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O Subdesenvolvimento Revisitado” Celso Furtado Perfil Classico do Desenvolvimento Jélé se vaio quarenta anos desde que Prebisch nos ensinou a observar o capitali mo como um processo de difustio do progresso técnico, difusao irregular, comandada pelos interesses das economias criadoras de novas técnicas(", Quem diz progresso téc- nico diz aumento de produtividade, portanto codices propicias a concentracao dina- mica da renda e impulso & acumulaciio, vetor da difusiio de novas técnicas. Esse proces- so, conhecido como desenvolvimento econdmico, foi descrito em modelos mentais sin- gelos pelos economistas classicos, tudo Ihes parecendo um incremento do “excedente” social, processo que mais cedo ou mais tarde encontraria os seus limites. Partiam eles da evidéncia de que os salérios eram estaveis, dada a abundancia de mao-de-obraem ativi dades de baixo nivel de produtividade, e da convicgao de que, ao contrario do que acon- tecia com os senhores de terras, os empresdrios industriais eram virtuosos, empenhan- do-se em canalizar para a acumulagiio a quase totalidade do fruto dos incrementos de produtividade. Havia concentragao de renda mas, em compensagao, intensificava-se a acumulagao, que se traduzia em absorgao da mao-de-obra pelas atividades beneficiari- as dos aumentos de produtividade, Para os primeiros classicos, isso nao impedia que se formasse um desequilibrio entre oferta e demanda. Daf insistirem em que o crescimen- to nfo podia ser seniio temporario. A verdade, entretanto, era que grande parte dos bens produzidos pelo setor tecnologicamente em avango destinava-se ao consumo — com- petia com a produgdo artesanal preexistente, Portanto, o sistema era potencialmente ap- to a absorver clevagdes dos saldrios reais. Por um ou outro caminho, parte dos assalari- ados viria a ter acesso, em grau maior ou menor, aos beneficios proporcionados pelos au- mentosde produtividade. Que parte era essa, com que rapidez crescia, so questdes que se colocam, Para respondé-las, era necessdrio descer ao estudo de situagdes concretas, pois os processos de desenvolvimento ndo se davam fora da hist6ria. E facil compreender que uma forte expanstio extema — caso da Inglaterra na sua fase de imperialismo vitoriano —canalizaria parte do incremento do produto social para {@ Texto da “Aula Magna” proferida pelo autor no Instituto de Economia em 21 de agosto de 1990 na ocasido em que Ihe foi conferido o titulo de Doutor “Honoris Causa” da Universidade Estadual de Campinas. ) Veja-se em particular Rail PREBISCH, “Crecimiento, desequiltorio y disparidades: interpretaci6n del proceso de desarrollo econémico”, in Estudio Econdmico de América Latina, 1949. ECONOMIA E SOCIEDADE - 5 Celso Furtado investimento no exterior, substituindo a elevago dos salarios na criagdo de demanda. Excluida a hipétese de exportacio de capitais, a taxa de poupanga € governada pela ap- tidio para gerar novos investimentos. Essa aptidao pode crescer se a economia absorve recursos primérios — mao-de-obra sob a forma de imigrantes e novas terras sob a forma de deslocamento da fronteira—, como ocorreu nos Estados Unidos no curso do século passado. Ademais, vultosos gastos militares e dispéndios publicos de prestigio, sempre que adequadamente respaldados por um esforgo fiscal, também podem substituir-se aos investimentos na geragao de demanda. Mas nada disso impediu que a acumulagiio no se- tor reprodutivocrescesse, no longo prazo, mais intensamente do que a oferta de maio-de- obra. Daf que se haja manifestado press cada vez mais eficaz dos assalariados para au- mentar sua participacao no incremento do produto, ponto de partida do processo de ho- mogeneizagio social que marcard as economias capitalistas desenvolvidas. O conceito de homogeneizacdo social nao se refere uniformizacao dos padrées de vida, e simaque membros de uma sociedade satisfazem de forma apropriada as necessidades de alimen- tagiio, vestudrio, moradia, acesso a educagao, ao lazer e a um minimo de bens culturais. E certo que a orientagiio do progresso tecnolégico no sentido de economizar mio-de-obra tem anulado parcialmente a pressio dos assalariados. Também tem contribufdo para anular essa pressdo a transferéncia para os pregos dos aumentos dos saldrios nominais, ou seja, o desencadeamento de processos inflaciondrios. Ainda assim, a capacitago profissional da forga de trabalho e 0 grau elevado de organiza- cao de amplos segmentos desta constituem uma barreira a baixa dos salérios reais, mesmo nas fases de declinio da atividade econémica, mesmo ali onde se forma uma massa de desemprego crénico engendrada pelo avango da tecnologia. Se as pressdes inflaciondrias se manifestam com tanta frequéncia nas economias capitalistas indus- trializadas, é que elas constituem 0 nico meio efetivo de frear a tendéncia de base ao aumento da participagao dos salarios no produto social. As teorias do desenvolvimento so esquemas explicativos dos processos so- ciais em que aassimilagdo de novas técnicas e o consequente aumento de produtivi- dade conduzem a melhoria do bem-estar de uma populago com crescente homoge- neizacdo social. Esta tiltima nao se deu, conforme vimos, desde 0 comego da indus- trializagdo capitalista. Mas, alcangado certo grau de acumulagio, ela fez-se inerente ao processo de desenvolvimento. Em certas economias de industrializagao tardia no século XIX, a fase inicial de forte acumulagdo e concentragao da renda deu-se sob a tutela do Estado(2). Mas isso nao impediu que, em fase subsequente, se manifestasse atendéncia a redugdo das desigualdades sociais. (@) Sobre a industrializagdo tardia a referéncia basicaé A. GERSCHENKRON, Economic backwardness in histori- cal perspective (Cambridge, Mass, 1966). Veja-se também