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Décio Rocha
RESUMO. Neste artigo, procedemos ao debate do conceito de produção de subjetividade segundo formulação de Guattari
(1985). Com base numa leitura do filme O homem que copiava, de Jorge Furtado, argumentamos a favor de uma abordagem
que privilegie os agenciamentos coletivos de enunciação, em substituição à concepção de um sujeito individualizado da
enunciação. Para tal fim, partimos da articulação entre saber e poder, numa ótica foucaultiana, para, a seguir, tematizar a
distância entre cópia e invenção; finalmente, o debate se centra na questão da subjetividade, enfatizando-se o que
denominamos “técnica de mosaico”, a qual deverá corresponder à fragmentação do sujeito como alternativa a uma ótica que
privilegie um modelo de sujeito cartesiano.
Palavras-chave: produção de subjetividade, saber e poder, agenciamentos coletivos de enunciação.
ABSTRACT. In this paper we intend to promote a debate on the concept of subjectivity production as it is proposed by
Guattari (1985). On the basis of some considerations about Jorge Furtado’s film “O homem que copiava”, we support the
pertinence of the concept of collective disposals of enunciation in substitution to the concept of an individual subject of
enunciation. Our discussion starts with Foucault’s approach to the articulation between knowledge and power; secondly, we
discuss the difference between copy and invention; finally the debate focuses on subjectivity, putting forward what we have
called a “technique of mosaic”, which will correspond to the fragmentation of the subject as an alternative to a Cartesian
approach to the matter.
Key words: Subjectivity production, knowledge and power, collective disposals of enunciation.
RESUMEN. En este artículo hacemos el debate del concepto de producción de subjetividades según la formulación de
Guattari. Con base en una lectura de la película brasileña O homem que copiava, de Jorge Furtado, argumentamos en favor de
un abordaje que privilegie los agenciamientos colectivos de enunciación, em sustitución a la concepción de un sujeto
individualizado. Para tal fin, partimos de la articulación entre saber y poder en una óptica foucaultiana, para, enseguida,
tematizar a distancia entre copia e invención. Finalmente, o debate se centra en la cuestión de la subjetividad, enfatizando la
denominada “técnica de mosaico”, la cual deberá corresponder a la fragmentación del sujeto como alternativa a una ótica que
privilegie un modelo de sujeto cartesiano.
Palabras-clave: producción de subjetividad, saber e poder, agenciamientos colectivos de enunciación. 1
* Doutor em Lingüística Aplicada e Estudo da Linguagem. Professor adjunto da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
1
O fragmento em epígrafe é o subtítulo do filme O homem que copiava.
• a “pesquisa” simulada pelo personagem André sabe que é vista, mas finge não sabê-lo, agindo
com o objetivo de responder a dúvidas acerca do como se fosse surpreendida pelas lentes de André.
tipo de música que prefere o personagem gordo que
ele vê de sua janela; Diversidade de linguagens
• a cortina japonesa oferecida como presente por O recurso a outras linguagens para além do verbal,
André a Sílvia, cuja característica paradoxal é que contribuem para inscrever o que se passa como
justamente a de simultaneamente proteger e história, é outro dispositivo de produção de saberes
desvelar a paisagem cobiçada, a saber, a presente no filme. Com efeito, os quadrinhos e os
intimidade do quarto de Sílvia; desenhos de animação parecem interferir
• a fechadura da porta do banheiro, que permite a amalgamando-se às imagens do filme, principalmente
Antunes o acesso (clandestino) ao corpo de Sílvia em cenas violentas nas quais vida e ficção se
enquanto a filha se banha. encontram: violência dos salários aviltados, dos sonhos
interrompidos ou gerados numa perspectiva de tempo
Modo de produção da narrativa muitíssimo dilatado, de realização quase impossível ou,
no mínimo, muito remota.
