Você está na página 1de 16

ÉTICA E AUTENTICIDADE – Da moral do dever à moral do apelo

A obrigação, o dever, e a exigência são condições de valor idêntico no


pensamento de Sartre. Erguem-se nestas palavras as convexas cedências que nos são
tão familiares; tão próximas ao dever das gentes; tão radicadas na velha moral kantiana.
Contudo, e se bem compreendemos o autor, o que falhámos em ver, é que estas morais,
ao serem postuladas, cultivam o inverso daquilo que evocam 1: ao exaltar a autonomia
da vontade, condenam ao exilio o próprio ser; provocando e limitando-o a uma
dimensão totalmente heteronómica2; na afirmação do dever, como valor absoluto, a
priori, limitara-se a realidade a apenas um “tipo de relações humanas e sociais”,
retirámos, assim, a capacidade de explorar “como a criança que brinca, que ao fingir ser
um empregado de mesa [explora o corpo e o espaço] fazendo do jogo um tipo de
marcação do terreno e investigação”3, do real e de si (realidade). Limitamo-nos,
imitamo-nos a ser livres, Um através do Outro, conquistamos a liberdade 4, mas
tornamo-la dependente da exigência, dependente do meio “como instrumento necessário
do fim a realizar”, dependente do Outro. Esta inflexão justifica-se num ponto
fundamental em L’Être et le Néant: a alteridade é uma maldição. Esta é a premissa que
viabilizará a rejeição todas as morais do dever por parte de Sartre.
O dever. O dever segundo a visão da
fenomenologia da ação, contrasta, naturalmente, com uma finalidade ou com um valor,
pois não é o correlativo do empreendimento; no qual encontro o fim e o valor da própria
operação, desvelando-a livremente às notas do querer, da espontaneidade, largadas à
(in)genuinidade; pois, em contraste com a espontaneidade, o dever revela-se, alheado,
fora dela ou contra ela, a instabilidade é o que “encontro [e] em vez de a sustentar” é
ela que me sustentará5. Assim, o dever, independentemente da finalidade e do valor que
possa gerar, é conexo à ação sinteticamente, deixando em suspenso o campo analítico,
(im)próprio e genuíno: o movimento é exteriormente imposto à minha vontade. E, por
ser outro que não eu, o dever6, causa estranheza, mal-estar, pois, essa vontade exterior,
não é o fim a realizar, mas uma representação, uma imposição que se fina e “que me
1
Liberdade.
2
Normas de conduta externas (de fora).
3
Pág. 59, ser e o nada, versão kindle.
4
Reversamente, esta também nos conquistou.
5
O medo (instsbilidade-desconhecido).
6
Um meio que não um fim em si mesmo. i.e.: eu devo fazer a tese para obter o grau de mestre vs. eu
faço a investigação e escrevo no word os textos (fim e si mesmo).
transforma em névoa”; ao ser exteriormente determinada a decisão de realizar
determinado fim, o fim-em-si torna-se o fim do Outro; e assim, na transcendência do Eu
pelo Outro o primeiro torna-se no objeto do segundo, torna-se alienado dos seus
próprios fins-em-si através da vontade do Outro. Esta alienação, para Sartre, é o
supremo mal da consciência humana. Um golpe brutal na consciência por ser em
simultâneo alienação e “violência interiorizada”; é neste sentido que Sartre estuda e
contrasta o olhar que o Outro me dirige: “Na medida em que me introduzo no circuito
da exigência-fim para fazer meu o seu projeto e na medida em que eu não sou mais que
este projeto, só a exigência se distingue em mim, negando que ela seja eu – exatamente
como o Outro que me transforma em névoa pelo seu olhar.Contudo, eu não sou o outro
que me olha”. Também em, L’Être et le Neánt, Sartre escreve, a propósito destas
vontades exteriores e alienantes: “Apreendo o olhar do outro no seio do meu ato, como
solidificação e alienação das minhas próprias possibilidades”, no olhar do outro está
uma posição que carrega o meu ato, que julgo que julga, e me condena uma alienação
de mim próprio e de si mesmo. A liberdade alienada pelo dever é progressivamente
alimentada pela visão do Outro-em-si. Esta alienação que subjaz à obrigação transforma
e enforma o Eu num “instrumento inessencial”, num objeto, em relação a fins
incondicionais a realizar no mundo: o homem torna-se “alienado pelos seus próprios
fins”, ou seja, objetivado. Assim, em Sartre, as morais, condição e obrigação, são em
última análise uma representação da vontade do Outro: na moral que obriga, a liberdade
torna-se alienada devido a uma escolha, a priori, orientada para um fim, para-si, que é
lhe é estrangeiro em-si. Porém, as morais da obrigação continuam a manter um mundo
ético, contudo, falham em fazê-lo surgir7, enclausurando o ser numa cela materialista
construída através do seu próprio idealismo.