B. SUPPLE, “The state ard industrial revolution 1700- 1914”, in Carlo M. CHIPOLLA (org.), he industrialrevolution, volume IIl de The Fontana economic history of Eu- rope (Londres, 1973). — easier (© Subdesenvolvimento Revisitado Modernizagao e Subdesenvolvimento A teoria do subdesenvolvimento cuida do caso especial de processos sociais em que aumentos de produtividade e assimilagdo de novas técnicas no conduzem A homo- geneizagdo social, ainda que causem a elevacio do nivel de vida médio da populagdo. Essa teoria tem como ponto de partida a visdo de Prebisch do capitalismo como um sis- tema que comporta uma ruptura estrutural, sistema que ele chamou de Centro-Periferia. Prebisch atribuiu essa ruptura ao fato de que em certas areas o progresso técnico pene- trou lentamente, concentrando-se nas atividades que produziam matérias-primas desti- nadas & exportacdo. Ele nao aprofundou o estudo dessa hipotese, mas as idéias que se- meou alimentaram a pesquisa na América Latina no curso de minha geragao. O progresso técnico, cuja propagacdo conformou o sistema Centro-Periferia, manifesta-se sob a forma de processos produtivos mais eficazes ¢ também de novos produtos que sao a face exterior da civilizagao industrial. Assim, a propagagao de no- vas técnicas, inerente zo capitalismo, é antes de tudo a difusdo de uma civilizagao que impée as populagées padrdes de comportamento em permanente madificagdo. Tra- ta-se da difusio de todo um sistema de valores que tende a universalizar-se. Para des- frutar valores em permanente renovagio e que dao acesso a formas superiores de bem-estar social, faz-se necessério galgar niveis mais e mais elevados de produtivi- dade. Ora, se pensamos em termos de uma economia isolada, os aumentos de produ- tividade no podem ser senao fruto da assimilagdo ou difusdo de técnicas produtivas mais eficazes. Mas se consideramos 0 caso de uma economia que se abre ao exterior, os aumentos de produtividade também podem ser obtidos realocando recursos para beneficiar-se de vantagens comparativas. Sem quaisquer avangos nas técnicas pro- dutivas, ou mediante avangos apenas colaterais como no sistema de transportes, é possivel obter aumentos de produtividade econémica pela via do comércio interna- cional. Passar da agricultura de subsisténcia para a comercial de exportagdo nao re- quer necessariamente a modernizaco dessa agricultura. Do ponto de vista dos pro- cessos produtivos, a agricultura de exportagdo pode ser do tipo tradicional. O aumen- to de produtividade decorre simplesmente de acesso a um outro mercado com base na especializacao. O pafs que absorve os novos produtos langados ao mercado inter- nacional muito provavelmente ird pagd-los com manufaturados cuja produgao se be- neficia de economias de escala. Dessa forma, 0 processo de difusio de novas técnicas deu-se, em certas dreas, quase exclusivamente pela introdugao de novos produtos. Os processos produtivos permaneciam, no essencial, nos padrdes tradicionais, havendo casos em que o regi- me de servidao ou escravidao era preservado. Isso nao impedia que todo um novo sis- tema de vida comegasse a ser introduzido na sociedade em beneficio de certos seg- mentos da populagao, gracas aos incrementos de produtividade criados pela realoca- ECONOMIA E SOCIEDADE - 7 Celso Furtado gdo de recursos para beneficiar-se de vantagens comparativas externas. Em trabalhos dos comegos dos anos 70, chamamos de modernizagao essa forma de assimilagdo do Progresso técnico quase exclusivamente no plano do estilo de vida, com fraca con- trapartida no que respeita ao sistema de producao3), Em pequenos paises em que as vantagens comparativas se baseiam na explora- ¢40 de recursos nao renovaveis — caso extremo so os emirados petroleiros — pode dar-se 0 caso de que a modemizagio conduza & homogeneizagio social mediante a agdo redistributiva do Estado. Sao sociedades que vivem de uma renda auferida so- bre um estoque de capital que receberam como dadiva. Para atender ds exigéncias dos custos crescentes das formas de vida que adotaram num proceso répido de acul- turagdo, essas sociedades sio levadas a depredar as suas reservas de bens nao reno- vaveis, Sdo sociedades que nao vivem do préprio trabalho, de hoje ou do passado. Nasceram sobre uma mina de ouro. Quanto mais alto 0 nivel de vida das geragdes presentes, maiores serao os problemas que deverao enfrentar as futuras. Osubdesenvolvimento é um desequilfbrio na assimilag&o dos avancos tecnolé- gicos produzidos pelo capitalismo industrial a favor das inovagoes que incidem dire- tamente sobre 0 estilo de vida. Essa proclividade & absorgao de inovagdes nos pa- drdes de consumo tem como contrapartida atraso na adogao de métodos produtivos mais eficazes. E que os dois processos de penetracio de novas técnicas se apéiam no mesmo vetor que é a acumulac&o. Nas economias desenvolvidas existe um paralelis- mo entre a acumulacao nas forgas produtivas e diretamente nos objetos de consumo. Ocrescimento de uma requer o avango da outra. A raiz do subdesenvolvimento resi- de na desarticulagio entre esses dois processos causada pela modernizagai A industrializagao tardia a que fizemos referéncia — caso cléssico do Japiio — teve como ponto de partida um esforgo concentrado no tempo de acumulagao e ab- sorgao de novas técnicas. Aumentaa taxa de poupanga ao mesmo tempo que emerge um setor produtor de bens de capital e/ou moderniza-se um importante segmento da inddstria produtora de bens de consumo. Nao existe nada especificamente proprio a esse tipo de industrializacao, quando nao sejam um mais amplo papel desempenha- do pelo Estado e maior rapidez no processo de reestruturagao do sistema produtivo. Nas economias que conheceram o processo de modemizacio, inserindo-se no sistema de divisao internacional do trabalho como exportadoras de produtos primé- rios, a industrializagao se d4 por caminhos distintos. Seu ponto de partida sao ativi- dades complementares das importagdes — acabamento, aviamento, armagao de pe- as etc. —, cabendo-lhes abrir caminho competindo com artigos importados, acaba- dos ou ndo. Toda vez que a capacidade para importar entra em crise, melhoram as (3) Cf. Celso FURTADO, “Subdesenvolvimentoe dependéncia: as conexdes fundamentais”, em 0 mito do desen- volvimento econémico (Rio de Janeiro: Paz. e Terta, 1574). 