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Nada do que é social e humano é mais real que as utopias.

Na sua vertente eutópica, as utopias constituíram


sempre o fundamento simbólico e mítico sem o qual nenhuma forma de organização social se sustenta,
justifica ou sobrevive. E criam, tanto na vertente eutópica como na distópica, o vocabulário da revolução e da
mudança: sem os amanhãs que cantam (ou choram) teríamos, em vez de História, um presente intemporal e
eterno - como o dos faraós ou o de Francis Fukuyama.
Aldous Huxley publicou o seu Brave New World em 1932. George Orwell, que não tinha em grande conta
este livro ou o seu autor, publicou 17 anos depois a sua própria distopia, Nineteen Eighty-Four. Entre estas
duas datas interpôs-se a Segunda Grande Guerra: não admira que na primeira a técnica básica da opressão
do Estado fosse a manipulação genética e que na segunda, depois do descrédito em que o regime nazi lançou
o eugenismo, as técnicas principais da opressão sejam a lavagem ao cérebro, a crueldade gratuita e a manipu-
lação da linguagem.
Apesar desta e de outras diferenças, os dois textos foram muitas vezes lidos, nas décadas seguintes, como os
dois pólos - um hedonista, outro o oposto disto - duma mesma distopia, a que os sinais dos tempos davam e
dão plausibilidade. Esta distopia bipolar é identificável em grande parte com a ideia de modernidade; e hoje a
invocação da modernidade, sempre na boca dos políticos e dos capitães da indústria, soa aos nossos ouvidos
tanto a ameaça como a promessa.
Do texto de Aldous Huxley, o que entrou na linguagem corrente, traduzido para todas as línguas, foi o so-
bretudo o título: “admirável mundo novo”. A expressão é utilizada em toda a parte mesmo por quem nunca
leu a obra: das mesas dos cafés aos blogues, das crónicas dos jornais aos debates nos media. Do texto de Or-
well, toda a gente utiliza, própria ou impropriamente, expressões como Big Brother, newspeak (que até teve,
em português, honras de tradução: “novilíngua”), ou ainda doublethink. Uma coisa é certa: nenhuma destas
expressões se teria conservado até hoje no uso corrente se não tivesse referentes no real quotidiano.
A mesma sorte não teve 1985, de Anthony Burgess, publicado em 1978. Um texto anterior de Burgess,
também ele distópico, é de longe mais conhecido, talvez pela versão filmada que dele fez Stanley Kubrik: A
Clockwork Orange. 1985 recupera alguns temas e tropos deste texto e apresenta-se como um balanço crítico
de Nineteen Eighty-Four. Divide-se em duas partes: um ensaio sobre o texto de Orwell e a construção duma
distopia alternativa, imaginada por Burgess 29 anos mais tarde. A frase final da primeira parte do livro é:
1984 is not going to be like that at all. Frase corajosa, vinda dum escritor que admirava e respeitava o objecto
da sua crítica. E é com ela que Burgess nos autoriza a fazermos nós também o balanço crítico da sua alterna-
tiva, decorridos mais que outros tantos anos desde a sua publicação.
Vejamos então o que sobreviveu melhor ao curso da história: se Nineteen Eighty-Four aos últimos 60 anos, se
1985 aos últimos trinta e um.
As diferenças entre as duas distopias não surpreendem, sabendo que uma foi escrita por um socialista lib-
ertário, pouco à vontade no seu estatuto social de nascença que o colocava nas franjas do poder, e a outra es-
crita por um conservador a quem o facto de pertencer a uma elite social e intelectual não incomoda minima-
mente. Na primeira, o opressor é um Estado por assim dizer anti-utilitarista, ou seja: inteiramente dedicado à
prossecução do maior mal do maior número. Burgess faz notar, na sua crítica a Orwell, que um Estado assim
nunca existiu nem pode existir. Mesmo os regimes que mais se aproximam deste modelo são intrinsecamente
instáveis: Calígula acabou assassinado, e o Império nazi, que era para durar mil anos, durou doze. Reconhece
Burgess, contudo, que Orwell tem bons modelos para a sua terrível invenção: o franquismo contra o qual
lutou, o estalinismo que assassinou na Catalunha os seus camaradas anarco-sindicalistas, ou o nazismo, de
cujos horrores se começava a tomar conhecimento quando o livro foi escrito. Bastou a Orwell absolutizar e
levar ao extremo do concebível estas realidades históricas, et voilà: aí temos o Ingsoc, abreviatura de English
Socialism, ou seja: Socialismo Inglês.