No que concerne ao recurso a uma técnica A presença dos quadrinhos produzidos por André,
específica de construção da narração – a narração em o ilustrador, é um elemento de fundamental importância
off assumida pelo personagem como instrumento para o não só para o registro do ocorrido, mas também para a
registro (e a inteligibilidade) do que ocorre na história antecipação de um dado episódio da história. A título
–, assiste-se inicialmente ao papel central de exemplificação, transcrevemos um fragmento
desempenhado por André. Sua voz em off é a prova representativo da função da linguagem que os
deste seu poder de “contar o que acontece” e quadrinhos ocupam em substituição ao real, e outro em
“apresentar um certo estado de coisas” que somente ele que os quadrinhos funcionam como antecipação da
conheceria4: história real. No primeiro caso, assistimos à violenta
A referida técnica de narração em off, reação de André diante de um colega de escola que ri
responsável pela produção de um modo de produção caçoando do protagonista quando este lhe diz que acha
de conhecimento acerca do real, a saber, a que o pai não voltará mais para casa:
instituição de um narrador “onisciente” (ou quase),
será posteriormente deslocada para um outro CENA 28 - ANIMAÇÃO
personagem: Sílvia. Com efeito, na cena 166 desfaz- Desenho animado. O pátio de uma escola,
se por completo a hegemonia de André que, até crianças brincam. André e Mairoldi estão
então, parecia ser “o único que vê”. Falência do sentados numa escada. André toma um
dispositivo de observação montado por André: refrigerante.
diferentemente do que pensava, não é ele quem vê ANDRÉ (VS): No outro dia, na escola, eu
tudo sem ser visto. Sua máquina disciplinar não dá disse para o Mairoldi, um gordinho que tinha
certo. Há outras “torres de observação” (a de Sílvia, uma mancha vermelha na cara, que eu achava
por exemplo). Quem vê quem? A câmera do cineasta que o meu pai não ia mais voltar.
funciona da mesma forma como um panóptico que ANDRÉ: Eu acho que o meu pai não vai
também não chega a cumprir sua função, exatamente mais voltar.
como no caso de André, que pensa ver sem ser visto;
Sílvia constrói para si um lugar em posição de mira, MAIROLDI: Ele viajou?
Crianças passam jogando bola.
ANDRÉ: É.
à entrada da loja, no caixa. Interrompe a leitura de
uma revista para dar uma olhada no espelho côncavo MAIROLDI: Quando?
pelo qual controla a loja. ANDRÉ : O nome do bolha ANDRÉ: Faz sete anos.
é seu Gomide. (...) A dona bolha se chama Maria. Só
aparece aqui na loja para ver revista e pegar Mairoldi sorri. Ri. Gargalha.
dinheiro. O nome do bolhinha é Rodrigo.” ANDRÉ: Ele começou a rir, a rir muito.
4
“ANDRÉ: O meu nome é André. Era o nome do meu
André quebra a garrafa de refrigerante na
pai. Foi ele quem escolheu o meu. Minha mãe me
cara de Mairoldi. Sangue, professores em
chamava de Zinho. Ele não gostava, só me chamava
pânico, ambulância.
de André. Depois ele desistiu (...)”.
ANDRÉ (VS): Então eu peguei uma garrafa da tarefa, isto é, do prescrito para a função "operador
e quebrei na cara dele. Ele ficou cego de um de fotocopiadora":
olho. Essa foi a parte da burrice.
André se afasta da escola. André prepara as folhas para a máquina. Põe
o papel na máquina.
ANDRÉ (VS): Foi meu último dia na escola.
Eles me expulsaram, e eu também não queria ANDRÉ: Quando o papel acaba, você abaixa
mais ir. este troço, tira esta gaveta e põe o papel.
Primeiro você solta bem o papel, para não
No segundo caso, transcrevo apenas uma grudar. É só segurar, dobrar, soltar. Segurar,
dobrar, soltar. Mais uma. Aí você arruma o
manifestação da presença da linguagem dos quadrinhos
papel e põe na gaveta. Põe a gaveta na
não mais para substituir o que se passa na história, mas máquina e levanta o troço. Aqui você
para antecipar um episódio violento (no caso, a controla a cópia, mais escura ou mais clara.
antevisão do assassinato de Antunes): (...)
cédulas falsas e, por conseguinte, máquina de “antevisão” de coisas que ainda terão lugar: repete-se o
atualização do desejo do personagem. que ainda não ocorreu.
