentais em que o meio específico (guitarra aumentada)
estaria influenciando significativamente o processo de criação e as estratégias
composicionais, incluindo os diversos tipos de notação? E a partir desses elementos,
como estabelecer uma “experiência” com a guitarra, a guitarra como resistência
(LACHENMANN, 2004), a guitarra como espaço criativo, como instrumento
morfológico e genuinamente estendido?

Primeiramente temos então a guitarra como espaço criativo voltado aos


processos internos que estruturam uma obra musical enfatizando os elementos da
morfologia sonora enquadradas num plano composicional específico. O estudo desse
repertório vai nos permitir estabelecer um amplo referencial de sintaxes rítmicas,
harmônicas, melódicas, texturais, espectrais, timbrísticas, gestuais etc, acumulando um
reservatório de materiais e processos para explorar sonoridades e modos de uso na
guitarra experimental. Citamos alguns exemplos de peças para nossos estudos: a) para
guitarra solo: Tristan Murrail (Vampyr!, 1987), Arthur Campela (Quimbanda, 1999),
Claude Ledoux (Zap’s Init, 2008); b) para guitarra e ensemble: Dai Fujikura
(Abandoned Time, 2006), Chaya Czernowin (Sahaf, 2008), Karlheinz Essl (Chemi(s)e,
2009); c) para guitarra e tape ou live-electronics: Hugues Dufourt (La Cité des Saules,
1997), Agostino Di Scipio (Modes of Interference 3, 2007), Richard Barrett
(Transmission, 1999).

Amparados nestas obras, vamos levantar possibilidades de projetos de


criação tanto com suporte na escritura tradicional (partitura ou notação gráfica)
quanto para propostas de performances suscitadas a partir de aspectos ou
problemas composicionais específicos. Por exemplo, como analisar e transcrever
uma gravação de uma improvisação livre não-idiomática para guitarra no estilo do

lutherie is a source of expanded sonic and musical possibilities, as well as composition strategies based on
the emergent properties of a network of sound processing modules”. (O. L¨ahdeoja, B. Navarret, S.
Quintans, A. Sedes, 2010)
5

Derek Bailey6? O compositor britânico Richard Barrett 7 cunhou o termo de escrita


“radicalmente idiomática”, ao descrever sobre sua obra Transmission (1999), para
guitarra elétrica e live-electronics: “…an attempt to reconceive the electric guitar
itself, neither as an expanded (or impoverished, depending on one’s point of view)
version of its “classical” forebear, nor as a medium for effecting a fashion-
conscious fusion with its familiar contemporary vocabulary. transmission uses a
“hybrid” instrument equipped with both “electric” and “acoustic” outputs, and
uses playing techniques related to both of the above traditions [electric and
classical] as well as (probably most importantly) what Derek Bailey calls “non-
idiomatic improvisation” (to which I would prefer the term “radically idiomatic.”
(In.: BROOKS, 2014, p.2)

Se na improvisação livre não se tem um plano pré-definido (porém é


possível planejar e escrever uma composição que soe como se fosse uma
improvisação, ou seja, que resulte numa sonoridade similar a uma morfologia
criada espontaneamente), de outro modo, as análises de processos e ideias
composicionais podem influenciar e “aflorar” durante uma performance de livre
improvisação. Podemos então pensar na ideia de improvisação enquanto um tipo
de composição em tempo real. Mas como analisar e transcrever uma improvisação
eletroacústica do guitarrista Keith Rowe? Aqui a mesma problemática nos remete
a um outro espaço de criação, o da guitarra enquanto espaço de dinamismos e
limiares sensíveis, nos transportando a uma segunda condição de abertura: uma
guitarra que já não é só uma guitarra nem só se valorizam os procedimentos
composicionais específicos para guitarra; mas um complexo híbrido de objetos e
sons, gestos e ações, uma abertura dos limiares entre o visual e o sonoro, o artístico e o
cotidiano, o inteligível e o sensível. Um campo mais expandido, com uma ênfase na
improvisação, na oralidade, na coletividade, no corpo e espaço, no jogo e ritual, na
performance.