O apelo - “o apelo é sobretudo o conhecimento da diversidade”

7
Faz surgir ao invés de implementar.
Contudo, que alternativa pode existir ao dever, à obrigação? Sartre apresenta a
moral do apelo e da generosidade como opção à obrigação, o que ficaria a depender da
vontade do Outro em colaborar comigo, condicionado, nas palavras de Sartre, à
“conversão do indivíduo à liberdade”; esta distinta forma seria a autenticidade, uma
alternativa possível à forma-obrigação;
Liberdade, a essência da vida do indivíduo, que, como ser-no-mundo, está
perpetuamente em situação; a autenticidade compreende esta medida, esta ligação
bidirecional, este estilo ignorado pelo dever; a obrigação, encarna ou é encarnada no
Outro, surge “um outro em mim que recusa ter em conta a situação, os projetos, a
temporalidade, os meios; um outro repete incansavelmente: ‘não quero saber’” da tua
vida! a obrigação aliena a ação autêntica, melhor, evita a ação autêntica. Conforme
exposto por Sartre, o apelo, abre uma brecha nas comuns morais do dever, num sentido:
“O apelo é o pedido de um a outro de qualquer coisa em nome de qualquer coisa. A sua
estrutura é, portanto, do tipo da exigência. Só aqui começam as diferenças: o apelo é
reconhecimento de uma liberdade pessoal em situação por uma liberdade pessoal em
situação”. As morais do dever ignoram por esta via o real viés do sujeito moral; a
autenticidade, em contraste com este, apela ao concreto, o “apelo é desvelamento de
uma situação e é na base deste desvelamento que espera inclinar a vontade do outro para
querer aquilo que ele quer”. Destacando-se que “o apelo é sobretudo o conhecimento da
diversidade”, em que ao compreender o outro, compreendo os seus objetivos e a sua
realidade; compreendo de natureza livre; ao dirigir-me a uma pessoa, a apelar a ela,
interagindo com ela numa situação concreta, tenho à partida “uma compreensão pró
ontológica da liberdade do outro através da minha liberdade”. As duas livres vontades
podem dinamizar-se pelo livre reconhecimento dos fins do Outro; estas vontades livres
coordenar-se em simultâneo numa postura de autenticidade, superando a alienação,
“pois ele (o apelo) reconhece-me como querendo livremente o fim que quer, mas
querendo-o para ele; assim, leva livremente a minha vontade para o fim que ele quer
livremente”.
Contudo, recorrendo à moral do apelo como alternativa à moral do dever, Sartre8
fica estranhamente próximo do modelo da exigência; pois, ao identificar o critério moral
com a espontaneidade do para si, tornou este quadro moral desprovido de tela, ou seja,
sem uma base fixa. A este nível o autor ficara aquém de clarificar a matriz do apelo,
para o que aqui gostaríamos de comentar. E, talvez por isso, a forma de apelo
desenvolvida por Sartre, independentemente de pretender suprimir o dever, torna-se
ambígua; porque, ao revelar-se meramente teórica, tal como apresentada nos Cahiers,
pinta apenas o quadro da situação perfeita: aquela onde cada um, genuinamente, aceita e
colabora na liberdade do Outro, sem no decurso sacrificar a sua própria; ainda que como
ideal teórico, Sartre, ao acolher esta situação, reconheça que em oposição existe,
realmente, uma dimensão do conflito e da recusa, o apelo reconhece ao outro o direito a
recusar-se, quebrando assim a minha liberdade; é a ambiguidade do apelo que garante a
liberdade, mas que também afiança a sua quebra.
Sartre viu defendida a sua tese, viu-a, no entanto, a ser
defendida num campo onde o próprio evitava jogar, num campo estritamente formal e
de matriz kantiano: “de modo que o apelo em si mesmo, sendo relação de pessoa a
pessoa, contem o esboço de um mundo onde cada pessoa poderia fazer apelo a todos os
outros”. A universalidade do apelo é, portanto, um critério para a moral; apelo, da
minha livre vontade à livre vontade do Outro, em que qualquer diferença é superada,
elege a liberdade em princípio formal e universal da moral: o apelo é dirigido a todos os
indivíduos; é dirigido a uma livre vontade, e válido para qualquer liberdade no mundo, é
incondicionalmente livre. Parece, pois, que, em Sartre, a teoria do apelo ficaria
condicionada à universalização do apelo, que por sua vez, seria constituinte de um
critério moral: quem é autêntico tenderá “para um mundo humano onde todo o apelo de
cada um a cada um seja sempre possível”. Contudo, o apelo ficara-se pelas intensões,
pelo exercício teórico, pois Sartre, ao exorcizar os imperativos do dever, evoca como
núcleo um agente potencialmente particular que é ao mesmo tempo condição e
limitação universal: a noção de que o apelo tem de estar disponível para aceitar a
recusa; Sartre diz: “[…] reconheço que o meu fim deve ser condicional para o outro
como o é para mim. Quer dizer isto, que deve ser sempre possível ao outro recusar o
auxílio se os meios utilizados para me ajudar alterarem os seus próprios fins”.9