Percebe-se que diferentes são as funções do ato de André, o operador de fotocopiadora, consegue ir
ver: vigiar, espreitar, controlar, comprazer-se, distrair, além da mera ação de fotocopiar: intensifica a
entorpecer, etc. O tema do olhar, absolutamente atividade de cópia a ponto de transformá-la em
recorrente no filme, encena o jogo entre o ver e o ser invenção. É o que se percebe na cena da fotocópia do
visto. Sejam quais forem o modo de atualização e a poema de Shakespeare (cena 18), na qual se apresenta
função desse ver, uma coisa é certa: trata-se sempre de um Mesmo em contínua superposição sobre o vidro da
uma visão camuflada, oblíqua, clandestina, que não fotocopiadora e cuja repetição – intensificada – será
pode se manifestar abertamente. produtora de algo novo. Com efeito, da repetição do
poema de Shakespeare resultam algumas positividades:
DAS CÓPIAS E DA INVENÇÃO no universo dos quadrinhos ilustrados por André, o
Em O homem que copiava, vemo-nos confrontados poema inspira a criação do nome de um personagem, a
a saberes que se tecem contínua e progressivamente, saber, a professora, que se chamará justamente ... D.
muito em função de uma força que neles atua – a força Hirsuta (palavra presente no poema e cujo significado
da repetição. O tema da repetição (ritornelização?) é André desconhece); o poema será ainda retomado e
uma tônica, não apenas se considerarmos o título do declamado por André para que Sílvia lhe explique o
filme, mas ainda o próprio subtítulo (“só a vida é que é dito; gerará ainda a ocasião de Sílvia oferecer
original; o resto é cópia”)5. como presente a André um livro de poemas de
Como dissemos, a repetição é aqui geradora de Shakespeare. Outras positividades decorrem
ecos ... e de invenção, uma vez que é capaz de produzir igualmente de diversas práticas de repetição, sendo
resultados imprevistos, originais. Esse parece ser o anulada a cisão entre aquele que apenas copia e o que
caso da relação entre a reprodução de um desenho (um produz, entre o operador de fotocopiadora e o ilustrador
triângulo listrado) sobre a fotocopiadora e a iniciativa e promotor de novas possibilidades de vida.
de André de inventar uma máquina de morte visando à Desse modo, contrariando a expectativa segundo a
eliminação do personagem Feitosa, com varas cravadas qual copiar corresponderia a reproduzir um modelo,
na areia, composição que praticamente reproduz as isto é, trabalhar sem grande invenção, a cópia ganha
listras que figuram no referido triângulo! O discursivo uma outra qualidade. Da mesma forma que a cópia não
(desenho impresso no livro) e o empírico (a morte na pode, sob a força da repetição, manter-se como mera
areia), a cópia (ou a ilustração) transformando-se em reprodução de um mesmo, tampouco a linguagem será
invenção. E mais: a produtiva “coincidência” entre a uma “reprodução” do mundo: o discurso não pode
imagem do livro e a armadilha montada já era “contar o que se passa”, isto é, “reproduzir o já
anunciada algumas cenas anteriores, mais precisamente ocorrido sob o modo do verbal”. Contrariamente às
na cena em que André, havendo seguido Sílvia até o expectativas do senso comum, a linguagem não copia o
trabalho, entrava em um café situado diante da loja e, real, mas inventa a vida. O problemático encontro entre
para passar o tempo, abria o açucareiro e cravava dois formações discursivas e não discursivas vem retomar o
palitos em seu interior, numa “intertextualidade de clássico tema da articulação entre texto e contexto.
imagens” que explicitamente se revela como Se a relação entre linguagem e real não pode ser
antecipação do truque a que recorreria André para uma relação de mera reprodução, compreendemos que,
eliminar Feitosa (o açúcar remetendo à areia e os no filme, o texto a que temos acesso seja tão-somente
palitos, às varas de madeira que atravessariam o corpo um ponto de vista, uma posição (sempre perspectiva)
do personagem). Vivencia-se uma experiência de de enunciador, e não o reflexo (a fotocópia) do que
aceleração (improvisada) de um certo "destino", de ocorre: o texto de André não pode se colar ao mundo,
isto é, não pode coincidir com a diversidade do que
ocorre. O que temos é a linguagem e as práticas de
5
Lembramos também a cena sempre recorrente da mãe de cada um produzindo realidade, produzindo efeitos de
André dirigindo-se para o quarto e repetindo: “Boa noite,
sentido que logo se revelam como tais ao serem
meu filho, vou me deitar. Televisão me dá um sono ...”.