Burgess nota, com a indulgência a que as suas próprias contradições o obrigam, a ironia de um socialista
chamar socialismo ao regime mais monstruoso que consegue imaginar; mas não precisa de explicar, e não
explica, as razões óbvias desta opção. Nós, habitantes do Século XXI, habituados pela propaganda vigente
a equacionar “esquerda” com “estatismo”, também podemos ver ironia na escolha deste nome. As razões de
Burgess para notar esta ironia são, contudo, um pouco diferentes das nossas. Burgess não era um anti-es-
tatista doutrinário, mas sim um conservador na tradição burkeana, a quem a ideologia anarco-capitalista e
revolucionária representada por Margaret Thatcher e Ronald Reagan repugnaria tanto como a qualquer mil-
itante da esquerda dita radical. Não acredita que o Estado seja a emanação do Mal, mas exige dele essa coisa
fora de moda que é a responsabilidade moral. No capítulo “Clockwork oranges” de “1985”, declara os seus
pressupostos ético-políticos: politicamente correcto terem adquirido o estatuto de verdades dificilmente questionáveis.
A chemical substance injected into [Alex’s] blood induces nausea while he is watching the films, but the Na segunda parte de 1985, Burgess já não toma como alvo o Estado de Pavlov e Skinner, mas sim uma das
nausea is also associated with the music. It was not the intention of his State manipulators to introduce this forças que enumera nos capítulos anteriores. O vilão principal de Burgess é, nesta narrativa, o movimento
bonus or malus: it is purely an accident that, from now on, he will automatically react to Mozart or Beethov- sindical. Não o movimento sindical tal como existiu nos países democráticos ao longo dos séculos XIX e
en as he will to rape or murder. The State has succedeed in its primary aim: to deny Alex free moral choice, XX, mas aquilo em que ele parecia estar a tornar-se no Reino Unido em 1978: um sindicalismo totalitário
which, to the State, means choice of evil. But it has added an unforeseen punishment: the gates of heaven are que se substitui ao Estado e regula despoticamente todos os aspectos da vida em sociedade. Este retrato do
closed to the boy, since music is a figure of celestial bliss. The State has commited a double sin: it has de- movimento sindical era em parte, mesmo naquele tempo e lugar, pura e mal intencionada propaganda; mas
stroyed a human being, since humanity is defined by moral choice; it has also destroyed an angel. propaganda em que Burgess acreditou. Tal como Orwell se tinha alegrado, trinta anos antes, com a vitória
O Estado aqui descrito não é imoral, como o de Orwell, por opção metafísica da oligarquia que o dirige: é, avassaladora do partido Trabalhista nas primeiras eleições que se seguiram à Guerra, é possível que Burgess
mais realisticamente, um Estado amoral. Há, e houve, Estados imorais, mas nunca houve nenhum que se se tenha alegrado com o triunfo de Margaret Thatcher, no ano seguinte ao da publicação de 1985, com base
definisse exclusivamente pela imoralidade. Burgess tem razão neste ponto. Monstros desta natureza relevam num programa explicitamente anti-sindical. Se assim foi, esta alegria deve ter durado pouco.
mais de ficções como Harry Potter ou Lord of the Rings do que da realidade política que vivemos. O Mal Na novela de Burgess, a personagem principal é um professor de História e línguas clássicas, desafecto a um
absoluto, diz Burgess, é tão desinteressado como o Bem; e todas as tiranias estáveis estão ao serviço de inter- sistema que não lhe permite ensinar nada que possa ser considerado “elitista”. Esta dissidência leva-o primei-
esses. ro à demissão e à escolha de um trabalho manual (pasteleiro) que não lhe suscita problemas deontológicos,
Não é que não nos sintamos tentados, por vezes, a elaborar fantasias deliciosamente assustadoras sobre os depois à clandestinidade e por fim à prisão perpétua.