8
Tal como exposta nos Cahiers.
9
Assim a é toda a moral. i.e. Um budista mataria um animal para salvar outro? Um médico deve matar a
pedido do paciente?; toda a moral depende criticamente da intenção.
Porém, independentemente dos seus fins a recusa do Outro compromete os
meus: “Assim, a recusa faz aquilo que nenhuma violência positiva, aquilo que nenhuma
exigência pode fazer: viola-me na minha liberdade, é uma mão mágica que vem mudar
a ordem interna dos meus projetos”. A exigência evita esta questão, esta mágica, pois
tenho a opção de contrariá-la opondo-me a ela, contrariamente à recusa que tenho de ver
a esgotada e esmagada na mão opositora do Outro. E, através da recusa como através do
dever, o Eu é novamente enformado e formado em “coisa agida de fora”, o Outro
“viola-me na minha liberdade”, no meu querer; ao me ver contido a Ser outro que não
Eu a pior das violências toma lugar, a violência externa é a interna, a autoinfligida. Pois,
poder-se-ia recorrer ao apelo exaustivamente, fazer a recusa escapar ao campo do
impossível através do inesgotável apelo; contudo, no fundo o Ser reconheceria que a
recusa é fundada em razões livres, Suas e do Outro, a “livre preferência” ou preferência
absoluta; motivada por razões próprias a escolha é absoluta: a recusa é absoluta, é
manifestação de uma preferência única, singular e pessoal. Consequentemente, da
recusa do Outro fundada e fundadora da minha liberdade resulta “uma impossibilidade
de prosseguir os meus próprios fins”; com a liberdade em mente, Sartre, recorre ao
apelo, contudo, e de revés, este voltara-se contra o próprio autor, se a obrigação causa
conflito através da condição da liberdade, a recusa ao apelo acusa a mesma falha: ou o
Sou condicionado ou condiciono-Me.
Conflito - “Originalmente cada um é um opressor enquanto Outro, oprimido
enquanto ele mesmo”

O que vem reafirmar uma vez mais as teses de L’Être et le NéantI, referentes à
intersubjetividade: a predominância do conflito de liberdades. A recusa que gera o
conflito pertence ao conflito que gera a recusa, “A reação provável à recusa será,
portanto, destruir, não a própria recusa que não é nada, mas o homem que recusa. A
recusa, porque irremediável e incondicionada, arrasta a ação por todos os meios, isto é,
à violência”; o núcleo das relações entre indivíduos, ao invés do Mitsein10 de Heidegger,
é o conflito11; já nos Cahiers temos objetivamente a concepção da alteridade como um
pesadelo, “A alienação não é, com efeito, a opressão. É a predominância do Outro no
par do Outro e do Mesmo”; que ao encontrar a recusa, no seu olhar, na exteriorização da
Sua livre vontade, aí descobre a inevitável destruição deste. Compreende-se, assim, que
a moral do apelo, vislumbra um plano ético algo vertiginoso, encurralado entre Si e o
Outro, como um acrobata que ao percorrer a linha ficaria sempre a um salto da
plataforma que o salva ou condena. A luta pela liberdade joga-se na tragédia de uma
realidade orientada pela incoerência?
O Outro nunca será um interlocutor apropriado, o seu
viver será sempre um catalisador de alienação sobre o meu, sobre a minha livre vontade.
Várias passagens nos Cahiers confirmam com maior nitidez e profundidade, esta
concepção da alteridade: “A alienação não é, com efeito, a opressão. É a predominância
do Outro no par do Outro e do Mesmo”. A alienação que dá bases à opressão, resulta,
em resposta, nas relações entre os sujeitos, em opressão recíproca: “Originalmente cada
um é um opressor enquanto Outro, oprimido enquanto ele mesmo”. Sartre esclareceu
mais tarde, numa entrevista cedida a Levy, em fevereiro de 80, que esta opinião era, no
entanto, o resultado de um mal-entendido sobre o que era a presença do Outro: “Deixei
cada individuo independente demais na minha teoria do outro em L’Être et le Néant. Fiz
algumas perguntas que mostravam sobre um novo aspeto a relação com outrem. Não se
trata de dois todos fechados, sobre os quais se perguntava como entrariam em contacto,
pois estavam fechados. Tratava-se de uma relação de cada um com cada um precedendo
a constituição do todo fechado ou mesmo impedindo que esses ‘todos’ de serem