Pensar a guitarra nesse outro espaço de criação e resistência nos aponta para uma
apropriação dos diversos exemplos de produções para guitarra experimental postas num

6
Cf.: BAILEY. Improvisation: its nature and practice in music, 1992.
7
Este autor pertence ao grupo de compositores da New Complexity, junto com Brian Ferneyhough, Chris
Dench, James Dillon e Michael Finnissy.
6

jogo arriscado de conflitos, contradições e indeterminismos, anacronismos, montagens e


remontagens e jogos mutáveis de escutas dialéticas.

2. A guitarra preparada de mesa e a performance múltipla.

Tendo como principal referência o guitarrista Keith Rowe, pensamos num


próximo estágio de pesquisa na busca de uma integração entre os dois espaços de
criação, a partir de propostas e atividades em torno do que se pode chamar “Guitarra
Preparada de Mesa e Pedais de Efeitos em Tempo Real” (Tabletop Prepared Electric
Guitar and Live Electronics Pedals). Keith Rowe é considerado o pioneiro no uso da
guitarra preparada sobre uma mesa e da prática da improvisação eletroacústica, além de
ser um dos fundadores do grupo britânico AMM de livre improvisação, em meados da
década de 1960. Por influência de sua dupla formação em música e artes plásticas,
Rowe vai se apropriar das ideias de Duchamp (a partir do conceito de objet trouvé) e de
Pollock para pensar a guitarra como uma tela de pintura disposta sobre uma mesa 8. Em
entrevista com David Sylvian, diz Rowe:

Em meados dos anos sessenta, via a guitarra elétrica como um lenço em branco,
vazio, um objeto para contemplar e imaginar: que podia fazer com esta coisa?
Ajudou a prestar atenção nas imagens cubistas de violões e me perguntar como
elas soariam. Minha dissertação foi sobre os violões de George Braque. O
sentido libertador que surgiu ao me afastar do instrumento e abandonar a técnica
tradicional foi extraordinário. Apliquei diretamente os processos das artes
visuais a este instrumento elétrico: o de Pollock quando postava minha guitarra
sustentada em sua caixa interagindo sobre a superfície. O de Duchamp ao
utilizar objetos encontrados tais como facas, ventiladores, coqueteleiras para
tocá-la. A Rauschenberg ao integrar um rádio. Tocar como se pintava oferecia,
quase imediatamente uma nova linguagem para o instrumento. (ROWE, 2016)

8
“By physically removing a substantial portion of muscular memory from the equation, Rowe couldn’t
fail but to free himself from at least a certain amount of the tendency to fall back into known routines.
The electric guitar was uniquely accommodating to such na idea in that its electronic nature allowed for
sounds to emanate from it for a given period without the direct application of breath, hand/finger
manipulation, etc. He could at one blow virtually eliminate the sort of instrumental control issues that
dominated – and would continue to dominate – most improvising musicians while at the same time
opening up an entirely new and vast area of choices which would have less to do with the specific
instrument involved and more with the group sound as such, a recession into the kind of “egolessness”
that would became a vitally important element of the finest electro-acoustic improvisation of the coming
decades, very different from the virtuosic practices of many others in ostensibly the same field.”
(OLEWNICK, 2018, p.118)
7

Encontramos nesta atitude roweana algumas pistas para uma orientação de


projetos de criação em torno da ideia de dinamismos e limiares do sensível, na medida
em que há uma potência de não tocar uma guitarra como se deveria tocá-la, uma
potência de não fazer sons de guitarra usando uma guitarra, em suma: uma potência de
não pensar em guitarra, suspendendo toda uma cultura hegemônica em torno da guitarra
como um ato ético e político. Suspender uma certa lógica do sensível para reencontrar a
autonomia de um sensível pré-forma(-ta)do, livre de categorizações, estilos, funções e
valores (porém, sem deixar de estar diante de uma guitarra sobre a mesa). Trata-se de
uma potência de não se restringir a um simples ato (hábito) de tocar uma guitarra, mas
se colocar numa abertura no aqui e agora do infinito, do diverso e do inesperado, num
universo múltiplo das virtualidades.

