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Bruno, você está lançando agora o seu terceiro disco, que chama Corpos são feitos

para encaixar e depois morrer. Gostaria de saber de onde vem esse nome, essa ideia
e o porquê.

Esse nome vem de alguma coisa que li em algum lugar. Tenho o hábito de anotar ideias
ou criar versos a partir das coisas que leio e vejo, vou separando essas anotações mais
ou menos por tema e uso para as letras das canções que estou fazendo. Esse verso é de
uma canção que se chama “Anti-história”. Eu a compus para o disco de voz e violão que
gravei com o Marcos Campello. A ideia nesse disco com o Marcos era negar as minhas
maiores verdades. Ainda na época estava lendo o “Ensaio sobre os medos e os fins”, do
Viveiros de Castro, que trata da destruição ambiental do planeta. Fazia meses que não
chovia e a cidade estava muito seca, então eu estava mergulhado nesse mood
apocalíptico, ouvindo uns blues atravessados, como “Devil got my woman”, do Skip
James, direto. Aí, como na pré-produção do Corpos eu não estava conseguindo dar
unidade para o repertório, peguei a “Anti-história” e ela amarrou tudo, inclusive o verso
que dá nome ao disco. É a última frase que se ouve –  corpos são feitos pra encaixar e
depois morrer – e é a única canção em que toco violão; ela é diferente de todas as
outras, que são mais cheias de instrumentos. Um amigo me disse que achava esse verso
libertador. Eu acho bem o contrário, porque fazemos de tudo para nos fundir às pessoas,
mas seremos sempre sozinhos; pra mim isso é devastadoramente triste – sou religioso.

Como você vê a questão do corpo – pensando o corpo sobretudo em relação à


existência mesmo, à condição do ser, e ao amor?

Tenho a sensação de que a relação amorosa só pode acontecer pelo e com o corpo. Eu
agarro muito todos aqueles que amo. Fico me controlando para não ficar pegajoso. Para
mim, nenhuma ligação espiritual se dá sem o contato físico. Vi outro dia o filme Lion, o
menino indiano se perde com cinco anos da mãe e é adotado por uma família
australiana; depois de 25 anos, ele volta à sua cidade e reencontra a mãe na rua vindo de
um cortejo. Ele pega a mãe, beija, olha, abraça, faz carinho, pega a cabeça da mãe entre
as mãos, beija muito. Fiquei pensando nisso. Sem o corpo, essa história de encontro de
almas não cola. Outro filme é aquele Moonlight, no final é tão bonito quando o
personagem principal diz que nunca foi tocado por um homem. Fica aquela
ambiguidade de ser tocado sexualmente e de ser tocado literalmente, porque ele não
teve pai e porque o outro homem que representou para ele a figura paterna, embora
fosse carinhoso, era muito travado também. Esse filme passou pra mim essa mensagem
urgente para os dias de hoje, que é a necessidade de uma nova masculinidade; os
homens, sobretudo os héteros, precisam aprender a ter contato físico com outros
homens. Eu sempre fui muito abraçado e beijado pelo meu pai e sou até hoje. Eu
também agarro muito meu filho. Tenho certeza de que isso foi muito importante para eu
entender a minha sexualidade.

Seus discos têm vindo mais coerentes, mais redondos, na sonoridade, nos temas
poéticos e sonoros e no modo como você tem cantado.