8- ECONOMIA E SOCIEDADE O Subdesenvolvimento Revisitado condig6es para que as atividades “substitutivas” internas se ampliem. O espago em que estas penetram é previamente delimitado pelas atividades importadoras. Por conseguinte, os avangos tecnolégicos dao-se inicialmente pela via da importagao de bens de consumo, vale dizer, no quadro da modernizagao. Somente em fase posteri- or tais avangos alcangem os processos produtivos. A substituigdo de importagées se inicia pelas indistrias mais simples, pouco exigentes em tecnologia e de baixo coeficiente de capital. Mas, na medida em que progride faz-se mais exigente, requerendo maiores dotagées de capital. Coloca-se entio o problema de obter recursos externos e/ou de elevar a taxa de poupanga. Sen- do aatividade industrial mais capitalistica do que a primério-exportadora de tipo tra- dicional, a “‘substituicéo” de bens importados por produgo local requer maior esfor- 0 de acumulacio no sistema produtivo, concorrendo com o processo de moderniza- do. Essa pressio sobre a poupanga gerada pela disputa entre acumulacao reproduti- va e modemizagao esti na origem de processos inflaciondrios crénicos e de tendén- cia ao endividamento externo, Ademais, a atividade industrial é labour-saving, com- parativamente a primério-exportadora, vale dizer, economiza mao-de-obra por uni- dade de produto final. Bens antes importados agora so obtidos mediante menor apli- cagdo de mao-de-obrae maior de capital. Nao cabe especular se em determinada situagio histérica haviaalternativa a“in- dustrializagdo substitutiva”. A ninguém escapa que, em se tratando de um pais relati- vamente grande como 0 nosso, imerso em crise prolongada de seu setor exportador € com uma sociedade previamente moldada pelo processo de modernizagao, a linha de maior facilidade estava na industrializagao substitutiva. Outra saida teria exigido a ruptura com o processo de modemnizagao, o que dificilmente se fariasem uma convul- so social. O que importa assinalar é que 0 estilo de crescimento estabelecido na fase anterior pela modernizagdo impunha certo padrao de industrializagdo. Para escapar deste, seria necessério corrigir a distancia entre a penetraco da modema tecnologia no estilo de vida e nos processos produtivos. Mais precisamente: congelar importan- tes segmentos da demanda de bens finais de consumo ¢ intensificar consideravelmen- te aacumulagao no sistema produtivo. Vale dizer, por em andamento um processo po- Iitico que, pela magnitude dos interesses que contraria, somente se produz no quadro de uma convulsio social. Restava, como linha de facilidade, continuar apoiando-se na modemizagao, por conseguinte reproduzindo o subdesenvolvimento. Retomemos nosso exemplo anterior deum pais que houvesse logrado homoge- neizagao social pela modemizagao, gracas a exportacées de abundantes recursos ndo renovaveis. Advindo uma crise prolongada de capacidade para importar, teria inicio nesse pais um processo de industrializagao substitutiva. Deixando de lado obvias di- ficuldades criadas por deseconomias de escala, temos de reconhecer que se tornaria imperativo elevar a taxa de poupanga, e o caminho mais facil para isso € concentrar ECONOMIA E SOCIEDADE - 9 Celso Furtado arenda, A taxa de investimento reprodutivo ficaria na dependéncia do grau de con- centragdo de renda que fosse alcangado. A desarticulagdo social, ou seja, o subdesen- volvimento, antes encoberto, logo viria a tona. Mas 0 caso de uma modernizacao beneficiadora do conjunto da populagiio no passa de hipétese de escola. Na realidade dos fatos, 0 processo de moderniz: g4o agravou a concentragao de riqueza e renda jé existente, acentuando-a na fase de industrializagao substitutiva. Somente o segmento de populagiio que controla o setor da produgao concernido pelos aumentos de produtividade permitidos pelas vantagens comparativas no comércio internacional e pela industrializagao substi- tutiva desfruta os beneffcios da modernizagdo. Exclufda a intervengio do Estado, esse processo concentrador somente se interrompe quando escasseia a mao-de- obra e o quadro internacional permite que os trabalhadores se organizem para pres- sionar por melhores salérios. Ora, condigdo necessdria para que se produza a rari- dade de mao-de-obra é que o essencial dos aumentos de produtividade seja canali- zado para a poupanga e invertido em atividades criadoras de empregos. Conforme vimos, esse processo se frustra no quadro da modemizagao. A adogio de padrées de consumo imitados de sociedades de nivel de riqueza muito superior torna inevi- tavel o dualismo social. Dada a orientagdo tecnoldgica que necessariamente assume a industrializagio substitutiva, mantem-se eldstica a aferta de mao-de-obra. Certo: sendo os salérios mais altos no setor industrial do que no conjunto da economia — o que se deve auma maior produtividade e também A protecdo tariféria de que se beneficiam as industri- as —, a taxa média de salério teré que elevar-se na medida em que cresca relativa- mente emprego industrial. Mas a pressiio dos custos de reprodugio de formas de consumo cada vez mais sofisticadas e as exigéncias de capital de uma tecnologia poupadora de mao-de-obra reforcam os fatores estruturais que operam no sentido de concentrar a renda. Daf que