A guitarra enquanto instrumento contemporâneo não só tem estimulado a


imaginação e criatividade de compositores recentes como também tem contribuído para
estabelecer um panorama histórico multifacetado entre eventos e agentes discursivos
aproximando-se da música experimental em suas práticas desenvolvidas a partir das
décadas de 1950/60 em que os papeis entre compositor, regente, intérprete (e
consequentemente as noções de autor, obra e público) são questionadas:

As principais práticas que apontavam para tal problematização relacionam-se


por um lado ao uso da indeterminação e aleatoriedade, e por outro ao
desenvolvimento da improvisação livre e criações coletivas. Pontuando tais
aspectos, a utilização de recursos musicais eletrônicos, de instrumentos
manufaturados, e de preparações e técnicas instrumentais expandidas
contribuíram para isso, ao trazerem à tona situações musicais não passíveis de
serem descritas numa partitura que utilize o sistema de notação tradicional,
além de, em certos casos, situações específicas (relacionadas tanto a
instrumentos quanto a intérpretes). (DEL NUNZIO, 2017, p. 28)

Del Nunzio apresenta também um panorama da música experimental na


atualidade do contexto brasileiro a partir de um levantamento amplo de práticas
colaborativas desenvolvidas por artistas de várias regiões. Levando em consideração
suas práticas e discursos veiculados tanto institucionalmente quanto por coletivos,
festivais, núcleos e organizações, observa-se uma recorrência de aspectos na utilização
do termo “experimental” delineando certas características dessas atividades, a saber (id.:
8

2017, p. 48): 1) Diversidade (práticas, estilos, gêneros, recursos técnicos e


instrumentais); 2) Algo inovador, não convencional; liberdade (artística); 3) Práticas
desenvolvidas de modo empírico; 4) Uma música que dialoga (de diferentes pontos de
vista: artístico, técnico, estilístico, poético) com uma espécie de tradição de música
indeterminada (diversidade de modos de notação; abertura; participação decisiva dos
executantes na definição da forma e material); 5) Uma música que tem na experiência
de determinadas situações um fator determinante (ie, que depende de um contexto e de
uma vivência específicas); 6) Um senso de comunidade (artistas que circulam por
determinados espaços; colaborações; trocas – informações, contatos, oportunidades).

Se por um lado estes aspectos gerais norteiam e delimitam um campo de atuação


da guitarra elétrica no âmbito da música experimental, por outro lado existe uma
abertura quase ilimitada para se pensar nas ideias e proposições de “performances
múltiplas” com base na diversidade de vertentes e/ou tendências citadas nestes eventos,
como exemplificam os múltiplos termos utilizados nas palavras-chave de seus selos e
programas: “arte sonora, computação musical, circuit-bending, drone, eletrônica ao
vivo, esculturas sonoras, improvisação livre, instalação sonora, música contemporânea,
música indeterminada, multimídia, performance, noise, sampleamento radical, vídeo-
partitura, colagens sonoras, ambient, glitch, minimalismo, erro, transcendência, distopia,
música conceitual e bizarra”, entre outros (id.: 2017, p. 48-49).

Objetivos

Geral: Desenvolver projetos de criação e de performance tendo como base a guitarra


elétrica a partir da perspectiva de hiper-instrumento a fim de instaurar um campo
expandido para a atuação da guitarra preparada de mesa e pedais de efeitos em tempo
real.