10
O indivíduo "interage" com o Outro, contudo este interagir tem um estatuto especial, no sentido de,
ser um modo de relação em que a presença de si relaciona-se com outros seres dotados do modo de ser
da presença de si. O homem "leva" sempre consigo uma referência a outros homens, o "ser-com"
(Mitsein) é um modo de ser básico do ser da presença de si.
11
Sartre, em L’Être et le Néant.
fechados. Portanto, eu encarava alguma coisa que era preciso desenvolver. Mas, apesar
de tudo, achava que cada consciência em si, cada individuo em si, era relativamente
independente do outro. Não tinha determinado o que tento hoje determinar: a
dependência de cada individuo com relação a todos os indivíduos”. E depondo todas as
mediações pelas quais a livre vontade do Outro possa realizar-se a ela mesma e unir-se à
minha, a moral do apelo, conduziria ao conflito; o conflito banalizar-se-ia solidificando
um teto para todo o género de anti violência, transformando o homem num objeto
inessencial; ao negar o Outro, a subjetividade transforma-se em conflito: “Apreendo (o
meu empreendimento) a sua contingência mas também como um absoluto insuperável,
inultrapassável, que tinha o seu carácter absoluto daquilo que é querido como se quer.
Assim, posso dizer também que não terei nunca ninguém que testemunhe contra mim e
que eu sou a minha própria testemunha”. Testemunhámos de L’Être et le Néant até às
últimas entrevistas de Sartre o atrito da comunicação entre as consciências e a sua
interdependência: paradoxalmente a alienação que as podia unificar era a mesma que as
conduzia à destruição12. Excluindo todo o Outro, a subjetividade transforma-O em
desconhecido, e o desconhecido gera medo, e o medo, conflito; assumindo todo o
Outro, a objetividade do Outro transforma-Me em desconhecido, e novamente, o
desconhecido gera medo, e o medo, conflito.

Liberdade – a conquista do (des)conhecido

12
Se me considero só a mim destruo o outro (alieno-o), se o considero a ele destruo-me a mim (alieno-
me).
Sartre, em L’Être et le Neant, ao pensar a liberdade tratou unicamente do estado
“de queda”, conservando para os Cahiers diversas teses que flexionam a liberdade num
sentido contrário; nos Cahiers, Sartre conserva uma extensa presença para a sua tese da
conversão moral; diferente da “conversão” que estamos habituados a conhecer; a
transmutação da alienação à autenticidade estabelece uma ligação alternativa entre o
que existe e o que é: “Este tipo particular de projeto que tem a liberdade como
fundamento e como fim merecia um estatuto especial. Diferencia-se, radicalmente, com
efeito, de todos os outros enquanto visa um tipo de ser radicalmente diferente”.
Contudo, os comentários de rodapé inseridos nos Cahiers, referentes a uma
configuração não parabólica da liberdade, são um produto antitético da ontologia de
L’Être et le Neant; esta ontologia de rodapé é a “ontologia de antes da conversão”. A
tese da conquista da consciência no seu estado pré-prático encontra-se conexo, a L’Être
et le Neant, assim como em La Transcendance de l’Ego, à tese da reflexão pura. Em
L’Être et le Neant, Sartre fizera um tratado da existência livre e é pela liberdade que
surge, então, a questão da conversão; é com a temática da conversão, que Sartre intenta
aclarar a condição de possibilidade de toda a moral; neste sentido, a teoria da
conversão anexa-se ao campo de uma filosofia moral, de uma moral ontológica, jamais
praticada; neste plano a moral é imaginada como uma hipótese que o indivíduo
concretizará convertendo-se13. Em Sartre, a conversão, significa resgatar a criatividade
em si e de si, propriedade de Deus e do Outro.. Em L’Être et le Nean, a
conversão é arquétipo de uma alteração da livre vontade em relação à má-fé, com
exceção da “conversão radical”14, Sartre evita indicar qualquer hipótese de liberdade
autêntica. O consciente reconhece que, de certa maneira, é mais transcendente do que
puro fato: a evasão e a simulação são ações que só podem ser concretizadas pelo para-si.
A má-fé dirige-se da facticidade à transcendência e vice-versa, esgotando-se na tentativa
de coordená-las segundo a forma como estão organizadas no modo de ser do para-si.
Em L’Être et le Neant, Sartre limitou-se a garantir que a liberdade podia superar a má-
fé; porém, o momento de expor como isso podia acontecer e, conseguinte, os efeitos
dessa transmutação, nunca chegou; pôr ou contra sua vontade? A maioria das
interpretações das obras de Sartre, especialmente da obra L’Être et le Neant, anteriores à