Aliás, segundo depoimento extraído de Correio brasiliense confrontados a outro(s) ponto(s) de vista. O que nos faz
(fonte: verdesmares.globo.com, acesso em 04/08/05) “no imediatamente pensar nas qualidades do texto dialógico
filme, tudo é repetido pelo menos duas vezes. A única cena em Bakhtin:
que não se repetia foi cortada na edição final. O Cristo
Redentor aparece seis vezes. A Marilyn Monroe, umas O texto polifônico ou dialógico é um
dez”. conceito bakhtiniano que permite examinar a
questão da alteridade enquanto presença de invenção) de uma outra lógica, segundo a qual o
um outro discurso no interior do discurso. espectador verá frustrada sua previsão de punição (uma
(Amorim, 2001, p.107). previsão policialesca, é certo, e, simultaneamente, com
um certo sabor de "torcida" pelo sucesso de André)?
Por intermédio do referido conceito de polifonia, o O resultado é que não se descobrem os atos
que normalmente se reconhece como contexto da "ilícitos" praticados pelo protagonista. O que se
enunciação é colocado no interior mesmo do enunciado, descobre é a outra versão da história: André, narrador,
por meio de uma mescla essencial de vozes – vozes é capturado pelo olhar-armadilha de Sílvia. O
daquele que regularmente se considera como sujeito da espectador, que, de certo modo, temia a "punição" do
enunciação e vozes outras daqueles cuja enunciação é transgressor, o que resultaria na falência de todos os
captada no enunciado. "O extraverbal não é a causa seus planos de alcançar o sucesso almejado, é ele
exterior do enunciado e sim um constituinte necessário próprio "punido" e precisa reconstruir todo o
de sua estrutura semântica." (Amorim, 2001, p.107). entendimento da história. Com efeito, já sabíamos que
Ou seja: quando André supõe estar surpreendendo o André não era o único a exercer o olhar como forma de
real ao observar Sílvia da janela de seu apartamento, poder; Sílvia estava longe de ser um modelo de
quando o espectador pensa estar tendo acesso inocência como acreditávamos até um dado momento
exatamente ao que se produz no real, na verdade estão do filme e também exercia seu poder de ver (e fazer
apenas respondendo ao que Sílvia lhes permite ver e ver). O que não sabíamos ainda era desde quando vinha
dizer (ela "prevê" a situação). Parodiando Foucault, a se exercendo esse outro olhar. A resposta nos chega já
visibilidade torna-se uma armadilha ... para quem bem no final, quando é garantido ao espectador o
vigia!6 O voyeur passa a objeto visado pelo outro. acesso a uma outra narrativa, ou melhor, a um outro da
A cópia e sua intensificação num movimento que narrativa, a um outro olhar: Sílvia se institui como
leva à desterritorialização7 não deixam de produzir narradora da trama, revendo – ou ainda, repetindo de
efeitos que surpreendem, como podemos perceber em modo qualitativamente diferenciado – vários
algumas das “pré-visões” que invertem expectativas: momentos da história que "já conhecemos" (ou que
(i) surpreendentemente para André, o operador de pensávamos conhecer) sob a ótica de André:
fotocopiadora é o "sonho dourado" da vendedora
(Sílvia); (ii) não se concretiza a expectativa de que CENA 191 - APARTAMENTO DE SÍLVIA
Maria Inês "passará a perna" em André e em Cardoso, - INTERIOR/NOITE
fugindo com o prêmio da loteria; (iii) desfaz-se a
Sílvia de pijama, em sua sala, luz apagada.