Específicos:

 Proporcionar espaços criativos de modo a viabilizar performances com


hibridismos entre a idiomática da guitarra e algumas poéticas da música de
vanguarda e experimental;
9

 Estabelecer um território musical a partir de uma dialética entre


referencialidades históricas (arquivos) e processos singulares (individuais e
coletivos) flexibilizando os espaços de criação e performance para guitarra;

Justificativa

Há ainda uma grande lacuna na concepção dos músicos/artistas/intérpretes a


respeito da integração entre prática e pesquisa científica. Assim, este projeto pretende
trabalhar um instrumento popular (guitarra), com grande demanda de jovens, e produzir
uma série de trabalhos de criação oportunizando uma expansão do campo de atuação e
sensibilidade desse instrumento. Essa abertura em relação ao instrumento, com base
numa vivência prática e especulativa, deve fornecer uma excelente ferramenta de
ensino, criação, interação coletiva, estimulando a escuta para sonoridades advindas de
seu uso com as tecnologias atuais, que são instigantes e infindáveis.

Assim, justifica-se o objeto de estudo deste projeto na medida em que eventos


artísticos dessa natureza são muito raros e quase não há referências em trabalhos
acadêmicos sobre a importância da guitarra preparada de mesa, e em especial de Keith
Rowe. Além disso, é considerado de um modo muito geral e vago o aspecto de sua
improvisação eletroacústica livre, associando simplesmente com a improvisação não-
idiomática. Como foi dito anteriormente, a atitude de Rowe estabelece novas relações
sensíveis e existenciais entre autor, gesto, obra, performance e expectadores.

Fundamentação Teórica

Estamos considerando o termo “dinamismo” a partir dos escritos do filósofo


Giorgio Agamben, no sentido atribuído desde Aristóteles como “potência” (dynamis):
“Quem possui uma potência pode colocá-la em ato ou não. A potência é definida
essencialmente pela possibilidade do seu não exercício; a potência é uma suspensão do
ato – potência de ser e de não ser, de fazer e de não fazer. O vivente pode sua própria
impotência, e só nesta forma possui sua própria potência. Na potência, a sensação é
constitutivamente anestesia; o pensamento, não pensamento; a obra, inoperosidade”
(AGAMBEN, 2018, pp. 63-65).
10

Acreditamos que, por exemplo, Keith Rowe potencializa essa “poética da


inoperosidade” (seguindo a trilha de várias tendências da arte contemporânea desde o
dadaísmo) ao integrar à guitarra objetos de preparação das mais diversas naturezas e as
tecnologias eletrônicas e eletroacústicas na medida em que opera paradoxalmente toda
essa materialidade a partir dessa “potência-de-não”. Não só o instrumento guitarra, mas
todos os outros objetos e mídias possíveis de se acoplar a ela, são postas em sua
inoperosidade nesse gesto de resistir às predeterminações dos materiais colocados em
performance. Agamben, propõe três tipos de ações, sendo este gesto uma ação pura de
simplesmente assumir e suportar, e não agir conforme alguma palavra de ordem, nem
fazer algo de acordo com algum modelo ou consenso:

Se o fazer é um meio em vista de um fim e a práxis (agir) é um fim sem


meios, o gesto rompe a falsa alternativa entre fins e meios que paralisa a
moral e apresenta meios que, como tais, se subtraem ao âmbito da
medialidade, sem por isso tornarem-se fins. (AGAMBEN, 2008, P. 13)

A partir dessa noção de gesto, nos remeteremos ao problema dos modos de uso 9
da guitarra e sua relação com o que Agamben chama de profanação dos dispositivo.
Para o filósofo, um dispositivo seria “qualquer coisa que tenha de algum modo a
capacidade de capturar, orientar, determinar, interceptar, modelar, controlar e assegurar
os gestos, as condutas, as opiniões e os discursos dos seres viventes” (AGAMBEN,
2009, p.40-41).

