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EU SOU UMA MULHER - MARINA COLASANTI (1993)

Eu sou uma mulher


que sempre achou bonito
menstruar.

Os homens vertem sangue


por doença
sangria
ou por punhal cravado,
rubra urgência
a estancar
trancar
no escuro emaranhado
das artérias.

Em nós
o sangue aflora
como fonte
no côncavo do corpo
olho-d'água escarlate
encharcado cetim
que escorre
em fio.

Nosso sangue se dá
de mão beijada
se entrega ao tempo
como chuva ou vento.

O sangue masculino
tinge as armas e
o mar
empapa o chão
dos campos de batalha
respinga nas bandeiras
mancha a história.

O nosso vai colhido


em brancos panos
escorre sobre as coxas
benze o leito
manso sangrar sem grito
que anuncia
a ciranda da fêmea.

Eu sou uma mulher


que sempre achou bonito
menstruar.
Pois há um sangue
que corre para a Morte.
E o nosso
que se entrega para a Lua.
RETRATO - CECILIA MEIRELES

Eu não tinha este rosto de hoje,


Assim calmo, assim triste, assim magro,
Nem estes olhos tão vazios,
Nem o lábio amargo.

Eu não tinha estas mãos sem força,


Tão paradas e frias e mortas;
Eu não tinha este coração
Que nem se mostra.

Eu não dei por esta mudança,


Tão simples, tão certa, tão fácil:
- Em que espelho ficou perdida
A minha face?

NEGRA - NOÉMIA DE SOUSA

Gentes estranhas com seus olhos cheios doutros mundos


quiseram cantar teus encantos
para elas só de mistérios profundos,
de delírios e feitiçarias...
Teus encantos profundos de Africa.

Mas não puderam.


Em seus formais e rendilhados cantos,
ausentes de emoção e sinceridade,
quedas-te longínqua, inatingível,
virgem de contactos mais fundos.
E te mascararam de esfinge de ébano, amante sensual,
jarra etrusca, exotismo tropical,
demência, atracção, crueldade,
animalidade, magia...
e não sabemos quantas outras palavras vistosas e vazias.

Em seus formais cantos rendilhados


foste tudo, negra...
menos tu.

E ainda bem.
Ainda bem que nos deixaram a nós,
do mesmo sangue, mesmos nervos, carne, alma,
sofrimento,
a glória única e sentida de te cantar
com emoção verdadeira e radical,
a glória comovida de te cantar, toda amassada,
moldada, vazada nesta sílaba imensa e luminosa: MÃE
OBJETO DE AMOR - ADELIA PRADO

De tal ordem é e tão precioso


o que devo dizer-lhes
que não posso guardá-lo
sem a sensação de um roubo:
cu é lindo!
Fazei o que puderdes com esta dádiva.
Quanto a mim dou graças
pelo que agora sei
e, mais que perdôo, eu amo.

MULHER DA VIDA - CORA CORALINA

Mulher da Vida,
Minha irmã.
De todos os tempos.
De todos os povos.
De todas as latitudes.
Ela vem do fundo imemorial das idades
e carrega a carga pesada
dos mais torpes sinônimos,
apelidos e ápodos:
Mulher da zona,
Mulher da rua,
Mulher perdida,
Mulher à toa.
Mulher da vida,
Minha irmã.

O Quince(1930) - E assim começou a jornada de Chico Bento e sua família, que foi obrigado
a deixar tudo “​morrendo de fome e de seca!​”. Ele, a mulher Cordulina, a cunhada, Mocinha,
cinco filhos e uma burra. “​O pequeno ia no meio da carga, amarrado por um pano aos
cabeçotes da cangalha […] De vez em quando, levantava a mãozinha aos olhos, e fazia rah!
Rah! ah! Ah! Numa enrouquecida tentativa de choro […] Conrdulina chegava-se a burra
para o consolar, ajeitava-lhe o chapéu de pano na cabeça […] Chico bento fechava a
marcha, com o cacetete ao ombro, do qual prendia uma trouxa”​ (​Rachel de Queiroz).