Também acho isso (risos). Tenho aprimorado o gesto. O tempo passa e isso é normal, a
gente melhora. O fato de gravar os discos ajuda muito. Sempre senti que a cada disco eu
mato alguns fantasmas e aí já quero partir para o próximo. Sinto a gravação de um disco
como um espaço de experimentação. Porque vamos testando sonoridades, formações de
banda, as composições ficam melhores de um para o outro, porque você vai fazendo
cada vez mais, praticando. E o importante é caminhar. Não ficar ruminando um disco.
Se não conseguiu fazer exatamente da maneira que pensou, faz no próximo. Desde que
li alguém dizendo que o disco é um instantâneo do momento, comecei a acreditar nessa
história e fiquei mais relax. Isso não é um elogio do precário, mas uma mudança de
postura. Continuo sendo sério (risos). Entendi também que a dinâmica do nosso tempo,
em que colocamos tudo na rede instantaneamente, torna a produção um grande in
progress. Então, por que não fazer da evolução do seu trabalho fonográfico um processo
de construção junto com o público, exibindo todas as imperfeições? Não publicar hoje
em dia não faz muito sentido. E quem terá o protagonismo para escolher o que presta e
o que não presta não sou eu mesmo. Desde o Amarelo me sinto também mais
conhecedor dos meus temas – e isso só mesmo com o tempo passando e com as coisas
que acontecem na nossa vida. E para mim as coisas que vivo são as mais
transformadoras; me recolocam no mundo de uma maneira mais lúcida, concreta, parece
que minha existência cria lastro, não sei bem explicar. Mas é como se minha vida por
senti-la ligada de maneira profunda a outras vidas, redimensionasse tudo. E aí entendo
melhor meu lugar no mundo. Com o canto é a mesma coisa. Tudo misturado com a
reflexão sobre a música mesmo. No Amarelo, eu senti pela primeira vez que estava
escrevendo coisas que realmente eu sentia. Antes eu fazia letras ou musicava um poema
e estava em completa sintonia com aquilo, entendia o que estava sendo dito e o que eu
cantava, mas a partir de um certo momento, ultrapassou muito o âmbito da
identificação. Aquilo que eu cantava se tornou eu mesmo, a minha própria experiência.
Sem dúvida tudo se renovou, com uma aparência mais frágil e precária talvez, mas era
eu: não entendia só, sentia. E sentir é muito diferente de entender, é mais. O corpo está
aí quando a gente não consegue explicar. E por isso tenho a impressão de que hoje
quando não sou capaz de explicar alguma coisa, essa coisa é mais verdadeira, porque,
apesar do não entendimento, a força da intuição é inegável.

Fiz este comentário porque enxergo que algumas questões se repetem – mas se
repetem como questões, não como ideias prontas. Além do corpo, também o sexo e
o amor – como pecado e como prazer, um jogo muito fino entre as ambiguidades
desses termos, que são parte das nossas grandes buscas filosóficas e humanas.
Então, indo faixa a faixa aqui, o que você diria sobre a frase que abre É claro que
eu queria: “que hacer con el cuerpo”?

Esse é um verso de um poeta colombiano, Carlos Milán Patiño, e que tinha usado assim
de fundo, lido por uma amiga, a Aimée, na canção em parceria com ele, Milagros de um
dios menor, que gravei no meu primeiro disco, com a banda Isadora. O verso diz:
“¿como siempre, la duda es que hacer con el cuerpo?”. O engraçado é que no poema,
ele é literal, acontece um assassinato e aí vem a pergunta. Mas a Aimée gravou esse
trecho fora do contexto e assim sozinho ele ganha outra dimensão; uma pergunta muito
mais profunda. Enfim, lembrei desse verso, que acho deslumbrante, e o coloquei
abrindo o disco.

É verdade, as questões se repetem sempre, não as respostas, espero que continue assim,
porque conforme vamos envelhecendo, vamos ficando mais seguros e, dependendo,
pode ser a derrocada. Percebi depois essa mirada desiludida sobre o sexo. Eu não
planejei nada. Esse disco inclusive tive que gravar para o edital que ganhei. Mas ele me
revelou algumas coisas que não suspeitava. Uma delas é essa, que está em “a carne é
triste”, “todo bicho depois do coito fica triste” (que é uma corruptela da frase de um
médico da Grécia antiga) e o próprio nome do disco. Na turnê do Amarelo, passei por
uma situação que me fez pensar sobre isso. Fui fazer um show em Belém, que é uma
das minhas cidades preferidas no mundo, que tem uma energia que é muito dela. E lá
também, me lembro da primeira vez que eu tinha ido, uns dois anos antes, rola uma
tensão sexual no ar, uma permissividade muito espontânea das pessoas. Fiquei
encantado com isso. Mas dessa segunda vez, um menino que eu não conhecia foi tirar
fotos do meu show e depois me procurou no Facebook para me enviar as fotos.
Começamos a trocar ideia, fui ver as fotos dele, era um menino muito novo, tipo saindo
do colégio, e achei as fotos de uma beleza tão grande, retratavam o cotidiano dele e dos
amigos no que parecia ser a periferia de Belém. E tinha uma de uma festa na piscina
com as meninas extremamente sexualizadas, muito novinhas, e esse menino, que tinha
um lance – que parece ser de uma geração mais nova, que não dava pra saber se curtia
homem, mulher, os dois, ou talvez por isso não ser nem mais uma questão para eles –,
sua aparência também era andrógina... Mas as fotos eram realmente muito bonitas, com
muita sinceridade e uma forte intuição formal, além de um apelo de registro
antropológico, tipo juventude anos 10 da perifa de Belém. Minha impressão das cenas
não foi boa. Soma-se a ela que foi nessa viagem que passei o dia mais triste da minha
vida (uma ironia, já que numa cidade que amo tanto). Fiquei andando pelo centro
esperando meu voo que era de madrugada e nunca me senti tão sozinho na vida. Estava
no norte do país, com saudade de casa e com medo de morrer no avião, foi
desesperador. E aquele vento batendo forte no rio, os urubus planando em cima do forte
e dos barcos de pescadores. E era domingo, tudo agravava minha situação. E foi nesse
contexto – e me dou conta agora – de permissividade sexual de um lado e saudade de
casa do outro, que percebi o quanto o prazer sexual pode ser triste, utilitário, fetichizado
como é nas redes sociais, uma espécie de interiorização da lógica mercantil voltada para
o sexo, quando ele é e deve ser uma coisa ao mesmo tempo mundana e sagrada, como
são os rituais. Porque é afinal o encontro entre duas pessoas. Acima de tudo duas
pessoas, não dois pedaços de carne. Dessa forma instrumentalizada, o sexo fica
esvaziado de erotismo, viramos uns animais a serviço do capitalismo vulgar; eu sou
muito civilizado (risos).

