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NA FACE OCULTA DA LUA:


O Japão de Claude Lévi-Strauss – Alguns comentários

Bruno Pereira de Araujo – UNIFESP

“Que som faz uma só mão que bate?” 1 Começar essa apresentação com um koan me parece
adequado. Segundo Lévi-Strauss, esses enunciados “bloqueiam o espírito num impasse e o
obrigam a procurar uma saída numa dimensão exterior ao pensamento racional” (LÉVI-
STRAUSS, 2012, p. 78). O que pretendo aqui é simular uma experiência análoga a um
“bloqueio do espírito”. Através da imagem do Japão construída por Lévi-Strauss, busco tornar
possível um deslocamento da imagem que se constitui junto a essa: a imagem do Ocidente.

Lévi-Strauss comenta que durante uma de suas visitas ao Japão – no total foram um pequeno
número de cinco – sua presença era tomada pelos japoneses como uma “ocasião, jamais
plenamente satisfeita, de olharem para si mesmos na imagem que deles eu formava” (LÉVI-
STRAUSS, 2012, p. 45). Aqui, a imagem que Lévi-Strauss formou em seus escritos sobre o
Japão possibilita que olhemos a nós mesmo na imagem que se forma concomitante a ela —
uma imagem do “nós”2.

Retornando aos koan, se estes possibilitam uma “contemplação da palavra”, espero que meu
empreendimento possa possibilitar a experimentação de outra imaginação3. Busco a
possibilidade de permitir ao Japão operar uma “verdadeira reviravolta em [nosso] pensamento
e em [nossa] vida” (Ibid., p. 39). Contudo, cabe a mim fazer uma pequena explicação. Ao
falar no Japão, não busco me referir ao Japão tal como ele é, mas, sim, falar em um Japão
construído por Claude Lévi-Strauss. Uma construção não menos realista (ou menos
impactante) por ser uma construção. Devo salientar também que não pretendo, em nenhum
momento, apontar onde Lévi-Strauss possa ter se equivocado em suas caracterizações; receio
que meus conhecimentos sobre o Japão sejam muito incipientes. Reivindico para mim algo
que Lévi-Strauss repete frequentemente em seus escritos: falo apenas como “um ignorante e
um neófito”.

Lévi-Strauss dizia-se fascinado pela música japonesa devido a sua capacidade de despertar em
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seus ouvintes um sentimento de “pungência das coisas”. As descrições, ou melhor, as


impressões do autor sobre o Japão também despertam essa pungência, o que nos revela a
grande sensibilidade que possuía Lévi-Strauss, assim como, seu amor e fascínio pelo país4.

Ao ser interpelado sobre o lugar da cultura japonesa no mundo, o antropólogo francês se diz
impossibilitado de responder a tal pergunta, mas indica, de maneira bastante convicta, que o
lugar conquistado pelo Japão se deve ao fato de sua capacidade em conciliar categorias, ideias
e movimentos que parecem inconciliáveis para nós, ocidentais. Nas palavras do autor: “Essa
alternância de empréstimos e de sínteses, de sincretismo e de originalidade, me parece a mais
apropriada para definir seu lugar e seu papel no mundo” (idem, p. 22).

A sensibilidade de Lévi-Strauss em suas caracterizações produz uma forma que, se me


permitem, agencia um efeito estético impressionante. Os primeiros ocidentais a descreverem o
Japão, de acordo com o autor, frequentemente diziam que este era “um mundo do tudo pelo
avesso”. A oposição, o avesso, é uma poderosa imagem para produzir uma comparação5.
Como diz o antropólogo,

A simetria que se reconhece entre duas culturas as une ao opô-las. Elas parecem a um
só tempo semelhantes e diferentes, como a imagem simétrica de nós mesmos, refletida
por um espelho, que nos permanece irredutível embora nos reconhecemos em cada
detalhe” (idem, p. 85-6).