a industrializagao nas condigdes de subdesenvolvimen- to, mesmo ali onde ela permitiu um forte e prolongado aumento de produtividade, nada ou quase nada haja contribuido para reduzir a heterogeneidade social. Teoria do Subdesenvolvimento Esses fatos de facil observacio poem em evidéncia que o crescimento da pro- dutividade esta longe de ser condigao suficiente para que se produza o verdadeiro de- senvolvimento. A velha hipétese de Simon Kuznets(), segundo a qual a concentra- ao da renda era uma fase necesséria mas superdvel do processo de industrializago, hoje jé nao pode ser aceita sem muitas restrigdes. Essa visio otimista foi confirmada @ CF. Simon KUZNETS, “Economic growth and income inequality”, American Economic Review, vol. 45, n° 1 (margo, 1955), 10- ECONOMIA E SOCIEDADE Subdesenvolvimento Revisitado pela experiéncia da industrializacdo substitutiva, da qual se ocupa a teoria do subde- senvolvimento, contribuigao maior dos economistas latino-americanos. Hoje est4 em voga a tese segundo a qual a reorientagao para as exportagdes do processo de industrializagdo — como corretivo ou complemento da substituigao de im- portagdes — permite franquear a barreira do subdesenvolvimento. A experiéncia de muitos paises que enveredaram para a autarquia demonstrou que nao se alcanga efici- éncia na fase de maturidade industrial sem abrir o préprio mercado & concorréncia ex- terna. Independentemente das deseconomias de escala, a que somente escapam os mer- cados de grandes dimensées, coloca-se o problema da tendéncia a cartelizagiio e con- sequente perda de dinamismo. Dai que todos os pafses, pequenos e grandes, procurem atualmente aumentar sua participagao nos mercados internacionais de manufaturas, que vém crescendo mais intensamente do que a produgdo mundial de bens manufatu- rados. Os paises subdesenvolvidos vém logrando importantes éxitos, pois sua partici- pacdo nesses mercados cresceu significativamente. Assim, o Brasil exporta atualmen- te parte substancial de sua produgdo manufatureira. A substituigdo de importagGes es- tabeleceu o formato inicial do processo de industrializagao, traduzindo uma exigéncia hist6rica no momento em que o mercado interno ja nao pdde ser abastecido com pro- dutos importados. Mas, a partir dos anos 60 particularmente dos 70 a industrializagao brasileira tem-se orientado pelo propésito de conquistar espagos no exterior. A produ- do de manufaturas para a exportaco vem crescendo por dois decénios com intensida- de bem maior do que a produgo de manufaturas para o mercado intemo. Vamos admitir que daqui para o futuro o Brasil siga uma politica deliberada de orientacdo dos investimentos industriais para aumentar sua participagdo no comér- cio internacional. E verdade que nao seria facil imaginar subsidios mais generosos do que os que atualmente se praticam, sendo mesmo dificil admitir que eles possam ser mantidos em sua integralidade, permanecendo o Brasil como membro do GATT. Ora, uma tal orientagao beneficia necessariamente as indiistrias de tecnologia mais avangadas, portanto mais intensivas em capital, dado que as vantagens comparati- vas, fundadas na m&o-de-obra barata, ndo dao acesso as correntes mais dinamicas do comércio internacional. Por outro lado, como o Brasil deverd abrir o seu mercado as importagdes — do contrario, os produtos brasileiros encontrariam barreiras no exte- rior —, muitas das indistrias atualmente protegidas, e que sao grandes absorvedoras de mao-de-obra, entrariam em declfnio. Tanto a concentragao de investimentos em setores de tecnologia de vanguarda para exporta¢4o, como o sucateamento de equi- pamentos obsoletos pelos padrées internacionais podem ser vistos como contribui- ges ao aumento da produtividade média do setor industrial e da economia como um todo. Nem por isso deixardo de ter reflexos fortemente negativos no n{vel de empre- go. Portanto, também contribuirdo para concentrar a renda, ou seja, para acentuar os tragos estruturais do subdesenvolvimento. Celso Furtado Gragas & teoria do subdesenvolvimento, sabemos que a insergdo inicial no pro- cesso de difuséo do progresso tecnolégico pelo lado da demanda de bens finais de consumo conduz a uma conformagao estrutural que bloqueia a passagem do cresci- mento ao desenvolvimento. A consisténcia légica interna dessa teoria foi comprova- dae sua validade explicativa submetida a teste empirico, na medida em que isso é possivel, por métodos econométricos‘S). Ali onde se produz o bloqueio a que nos re- ferimos, o aumento persistente da produtividade nfo conduz a redugao da heteroge- neidade social, ou pelo menos nao o faz espontaneamente dentro dos mecanismos de mercado. Certo: no se trata de admitir que estamos em face de um determinismo his- t6rico, conceito que em si mesmo contém uma antinomia. A prépria experiéncia hist6rica apresenta desvios que, se nao informam a regra, merecem atenciio. A rigor, o subdesenvolvimento é uma variante do desenvolvimento, melhor, € uma das formas que historicamente assumiu a difusao do progresso técnico. O fato de que as estruturas que o conformam se hajam reproduzido no correr de decénios nao nos autoriza a prever sua permanéncia futura. Mas podemos afirmar que a tendéncia dominante é no sentido dessa reprodugao. Nesse caso, a teoria explicativa capacita os agentes sociais pertinentes a escapar do fatalismo da chamada necessidade histérica. De forma similar, a teoria dos ciclos permitiu que se elaborassem instrumentos habeis para reduzir a instabilidade macroeconémica nos paises capitalistas industrializados. A Superacao do Subdesenvolvimento Em certas regiées do mundo onde prevalecia um baixo nfvel de produtividade, no quadro de uma revolugéo social procurou-se eliminar ou evitar as taras do subde- senvolvimento. A China constitui certamente 