expectativa de que a "mocinha frágil e angelical da Ela vê André na janela do seu quarto, de
história", Sílvia, não suportará tomar conhecimento dos binóculo.
atos cometidos por André (o voyeur, o assaltante, o
assassino, enfim, o fora-da-lei); (iv) desfaz-se também SÍLVIA: A primeira vez que eu vi o André
ele estava me espiando da janela do quarto
a expectativa (do espectador) de encenação de algo já
dele. Eu fui até a sala, no escuro, e vi que ele
anteriormente visto: a atualização dos "lugares estava na janela, de binóculo, olhando para o
comuns" de uma certa moralidade burguesa segundo a meu quarto.
qual, a qualquer momento, André será descoberto como
falsificador de notas, assaltante do carro-forte e
CENA 192 - APARTAMENTO DE SÍLVIA
agressor do policial, assassino de Feitosa, cúmplice no
- INTERIOR/NOITE
assassinato de Antunes.
Afinal, quem sairá vencedor: a reprodução Sílvia em seu quarto, desfila de calcinha e
(entenda-se: cópia) dos padrões vigentes de uma lógica sutiã.
que pretende manter "cada um em seu lugar" (André SÍLVIA (VS): Voltei para o quarto, abri uma
será preso, pois deveria resignar-se ao salário que fresta na janela, botei uma calcinha nova e
recebia e cancelar projetos incompatíveis com seu passei na fresta, bem devagar. Depois corri
baixo poder aquisitivo) ou a produção (entenda-se: para a sala para ver se ele tinha visto. (...)
‘outro’. A história é seu ‘outro’. O caçador vira presa As imagens de liberdade e autonomia que
(André sendo capturado nas redes de Sílvia). O voyeur inspiram nosso pensamento político operam,
é desde sempre o foco de um olhar outro. da mesma forma, em termos de uma imagem
Descentramento do universo relatado: a história é o que do ser humano que o vê como o foco
psicológico unificado de sua biografia, como
se passa e também é (ou pode ser) outra.
o locus de direito e reivindicações legítima,
Com base nos elementos apresentados, uma coisa como um ator que busca “empresariar” sua
nos parece certa: a trama a que assistimos é fruto vida e seu eu por meio de atos de escolha.
realmente de um agenciamento coletivo de enunciação, (Rose, 2001, p. 140)
pois, afinal, quem conta a história não é apenas André;
só aparentemente temos a narrativa de um ‘eu’ Eis, desse modo, a definição de subjetivação que
individualizado, André, já que Sílvia e suas artimanhas servirá de ponto de apoio às reflexões do autor: “A
é quem nos permite, por exemplo, que André a siga na subjetivação é ... o nome que se pode dar aos efeitos da
rua, fingindo que não o vê para que ele pense que não composição e da recomposição de forças, práticas e
está sendo visto. André-indivíduo é um misto de relações que tentam transformar – ou operam para
saberes e poderes. Em outras palavras, quando ouvimos transformar – o ser humano em variadas formas de
a narrativa sob a ótica de André (isto é, a narrativa que sujeito, ...” (Rose, 2001, p. 143).
atribuímos exclusivamente à individualidade-André), Entendendo que a mencionada composição e
estamos seguindo a narrativa que nos é possibilitada recomposição de forças pode ser traduzida por
também por Sílvia. E não só por Sílvia, mas também “processos de agenciamento”, fica clara a relação que
pelo que se cria nos quadrinhos, nos desenhos de tal definição de subjetividade mantém com a
animação, etc. O agente de enunciação é outro, é linguagem, a qual já é apresentada como um
plural, é algo de que, a princípio, não se desconfia. acontecimento necessariamente plural, isto é,
André ou Sílvia não são senão o lugar de uma incompatível com a idéia de um sujeito
conjugação de forças que permitem uma certa (individualizado) de enunciação: “... a subjetivação ...
visibilidade. O real transborda em relação ao que dele não é um produto nem da psique nem da linguagem,
é representado pela linguagem, num misto de Sílvia, mas de um agenciamento heterogêneo de corpos,
André, quadrinhos, enfim, num amálgama que ora vocabulários, julgamentos, técnicas, inscrições,
identificamos como agenciamento coletivo de práticas.” (Rose, 2001, p. 166).