13
A conversão faz-se segundo uma reflexão pura, a qual descobre, de um lado, o valor absoluto do
indivíduo e, paradoxalmente, do outro, as suas absolutas contingências e finitude.
14
Apenas referido em comentário de rodapé, contudo, significativo.
publicação dos Cahiers, contribuem para a ideia de que na obra de Sartre a liberdade é
inevitável e fatalmente de má-fé; poucas foram as exceções em L’Être et le Neant que
indicaram o contrário; era meia laranja, uma tese de uma das duas modalidades básicas
da liberdade. Sartre aceitara, surdinamente, esta conceção da sua ideia.
No entanto, com a
publicação dos Cahiers, e desvelada a tese da conversão moral pode ponderar-se sobre
novos argumentos a ideia de liberdade que é manifestada em L’Être et le Neant. Sartre
nomeara de moral a tese filosófica projetada sobre a forma autêntica de liberdade; a
moral concluiria a ontologia da realidade liberta da má-fé. Ao ficar por publicar a obra
de moral que esclarece-se esta, ficou a sensação de que a realidade humana ficara
inteiramente definida em L’Être et le Neant; uma liberdade a dois compassos (um pré-
moral e outro moral), a tese da realidade humana, em Sartre, é extremamente importante
e complexa, mais ainda, do que habitualmente se acredita, apesar de nos primeiros
debates levados a cabo por Sartre sobre a liberdade, depois de L’Être et le Neant,
dificilmente se encontrar alguma situação sobre a liberdade de má-fé purificada no
sentido proposto pelos Cahiers. para Sartre, é na historialização da elaboração do Ser
que existe condições geminais a uma moral da conversão à autenticidade; contudo, toda
a doutrina da conversão “corre o risco de ser um a-historismo” e toda a doutrina da
historicidade “corre o risco de ser um amoralismo”. Todavia, a hipótese de uma
verdadeira liberdade manteve-se constante no pensamento de Sartre.

Conversão - “falsificando as velhas palavras cristãs”