Nessa letra, É claro que eu queria, tem muitos elementos dessa provocação geral
que tentei colocar. Porque ali o sexo está posto como o efêmero, o fugaz, como o
instante. E o instante, o que ele é? Pensando que você vai cantar em Cara que o
momento, como um acontecimento único de um presente, é um deus. Um deus que
baliza outro deus, o Desejo – e aqui em maiúscula porque o desejo está intrínseco a
esses grandes temas que estou tentando colocar como suas questões, presentes na
sua composição, na sua música, no seu som.

O desejo é a grande questão. Eu disse que sou religioso. E se é assim, sou pagão e
politeísta. E meus deuses são criados por mim, pelas coisas que acho que não consigo
reger. Normalmente, acho que posso ter controle sobre muita coisa. Mas como não sou
ingênuo, sei que não é assim. E sobre essas coisas que não consigo controlar, a tudo o
que desconheço, atribuo um valor sobrenatural. Sobre o momento, fiquei pensando
muito, dependendo, coisas podem acontecer e coisas podem não acontecer,
independentemente às vezes da nossa vontade. Acho isso incrível. E é claro que o
desejo é levado pelos enleios do momento, como você disse, está balizado por ele. Fico
me perguntando: e se não seguirmos nossos desejos? E se seguirmos nossos desejos?
Que diferença isso vai fazer na minha vida e na vida das pessoas que de alguma forma
são afetadas por mim? E a minha resposta agora é que devemos sempre que possível
realizar nossos desejos, claro, regido pelos deuses, sem forçar a mão, mas segui-los.
Assim, acredito que seremos pessoas melhores, realizados ou frustrados, conheceremos
mais a respeito de nós mesmos. Tudo é uma questão do que fazer com nossa liberdade.
Eu prezo muito pela minha e busco consequentemente fazer uso dela, porque acho que é
o único meio que tenho para o autoconhecimento. Aceitar ou não aceitar as coisas que
me são oferecidas para entendê-las, saber quem eu sou, o que estou fazendo aqui. Por
isso a questão do desejo é importante, nos constitui como gente viva. Como recusá-lo
em nome da crença em uma moral sem o conflito ético? Pra mim, que tenho dificuldade
em aceitar alguma vida além da que estou vivendo aqui agora, não faz muito sentido.

Ainda em É claro que eu queria, existe uma relação entre o particular, o pessoal e o
concreto com o universal. Quando você respira fundo depois de cantar o primeiro
verso, “é claro que eu queria você só pra mim” e depois exala cantando “mas não,
não podia pedir tanto / nosso lance era só sexo, eu sabia”, é como interpretar um
amante enfrentando conflitos internos, numa relação do amor e culpa por realizá-
lo, por ter evidências dele, como o cheiro. E tem a fragilidade… Você acredita na
diferença de percepção do homem e da mulher sobre esse universo?