Nessa perspectiva, quase tudo são dispositivos, ou seja, sempre “algo” está nos
controlando de algum modo específico, conscientemente ou não. Daí que pensar em
dinamismos específicos operando nos limiares do sensível pode lançar aberturas para
processos criativos que jogam com a suspensão da dialética entre o sentido e o sensível,
o inteligível e o informe, como modo de “profanar” o domínio das representações pré-
determinadas e fixas. É nesse jogo de oscilação constante entre uma “produção de
sentido” e uma “produção de presença10” que nos interessa aquilo que Hans Ulrich

9
Cf.: FRANCISCHINI. Modos de uso da guitarra elétrica em práticas musicais experimentais, 2018.
10
Cf.: GUMBRECHT. Produção de Presença: o que o sentido não consegue transmitir, 2010.
11

Gumbrecht chama de “campo não-hermenêutico” e a performance11 como espaço


privilegiado para uma “música de ambiências” (Stimmung12).

Tomando como exemplo o Keith Rowe, em relação a esse tipo de performance,


é possível também retomar o conceito de “aura” em Walter Benjamin, que a define
como “um estranho tecido fino de espaço e tempo: aparição única de uma distância, por
mais próxima que esteja. Em uma tarde de verão, repousando, seguir os contornos de
uma cordilheira no horizonte ou um ramo, que lança sua sombra sobre aquele que
descansa – isso significa respirar a aura dessas montanhas, desse ramo” (BENJAMIN,
2018, p.27-29). Essa discussão tangencia com pesquisas recentes13 ao problematizar a
questão da aura na música eletroacústica e também na live-electronics. Podemos assim
associar uma apresentação de improvisação livre de Rowe (e de seu grupo AMM) como
uma performance de live-electronics onde a aura tem uma relevência na apreciação
estética, como apontado por Ribeiro: “we have seen that live-electronics works have a
“here and now” (hic et nunc) aspect in their foundation, i.e., a necessity for their
“presence in time and space”, retaining importante aspects for authenticity” (RIBEIRO,
2018, p. 7).

Metodologia

Nossa metodologia pretende seguir dois caminhos que se complementam, a


saber: 1. Trabalhos de análises de obras para guitarra (citadas na introdução); 2.
Trabalhos de experimentação, criação e performance a partir da guitarra e
dispositivos variados.

1. Para desenvolver as análises das obras, tomaremos uma dupla


abordagem. A primeira de contexto mais geral através de análise comparativa,
levantando problemáticas que serão observadas em todas as obras selecionadas
(p.ex.: aspectos da notação, maior ou menor grau de idiomática, ênfase na
estrutura ou sonoridade etc); a segunda de caráter mais específico, em que para

11
“a performance é virtualmente um ato teatral, em que se integram todos os elementos visuais, auditivos
e táteis que constituem a presença de um corpo e as circunstâncias nas quais ele existe” (ZUMTHOR,
2005, p.69).
12
Cf.: GUMBRECHT. Atmosfera, ambiência, Stimmung: sobre um potencial oculto da literatura, 2014.
13
Cf.: CHAPMAN, 2011; RIBEIRO, 2018.
12

cada caso será necessário verificar quais elementos e aspectos são mais
significativos e relevantes de acordo com a poética do compositor e de
determinadas questões que possam nos ajudar nas ideias e proposições dos
trabalhos de criação.

Por exemplo, no caso da peça do compositor Tristan Murrail, Vampyr!,


para guitarra elétrica solo, temos já alguns elementos prévios que contextualizam a
poética da obra dentro do contexto da música espectral. Na primeira abordagem
(com relação à notação, por exemplo), observa-se que o compositor mescla signos
de valores fixos com outros de valores mais indeterminados, dando pouca margem
de liberdade para o intérprete:

Comparando com a peça Zap’s Init de Claude Ledoux, a notação deixa uma
margem maior de liberdade ao intérprete, como pode-se observar já logo no início,
a indicação para improvisar sobre uma nota variando um efeito de pedal:
13

Provavelmente encontraremos uma gama ampla de possibilidades de


notação para guitarra, especialmente quando são utilizados pedais de efeitos ou
outros dispositivos. Será possível então estabelecer uma diversidade de tipos de
notação, com gradações variadas entre maior ou menor grau de abertura, de
elementos gráficos e textuais etc.