“Senhores do Mal”; mesmo nós, portugueses, cá no nosso cantinho, detectamos um eco distante destas fanta- Em Nineteen Eighty-Four a personagem principal é um burocrata chamado Winston Smith; o professor
sias quando ouvimos um político, um economista ou um empresário deixar no ar a ideia de que tudo o que é que protagoniza 1985 chama-se Bev Jones. A escolha dos nomes não é trivial, como assinala explicitamente
impopular é necessariamente justo e acertado e tudo o que beneficia o cidadão comum é injusto e desastroso. Burgess a propósito do nome que escolheu para o protagonista de A Clockwork Orange: Alex, diminutivo
Levada inteiramente a sério, esta ideia implicaria uma negação total e radical da democracia; mas somos, tal de Alexander, ou seja, em grego, “salvador de homens”. “ Smith” e “Jones” são os sobrenomes mais banais do
como Burgess, demasiado sensatos para levar muito a sério ou muito à letra tudo o que diz o poder, e é por mundo anglo-saxónico. O nome próprio “Winston” produz, associado a “Smith”, um efeito dissonante que se
isso que não confundimos José Sócrates ou Maria de Lurdes Rodrigues com Voldemort. repercute em “ Bev Jones. O nome próprio dado à personagem pelo pai pode constituir uma homenagem a
Ao contrário de Thatcher e de Reagan, Burgess não via no Estado a única, nem necessariamente a principal, uma de três figuras históricas: Ernest Bevin, organizador sindical, dirigente do Partido Trabalhista e Ministro
fonte de opressão. O Estado que Burgess denuncia não é o pesadelo de Orwell, que para Burgess não passa do Trabalho a partir de 1940 no governo de coligação de Winston Churchill; Aneurin Bevan, Ministro da
disso mesmo: dum pesadelo. Nem é o Moloch burocrático da lenda negra anti-socialista. É, acima de tudo, o Saúde a seguir à vitória trabalhista de 1945, arquitecto do Serviço Nacional de Saúde, e Ministro do Trabalho
Estado de Ivan Petrovitch Pavlov e de Burrhus Frederic Skinner: a partir de 1951, cargo de que se demitiu em protesto contra a introdução de taxas moderadoras destinadas a
The Soviet State wished to remake man and, if one knows Russians, one can sympathize. Pavlov deplored the financiar a participação britânica na Guerra da Coreia; ou William Beveridge, parlamentar do Partido Liberal
wild-eyed, sloppy, romantic, indisciplined, inefficient, anarchic texture of the Russian soul, at the same time cujo relatório, apresentado em 1942, veio a servir de base à instituição do Welfare State no Reino Unido.
admiring the cool reasonableness of Anglo-Saxons. Lenine deplored it, too, but it still exists. Faced with the Bev Jones é, assim, simultaneamente a continuação e o oposto de Winston Smith, facto que se reflecte nas
sloth of the waiters in Soviet restaurants (sometimes three hours between taking the order and fulfilling it), óbvias diferenças e nas surpreendentes semelhanças entre os dois textos.
the manic depression of Soviet taxi-drivers, the sobs and howls of Soviet drunks, one can sometimes believe Ambas as tiranias descritas são pavlovianas ou skinnerianas: Winston Smith e Bev Jones são ambos “reedu-
that without communism this people could not have survived. But one baulks, with a shudder, at the Leninist cados” a dado passo. Em ambas está presente, como de resto em Fahrenheit 451 de Ray Bradbury, a aversão
proposal to rebuild, with Pavlov’s assistance, the entire Russian character, thus making the works of Chekhov do intelectual a qualquer poder de facto ou de direito que se dedique à destruição de livros; mas o que ime-
and Dostyevsky unintelligible to readers of the far future. diatamente salta à vista quando lemos os dois textos é o relevo que Orwell e Burgess dão à manipulação da
B. F. Skinner foi um behaviourista radical, bem conhecido pelos professores como teórico da Educação cujas linguagem. Em 1985 proibe-se às escolas que ensinem a norma culta da língua inglesa e impõe-se em vez
teses ainda hoje têm influência política no nosso País e noutros. Mas tem outras facetas menos conhecidas: dela o chamado Worker’s English; em Nineteen Eighty-Four o consenso artificial de que a tirania necessita é
como filósofo político, produziu em 1948 Walden Two, uma eutopia - ou distopia, conforme o ponto de vista construído recorrendo ao Newspeak.
- em que as técnicas de psicologia do comportamento conduzem a uma harmonia social perfeita; como filó- Apesar de partirem de princípios ideológico-políticos aparentemente opostos, os dois textos partem de
sofo moral, produziu em 1971 Beyond Freedom and Dignity, título este que não pode deixar de dar calafrios princípios morais muito semelhantes e de concepções muito próximas da liberdade. Para a personagem
a Burgess - e, creio bem, a muitos de nós. Burgess denuncia o Estado Soviético não tanto por pretender privar principal de Orwell, ser livre significa poder acreditar que 2+2=4; para Burgess, ser livre significa ser capaz de
o homem da sua liberdade económica como por pretender privá-lo, na esteira de Pavlov e Skinner, da sua escolhas morais.