Eu acredito muito na diferença entre homens e mulheres e acredito ainda mais na


diferença entre uma pessoa e outra. Desde que me casei e passei a dividir a vida diária
com uma mulher esse tema faz parte das minhas reflexões.

E por que dentro disso tudo surge, com força e suavidade, o coro que canta o verso
“não sou eu que vai lhe ver dormir”? Ver o outro dormir é um momento de
ternura, de se perceber acompanhado vigiando esse momento intransponível do
outro, o sono. Entendi que entre a efemeridade do prazer e a possibilidade de
duração do amor, o casal da letra zomba de deus e acaba quase que como sob o
castigo desse.

Eu acho sim que ver o outro dormir pode ser um momento de muito amor. Esse verso é
triste. Não penso em castigo, porque não penso, não considero o castigo divino como
possibilidade, embora faça todo sentido você dizer isso pra quem acredita, mas para
mim é simplesmente triste, porque a vida nos impõe restrições a todo momento. É
assim, a gente pode tentar realizar nossos desejos, mas algumas questões permanecem
sem solução. Aí entra a criação. Inclusive a criação da nossa vida. Pra mim, que busco
entender as relações com a maior lucidez que me é dada ter, reconhecendo o que há de
bom e de ruim, de alegria e de tristeza. O amor assim, que encara a realidade, deixa de
ser idealização para se tornar criação, porque é claro que sempre a imaginação entra em
jogo e projetamos situações, criamos imagens das pessoas para nós. Mas, se olhamos de
frente, sem subterfúgios, a relação amorosa deve vir a ser o trabalho de criação, um
aprendizado ético e moral, criação de novas formas de amar, inventadas a dois, a três ou
a quantos se quiser.

Em Sou frágil, tudo se complexifica ainda mais. A música é mais direta do que É
claro que eu queria e Meu bem, mas coloca essa linha homem – bicho – mulher.
Você sempre fala do seu interesse no mito do andrógino. Por que esse tema te
interessa?

Me interessa porque, como eu disse, desde que me casei e passei a conviver diariamente
com uma mulher, passei a pensar muito na diferença entre homens e mulheres. Eu
mudei bastante a partir dessa experiência. Como diz Rilke, para uma pessoa que soube
nutrir sua solidão e estar bem sozinha no mundo, quando encontra alguém com quem
por escolha própria quer ficar junto, um mundo novo é criado em nós mesmos a partir
da outra pessoa. Eu tive essa sensação e depois descobri essa coisa do Rilke. Achei
impressionante. Me tornei mais eu por causa de outra pessoa. Ou seja, até certo ponto,
abrindo mão de coisas que eu fazia ou de um jeito que eu era antes, só que por escolha
própria (ou por amor), acaba sendo uma ação também libertadora e de aceitação da
outra pessoa. Foi aí que percebi uma coisa que descobri a resposta recentemente:
percebi que a partir da vida a dois eu tinha passado a ser eu sozinho num modo
religioso, no sentido de não estar mais ao sabor somente das minhas vontades, mas de
ter que considerar uma outra pessoa, que por mais próxima que seja de você, sempre
será outra pessoa, insondável. Então, essa obrigação voluntária que é a relação amorosa
se torna um modo de viver religioso a partir da célula mínima do casal. Eu não tenho,
ninguém tem, como dar amor a todas as pessoas do mundo nesse nível. Por mais que
tenhamos compaixão e um sentimento de fraternidade pela humanidade, é um
sentimento impessoal, não conhecemos essas pessoas. O casamento me revelou isso,
como se eu estivesse fazendo a minha parte, porque estou fazendo por alguém. E daí a
razão para que cada pessoa ache o seu par ou os seus amores, a quem escolherão
entregar parte da sua vida.

Recentemente li um texto do Agamben e ele escreve a minha resposta, ele diz que,
quando amamos alguém, como que declaramos nossa fé na espécie humana. Então, o
mito do andrógino me interessa por causa disso. No início, diz o discurso, havia os
andróginos, ao mesmo tempo homens e mulheres, de duas cabeças, quatro braços e
pernas etc. Mas como castigo, porque quiseram desafiar os deuses, Zeus os cortou em
dois e a partir daí viveram sempre a buscar a parte perdida, “as metades da laranja”
(risos). No início, antes da criação, tudo é um todo indistinto, em que os opostos estão
conciliados, uma vez da criação acontece a diferenciação. É também assim, a seu modo,
na cena da expulsão de Adão e Eva do paraíso – também foram desobedientes, graças a
deus. A relação com os mitos, pra mim, é essa, eles explicam um sentimento que
sempre tive e tenho dessa nostalgia da unidade primeira, de absoluto.
 