Na sua conversão para a autenticidade; a liberdade tem de depender de algo; o
processo completo pertence a parte da trama de uma liberdade que Sartre concebe como
solitária, autocriativa e espontânea, contudo, fatalmente refém de si mesma: é uma
liberdade que se auto-justifica, uma conversão que converte em contraste com a
ordinária conversão a outra liberdade, ou à liberdade do Outro; sobre o exemplo de
Sartre, o termo comum de conversão é sintético e ordinário e a sua atribuição ao sentido
moral da conversão de formar-se melhor do que se é na pessoa do Outro é pura ilusão;
justamente por a conversão nunca esgotar o seu sentido propriamente moral. Como
resposta, Sartre expõe a sua ideia de conversão como um fato pré-moral e não como
uma moral de atacado, preparada e programada: é a mutação da liberdade, que dá
origem à hipótese de ser moral ao invés do ordinário exercício da repetição de uma
regra pré-definida. Os Cahiers representam uma mudança da
liberdade como um tipo de entrada para o bem moral, simplesmente, porque, a liberdade
convertida apresenta-se melhor do que a liberdade imiscuída na má-fé; o plano
ontológico continua para ser superado na passagem de L’Être et le Neant para os
Cahiers, Sartre concebe o progresso da ontologia no contexto da transição da liberdade
desgastada para a essência da própria liberdade, como se se ocupa-se de um progresso
moral. Apesar desta ambiguidade, a conversão de que nos fala Sartre nos Cahiers
insinua várias conexões com o sentido moral do termo. Impressa nos Cahiers, a
teoria da conversão, insere-se no projeto da elaboração de uma moral paralela à
ontologia fenomenológica da consciência livre. Acabando posteriormente por
abandonar esta construção por questões que desconhecemos, mantendo, ainda assim, a
questão da moral, em desígnio por toda a vida. Mas, voltando à reflexão, poderia
parecer-nos, num primeiro relance do olhar, que a ideia religiosa do conceito de
“conversão” é mais vizinha do uso realizado por Sartre do que a própria moral.
Aparentemente, as suas atitudes e o seu conceito de filosofia podiam sustentar essa
hipótese. No entanto, nos Cahiers, Sartre, apresenta-nos esta conversão como uma
contraversão da ideia religiosa do termo; em Sartre, a conversão é, na realidade, uma
ponte da religião à irreligião15. É criada uma ligação, negativa, entre a ideia filosófica da
conversão e a compreensão cristã da mesma. Curiosamente, a reflexão inserida neste
programa expressa-se, muitas vezes, através da terminologia cristã; este modo de
exposição seria compreensível se a temática filosófica de Sartre fosse o ateísmo; mas
Sartre não teoriza sobre o ateísmo enquanto tal: todavia postula-o e filosofa a partir
15
A conversão do homem a si ao invés de se converter a “Outro”, o seu próprio Deus é ele próprio.
desse postulado. Idem o plano filosófico de Sartre ter nascido num berço ateísta: “O
existencialismo não é senão um esforço para tirar todas as consequências de uma
posição ateia coerente”. Contudo, qual seria a ideia de Sartre com estas palavras que
incessantemente carregava, redigia e empregava, como paixão, deus, salvação, moral,
conversão? Vários termos base da filosofia da existência foram carregados por Sartre
com ideias como “querer o homem ser deus”, causa sui, “ser a existência do outro a
minha queda original”, “o inferno”, “ter de salvar-me saindo do nada que sou”. O
próprio Sartre de si, muitas vezes, dizia “tenho a certeza de ser um eleito”, o objetivo
que tinha era o de defender-se e de defender os outros. Esta convicção e este objetivo
masterizavam a sua fé. No entanto, Sartre foi-se despegando das “velhas superstições” e
“falsificando as velhas palavras cristãs”. E, assim, também o sentido da palavra
conversão foi alterado. Segundo Sartre, estamos numa realidade histórica do ateísmo, da
desilusão: é esta situação compõe a melodia, quer da ação, quer da filosofia.
Ao desenhar a sua conceção de conversão antes16 do desenvolvimento da
tese de existência livre, e da própria noção de liberdade, Sartre entrincheira-se;
Instituindo o suporte futuro da teoria dos Cahiers já na obra La Transendance de l’Ego
alavanca nesta a ideia de conversão ou de purificação da consciência, estritamente
relacionada com ele, entre a reflexão pura e reflexão impura; escreve Sartre: “Esta
consciência absoluta, uma vez purificada do Eu, não tem nada de um sujeito, nem tão
pouco é uma coleção de representações: ela é simplesmente uma condição primeira e
uma fonte absoluta de existência”. Segundo La Tanscendance de l’Ego, a conversão ou
purificação desenvolve na consciência uma autêntica conversão de espontaneidade;
apesar da consciência esgotar-se na intencionalidade, ou seja, abandonar a “outra coisa”,
é necessário admitir que este tipo de situação induz à sua alienação, que se tende a
encobrir a si própria; a composição de um eu, assente em qualidades, simplifica a
dissimulação da alienação da espontaneidade subjetiva. A conversão ou purificação da
consciência pela [ÉROX´N] radical devolve à consciência o estado de autenticidade. As
hipóteses autênticas do indivíduo estão sitiadas na consciência purificada. Ao que na
filosofia de Sartre se chama liberdade é o reflexo da consciência anunciada 17 em
Tanscendance de l’Ego; a liberdade autêntica e a reflexão pura, conexas aos Cahiers, na
conversão, residem num local apertado em L’Être et le Neant. Nesta obra, Sartre
observa a liberdade, “que é o ser mesmo da pessoa”, em situações, alienadas e de má-fé,

16
Em, La Transendance de l’Ego.
17
Uma primeira versão, um vislumbre.
num projeto de-ser impraticável, nasce uma nova quimera: “no surgimento do para-si
como presença de um ser, há uma dispersão original: o para-si perde-se fora [de si],
junto do em si e nos três ek-stases temporais. Está fora de si mesmo, e, no mais íntimo
de si, este ser para-si é ek-stático, pois deve procurar o seu ser fora”. A instabilidade do
ser para-si, a sua subordinação, a semente da raiz da liberdade, não poder evitar a su
alienação, “se o cogito conduz necessariamente para fora de si, se a consciência é uma
rampa resvaladiça na qual é impossível instalar-se sem ser lançado fora sobre o ser-em-
si, é porque ela não tem por si mesma nenhuma suficiência de ser como subjetividade
absoluta, e remete, de início, para a coisa”. A má-fé assegura esta alienação inicial
inevitável A liberdade acaba por se inverter ao ocultar aquilo que Sou, na exclusiva
contingência, dissimulando a coincidência com a facticidade da aparência evolve-me
novamente na neblina de uma outra manhã.
Revolução permanente - “Os bons costumes: não são nunca bons porque são
costumes”