0 exemplo mais conspicuo. O proces- so de modernizacao foi af evitado, ou extirpado onde jé havia deitado raiz. Assegu- rada a homogeneidade social, a acumulagdo foi canalizada para o desenvolvimento das forgas produtivas, dentro de um planejamento estritamente centralizado. Uma tal politica, para ser eficaz, supde 0 isolamento do pats de influéncias externas, Sua forga e sua fraqueza decorrem de que ela opera com base em um sistema de decisdes de extrema complexidade. Em uma primeira fase, quando 0 objetivo essencial con- tiu em introduzir modificagGes estruturais no sistema produtivo, os resultados al- (5) Uma apresentagao da teoria do subdesenvolvimento com aplicagdo ao cas» brasileiro encontra-se em FURTA- DO, Andlise do ‘modelo’ brasileiro (Rio de Janeiro: Civilizagao Brasileira, |972). Veja-se também FURTADO, 1974, op. cit. Uma primeira formalizago de um modelo de desenvolvimento conduzindo necessariamente & desi- ‘gualdade social encontra-se em Lance TAYLOR e Edmar BACHA, “The unequilizing spiral: a first growth model of Belindia”, Quarterly Journal of Economics, vol. 90, n° 2 (1976). Um modelo formal de economia desarticulada (subdesenvolvida) seguido de teste empirico com dados referentes ao Brasil encontra-se em Elisabeth SADOULET, Croissance inégalitaire dans une economie sous-développée (Genebra: Ed. Droz, 1983). (© Quem primeiro chamou a atengic para o significado econdmico da “Cortina de Ferro” foi R. NURKSE nas con- feréacias que pronunciou no Rio de Janeiro em 1951 e que foram publicadas na Revista Brasileira de Economia. 12-ECONOMIAE SOCIEDADE 0 Subdesenvolvinento Revisitado cangados foram amplamente positivos. Tratava-se de instalar e operar projetos de grande visibilidade. Na medida em que essa etapa ia sendo superada, o problema mais importante passou a ser influenciar 0 comportamento de milhGes de unidades produtivas, atingindo-as com informagées pertinentes, e estimular dezenas de mi- Ihdes de agentes disseminados em vastas Areas. Mas a necessidade de descentralizar logo se fez imperativa, advindo a reconstituigao de um sistema de pregos, o retorno a relagdes de mercado, enfim a voltapor meios obliquos & concentragao de renda. Para evitar o pleno retorno a heterogeneidade social foi necessdrio introduzir um estrito monitoramento da demanda final. Se efetivo, um tal monitoramento tem um elevado prego em termos de amortecimento dos incentivos que estimulam a atividade econ6- mica. O mesmo se pode dizer com respeito ao isolamento extremo. Quanto mais efe- tivo este, maior serd o seu custo em desestimulo a eficdcia econémica. Aexperiéncia chinesa constitui caso a parte, pois nao € dificil demonstrar que aChina jamais reproduziré os padrées de consumo das nagées capitalistas industria lizadas, qualquer que seja a politica que adote. Tais padrdes sao demasiado custosos em termos de utilizagdo de recursos nao renovaveis para serem universalizados a es- cala da populacao chinesa. Enquanto nfo se desenvolvem tecnologias muito menos criadoras de entropia, a China teré que optar entre homogeneidade social a modestos niveis de consumo e um acentuado dualismo social com maiores ou menores dispa- ridades regionais. Essa constatagao nos pée diante da evidéncia de que a civilizagao surgida da Revolugdo Industrial européia conduz inevitavelmente a humanidade a uma dicotomia de ricos e pobres, dicotomia que se manifesta entre paises e dentro de cada pais de forma pouco ou muito acentuada. Segundo a légica dessa civilizacao, somente uma parcela minoritéria da humanidade pode alcangar a homogeneidade so- cial ao nivel da abundancia. A grande maioria dos povos ter4 que escolher entre a ho- mogeneidade a nfveis modestos de consumo e um dualismo social de grau maior ou menor. Isso nao significa que a pobreza seja sempre do mesmo tipo. A experiéncia chinesa demonstrou que é possivel satisfazer as necessidades basicas da populagdo a partir de um nivel de renda per capita comparativamente baixo. A miséria absoluta e aindigéncia nao se apresentarao necessariamente nos paises de mais baixos niveis de renda per capita, e sim naqueles em que forem mais acentuadas as disparidades so- ciais e regionais, De nao menor relevancia foram as experiéncias de dois outros paises de matriz cultural confuciana, 4 semelhanga da China e do Japio: Coréia do Sul e Taiwan. Am- bos conheceram a ocupacao do Japao Imperial até a derrota deste na II Guerra Mun- dial. Como as atividades econémicas mais rentaveis, particularmente as ligadas ao comércio exterior, estiveram sob 0 controle da poténcia ocupante, enquanto durou a ocupagio o processo de modernizagao foi apenas epidérmico. Demais, os dois patses tiveram de enfrentar na primeira fase de sua vida independente o formid4vel desafio ECONOMIA E SOCIEDADE - 13 Ceko Furtado que constituiu a vizinhanga do modelo alternativo de desenvolvimento, orientado para o social, implantado na Coréia do Norte ena China continental. Os notaveis éxi- tos logrades por estes dois tiltimos paises, no sentido da melhoria do bem-estar do conjunto da populagao e do langamento das bases de uma estrutura apta para 0 cres- cimento auto-sustentado, exerceram consideravel influéncia nos dois vizinhos que lutavam para consolidar uma precéria independéncia. Assim, em uma primeira fase, tanto na Caréia do Sul como em Taiwan a preocupagdo com o social prevaleceu, pro- cedendo-se a uma reforma agréria que possibilitou a plena utilizacio dos solos aré- veis e da Agua de irrigagdo, fixacdo de grande parte da populagiio no campo ¢ uma distribuigdo 0 mais possivel igualitéria do produto da terra, Simultaneamente, proce- deu-se a um intenso investimento no fator humano. Logo foi alcangada a plenitude na escolarizacao e a total alfabetizagdo da populacio adulta. O esforgo se estendeu