Aqui está o efeito que falei e aquele que busco. A partir da relação que se estabelece entre
Japão e Ocidente, espero que possamos constituir um entre-lugar habitável que nos permita
experimentarmos algo que deixa de ser nós, mas não se confunde com eles. Um entre-lugar
onde há o máximo de diferença na semelhança; onde podemos, finalmente, experimentar uma
condição de Outro, uma intensidade que nos torna capaz de estranhar o familiar.

Para tornar possível constituir esse espaço, seguirei o que Lévi-Strauss descreve como a
“dupla recusa” do pensamento japonês: a recusa do Sujeito e a Recusa do Discurso.

Comecemos então pelo Sujeito, este grande mimado da filosofia moderna. Gostaria de
apresentar duas formas expressivas que insiro dentro dessa divisão entre nós e eles, e que me
permite tornar visível esta diferenciação.

Primeira imagem: poema de Lord Tenniyson – séc. XIX6

“Flor na muralha fendida,/Eu colho-te das fendas,/Seguro-te aqui, raiz e tudo, na minha
3

mão,/Pequena flor – mas se eu pudesse compreender/O que tu és, raiz e tudo, e tudo em
tudo,/Eu deveria saber o que Deus e o homem é”.

Segunda imagem: haiku japonês – XVII7

“Quando olho cuidadosamente/Vejo o florescer das nazumas/Ao longe!”

O poema de Lord Tenniyson precipita o “espírito cartesiano” no qual o Eu, que existe porque
pensa, se relaciona com o mundo imbuído de uma vontade de conhecer “tudo em tudo”
através da razão, isto é, utilizando o Discurso. Já no haiku, vemos uma atitude diferente. As
flores nazumas não são colhidas de seu lugar; elas são contempladas com um olhar cuidadoso,
característico daquilo que Lévi-Strauss chamou de um “cartesianismo estético ou sensível”.
Há também aqui atitudes diferenciadas em relação à “Natureza”. Em uma das ocasiões de suas
visitas, o antropólogo comenta que trabalhava em seu laboratório na França, junto a outros
pesquisadores, sobre as diferentes maneiras que as pessoas de diferentes culturas se
relacionavam com o trabalho. Tendo buscado nessa visita conhecer tintureiros, tecelões,
pintores de quimono, ferreiros, ceramistas etc., Lévi-Strauss comenta que:

Deles tirei preciosas informações sobre a representação que fazem os japoneses do


trabalho: não como ação do homem sobre uma matéria inerte, ao modo ocidental, mas
como execução de uma relação de intimidade entre o homem e a natureza. [...] A
relação do homem com a natureza, que, ao pensar no Japão antes de visitá-lo, eu
idealizara um pouco demais, me reservava outras surpresas. Viajando pelo país,
percebi que o culto das belezas naturais, ilustrado, aos olhos do Ocidente, por seus
maravilhosos jardins, pelo amor às cerejeiras em flor, pela arte floral e até mesmo pela
cozinha, podia se acomodar com uma extrema brutalidade diante do meio natural. (p.
98-9)

Talvez a imagem transmitida por Lévi-Strauss seja forte ao pensar essa relação com a
Natureza em termos de amor e brutalidade. No entanto, penso que em tempos de catástrofe
ecológica global, causada em grande parte pelo dominação do Sujeito Racional que
transforma a Natureza passiva através de seu Trabalho, pensar em uma relação de intimidade
entre ambos esse polos torne nossa relação apropriativa e exploradora em algo mais
consciente e, talvez, mais saudável. Porque, como diz o antropólogo francês, o Japão oferece
ao ocidente um modelo de “higiene mental”.

Analogias com a física mecânica feitas por Lévi-Strauss transmitem boas imagens para
pensarmos a diferença entre as concepções de sujeito, ou melhor, os diferentes modos de
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subjetivação do Ocidente e do Oriente. O Sujeito, tal como expresso em nosso pensamento, é


o ponto de origem de tudo. A experiência do Eu é fundamental para a existência do mundo.
Basta pensarmos no mito de criação judaico-cristão, o mundo em toda sua totalidade surge de
um ponto único, ponto este que tem todas as características de um sujeito, ou melhor, um
hiper-sujeito ou um sujeito ideal. Dessa forma, Lévi-Strauss diz que a filosofia do Sujeito
ocidental é centrífuga, enquanto no Japão, o sujeito exerce uma força centrípeta.