enunciação. Como decorrência, uma pergunta que nos Desse modo, entendemos que, para o autor, é
parece justificar-se por si só: que outra(s) preciso focalizar
perspectiva(s) de narração / produção da história ainda
poderia(m) ser recuperada(s) sob a ótica assumida por não no que a linguagem significa, mas no que
esses dois personagens? ela faz: que componentes de pensamento ela
coloca em conexão, que vínculos ela
DA PRODUÇÃO DE SUBJETIVIDADE desqualifica, o que capacita os humanos a
imaginar, a diagramar, a fantasiar uma
O homem que copiava conta a história da falência determinada existência, a se reunirem em um
de toda e qualquer expectativa de identidades agenciamento (...) (Rose, 2001, p. 159)
definitivamente constituídas, sendo reafirmada a
pertinência do que poderíamos entender como Esse modo de pensar a subjetividade e a linguagem
identidades processuais. é sucedâneo de um certo modo de apreender o
Uma das grandes questões da produção de inconsciente como usina de produção do real, e não
subjetividade na atualidade parece residir no duplo como teatro onde se dá a "reatualização de fantasias
movimento de superação e de reinvestimentos múltiplos infantis ligadas às primeiras satisfações libidinais e
na idéia desse “eu” individualizado, se retomamos a articuladas ao desejo recalcado" (Naffah Neto, 1985, p.
reflexão segundo a qual "a dispersão conceitual do ‘eu’ 19), como seria o caso sob uma ótica freudiana, em que
parece caminhar em paralelo com sua intensificação o fantasma se prende à história individual do sujeito.
‘governamental’ " (Rose, 2001, p. 141). Ou seja, Com efeito, o autor desloca tanto "o Inconsciente
simultaneamente vive-se a crise da idéia de ‘eu’ quanto o fantasma do espaço psíquico para o espaço
("morte do sujeito") e se interpelam os seres humanos social" (Naffah Neto, 1985, p. 20-21), fantasma que se
como se fossem ‘eus’ imbuídos de uma subjetividade liga à pré-história do sujeito, a "restos de existência",
individualizada, voltados para a auto-realização, com "fragmentos de existência", e não a individualidades
uma identidade estabilizada: totalizadas (o pai, a mãe, etc.).
8
A idéia de “colagem” é do próprio diretor do filme, Jorge
CENA 55 - SEQ. DE MONTAGEM: Furtado, conforme se verifica em depoimento para o
TABLE-TOP + RUAS - EXTERIOR- Correio brasiliense (Fonte: verdesmares.globo.com, acesso
INTERIOR/DIA em 04/08/05): ‘‘A idéia principal do filme veio do
personagem André. Como ele tem uma visão fragmentada
Ilustrações da vida de Santa Cecília, na
do mundo, pensei em transformar tudo em uma grande
máquina fotocopiadora. Fachada da fábrica
colagem. Um filme que muda várias vezes de gênero e até
de móveis Santa Cecília. Igreja. de ponto de vista’’.
imprevisível; referências variadas a outras obras que individual quanto o social são atravessados por essa
também passam pela fotocopiadora de André, a mesma dimensão do coletivo, a qual se define como
exemplo de A vida – modo de usar, de Georges Perec, impessoal (isto é, situado para além e para aquém do
e o texto intitulado O impulso duplicador9. Uma pessoal); por extensão, o que se toma por individual ou
verdadeira bricolagem com “fragmentos recicláveis”. É por social é a representação da mistura de fluxos10 e de
preciso descobrir a vida por meio desses estilhaços, linhas de segmentaridade mais ou menos
construir um sentido, reunir textos que se apresentam territorializada.