João Miguel (1932) - Esse é um romance de mulheres, ainda que tenha no centro da narrativa
a personagem João Miguel, em torno da qual se desenvolvem as demais histórias, os demais
dramas miúdos, como o de Maria Elói, abandonada com os filhos pequenos na cadeia, após
ter passado uma navalha na amante de seu marido; é também o caso de Filó, presa por ter
navalhado um homem, durante uma bebedeira (​Rachel de Queiroz).
Caminos de pedras (1937) - ​João Jacques é o marido de Noemi e ambos tem um filho, o
Guri. Jacques não é borracho, nem libertino e nem portanto espanca a mulher. É ótimo pai e
um bom marido vivendo em paz com a mulher. Mas a paz matrimonial é mais fecunda em
paz do que em amor. Porém o espírito era diferente, o espírito da mulher de João Jacques do
espírito dele. Com isso, Noemi conhece um homem, o Roberto, que reflete um espírito como
o dela, de idéias e gostos que se completam. Simpatizam-se e atrás da simpatia veio o amor
entre eles. Noemi, no entanto, não detesta o marido e vacila na separação. Ela sente, a mulher
de João Jacques que não tem o direito de sacrificar ao egoísmo do seu prazer a alegria e a paz
do momento. Portanto Noemi cometia o adultério se envolvendo escondida com Roberto
(​Rachel de Queiroz).

QUE PODE UMA CRIATURA- CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE

Que pode uma criatura senão,


entre outras criaturas, amar?
amar e esquecer,
amar e malamar,
amar, desamar, amar?
sempre, e até de olhos vidrados, amar?

NO MEIO DO CAMINHO​- CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE

No
meio do caminho tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
tinha uma pedra
no meio do caminho tinha uma pedra.
Nunca me esquecerei desse acontecimento
na vida de minhas retinas tão fatigadas.
Nunca me esquecerei que no meio do caminho
tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
no meio do caminho tinha uma pedra.

ARTE DE AMAR-MANUEL BANDEIRA


Se queres sentir a felicidade de amar, esquece a tua alma.
A alma é que estraga o amor.
Só em Deus ela pode encontrar satisfação.
Não noutra alma.
Só em Deus — ou fora do mundo.
As almas são incomunicáveis.

Deixa o teu corpo entender-se com outro corpo.

Porque os corpos se entendem, mas as almas não.


O RIO-​MANUEL BANDEIRA
Ser como o rio que deflui
Silencioso dentro da noite.
Não temer as trevas da noite.
Se há estrelas nos céus, refleti-las.
E se os céus se pejam de nuvens,
Como o rio as nuvens são água,
Refleti-las também sem mágoa
Nas profundidades tranqüilas.

UM PEIXE-PAGU

Um pedaço de trapo que fosse


Atirado numa estrada
Em que todos pisam
Um pouco de brisa
Uma gota de chuva
Uma lágrima
Um pedaço de livro
Uma letra ou um número
Um nada, pelo menos
Desesperadamente nada.

FÓSFOROS DE SEGURANÇA-PAGU

Indústrias tais
Fatais.
Isso veio hoje numa pequena caixa
Que achei demasiado cretina
Porque além de toda essa história
De São Paulo — Brasil
Dava indicações do nome da fábrica.
Que eu não vou dizer.
Porque afinal o meu mister não é dizer
Nome de indústria
Que não gosto nem um pouquinho
De publicidade
A não ser que
Isso tudo venha com um nome de família
Instituição abalizada
Que atrapalha a vida de quem nada quer saber
Com ela.
Ela, ela, ela.
HOJE ME FALARAM EM VIRTUDE- PAGU

Tudo muito rito, muito rígido


Com coisinhas assim mais ou menos
Sentimentais.

Tranças faziam balanças


Nas grandes trepadeiras
Estávamos todos por conta de.

Nascinaturos espalhavam moedinhas


Evidentemente estavam brincando
Pois evidentemente, nos tempos atuais
Quem espalha moedas
Ou é louco, ou é porque
está brincando mesmo.
O que irritou foi o porquê.

A ESTRELA-MANUEL BANDEIRA

Vi uma estrela tão alta,


Vi uma estrela tão fria!
Vi uma estrela luzindo
Na minha vida vazia.

Era uma estrela tão alta!


Era uma estrela tão fria!
Era uma estrela sozinha
Luzindo no fim do dia.

Por que da sua distância


Para a minha companhia
Não baixava aquela estrela?
Por que tão alta luzia?

E ouvi-a na sombra funda


Responder que assim fazia
Para dar uma esperança
Mais triste ao fim do meu dia.

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