Portanto, antes de ser uma total recusa ao Sujeito, temos um outro sujeito, um sujeito
provisório, que não é uma causa da ação, mas sim um resultado, ou melhor, um efeito. O
teatro Nô, penso, nos oferece uma poderosa imagem a esse respeito. Poderia utilizar aquela
descrição bastante recorrente que conta sobre a relação do ator com a máscara; diz-se que é
esta última, a máscara, que “veste” o ator para a composição do personagem-protagonista
(KUSANO, 1988) – ou seja, o personagem-protagonista parece ser o efeito de uma relação em
que ambos, máscara e ator, se usam mutuamente –, não há nesse caso, me parece, uma ação de
um sujeito centrado que através de um instrumento inerte causa uma boa “representação
teatral”. O que é significativo para mim, é que o sujeito, neste caso o personagem-protagonista,
é o efeito de uma relação.

No entanto, não é esse aspecto do Teatro Nô que pretendo desenvolver. Focarei aqui em uma
análise retirada de um artigo de Richard McKinnon (1953) sobre Zeami e suas concepções
acerca do treinamento de atores.

A audiência tinha um lugar central nas performances de Nô. Isso se evidencia na necessidade,
expressa por Zeami, de que um ator deveria ter versatilidade e flexibilidade para poder
“encantar” um público heterogêneo sem acabar com a harmonia da peça. Nas palavras de
McKinnon, que traduzo aqui, ele diz:

[...] um verdadeiro grande artista deve ter flexibilidade o bastante para variar sua
performance com o intuito de agradar uma audiência de uma região menos sofisticada
[assim como a audiência sagaz de um distrito capital]. Através da variação da
apresentação, Zeami foi capaz de evocar na audiência um sentimento de inovação e
frescor, ou mezurashiki, que ele sentia que era necessário para o sucesso. (1953, p.
210-11)

O sucesso poderia ser compreendido pelo agenciamento de um efeito estético chamado de


yūgen, traduzido belamente por Haroldo de Campos (2006) como “charme sutil”. Para Zeami,
segundo descreve McKinnon, era esse efeito, yūgen, que deveria ser levado em consideração
5

pelo ator em seu processo de aperfeiçoamento. Contudo, algo permanece ainda no ar: como
podemos relacionar essa concepção acerca da “produção” do yūgen e o tema da recusa do
Sujeito apresentado por Lévi-Strauss? Aqui certamente farei um salto interpretativo muito
grande, espero que o exercício faça valer o risco8.

Para Zeami, o artista para poder agenciar, ou melhor, elicitar um efeito estético yūgen, precisa
desenvolver/ter aquilo que ele chama de hana9. Como uma qualidade que parece ser
intangível, para que o artista saiba/conheça sua eficácia (hana) ele necessita da
“objetificação”10 causada pelo yūgen; esse efeito seria a “constatação” da eficácia do artista,
isto é, seu hana. Dessa forma, me parece que o yūgen pode ser visto antes como o índice de
uma capacidade de elicitar na audiência uma certa resposta do que como uma característica
intrínseca à apresentação e que deve ser deduzida passivamente pela audiência. Assim, o
sujeito (nesse caso, o artista) parece ser precipitado nessa relação; através do yūgen provocado
na audiência, ele conhece a si próprio, tem a certeza de ser um agente, se constitui como
sujeito.

No entanto, o yūgen não parece ser apenas o índice do hana do ator. A audiência parece
também ser “beneficiada” na produção desse efeito. Elicitar um efeito na audiência também a
constitui como um sujeito. Isso parece claro, quando McKinnon descreve o que Zeami
designou por kan, traduzido como um tipo de “percepção intuitiva”.