Em que medida, nessa visão do humano em relação ao humano e à natureza, se
relacionam dor e prazer?

Em tudo há dor e prazer, há deus e o diabo. O meu disco todo foi regido por essa ideia,
a de encarar o sofrimento sem desviar os olhos, a dor, as energias atravessadas que nos
põe em crise. Daí o candomblé e a figura de Exú – o primeiro nascido, filho da mãe e do
pai primordiais, andrógino, elemento dinâmico, sexual, individualizador – me
ensinaram muita coisa. E tenho me permitido olhar de frente o horroroso e me sinto
mais conectado assim. O horror é o medo e a maravilha. Temos repulsa e somos
atraídos por ele ao mesmo tempo, como diz Octávio Paz.

O que é a morte pra você? Você pensa nela num sentido literal? Ou mais num
sentido figurado?

Já pensei muito na morte num sentido literal, não penso mais, porque não quero. Me faz
muito mal e não serve pra nada. Me deixa impotente. Isso aconteceu quando estava num
período de ócio não criativo. Me dei conta de que a melhor solução para não pensar na
morte desse jeito é viver. E viver, quero dizer, viver a vida prática, aparentemente
superficial, mas curtindo cada momento. E esse pensamento de morte, quando me vem
hoje, ele já vem transfigurado numa percepção aguda da alegria do momento, muitas
vezes no instante mesmo em que os estou vivendo. Desde os acontecimentos mais
banais aos mais importantes. Às vezes, pareço um velho no fim da vida, todo
contemplativo.

Sentir um prazer extremo é quase vivenciar a morte, é estar pendurado à beira de


um abismo das sensações?

Uso recorrentemente essa metáfora da morte como o orgasmo, que é um lugar comum,
mas, pensando agora, nunca tive essa sensação de morte no gozo. Morte, digo, como
deve ser a de verdade. Não sinto elas da mesma forma, vou parar de usar (risos). Viver
um prazer extremo não sei então o que pode significar, talvez uma necessidade de ser
absolutamente naquele instante, não saber mais de nada, esquecer quem somos. Mas
isso acontece também comigo, e aí não são extremos de prazer nesse sentido, quando
estou no palco ou andando na rua distraído, pode acontecer em rituais religiosos, na
meditação.

Você acha que depositar uma quantidade de prazer que vai aumentando e se
acumulando como energia é ter uma morte?

Não, acho que é vida

A carne pode ser triste? Aqui, de novo, penso numa ideia potente sobre a presença
do corpo no mundo.

A carne pode ser triste e pode ser alegre. Acho que ela é os dois. A carne pode ser triste
quando é só carne, é só o nosso corpo destituído de todo o resto que se chama espírito,
alma, seja lá o que isso for. A carne pode ser alegre quando todos esses elementos estão
juntos, num todo, quando através do corpo estamos nos reunindo com a gente e com os
outros em “um outro nível de vínculo”, para citar o nosso amado Caetano.

Entendi que você meio que nomeia, em Sou frágil, os extremos da sensação do
prazer e os momentos concretos dessa sensação: riso, grito, mordida, uivo. O que
precede, o que acompanha, o que finda, o que sobra no corpo de sensação, depois
do prazer/ realização do desejo. O que fazer com isso? – é a pergunta inicial do
disco. Como reviver desse momento? “a carne é triste e o amor/ um menino
brincando na minha barriga”

Reviver o gozo, só gozando de novo. Como isso fica na gente depois do gozo? Acho
que na sensação que marca a memória do corpo, nos reencontros que, também por causa
desses extremos de prazer, são renovados. Fica também numa criança que pode nascer.
Aponta para a duração, seja ela uma criança ou o início de uma relação amorosa.

Você regrava uma canção de Caetano Veloso, Tem que ser você, do Outras
Palavras, e que é uma letra que traz uma espécie de maturidade de um homem.
Uma certeza, uma escolha consciente, que é a escolha de poder escolher, que talvez
sacrifique o “sofrimento” (assim, entre aspas) do desejo que expande/explode para
todos os lados. E nessa canção Deus também aparece.
Deus está em tudo (risos). Caetano canta essa canção com voz bem grave, tipo machão.
Eu, como tinha percebido essa confusão de homem cantando no eu-lírico feminino que
já estava em várias músicas do disco, decidi cantá-la no falsete, depois dobrei uma
oitava acima para ficar ainda mais ambíguo. E muitas pessoas dizem que minha voz é
feminina. Na verdade, ela fica mais num registro entre um e outro, nem Ney, nem Tim
Maia, um registro andrógino.