soltos, distantes no tempo, no espaço, nos diferentes Os agenciamentos do protagonista do filme com o
modos de produção / circulação / consumo (quadrinhos, espelho, com a luneta, com a fotocopiadora, etc., são
desenho de animação, literatura, etc.), mas que produtores de determinadas configurações que não
prometem um sentido. É preciso inventar um sentido – estão presentes nem no personagem, nem em cada um
o sentido reconstruído nos quadrinhos (como obra de dos objetos per se11: tecnologias implementadas (modo
André) e também na narrativa de André. de operar uma fotocopiadora, um binóculo, etc.),
história do desenvolvimento das ciências (ressonâncias
dos espelhos curvos usados pelo matemático e físico
CONCLUSÕES EM MOSAICO grego Arquimedes já no século III a.C.; invenção da
luneta no início do século XVII pelo alemão Hans
Ao final deste percurso, cabe perguntar que Lipperhey, artesão fabricante de óculos; invenção da
balanço é possível fazer em relação aos objetivos fotocopiadora pelo físico americano Chester Carlson na
pretendidos. A partir de uma concepção de discurso primeira metade do século XX), máquinas desejantes
visto como ponto de cruzamento de saberes e poderes, em ação (atração por Sílvia, busca da fama e do
produtor de formas de existência, teremos avançado dinheiro), relações de trabalho opressoras (trabalho
significativamente no que concerne à explicitação do assalariado, salários insuficientes), novas
modo pelo qual a noção de agenciamentos coletivos de possibilidades de percepção do homem (técnicas de
enunciação ajudaria a pensar a produção de observação que expandem o universo observado), etc.
subjetividade? Até que ponto teremos obtido êxito na – eis a singular combinação de forças cujo resultado,
apreensão do modo de funcionamento desses ainda que individualizado num plano molar sob a
agenciamentos coletivos de enunciação por meio da “forma-André”, nunca deixará de ser uma produção
articulação entre saberes e poderes? coletiva, no sentido anteriormente indicado.
Em primeiro lugar, penso que a opção por
trabalhar com os saberes-poderes já anunciava uma Como vemos, esses “habitantes do plano molar”
incompatibilidade essencial com uma concepção de apenas dão conta das formas já codificadas,
sujeito da enunciação não coletivo, isto é, provisoriamente estabilizadas, e tal estabilidade é
individualizado. Por que razão? Porque a muito compatível com o que pode a linguagem quando
implementação de instrumentos reais de formação e de o objetivo é “informar”. Se, paralelamente às formas
acumulação de saber sob a ação de poderes só pode ser constituídas, assistimos ainda à
operada por dispositivos necessariamente coletivos. dissolução/recomposição das mesmas num plano
A respeito da escolha do termo “coletivo” para molecular, é porque sabemos que a linguagem não
especificar um dado modo de atualização de um apenas informa, não apenas desempenha uma função
agenciamento de enunciação (os agenciamentos representacional: ela também é capaz de outra coisa, a
coletivos de enunciação), lembro a reflexão de
Escóssia e Kastrup (2005), que indicam que o termo 10
Por fluxos entendemos aqui justamente os componentes
não pode ser identificado a “social” ou a (materiais, energéticos, semióticos, tecnológicos) situados
“interindividual”. O coletivo é uma dimensão que, aquém da individualização de sujeitos ou objetos e cujos
respondendo pelo co-engendramento do que se encontros, em combinações variadas, facultam devires que
denomina individual e social, vem denunciar a atualizam outras formas de sentir, pensar e agir.
11
inadequação do referido binômio, herdeiro de uma Eis o sentido de agenciamento apresentado por Escóssia e
certa tradição epistemológica de estudos sociológicos e Kastrup (2005): “agenciar é estar no meio, sobre a linha de
encontro de dois mundos. Agenciar-se com alguém, com
psicológicos da modernidade: com efeito, tanto o
um animal, com uma coisa - uma máquina, por exemplo -
não é substituí-lo, imitá-lo ou identificar-se com ele: é
9
O impulso duplicador é, na realidade, capítulo de uma criar algo que não está nem em você nem no outro, mas
obra de Daniel Boorstin, de 1987, intitulada Os entre os dois, neste espaço-tempo comum, impessoal e
descobridores. partilhável que todo agenciamento coletivo revela.”
exemplo do que Naffah Neto (1998) denomina Escóssia, L. & Kastrup, V. (2005). O conceito de coletivo como
linguagem-intensidade, ou ainda em consonância com superação da dicotomia indivíduo-sociedade. Psicologia em
Estudo, 10(2), 295-304.
