Racismo no Brasil e o papel ambíguo das redes sociais nesse contexto.
O racismo corresponde à ideologia de que existem diferentes raças que dividem a espécie humana, e que há uma superioridade de uma em relação a outra, resultando em discriminação. Inegavelmente, como comprovam dados de desigualdade social promulgados pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), existe no Brasil. Enquanto a população negra no país é de 53%, esta sobe para 76% entre os 10% mais pobres. Nas favelas, sobe para 72% dos moradores e nos presídios, para 62% dos detentos. Nas redes sociais, o comportamento racista também é observado facilmente, de modo a expor o problema de forma clara para toda a sociedade e indo de encontro ao mito da democracia racial, bem como vão dados estatísticos a respeito da sociedade brasileira que comprovam a existência do racismo no país. Casos como os ataques sofridos por figuras públicas como Taís Araújo ou Maju Coutinho, que tiveram seus perfis invadidos por racistas que as insultaram, são apenas exemplos de uma série de 55 mil denúncias que ocorreram no país em 2015, segundo dados da SaferNet. Ao se analisar os numerosos casos de racismo on-line, abre-se uma reflexão para um duplo papel das redes sociais no contexto do racismo, uma vez que também existe um lado positivo nesta exposição. Algo deve ser feito para que o problema do racismo regrida, tanto sua disseminação nas redes sociais quanto sua manifestação no cotidiano do brasileiro. Platão, em “Fredo” (cerca de 370 a.C.), narra uma história que explora a ambiguidade das tecnologias de maneira universal. Num diálogo, o deus Thoth apresenta ao rei Tamuz diversas de suas artes, entre elas a escrita, descrevendo-a como um mecanismo que auxiliaria a sabedoria e a memória do povo egípcio. O rei contesta, alegando que esta tornaria os homens esquecidos e presunçosos por confiarem demasiadamente nos livros, deixando de cultivar a memória. Analogamente, do mesmo modo que a escrita é ambígua por auxiliar na lembrança mas prejudicar a memória, as redes sociais podem servir tanto como um espaço de propagação quanto como um espaço de combate ao racismo, possuindo, portanto, um caráter ambíguo. Se, por um lado, diversos comentários racistas foram feitos em bando na página do Facebook da jornalista Maju Coutinho em julho de 2015, por outro lado uma grande campanha de solidarização com o signo #SomosTodosMaju foi lançada. O episódio, portanto, evidencia o caráter ambíguo da rede social no contexto de racismo. Em “A Ordem do Discurso” (1970), o filósofo Michel Foucault assume que a sociedade possui mecanismos de controle que excluem do indivíduo o poder discursivo, selecionando aqueles que o detém. Nessa ordem, então, as indagações e falas de um cidadão comum estariam restritas a um plano privado e individual. Com o advento da Internet e da rede social, porém, transfere-se à esfera pública os comentários e ações dos internautas, quebrando com a lógica até então presente. Além disso, o espaço virtual confere anonimato e sensação de impunidade, o que encoraja os infratores a fazerem uso deste para propagar o racismo. Deste modo, a ampliação do poder discursivo para maior parte da população tem como consequência a exposição de problemas presentes em uma sociedade racista que antes não eram vistos, uma vez que, como diz Paulo Rogério Nunes, o mundo on-line é um reflexo do mundo off-line. Por outro lado, ao mesmo tempo em que as redes sociais ampliam o discurso racista, também ampliam o ativismo negro e os movimentos de inclusão social, visto que ambos estão presentes na sociedade. Sendo assim, ao quebrar-se a lógica foucaultiana da ordem do discurso, abre-se um espaço de convívio mútuo tanto da disseminação do racismo quanto de seu combate, criando-se uma ambiguidade. A visibilidade da discriminação racial conferida pelo aspecto público e viral da Internet desmitifica o conceito de “democracia racial”. Por muito tempo, acreditou-se que o Brasil era um exemplo de país onde o convívio de diferentes etnias se dava em harmonia e que não havia altos índices de discriminação quando comparado a outros países. O sociólogo Gilberto Freyre, considerado como o criador da expressão, analisa em seu livro “Casa-Grande & Senzala” (1933) o convívio entre Senhores e escravos, estabelecendo uma relação de interdependência e proximidade entre brancos e negros. A esse fator, aliado à miscigenação que culminou na chamada “mistura de raças”, atribui-se a formação da família e do povo brasileiro como partes constituintes de uma sociedade não racista e executora da democracia racial. As redes sociais, no entanto, contribuem para classificar essa visão como mentirosa, uma vez que é possível observar mais facilmente as ações e pensamentos discriminatórios, bem como a tensão gerada quando setores sociais se posicionam contrários a estes. Assim, a ideia do Brasil como um exemplo mundial para o aspecto étnico é facilmente desconstruída pela ascensão do mundo on-line como espaço público de comunicação e reflexo do cotidiano do brasileiro, o qual convive com racismo em todas as instâncias da sociedade. As redes sociais refutam, portanto, o mito da democracia racial. Em contrapartida, ao mesmo tempo em que a disseminação do preconceito pelos meios virtuais contribui para a visualização do problema existente, também pode servir de exemplo para que outros cometam o mesmo crime, fazendo com que este aumente. Assim, medidas devem ser tomadas para combatê-lo. Cabe às empresas como Facebook, Twitter, Whatsapp e outras redes sociais criar mecanismos de denúncia e censura de atos discriminatórios, de modo que qualquer publicação desta natureza seja facilmente identificada e encaminhada à Justiça. Já ao Estado, cabe garantir o funcionamento dos princípios previstos no Marco Civil da Internet (Lei 12.965-2014) de respeito aos direitos humanos (Artigo 2, inciso II) e à pluralidade e diversidade (Artigo 2, inciso III). Contudo, a lei ainda é falha ao afirmar que os provedores só são responsabilizados por ações de usuários após ordem judicial, o que dificulta a censura imediata do conteúdo criminoso veiculado on-line. É necessária uma revisão desse artigo, incluindo-se o racismo aos casos excetuados (como a publicação de pornografia ou nudez explícita) em que a empresa pode excluir o material sem precisar de uma incitação anterior. Uma vez identificados os agressores, deve-se punir judicialmente, aplicando-se a pena prevista em lei para racismo (de um a cinco anos de reclusão), sendo imprescindível tal aplicação. Ainda é importante uma atuação forte do ativismo negro de forma a expor ainda mais o fenômeno e buscar conscientização da população a respeito do problema e seu consequente emponderamento. Páginas no Facebook, levantes e comunidades devem atuar firmemente no combate, sem cessar. A página Levante Negro”, por exemplo, publica diariamente vídeos e textos a fim de emponderar seus leitores e problematizar a questão. Por fim, é de responsabilidade da família conversar e educar os filhos, gerando consciência sobre o problema do racismo e criando indivíduos que busquem combatê-lo, e não disseminá-lo. Tais medidas são fundamentais para o combate não só nas redes sociais, mas também contribuem para a formação de cidadão mais respeitosos e harmoniosos em todas as vias de interação social. Deste modo, conclui-se que o papel ambíguo das redes sociais deve-se a ampliação do poder discursivo do indivíduo conferida por estas e a característica de espelharem o mundo off-line. Assim, há uma dualidade à medida que cresce a exposição do preconceito bem como seu combate no mesmo espaço. O racismo nas redes sociais, portanto, deve ser combatido, em um conjunto de ações que agregue as empresas, o Estado, o ativismo negro e a família em união. Só com uma sociedade unida e emponderada em prol da igualdade racial é que poderemos, num futuro, pensar em uma democracia racial no Brasil. Por enquanto, ela é mito.