“E homens, o amor-mentira pode ser tão bonito/ mas o céu do meu sexo/ tem que
ser você” – o que você interpreta aqui? E o céu, como fica, como fim, o céu como
absoluto, o céu como que é maior ou o ápice?

Me soa como sendo céu o absoluto. Nessa frase, “homens o amor-mentira pode ser tão
bonito”, eu ouço ecos do ensaio do Thomas Mann sobre o casamento em transição e que
sei que Caetano gosta porque ele usa no filme dele, o Cinema Falado. É a tendência à
estetização do amor homoerótico, uma vez que não tem a finalidade da procriação. Ele
chama aqui “amor-mentira pode ser tão bonito”. É bonito, não é mentira, ele sabe disso,
é porque a letra é toda querendo marcar a posição do macho, é meio caricata, de
propósito, tanto é que ele canta com aquela voz grave.

Você acredita em Deus?

Acredito na criação. Acredito nas pessoas. E que elas criam deus para que ele as possa
ter criado.

Qual a influência de Caetano, poesia e canto, nesse seu momento pessoal e


musical? Momento em que você parece afirmar uma direção, uma personalidade e
uma questão no seu trabalho. Digo isso porque está explorando desde Amarelo o
amor e suas sinergias com o corpo, o etéreo e o concreto.

Então, minhas maiores influências, as maiores, porque foram muitas, mas as maiores
são Djavan, desde que me entendo por gente, e, na juventude, Caetano. Passei muito
tempo sofrendo essa angústia da influência, mas agora não estou nem aí para ela. Minha
insegurança passou. Não fecho mais a porta quando eles vem me visitar. Os versos do
Caetano povoam minha cabeça e as coisas do Djavan estão tão entranhadas que já nem
sabia mais onde estavam, mas como voltei a ouvi-lo, começo a reconhecer tudo com
alegria renovada. Ouvi desde pequeno que deveria ser original – continuo achando essa
qualidade importante, mas não mais como um imperativo, quase uma impostura que
chegou pra gente nesses termos talvez da ideia do “novo” das vanguardas, e que pode se
tornar uma prisão, nos deixar angustiados, querendo sacar uma originalidade que está
dentro da gente, às vezes com um esforço intelectual. Sendo que essa originalidade só
pode ser buscada fora, indo ao encontro dos outros, imitando os artistas que a gente
ama, se tornando um pouco eles. Quanto mais o artista fizer isso, mais vai apontar para
a singularidade, e não com gestos fáceis, de “querer ser diferente”, disso eu tenho
certeza. A originalidade não é alguma coisa fácil, precisa ser conquistada, de esforço, é
um trabalho de vida, existencial. Tudo é a mesma coisa. A roupa que a gente usa, o jeito
de cantar e de compor. E quem não canta ou compõe, exibe seu estilo conversando,
andando, o estilo está em tudo, não precisa ser artista para ter um.

Fala um pouco dos seus parceiros de composição e de banda, o Exército de bebês.


Nesse disco de novo você grava outra música do Luís Capucho e tem uma parceria
com o Pedro Carneiro (Vovô Bebê), com quem você já se apresentou duas vezes
com o show Três Vocês.

Eu gravei o meu disco anterior, Babies, com o Exército de Bebês. Eu sou fã dos
meninos. Nos damos muito bem musicalmente, o som deles é o que eu curto. Além
disso, são educados, gentis e músicos super talentosos e sérios. Assim, estou bem
amparado (risos). E o que aconteceu foi que mal a gente fez o show de lançamento do
Babies no Sesc Copacabana, em maio do ano passado, uma semana depois já
começamos a ensaiar as canções pra gravação do Corpos, porque o edital dava um
prazo pra gente cumprir. Então, foi natural que seguíssemos juntos nesse disco agora
também.