ao ensino médio e superior, prolongando-se em amplo programa de bolsas de estudo no exterior para formar pesquisadores. Um programa de crédito subsidiado, que na Co- réia do Sul chegou a absorver 10% do Produto Interno Bruto™), orientou os investi- mentos em funcio de objetivos estabelecidos pelo governo em planos quinquenais mais do que indicativos. Em Taiwan, onde o sistema bancério é de propriedade do Estado, um tergo da formagao de capital fixo tem origem nas empresas puiblicas. Re- ferindo-se a este tiltimo pais, informa um especialista: “Os incentivos fiscais foram altamente seletivos por produto, refletindo a clara estratégia setorial do governo vi- sando a mudar aestrutura da economia”®), Assim, uma primeira fase orientada para a consecugdo da homogeneizagio social (reforma agrdria e investimento educacio- nal) foi sucedida por outra em que o governo orientou a formagao de capital para es- truturar o sistema produtivo de forma a obter incrementos de produtividade. Até 1960, a preocupagdo maior nao foi com a acumulagao, ¢ sim com a homogeneizaciio social. Na Coréia do Sul, nesse ano a taxa de investimento nao passava de 10,9% do PIB. Dez anos depois, essa taxa havia alcangado 26,9%, e em 1980 atingia o nivel ex- cepcional de 30,6%. Em seguida, vem a fase do esforco para ganhar autonomia tec- nolégica, numa grande manobra estratégica visando a mudar 0 padrio das vantagens comparativas para inserir-se nos setores mais dinamicos do comércio internacional. Oacesso a tecnologia moderna foi inicialmente obtido mediante contratos de cessao, via pagamento de royalties. O nimero desses contratos, que na primeira metade dos anos 60 foi de 33, em 1970 alcangava 84, e em 1978, 296(®), Trés quintas partes des- sa tecnologia foram cedidas por firmas do Japio, o que revela a estratégia desse pais (@) Colin I. BRADFORD, Jr., “East Asian ‘models’: myths and lessons”, in John P. LEWISe Valeriana KALLAB (orgs.), U.S. development strategies reconsidered —Third World Policy Perspectives, n°5 (Overseas Development Council) (8) Cf. Colin I. BRADFORD, Jr. op. cit. p. 120. (9) Cf. Dilip MUKERJEE, Lessons from Korea's industrial experience (Institute of Strategic and International Stu- dies, Malasia, 1986), p. 37. 14-ECONOMIAE SOCIEDADE (© Subdesenvolvimento Revisitado de facilitar 0 desenvolvimento de sua antiga “esfera de coprosperidade”. A busca de autonomia tecnolégica pode ser aferida pelo aumento considerdvel nos investimen- tos em “pesquisa e desenvolvimento”, os quais na Coréia do Sul decuplicaram entre 1970 © 1980. No decénio dos 80, a participagao desses gastos no PIB passou de 0,91% para 2%, alcancando o nivel do Japao. Esse esforgo na drea da pesquisa tecno- l6gica permitiu um salto qualitativo na composigdo das exportagées. Porque alcancaram um grau clevado de homogeneidade social e fundam 0 pr6é- prio crescimento em relativa autonomia tecnol6gica, cabe reconhecer que a Coréia do Sule Taiwan lograram superar a barreira do subdesenvolvimento. ainda que a ren- da per capita desses paises seja menos de uma quinta parte da do Japao e nao supere a de certos paises latino-americanos. Sao pafses com fortissima densidade demogra- fica —na Coréia do Sul, empilham-se mais de quatrocentas pessoas por quilémetro quadrado — e quase totalmente destituidos de fontes primarias de energia. Em razio dessas limitages, o desenvolvimento esté na estrita dependéncia de abertura para 0 exterior e a conquista de novos espagos no mercado internacional exige uma combi- nagdo criteriosa de mao-de-obra qualificada com tecnologia de vanguarda. As experiéncias referidas nos ensinam que a homogeneizagao social é condi- ao necesséria mas nao suficiente para alcangar a supera¢do do subdesenvolvimen- to, Segunda condigdo necesséria ¢ a criagiio de um sistema produtivo eficaz dotado de relativa autonomia tecnoldgica, o que requer: (a) descentralizagao de decisdes que somente os mercados asseguram; (b) a¢do orientadora do Estado dentro de uma es- tratégia adrede concebida; e (c) exposigao & concorréncia internacional. Também aprendemos que para vencer a barreira do subdesenvolvimento nfo se nece: cangar 0s altos niveis de renda por pessoa dos atuais paises desenvolvidos. ‘ita al- A Teoria da Pobreza Acorrente do pensamento econdmico que domina os grandes centros académi- cos ignora a especificidade do subdesenvolvimento, pretendendo englobar todas as ituagdes histéricas de aumento persistente de produtividade em um s6 modelo ex- plicativo. E a obsessio do monoeconomics a que se referiu Hirschman, 0 “falso universalismo” de que jé falava Prebisch em 1949. Segundo essa doutrina, existe um_ s6 modelo de industrializacao nas economias de mercado, o qual se desdobra em fa- ses temporais. Mas a realidade é cabecuda e nem sempre é possivel escamoteé-la. Os estudos estatisticos nao deixam diivida de que a tendéncia a concentragao da renda persiste em todas as fases da industrializagéo quando esta foi precedida por um pe- riodo de crescimento apoiado na exportagao de produtos primérios. E com frequén- (10) Cf. Albert O. HIRSCHMAN, “The rise and deciine of development economics”, in Essays in erespassing: eco- nomics to politics and beyond (Cambridge University Press, 1981), p. 4, ECONOMIA E SOCIEDADE - 15 Celso Furtado cia tal tendéncia se acentua quando o crescimento econémico se intensifica(!!), Nao € de surpreender, portanto, que a especificagdo do subdesenvolvimento se haja rein- troduzido pela porta traseira da “teoria da pobreza”(!?), Essa teoria estatui que a massa de pobreza existente em determinada economia reflete a distribuigdo de ativos no momento em que tem inicio o proceso de crescimento da produtividade, e tam- bém a natureza das instituigdes que regulam a acumulagao de ativos. Simplificando: ali onde a