liberdade moral. Hoje, olhando à nossa volta, podemos concluir que o erro e a ingenuidade que Burgess aponta a Orwell
Mas se o Estado não é a única nem a principal fonte potencial de opressão, então não basta a Burgess denun- podem não ter sido erro nem ingenuidade: o hiperfascismo de Nineteen Eighty-Four pode ser uma figura
ciar o Estado, como em A Clockwork Orange; é preciso enumerar e denunciar as outras forças potencial- retórica, uma hipérbole, da qual não se espera que o leitor faça uma interpretação literal, mas tem afloramen-
mente hostis à liberdade (leia-se: liberdade moral) do ser humano: tos numerosos e óbvios nas sociedades actuais, mesmo nas mais democráticas.
There are, indeed, forces always ready to diminish State power, though oppressive enough in their own ways. Já o erro de Burgess é mais difícil de levar à conta de retórica. O Alex de A Clockwork Orange reaparece em
Multinational companies that can make and break governments but don’t give a damn about matters of 1985 sob a forma de um gang juvenil particularmente violento que acolhe e protege Bev Smith em troca de
responsibility to thought, art, sentiment, health, morality, tradition. The manipulators, the true investigators lições de História, Latim e Grego. Faz rir a ideia dum bando de skinheads ou equivalente a interessar-se pela
into the power of propaganda, meaning doublethink, subliminal suggestion, rendering us unfree in the realm cultura clássica, mas Burgess justifica esta implausibilidade pela irreverência e pela revolta “naturais” na ado-
of what we consume. Trade unions. Minority groups of all kinds, from the women’s liberationists to the gay lescência: se a autoridade proíbe o ensino da História, das línguas clássicas e da língua materna na sua norma
sodomites. And where we expect the State, that takes our money, to protect us from the more harmful of the culta, então a oposição dos jovens à autoridade levá-los-á a procurar o que lhes é proibido.
anarchic forces of the community, there we find the State peculiarly powerless. Hélas, não foi isto que aconteceu nos últimos trinta anos. É verdade que certas tribos urbanas, como os
Se Burgess soa aqui como um cruzamento anti-natural entre um manifestante anti-globalização e um mor- “góticos” ou os “emos”, dão alguns sinais de ter consciência da falta de alguma coisa essencial na herança que
alista reaccionário, reflictamos que o texto foi escrito antes de, quer o neoliberalismo, quer o movimento nos preparamos para lhes deixar; mas não sabem que coisa é essa, e muito menos lhes passa pela cabeça que
possa ter alguma coisa a ver com o ensino da História ou do Latim.
Mais grave ainda: o populismo anti-elitista e anti-intelectual que Burgess temia acima de tudo veio-nos, não
pela mão dos sindicatos, mas pela mão daqueles de quem ele esperava protecção. O apelo à rebeldia, ao indi-
vidualismo, à mudança rápida, à ruptura com o passado, vem-nos hoje, como mostra Thomas Frank em One
Market under God, já não da contra-cultura dos anos sessenta, mas sim da publicidade com que as grandes
empresas inundam os media. Os bilionários já não são uma elite gananciosa e exploradora: usam jeans,
comem hamburgers e são vítimas, como qualquer pessoa vulgar, da perseguição que lhes move uma casta
privilegiada, snob, elitista, intelectual e académica que tem a veleidade de “saber mais que os mercados” e não
aceita submeter-se a eles com a mesma confiança simples e cega com que um bom muçulmano se submete a
Allah.
E assim se restaura a luta de classes: do lado dos oprimidos vemos Bill Gates, de braço dado com o nosso
vizinho do lado: se não os une a condição económica, une-os a condição de “homens simples” a fé comum
num catecismo (orwelliano que baste) que afirma, entre outras coisas, que a verdadeira prosperidade está em
trabalhar cada vez mais por cada vez menos dinheiro e que a verdadeira igualdade é a desigualdade extrema.
Do lado dos opressores estão todos os que se atrevem a pôr em dúvida estas verdades sagradas; e em repre-
sentação destes “privilegiados” surgem, em primeiro plano, os professores e os académicos.

Nota: Durante os longos dias que demorei a escrever este texto, não deixei de acompanhar os textos a todos
os títulos notáveis que o Ramiro Marques tem estado a publicar no ProfEducação, nomeadamente a série “Há
um plano para imbecilizar as novas gerações” Não é paranóia: há mesmo esse plano. Espero que a leitura ou
releitura dos livros que aqui comento ajude a clarificar as estratégias de marketing político que o apoiam.

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