Na vida, diz Sartre, há tanta alienação como má-fé, mas existe sempre saída,
uma saída que se cria, nem que à custa de uma martela na parede. O debate sobre a
reconquista da liberdade, como reação à má-fé, é arremessado à moral filosófica; em
L’Être et le Neant, temos algumas noções do que incluirá esta moral sobre a
transformação da liberdade; mas essas noções afiam-se no pensamento da conversão
anotada nos Cahiers; alienação e a má-fé são carregadas como perda de si; por isso, a
transformação do que é a liberdade no Ser, “uma recuperação do ser […] por si
mesmo”. A liberdade recupera-se quando se reconhece na sua pureza. Todavia, diz
Sartre: “Esse tipo particular de projeto que tem a liberdade como fundamento e como
fim mereceria um estudo especial. […] Mas esse estudo não pode ser feito aqui:
pertence, com efeito, a uma Ética levá-lo a cabo, e isso supõe que se tenha
anteriormente definido a natureza e papel da reflexão purificadora (as nossas discrições
não tiveram em vista até aqui senão a reflexão ‘cúmplice’), supõe antes de mais a
tomada de uma posição, que não pode ser senão moral, face aos valores que
acompanham o para-si”. Todos os valores, como atrás dissemos, têm origem na
liberdade e a sua única justificação é aquela que a liberdade lhes concede. Segundo
Jeanson, a liberdade é o valor fundamental, “a primeira condição da ação”; mas esta
interpretação, pela sua linearidade, não resolve a questão das duas formas (inautêntica e
autêntica) de liberdade; porém em L’Être et le Neant, Sartre atenta a alguns exemplos
do que poderiam ser formas de liberdade autênticas que parecem não exigir reflexão
purificante como forma de acesso à autenticidade; abstrações da realidade que permitem
e sancionam que o Ser exista dentro das condições que o próprio designa 18; entre elas
estão o jogo, mas Sartre menciona o desporto em geral, a mimica e a ironia de tipo
kierkegaardiano. Estes desafios opõe-se ao “espírito de sério”. A seriedade existe
“quando se parte do mundo e se atribui mais realidade ao mundo que a si mesmo, pelo
menos quando alguém se atribui a uma realidade na medida em que pertence ao
mundo”; a libertação da subjetividade é conseguida pelas atividades que superem a
seriedade, que lutam por um espaço que real dentro do Seu real: “Que é um jogo, com
efeito, senão uma atividade cuja a origem primeira é o homem, cujos princípios são
postos pelo homem e que não pode ter consequências senão pelos princípios postos?
18
Um atleta luta contra si próprio, desafia-se a si próprio, é o fim em si mesmo; ele é dono do seu jogo.
O jogo tem regras dentro do jogo. Ganhar a vida como jogo é como ganhar um jogo?
Desde o momento em que o homem se apreende como livre e quer usar a sua liberdade
[…] a sua atividade é lúdica; efetivamente este primeiro princípio, consegue escapar e
entrever a natureza maturada; o valor e as regras dos seus atos são por si ditadas e não
consente pagar senão de acordo com as regras que ele mesmo pôs e definiu. […] Parece,
pois, que o homem que joga, dedicado a descobrir-se como livre na sua própria ação,
não poderia de modo algum, preocupar-se em possuir um ser no mundo. O seu fim […]
é atingir-se a si mesmo como um certo Ser, precisamente o Ser que está em questão no
seu Ser”; em suma, “o ato tem por função manifestar e tornar presente a si mesma a
liberdade absoluta que é o ser mesmo da pessoa”.
O Ser mesmo da pessoa é o seu próprio projeto;
este evento redefine o seu ser no real; contudo, esta construção não se funda em valores
absolutos, não se esgota e torna num em-si ficando perpetuamente assim; ela
transborda-o na sua prossecução sobre a qual está dependente: é aquilo que
continuamente se escolhe, num continuo para-si: “Mas, precisamente porque se trata
daquilo que se escolhe, na medida em que esta escolha se efetua, aponta outras escolhas
como possíveis. A possibilidade destas outras escolhas não é nem explicita nem
afirmada, mas é vivida no sentimento da injustificabilidade e é ela que se expressa no
facto do absurdo da minha escolha e, por conseguinte, do meu ser. Assim, a minha
liberdade corrói a minha liberdade. Sendo livre, com efeito, projeto o meu possível
total, mas, realizando-o, confirmo que sou livre e que sempre posso neantizar este
projeto primeiro e preterizá-lo”. O processo da niilização que faz parte do próprio
processo, assegura a sua constante renovação; a sua preterização está simbioticamente
ligada ao presente. “Mas, precisamente porque sou livre, tenho a possibilidade de
objetivar o meu passado imediato”; por isso, o desespero encontra-se tão profundamento
associado à liberdade e “ao aparecimento frequente de ‘conversões’ que fazem mudar
totalmente o meu projeto original”; por isso, a instabilidade é uma constante ameaça
para mim: “[…] estamos perpetuamente ameaçados pela neantização da nossa escolha
atual, perpetuamente ameaçados de nos escolhermos – e, em consequência, de nos
tornarmos – diferentes do que somos. Só pelo facto de a nossa escolha ser absoluta é
frágil”; e por isso, o controlo é uma obsessão do Ser: “Esta mudança absoluta que nos
ameaça desde o nascimento até à morte permanece perpetuamente imprevisível e
incompreensível”. É, por isso, de temer a “conversão radical do meu ser no mundo, isto
é, a brusca metamorfose do meu projeto inicial”, o incerto; uma vez que entre um
projeto e o anterior não há senão a relação de sucessão: de um momento para o outro,
torno-me estranho para mim mesmo. Esta mudança merece, neste sentido, o nome de
“conversão”, porém é uma dispersão. Se a conversão estivesse fundada em razões não
seria livre e, se não o fosse, não poderia ser o fundamento de uma nova ordem de
valores: “apreendemos a nossa escolha como independente de toda a realidade anterior e
como devendo servir, pelo contrário, de fundamento ao conjunto das significações que
constituem a realidade”. Esta ideia de liberdade mantém o afastamento necessário do
dever para comportar a possibilidade constante de novas conversões: “Nenhuma lei
pode ser atribuída a priori a um número aos diferentes projetos que sou”. Por isso, diz
Sartre,: “A moralidade: conversão permanente. No sentido de Trotsky: revolução
permanente. Os bons costumes: não são nunca bons porque são costumes”.
Em rigor, a conversão não implica que seja
feito o contraste entre liberdade autêntica e inautêntica, contudo, Sartre cria uma ideia
de pre-liberdade que passa despercebida; não obstante, justamente, deixa a liberdade
como estava, sempre disponível, a qualquer momento, à mudança, ou para continuar a
ser aquilo que era; a liberdade enquanto tal não muda, e apesar de não se tratar de uma
verdadeira conversão estabelece uma distinção no conceito de Ser livre; um corte com a
liberdade anterior gera em consonância a mesma quebra com o seu passado; e como este
corte é uma mudança de carácter global, não há qualquer relação com o projeto anterior.
Para Sartre, não existe uma identidade do indivíduo, nem uma objetividade do mundo,
nem valores independentes do projeto da liberdade; mudando o projeto, nada subsiste,
tudo é niilizado; todas as determinações ou valores são internos ao projetos reduzidas a
menos que cinzas; todas as determinações ou valores que são internos ao projeto são
neantizados. Porém, a rutura com o passado é ameaçada através da má-fé. Porporcinal
ao ego, a dimensão da conversão é tanto mais ameaçadora quanto maior for o apego da
pessoa à sua natureza atual; pois é, na imprevisibilidade que existem as possibilidades
manifestativas da liberdade. Contudo, se a liberdade, como admite Sartre em L’Être et
le Neant, tem duas maneiras de ser realmente diferentes, deve reservar-se o termos
“conversão” apenas para a passagem de uma delas à outra. Nos Cahiers, a conversão
adquire um sentido prático, inexistente em L’Être et le Neant: a conversão opera uma
verdadeira mudança na maneira de ser da liberdade quando esta passa da possibilidade
geral de ser autêntica à autenticidade; o sentido da conversão em L’Être et le Neant está
fragmentado nos Cahiers; nesta obra, apesar de uma certa indeterminação do
vocabulário, e vislumbrando para lá da forma de conversão moral, é possível ver um
nada no Outro e o Outro que Me aparece do nada.
Inautenticidade - “A inautenticidade é uma natureza?”