propriedade da terra esta concentrada e 0 crédito é monopolizado pelos proprietarios, uma maioria de despossufdos nao participaré dos beneficios do cresci- mento, acarretando este concentragao da renda. Se esses dados estruturais nao se mo- dificam, o aumento de produtividade engendrar4 necessariamente uma crescente di- cotomia social. O tinico ativo de que dispde a populacao pobre é a sua forga de traba- Iho. Sendo esta um bem de oferta eléstica, 0 seu prego serd fixado no mercado em fungao de seu custo de reprodugao, perpetuando-se a miséria. Essas idéias foram desenvolvidas por economistas ligados ao Banco Mundial para serem utilizadas pelos técnicos dessa instituigio que dao assisténcia aos gover- nos de paises subdesenvolvidos. Esses autores reconhecem que, para romper o cfrcu- lo fechado da pobreza, faz-se necessdria uma “estratégia” de desenvolvimento, vale dizer, uma agio deliberada do governo capaz de modificar a “distribuigdo primaria da renda” — apropriagao do produto antes dos impostos ¢ transferéncias. A quanti- dade de ativos em mios dos pobres pode ser aumentada mediante redistribuigao do estoque existente (reforma agréria), ou mediante modificagdo do quadro institucio- nal a fim de que o fluxo de novos ativos também beneficie os pobres (reforma do sis- tema de crédito, por exemplo). A segunda estratégia, preconizada por Hollis Che- nery, evita um choque maior com interesses criados('3), Adelman recomenda a com- binagao das duas estratégias, mas adverte com pertinéncia que areformaagraria deve ser feita antes da implantagdo da politica visando a incrementar a produtividade agri- cola, e que substanciais investimentos em educagao devem preceder a politica de in- centivo a industrializagao('4), B evidente que Adelman se inspirou nas experiéncias de Taiwan e Coréia do Sul, sem contudo dar a devida importancia as condigées his- toricas que conduziram esses dois paises pelos caminhos que trilharam, em particu- (11) As estatisticas oficiais indicam que 0 1% mais rio da populagao do Brasil aumentou sua participagao na renda nacional de 11,9%,em 1960, para 14,7%, em 1970, ¢ 16,9%, em 1980; a participagao dos 54% mais ricos subiu de 28% para 34,1% e 37,9% respectivamente; enquanto isso, os 50% mais pobres da populago conheceram um deci nio de 17,4% para 14,9% e 12,6% no correr desses dois decénios de répida industrializaydo ¢ elevada taxa de cresci ‘mento. (12) Veja-se Inna ADELMAN, “A poverty-focused approach to development policy”, in LEWIS e KALLAB, op. cit.,e também Gary 8. FIELDS, Poverty inequality and development (Cambridge University Press, 1980). Dados so- bre o Brasil encontram-se em La pobreza en América Latina: dimensiones y politicas, Esudos ¢ informes da CE- PAL, n? $4 (Santiago do Chile, 1985). (13) Cf, Hollis CHENERY ct alii, Redistribution with growth (Oxford University Press, 1974), (14) Cf. ADELMAN, op. cit. p. 57, ¢ do mesmo autor Redistribution before growth — a strategy for developing countries (Haia: Martinus Nijhof, 1978). 16- ECONOMIA E SOCIEDADE 0 Subdesenvolvimento Revisitado lar o grande desafio representado pela vizinhanga de outro estilo de desenvolvimen- to privilegiando o social. Ocorre que o problema verdadeiro nao consiste em saber o que devia ter sido feito antes das transformag6es estruturais que conduziram ao processo de moderni- zagao, e sim em descobrir como sair da armadilha do subdesenvolvimento. Os au- mentos de produtividade devidos 4 descoberta de vantagens comparativas na agri- cultura jd se deram hé muito tempo, € os seus frutos foram hé muito absorvidos pela modernizacdo. Por outro lado, o ingresso na industrializacao também é coisa antiga e seu efeito indisfargavel foi aumentar o dualismo social. A ninguém escapa que 0 consideravel aumento de produtividade ocorrido no Brasil nos tiltimos quarenta anos operou consistentemente no sentido de concentrar 08 ativos em poucas maos, enquanto grandes massas de populagio permaneciam destituidas do minimo de equipamento pessoal com que se valorizarem nos merca- dos. Como modificar o mecanismo que conduz a essa perversa distribuigao de ativos, ao nivel das coisas e das habilitagdes pessoais, é a grande interrogaciio. Nao cabe dii- vida de que af reside o fator decisivo na determinagio da distribuigdo priméria da ren- da. E das forgas do mercado nfo se pode esperar sen‘io que assegurem a reprodugao dessa situaco, e mesmo alimentem a tendéncia a sua agravaco. Sugestoes aos Novos Pesquisadores Iniciei este ensino com a preocupagao de demonstrar que minha geracao deu uma contribuigdo valida a identificagdo da problematica do subdesenvolvimento. Nao posso termind-lo sem expressar minha esperanga de que a atual geragaio de eco- nomistas ilumine com idéias novas os dificeis caminhos na busca da superacao do subdesenvolvimento, O pouco que sabemos a esse respeito nos autoriza a assinalar algumas veredas no vasto sertiio que ainda est por ser desbravado. 1) Em feliz incursdo ao mago do problema, o economista hindu Amartya Sen demonstrou com clareza que o problema das fomes epidémicas e da pobreza endémi- ca em amplas 4reas do mundo atual néo seria resolvido mediante o aumento da ofer- tade bens essenciais nos paises concemidos. E 0 que ele chamou de “entitlement ap- proach”, ou seja, o enfoque da habilitagao'5), Para participar da distribuigdo da ren- da social é necessdrio estar habilitado por titulos de propriedade e/ou pela insergio qualificada no sistema produtivo. O que esta bloqueado em certas sociedades é 0 pro- (15) Veja-se Amartya SEN, Poverty and damines: an essay on entitlement and deprivation (Oxford: Clarendon Press, 1981) e também, do mesmo autor, Hunger and encitlement (Helsingue: World Institute for Development Eco- nomic Research, Universidade das Nacdes Unidas, 1987). Esse instituto esté realizando amplapesquisa nessa maté~ ria, sob o titulo de “Fome e Pobreza” —0 Bilhiio Mais Pobre”. ECONOMIA SOCIEDADE - 17 Celso Furtado cesso de habilitagio. Isso € evidente com respeito a populagGes rurais sem acesso a terra para trabalhar ou devendo pagar rendas escorchantes para ter esse acesso. O mesmo se pode dizer das populagdes urbanas que ndo esto habilitadas para ter aces- so A moradia, As instituigdes que permitem a concentragdo em poucas maos da for- midavel valorizacdo das terras urbanas respondem pela miserabilidade de grandes massas de populago. A pobreza em massa caracteristica do subdesenvolvimento tem com frequéncia origem numa situagio de privagdo original do acesso A terrae a moradia, Essa situagio estrutural nao encontra solugdo através dos mecanismos dos mercados. 