Kan, segundo McKinnon (1953), não é um conceito facilmente definível. Para o autor, é
aquilo que “possibilita o artista a se tornar um mestre em seu meio, e através do qual, dar
marca pessoal à performance” (p. 212 – tradução nossa). Seguindo a analogia feita por Zeami
que comparava a situação do ator à uma marionete, McKinnon afirma: “Ele [Zeami]
reconheceu que assim como uma marionete requer fios para que tome vida, um artista de Nô
precisa da percepção e do entendimento como “fios” invisíveis para que sua atuação ganhe
vida” (Ibid., p. 212 – tradução nossa).

Se a percepção e o entendimento, isto é, kan, agem como fios que dão vida à performance,
quem movimenta esses fios? Aqui gostaria de propor que poderíamos pensar que é a audiência.
O autor afirma que o kan é a maneira que o artista estabelece uma conexão com a audiência.
Mas e se tentássemos perceber isso como sendo a conexão criada pela audiência? Dessa
forma, a audiência não parece mais apenas o recipiente de onde o artista elicita um efeito, mas
passa a ser também um elemento ativo que incita o artista a buscar criar o efeito, o yūgen.
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Portanto, o yūgen também pode ser compreendido, proponho, como o efeito da eficácia de um
duplo movimento de relações que constituem dois sujeitos: a audiência satisfeita e o artista
triunfante. Uma relação em que a audiência controla a atuação incitando uma ação a partir de
sua capacidade de afetar o kan do artista. E outra relação, em que o artista incitado pela
audiência, através de seu hana é capaz de extrair de sua audiência um efeito, uma resposta
adequada, o yūgen. O sujeito parece ser, como já indicado por Lévi-Strauss, o resultado de
como as pessoas se encaixam umas nas outras, isto é, a realidade do sujeito é “como o último
lugar em que se refletem seus pertencimentos” (2012, p. 35).

Direcionemo-nos então para a segunda recusa: o Discurso. Espero que a exposição acerca da
recusa do Sujeito tenha sido o suficiente, apesar de parecer certamente um pouco confusa. O
Discurso tem igual importância para nós, ocidentais. Acreditamos que “um discurso bem
construído coincide com o real, atinge e reflete a ordem das coisas” (LÉVI-STRAUSS, 2012,
p. 34). Já no pensamento japonês, diz Lévi-Strauss (Idem),

todo discurso é irremediavelmente inadequado ao real. A natureza última do mundo, a


supor que essa noção tenha algum sentido, nos escapa. Ela transcende nossas
faculdades de reflexão e de expressão. Nós não podemos nada conhecer dela, e
portando nada dizer a seu respeito.

Contudo, a recusa do Discurso não implica necessariamente sua negação absoluta. Lévi-
Strauss aponta que a recusa japonesa se desdobra em uma desconfiança a um “espírito de
sistema” imbuído de “preconceitos tenazes” como a ideia de que os fenômenos da vida tem
uma racionalidade e uma necessidade lógica. O antropólogo francês utiliza a filosofia do Zen
Budista para ilustrar a maneira que o discurso, que assume a forma de sabedoria, parece ser
construído. Esse discurso é uma sabedoria que desconfia de si mesma, Lévi-Strauss (2012)
afirma que

o zen é uma prática da meditação que deve conduzir à sabedoria, e se essa sabedoria
consiste em se distanciar do mundo das aparências, numa última etapa a sabedoria
descobre que, prisioneira de outras ilusões, também deve desconfiar de si mesma. Ora,
um saber que duvida de si não é um saber. Ter atingido esse conhecimento supremo
que tudo é não conhecimento liberta o sábio. Ao ponto em que chegou, para ele isso
equivale saber que nada tem sentido, e, como se tudo tivesse um sentido, a partilhar
como homem ordinário a existência de seus contemporâneos. (p. 81-2)

Neste ponto, gostaria de introduzir outra imagem que pode deixar mais claro a questão da
recusa ao discurso. Desta vez não pretendo me voltar ao teatro Nô, me aterei ao belíssimo
7

ensaio de Lévi-Strauss sobre Sengai.

