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Novo coronavírus e a tragédia dos comuns: egoísmo e caos social no país de

Bolsonaro

Lucas M. Aguiar1 y Gisele Ricobom2

“We're only gonna die from our own arrogance”


Gregory W. Graffin, 1982.

Há um clássico conceito na Ecologia, desenvolvido pelo teórico Garret Hardin,


denominado tragédia dos comuns. Trata-se de compreender os problemas ambientais,
como o supercrescimento populacional, aumento da poluição, efeito estufa, bem
como as pandemias, como resultados da ação egoísta de certos indivíduos que podem
teoricamente colapsar totalmente uma sociedade.
A lógica dos comuns é bem compreendida principalmente em ocasiões especiais em
que a sociedade tem de apelar à consciência de um indivíduo para se restringir ao
bem-estar geral. Nos dias atuais, inúmeros exemplos explicam a lógica, desde a
redução do consumo de água, como a coleta seletiva de lixo ou até mesmo o uso de
transportes alternativos ou coletivos, como forma de evitar a poluição ao meio
ambiente.
A lógica é cooperativa, dada a importância das ações individuais para o bem de todos.
Já a tragédia dos comuns ocorre quando indivíduos buscam maximizar seus interesses
em detrimento da sociedade em que vivem. Indivíduos egoístas tentariam encontrar
uma maneira de evitar os males da população, sem abrir mão dos privilégios que dela
desfrutam.
Quem não lembra, por exemplo, do escândalo do Dieselgate, quando a Volkswagen
manipulou indicadores da emissão de gás, enganando seus consumidores? A suposta
responsabilidade ambiental da empresa não passou de marketing para maximizar o
lucro, ainda que a produção de doenças possa prejudicar, indistintamente, até os
acionários da multinacional.
O fenômeno da tragédia dos comuns pode ocorrer em diferentes níveis, seja a partir
de um indivíduo dentro de uma empresa, de um chefe de Estado ou mesmo de um
país dentro de uma organização global. Basta que um interesse próprio desequilibre
fatalmente o balanço ou a cooperação do sistema no qual se inclui. Mas o que ela
pode explicar sobre a crise do novo coronavírus?
Embora não sejam considerados vivos, os vírus fazem parte da biodiversidade, pois
contribuem com a diversidade genética, influenciando em processos evolutivos e
1
Doutor em Zoologia, Professor da Unila
2
Doutora em Direitos Humanos, Professora da UFRJ, membra da ABJD
ecológicos de controle no ambiente devido à sua abundância e diversidade. Por serem
patógenos altamente eficientes e por alguns deles se aproveitarem da sociabilidade,
sexualidade, migrações humanas e dos animais domésticos como meios de
transmissão, os vírus têm influenciado na ecologia, comportamento, história e
evolução biológica e cultural humana. Nesse sentido, filósofos e especialistas tem
razão em afirmar que pandemia do SARS-Cov-2 irá alterar de forma definitiva o
modelo de desenvolvimento econômico capitalista.
Desde que a doença ganhou o mundo, os modelos matemáticos de crescimento do
contágio mostram que a melhor prevenção é a restrição social e o isolamento, sob
pena do seu crescimento exponencial, colapsando os sistemas de atendimento à saúde
e aumentando o número de mortes.
Pela lógica dos comuns, o isolamento social e a cooperação com o coletivo são atitudes
indispensáveis para salvar não apenas a própria vida, mas o bem-estar geral da
população, ainda que ocorram altos impactos econômicos e sociais. Muitos têm
aderido ao propósito e outros tem visibilizado, com absoluta coerência, o isolamento
seletivo de uma classe social privilegiada às custas de trabalhadores informais e de
uma população empobrecida, cujas vulnerabilidades decorrem da falta das condições
materiais de proteção e cuidados mínimos.
No entanto, há pessoas com posições de destaque e de atuação decisiva no combate
ao vírus, que tem provocado a tragédia dos comuns. No Brasil de Bolsonaro, muitos
contribuem para o colapso do sistema. Há pastores religiosos defendendo a
manutenção dos cultos em nome dos milagres e lucros divinos, comportando-se como
cristícolas no sentido utilizado pelo sacerdote francês Jean Meslier. Empresários que
desdenham da perda de muitas vidas, em nome da necessidade de proteção do
sistema econômico, que não por acaso, privilegia sobretudo a eles. Pessoas em
isolamento que não dispensam os empregados domésticos ou que deixam de pagar
seus salários. Cidadãos que protestam nas ruas ignorando os riscos de sua opinião. Os
comuns que estão deflagrando a tragédia, por falta de absoluta empatia e elevado
egoísmo, são os cidadãos autodenominados de bem, aqueles que rechaçam de forma
violenta tudo o que não se enquadra em suas perspectivas planas do mundo.
Garret Hardin previu que são os mandatários que tendem a cair com maior frequência
na tentação da tragédia dos comuns. Bolsonaro confirma a teoria. Hoje é difícil negar
que o comportamento mais trágico e fatal é sem dúvida do mandatário maior, não
apenas pela responsabilidade objetiva de implementar políticas públicas emergenciais
que não estão ocorrendo, mas especialmente por adotar um tom de deboche a uma
das crises mais fatais dos últimos tempos.
Bolsonaro comete reiteradamente crime contra a saúde pública, seja por expor e
incentivar a população a desacreditar nas consequências do vírus, mas especialmente
porque tem negado apoio aos Estados para conter a catástrofe. As desastrosas
medidas que culminam na subnotificação de mortos e na ausência de um controle
estatístico por falta de testes, poderá confirmar as projeções mais pessimistas do
número de mortos no Brasil. As medidas adotadas pela MP 927 fecham o pacote de
maldades de um governo que tem nos trabalhadores e pobres um inimigo a combater
e dizimar, privilegiando os cidadãos de bem que receberão generosos aportes
econômicos.
O pronunciamento irresponsável pela volta à normalidade, poderá ter consequências
semelhantes aos maiores genocídios da história. É um comportamento facínora, que
ignora a dimensão e realidade da sociedade brasileira. Ao não motivar a população
para um enfrentamento efetivo e bem informado, Bolsonaro vai na contramão da
credibilidade e estabilidade pública, cedendo à estereotipia de um mandatário, como
previu Garret Hardin.
Não é de hoje que lógica do comum tem sucumbido ao espírito do capitalismo. Mas,
como muito bem colocado pela teoria, a tragédia afeta a todos sem distinção. O que a
pandemia tem confirmado é que a doença é democrática, tem sido letal a
governantes, príncipes, presidente de banco, famosos e anônimos. Não sabemos ainda
em que nível afetará a vida na terra, mas a humanidade certamente terá que repensar
os caminhos da tragédia capitalista, do individualismo liberal, repensando meios do
cooperativismo e fortalecendo a lógica dos comuns.

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