No caso do contexto mais específico da análise de Vampyr!, é possível


observar um processo de transformação gradual típico das texturas espectrais,
além da construção harmônica explorando os parciais da nota grave Mi, conforme
a análise de Jameson (2015):
14

E como resolver o problema das análises de obras que não possuem


partitura, como nas improvisações eletroacústicas do Keith Rowe? Podemos nos
apoiar em algumas metodologias de análise de música electroacústica, desde
aquelas que mantém um referencial a partir da escuta reduzida do tratado de
Pierre Schaeffer (Delalande, Smaley, Emmerson etc) até as que utilizam notação
gráfica, códigos e desenhos.

2. Para desenvolver os trabalhos de criação e performance, vamos operar


também em duas metodologias diferenciadas. A primeira, a partir de modelos
analíticos e estratégias composicionais específicas, realizar exercícios variados de
construções de texturas sonoras explorando as potencialidades da guitarra, dos
objetos de preparação e dos pedais de efeitos. Por exemplo, tomando o modelo de
análise dos processos espectrais, e experimentando um pedal que captura os
parciais do ataque das cordas e os mantém congelados num som contínuo (pedal
Superego), realizamos uma composição para guitarra preparada e pedais
simulando a mesma ideia do início da obra Partiels do compositor Gerard Grisey:
15

A segunda forma de trabalho de criação parte da experimentação livre e


exercícios direcionados de improvisações buscando encontrar sonoridades
interessantes, ideias específicas para possíveis composições ou outros trabalhos
criativos.

Por fim, uma terceira atividade irá focar na produção de alguns projetos de
performance dentro daquilo que delineamos como dinamismos e limiares sensíveis,
buscando uma hibridização e interação com múltiplos dispositivos (utilização de
rádios, vídeo, improvisações livres, live-eletronics etc). Se num primeiro momento
nossa metodologia está direcionada para a realização de trabalhos em criação mais
formalizados, com base na análise e modelos composicionais, nesta outra proposta
há uma ruptura e desvio para um método mais rizomático 14, cartográfico15,
etnográfico. As possíveis performances (individuais ou coletivas) não seguirão
modelos ou proposições fechadas e/ou dissociadas de contextos concretos. Tudo vai
depender das contingências, dos agenciamentos entre demandas, desejos e
viabilidades.

Cronograma

14
Cf.: DELEUZE, G.; GUATTARI, F., 1995.
15
Cf.: PASSOS, E.; KASTRUP, V.; ESCÓSSIA, 2009.
16

1º Sem. 2º Sem. 3º Sem. 4º Sem. 5º Sem. 6º Sem. 7º Sem. 8º Sem.


Disciplinas X X X X
do
programa
Leitura da
bibliografia X X X X X X X
Análise de
obras X X X X
Composição
das obras X X X X X X X
Redação
parcial da X X X X
tese
Redação da
tese X X X X
Exame de
qualificação X
Defesa X

Referências:

AGAMBEN, Giorgio. Notas sobre o gesto. Artefilosofia, Ouro Preto, n.4, p. 09-14, jan.
2008.

_____________. O que é o contemporâneo? E outros ensaios. Chapecó, SC: Argos,


2009.

_____________ . O fogo e o relato. São Paulo, Boitempo, 2018.

BAILEY, Derek. Improvisation: its nature and practice in music. USA: Da Capo Press,
1992.

BENJAMIN, Walter. A obra de arte na época de sua reprodutibilidade técnica. Porto


Alegre, RS: Zouk, 2018.

BROOKS, Aaron. A radical idiom: style and meaning in the guitar music of Derek
Bailey and Richard Barrett and Energy Shapes, an original composition for electric
guitar and electronic sounds. Thesis for the degree of Doctor of Philosophy. University
of Pittsburgh, 2014. Disponível em: http://d-scholarship.pitt.edu/21260/

CHAPMAN, Owen. The Elusive Allure of “Aura”: Sample-based Music and


Benjamin’s Practice of Quotation. Canadian Journal of Communication. Vol 36 (2011),
p. 243-261.
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