2) A penetragdo das técnicas modernas nos meios de produgdo nao significou apenas aumento de produtividade, foi também causa de importantes modificagdes nas estruturas sociais, facilitando e mesmo exigindo a organizagdo das massas tra- balhadoras, Por essa forma, a capacitagao politica se difundiu no corpo social abrin- do caminho as formas pluralistas de organizagao do poder que estiio na base dos re- gimes democraticos. Existe evidéncia estatistica de que os regimes autoritérios fa- vorecem a concentragao de renda(!®, © processo de modernizagdo, ao retardar a penetragdo de novas técnicas nos meios de produgdo, também retardou a emergén- cia de novas formas de organizagao das massas trabalhadoras. Um dos tragos carac- terfsticos do subdesenvolvimento é a exclusao de importantes segmentos de popu- lagdo da atividade politica, privados que esto de recursos de poder. Daf a proclivi- dade ao autoritarismo. Essa situagao somente se modifica com a emergéncia de for- mas alternativas de organizagao social capazes de ativar os segmentos de populagao politicamente inertes(!7). 3) Para 0 conjunto da populagio, o ativo de mais peso na distribuigao da ren- da € aquele que esta incorporado como capacitacdo no proprio fator humano. Com efeito, outra caracteristica basica do subdesenvolvimento € a existéncia de amplo segmento da populagao privado de qualquer habilitacdo profissional. Inclusive da- quela habilitago sem a qual nao se tem acesso a nenhuma outra, que é a alfabeti- zaciio. Os mecanismos de mercado tendem a agravar essa situagdo, pois 0 acesso a habilitagdo € principalmente fungio do nfvel de renda do grupo social. Para fran- quear essa barreira seria necessério que o pais subdesenvolvido dedicasse ao aper- feigoamento do fator humano parcela substancial de seu esforgo de poupanga, 0 que significa conviver com taxas de crescimento mais baixas e/ou lograr redugao significativa do consumo dos grupos dealtas rendas durante perfodo de tempo a ser determinado. (16) Atul KOHLI, “Democracy and development”, in LEWIS e KALLAB, op. cit. (17) Veja-se HIRSCHMAN, Getting ahead collectively: grassroots experiences in Latin America (Nova York: Per- gamon Press, 1984). Veja-se também o nimero de World Development (vol. 15, 1987) dedicado ao papel das orga- nizagies nao governamentais 18- ECONOMIA SOGIEDADE 0 Subdesenvolvimento Revisitado 4) Um dos paradoxos da economia subdesenvolvida est4 em que o seu sistema produtivo apresenta segmentos que operam com niveis tecnoldgicos diferentes, co- mo se nela coexistissem épocas distintas. Os grupos sociais de alta renda requerem uma oferta baseada em tecnologia sofisticada, enquanto grandes massas de popula- io lutam para ter acesso a bens considerados obsoletos e mesmo produzidos com tecnologia rudimentar, Por outro lado, para penetrar nos mercados internacionais 0 caminho mais eficaz consiste em utilizar um misto de tecnologias: tirar partido da abundancia de certos fatores primdrios e ao mesmo tempo apoiar-se em tecnologias de vanguarda. Essa situagdo particular requer certo grau de autonomia tecnolégica, que nao se obtém sem um esforgo continuo e crescente de aplicagdo de recursos na pesquisa cientifico-tecnolégica, particularmente de parte das empresas. 5) Nas economias desenvolvidas, a fungao reguladora do Estado se esgota na consecugao de equilfbrios macroecon6micos. Mudangas estruturais, sempre gradu- ais, decorrem de alteragGes nas relagGes de forga entre segmentos da sociedade civil, origindrias ou nao de inovagdes tecnolégicas mas sempre com reflexos nas escalas de preferéncia manifestadas nos mercados. O esforco para superar o subdesenvolvido constitui quadro distinto, dado que as importantes modificagGes estruturais requeri- das no se fazem sem um projeto politico esposado por amplos segmentos sociais. Sem um projeto fundado em percuciente conhecimento da realidade, os ensaios de transformagées estruturais dificilmente alcangarao a eficdcia requerida. Sem o con- senso de importantes segmentos da sociedade, o projeto bem elaborado nao terd via- bilidade. De um lado, esto a pesquisa e a criagdo intelectual, sem as quais nao existi- ro os ingredientes que permitem construir o projeto; de outro, esto as iniciativas sur- gidas na sociedade civil, condensando os recursos de poder necessdrios, pois a luta contra o subdesenvolvimento nio se faz sem contrariar interesses e ferir preconceitos ideolégicos. O subdesenvolvimento, como o deus Janus, tanto olha para a frente como para tris, nfio tem orientacao definida. E um impasse histérico que espontaneamente nao pode levar senio a alguma forma de catdstrofe social. Somente um projeto politico apoiado ern conhecimento consistente da realidade social poderé romper a sua l6gica perversa. Elaborar esse conhecimento ¢ tarefa que s6 a Universidade pode cumprir. Celso Furtado é economista, ex-professor da Universidade de Paris. ECONOMIA E SOCIEDADE - 19

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