o modo pelo qual Tedesco (2005) fala da relação que
os sujeitos mantêm com as práticas linguageiras: Foucault, M. (1977). História da sexualidade I: a vontade de
saber. Rio de Janeiro: Graal
Escrever não é narrar uma lembrança de um Foucault, M. (1986). Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal.
sujeito, não é descrever sentimentos pessoais, Foucault, M. (1987). Vigiar e punir. Petrópolis: Vozes.
pois a descrição da vida íntima, da forma
Guattari, F. (1985). Revolução molecular: pulsações políticas do
privada da subjetividade, em suas rotas desejo. São Paulo: Brasiliense.
redundantes, distancia-se da criação. Só é
possível escrever traindo a pessoalidade. A Naffah Neto, A. (1985). O inconsciente: um estudo crítico. São
Paulo: Ática.
escrita expressa não o sentimento de alguém,
mas o acontecimento, o indeterminado.12 Naffah Neto, A. (1998). Outr’em-mim: ensaios, crônicas,
(Tedesco, 2005, p.142) entrevistas. São Paulo: Plexus.
O homem que copiava (2003). [Filme-vídeo]. N. Goulart & L.
Como conclusão, apenas direi que a noção de Tomasi, Prods., J. Furtado, Dir. Manaus: Videolar.
agenciamentos coletivos de enunciação tem a Videocassete, 130 minutos, VHS, NTSC, son., color.
Legendado Port., Ing., Esp., Fran.
vantagem de nos permitir apreender pequenos
deslocamentos na multiplicidade de produção de modos O homem que copiava (2005). [Sinopse e roteiro do filme]. N.
Goulart & L. Tomasi, Prod., J. Furtado, Dir. Disponível em:
de subjetivação. Plano molecular de engendramento da
<http://www.casacinepoa.com.br>. (Acesso em 29/06/2005).
diferença, absolutamente compatível com a sutileza de
Oury, J., Guattari, F. & Tosquelles, F. (1985, 1ª ed.). Pratique de
um perfil de inconsciente como o que aqui defendemos:
l'institutionnel et politique. Vigneux: Matrice.
Lá onde existiria uma expressão unívoca se Rocha, D. (2005). Agenciamentos coletivos de enunciação e
afirmará uma polifonia da enunciação. É isso discursos midiáticos. Semiosfera, 8(5). Disponível em:
<www.eco.ufrj.br/semiosfera>. (Acesso em 18/072005).
o que para mim significa ‘fazer trabalhar o
inconsciente’. Não se trata simplesmente de Rose, N. (2001). Inventando nossos eus. Em T. T. da Silva (Org.),
descobri-lo, mas, em primeiro lugar e antes Nunca fomos humanos: nos rastros do sujeito (pp. 137-204).
de qualquer outra coisa, de levá-lo a produzir Belo Horizonte: Autêntica.
suas próprias linhas de singularidade, sua Tedesco, S. (2005). Literatura e clínica: ato de criação e
própria cartografia, sua própria existência. subjetividade. Em A. Maciel Jr., D. Kupermann, & S. Tedesco
(Oury, Guattari, Tosquelles, 1985, p. 82).13 (Orgs.). Polifonias: clínica, política e criação. Rio de Janeiro:
Contra Capa.
Veiga-Neto, A. (2003). Foucault e a Educação. Belo Horizonte:
Autêntica.
REFERÊNCIAS
Endereço para correspondência: Décio Rocha. Rua: Mário Coimbra Bouças, 10 bloco 2 ap. 501, Freguesia, CEP 22743-675,
Rio de Janeiro-RJ. E-mail: rochadm@uol.com.br 12 13
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Acredito que o que a autora diz acerca da escrita seja válido para toda e qualquer prática linguageira que consiga ir além do
plano representacional, independentemente do suporte eleito (escrito, oral). No caso, a ênfase na escrita parece justificar-se
pelo fato de a autora tratar, no artigo em questão, das relações entre literatura e clínica.
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Tradução nossa.