O Capucho é uma grande influência recente. Me foi apresentado – a música dele – pelo
nosso amigo Marcos Lacerda e depois o convidei para participar do meu show no
Teatro Café Pequeno. Ficamos muito próximos. Estamos fazendo sempre alguma coisa
juntos. Eu tenho vontade de gravar quase todas as músicas dele. Um amigo me sugeriu
gravar um disco só com canções dele, mas em todo o disco tenho uma dele, então não
preciso. Eu regravei agora Eu quero ser sua mãe, deslumbrante. Só tenho a dizer que é
tudo lindo, é o compositor contemporâneo mais foda pra mim. Me emociono muito com
as canções dele e com ele cantando. Ele cria um universo próprio, quando a gente entra
ali é incrível. As letras e as melodias, tudo de uma sinceridade crua e muito comovente.
Eu o apresentei ao Pedro, que teve essa mesma impressão forte que eu e eles se
tornaram amigos também. Agora fazemos esse show juntos, o Três vocês, que foi
pensado pela Isabela Bosi.

O Pedro também gravou e co-produziu o Babies. Acho ele um puta compositor, já


achava antes de conhecê-lo pessoalmente, é uma pessoa com quem me sinto bem e
quero ter sempre perto de mim. Fizemos essa primeira parceria, que se chama Obs., eu
escrevi a letra. Disse a ele o que estava pensando com aquilo tudo e ele musicou
fazendo algumas alterações na letra para caber melhor na ideia musical. E, pensando
agora, ela conversa com Eu quero ser sua mãe, do Capucho. Basicamente foi uma ideia
obsessiva em que entrei pensando em como o homem que sente desejo sexual por
mulher quer entrar pelo mesmo buraco de onde saiu. Fiquei com essa ideia em loop
girando na cabeça, não entendia o porquê dessa circularidade, querer morrer onde se
nasce, querer entrar por onde saiu, não fazia sentido. A falta de sentido e a circularidade
estavam me dando vertigem. Estava lendo também o Mircea Eliade, que descreve
alguns ritos de androginização em religiões orientais e misturado a isso estava ouvindo
James Blake, que eu adoro, mas que me encheu o saco aqueles loops todos, aquela
repetição de máquina, e lembro de anotar no meu caderno, num momento de desespero,
que odiava música eletrônica, essa coisa de ficar ali repetindo exaustivamente. Nenhum
dos meus discos a partir do Amarelo têm loops, peguei aversão, foi também por causa
disso. Estou mais para o orgânico, para o corpo, como temos falado.

Fala de Cara, que é uma música totalmente pra cima, ainda que a letra seja mais
uma elucubração sobre o amor e seus desdobramentos esotéricos e morais. A
escrita tem uns lances de jogo de linguagem.

É uma letra bem poeminha mesmo. Tem umas repetições de sílabas, que surgiram
porque tinha a letra escrita e quis encaixá-la num groove que já existia desde a época em
que eu tocava com a minha banda Isadora. Aí peguei o arranjo instrumental da gravação
de um ensaio que tinha no youtube e fiz a letra em cima; depois, passei pros meninos do
Exército de Bebês. E aí, nesse caso, que é pra ser dançante, interessa muito mais o lance
sonoro, a repetição das sílabas dão ritmo pra música. Por isso rolou assim. É uma
cantada mal sucedida que se transformou em lição de moral despeitada.   

Por fim, vem “Anti-história”, a canção que tem o verso que dá nome ao disco. E
que tem uma batida no violão que acho que é muito característica sua (risos). E
com essa canção penso muitas coisas, como que de um lado tem o universal, na
humanidade; o particular, o seu filho que vai nascer; e no meio desses dois polos a
História, a democracia, sua decadência e seus sujeitos.