Estabelecida a matriz de uma moral ontológica, onde é inserida a teoria da


conversão? Implicitamente surge uma questão, “A inautenticidade é uma natureza?”; a
resposta é não: pelo menos de início, não é uma natureza; porém, influências exteriores
ornamentaram esta (in)capacidade (in)essencial; a superação da inautenticidade realiza-
se pela destruição da alienação na formação de um contributo único; mas a
inautenticidade torna-se natural se permanecermos na alienação.
Quando Sartre diz que a alienação não é uma natureza, pretende dizer que ela
não constitui uma fatalidade para o Ser, daí ele pode evadir-se; a autenticidade poderia
ser considerada como natureza para o homem na medida em que é a sua situação
primeira, embora não fundamental: ela é a posição de onde o homem parte para
qualquer realização: “Por que é o inferno, a inautenticidade, aquilo que o homem, quase
sempre, em primeiro lugar? Porque é que a salvação é necessariamente o fruto de uma
nova iniciativa que neutraliza a primeira?” A liberdade é, primeiramente, escolha do ser
no plano irreflexivo; a reflexão, pela qual a liberdade se conhece como origem de um
projeto de ser que pressupõe a irreflexão; por isso, “a base única da vida moral deve ser
a espontaneidade, isto é, o imediato, o irrefletido”. A inautenticidade precede a
autenticidade em tom de dasein hegeliano, o Ser é atirado ao mundo, é obrigado a Ser
no mundo; neste sentido inautenticidade está sempre está sempre ligada à alienação; e a
liberdade, separada de si mesma, confundida com outra coisa, fica alienada, integrando
a dimensão da reflexão impura.

Você também pode gostar