É, essa coisa de marcar bem o ritmo dando um peteleco no violão fui fazendo na turnê
do Amarelo, porque foi toda voz e violão, e como não sou instrumentista, sou
acompanhador de mim mesmo, fui pesquisando uma maneira de tocar mais livre, um
gesto muito influenciado pelo guitarrista Marcos Campello, meu amigo e de quem sou
fã. Hoje sinto que essa maneira de tocar também me ajuda a compor, porque define
balizas rítmicas entre as quais posso ir indo num flow jogando com as síncopes da
melodia. Quando eu estava gravando o Amarelo saquei que esse era o lance pra mim
(ouvindo Marvin Gaye), o ritmo bem marcado, a palavra e a melodia; e isso é o rap, é o
soul, a black music de maneira geral; é também João Gilberto e Nana Caymmi, minha
musa. Mas sobre a letra, como falei, estava negando tudo. E a democracia, ela não tem
um valor absoluto. Quando as pessoas falam em democracia, elas acham que se trata de
uma coisa boa em si. E é com esse argumento que os Estados Unidos justificam os
assassinatos no Oriente Médio. A democracia pode ser ruim. Já sabiam disso
Aristóteles, Tocqueville, Schumpeter e tantos outros. A nossa democracia, do jeito que
acontece, pelo voto único num representante de quatro em quatro anos, é quase a mesma
coisa que nada, nós não temos poder nenhum. Sem falar na falta de representatividade e
de mecanismos de controle. Eu acredito na democracia descentralizada e participativa,
com poder de deliberação. Isso é totalmente possível, mas não interessa, porque o poder
político está capturado pelos partidos. Odeio esse assunto. Quis dizer que a nossa
democracia cria essas figuras abomináveis mesmo. E que o amor é a anti-história, no
caso, o momento de suspensão do tempo, do gozo, do sexo, da fusão extática dos
corpos.

Agora tenho umas perguntas para você inspiradas nas entrevistas que a Clarice
Lispector fez, sobretudo na que ela fez com Vinícius de Moraes.

1. Qual a coisa mais importante do mundo?

As pessoas que amo.

2. Você ama o amor? Você ama mais o amor ou mais o corpo, veículo e ponto
receptor do amor?

Eu detesto o amor. Eu amo as pessoas que amo.

3. Como seu trabalho artístico se cruza com seu trabalho acadêmico? Você acha
que eles mais se complementam, no sentido de que as pesquisas de uma e do outro
constituem sua obra? Ou são coisas independentes, que em um você aprende, no
outro realiza; ou em um você “trabalha”, no outro você se expressa? Essas
diferenças existem pra você?

Descobri estudando o amor que ele não pode ser estudado. Tive uma aula sobre o
sagrado na literatura, uma aula ótima, em que lemos vários filósofos contemporâneos,
sobretudo franceses, que andam escrevendo sobre o amor. Sem querer diminuir os
trabalhos deles, muito pelo contrário, gosto muito de alguns, me senti um pouco ridículo
estudando um tema que deve ser e só dá pra ser entendido/sentido a experiência real.
Sem a prática, esses livros não fazem sentido. Assim como tudo o que leio. Se não
encontro ressonância na minha vida, aquilo é nada pra mim. Por isso tenho que declarar
meu amor pela Hannah Arendt, essa mulher incrível, que me ensina tanto a viver.

4. Clarice pergunta a Vinícius qual artista de cinema ele amaria. Queria te


perguntar qual artista (de maneira geral, poeta, escritor, músico, ator, diretor,
etc.) você amaria? Ou ama.

Se for a pessoa, eu não amo ninguém. Se for a obra, eu amo muitos: Caetano Veloso,
Luiza Neto Jorge, Antonioni, Clarice Lispector. Se for uma personagem, eu amaria a
Willie, papel da Hanna Schygulla no filme Lili Marleen, do Fassbinder.

5. Como você pensa (sua) música?

Eu penso minha música como uma parte de mim.

6. Se você tivesse que falar de uma característica sua, qual seria?

Li no meu mapa astral que não gosto que me decifrem; concordei e parei de ler na hora.

7. Você é uma pessoa alegre, triste, sozinho, completo...?

Sou alegre, triste, sozinho, completo.

8. Qual seu maior desejo com sua música? Você canaliza ela numa direção ou ela
flui em/com você? O que é uma canção ou uma música perfeita pra você?

Meu maior desejo é que as pessoas ouçam as minhas músicas. Eu faço para elas a partir
de mim. Não é só pra mim, nem só pra elas, tem que ter o elo. Uma canção perfeita é
aquela que ouço e fico emocionado. Ela fica vibrando uma aura de mistério.

9. Clarice pergunta pra Vinicius: “Você se sente feliz?”. Como você vê a


felicidade? Como um estado, como um momento, como um alvo (por exemplo,
quando dizem “meu objetivo é ser feliz”), como um equilíbrio precário (“precisa
que haja vento sem parar”) ou como diz enigmaticamente Badiou, como
“interrupção da finitude”?

É como aquela canção perfeita do Odair José, “Felicidade não existe. O que existe na
vida são momentos felizes”. Entre a dor e o prazer, estou sempre buscando a alegria.
Tento fazer por ela.

10. Uma música do Djavan, qual?


Doidice.

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