Sengai (1750 – 1837) foi um monge budista da escola Rinzai – conhecida pelos seus
ensinamentos de difícil entendimento assim como pelo uso dos koan. Lévi-Strauss o situa na
linhagem do pensamento que fez escola com a designação de “arte do imperfeito”. Oriunda
das cerimônias do chá, a arte do imperfeito tem um apreço pelos produtos que foram
produzidos sem uma pretensão estética de tornarem-se obras de artes; valoriza-se as
irregulares, assimetrias, descontinuidades, ou seja, a imponderabilidade da vida.

Contudo, como salienta Lévi-Strauss, devemos ser cautelosos para não apressarmos uma
analogia entre a arte do imperfeito e o interesse de artistas ocidentais em “encontrar a
liberdade do gesto criador aquém das regras convencionais” (2012, p. 75). O que estava em
jogo nessa opção estética era “se livrar de qualquer dualismo para atingir um estado em
que a oposição do belo e do feio não tem mais sentido: estado que o budismo chama de
‘Assimdade’, anterior a todas as distinções, impossível de definir senão pelo fato de ser
assim” (Ibid., p. 75).

A arte de Sengai também é uma forma de fazer com que os dualismos bastante comuns ao
nosso pensamento se desmontem e percam sua eficácia como categorias de análises. Uma arte
em que “a negligência e a elegância se confundem” (Ibid., p. 75) requer que a olhemos de
outros ângulos. O primeiro desafio das obras de Sengai é o uso da “caligrafia” com a
“figuração”. Contudo, essa distinção é nossa, devemos lembrar que o próprio Sengai afirmava
que seu “jogo” com o pincel e a tinta “não é nem pintura nem caligrafia”11, a composição
torna texto e desenho indissociáveis, eles “se respondem um ao outro” (LÉVI-STRAUSS,
2012, p. 80).

Voltemos a recusa do Discurso e sua relação com a arte de Sengai. Essa arte é marcada pelo
que Lévi-Strauss chama de uma “economia de meios”, aspecto derivado do fato do Japão ser
uma “civilização de tons”, onde as coisas significam mais. Dada a incomensurabilidade entre
discurso e mundo, a economia de meios empregada por Sengai ajuda a expressar a
coincidência, “o encontro inesperado da realidade com um gesto” (LÉVI-STRAUSS, 2012, p.
76). “A obra não imita o modelo. Ela celebra a coincidência, mais valeria dizer a fusão, de
dois fenômenos transitórios: uma forma uma expressão ou uma atitude, e o impulso dado ao
pincel” (Ibid., p. 76).

A própria noção de “obra de arte” precisa ser repensada nesse encontro com um discurso que
8

parece sempre está mudando, pois desde o começo nunca foi realmente adequado. Mais que
uma forma espacial, a arte de Sengai assume uma forma temporal. A produção de Sengai se
apresenta muitas vezes enquanto uma série onde a individualidade se transforma a partir de
uma mistura, sucessão e repetição. “Em tal arte, o quadro não existe, à maneira dos nossos,
como um objeto [uma obra]: é algo que chega e se apaga atrás de outro quadro igualmente
passageiro” (LÉVI-STRAUSS, 2012, p. 79).

Outra questão que se desdobra da arte de Sengai é a autoria. Qual o papel assumido por
Sengai na produção de seus trabalhos? A dupla recusa japonesa nos coloca diante das questões,
já que o sujeito não é um a priori e tampouco o discurso é adequado à realidade, de quem
figura como autor? E sobre o que a autoria se exerce?

Lévi-Strauss é enfático ao contrapor a concepção de autoria ocidental à concepção japonesa


afirmando que “o monge do zen quer ser o lugar insubstancial em que alguma coisa no mundo
se expressa através dele” (LÉVI-STRAUSS, 2012, p. 79) enquanto o “autor” ocidental busca
através de um gesto criativo “expressar sua personalidade na obra” (Ibid., p. 79). Novamente a
relação parece algo importante. Ao se tornar o lugar insubstancial, Sengai é capaz de permitir
que o mundo se anuncie através do resultado desse encontro: a arte. Pois como diz Lévi-
Strauss (Ibid., p. 79): “o eu é o meio pelo qual o signo se expressa e, subsidiariamente, assume
a individualidade de quem o escreve”. A arte de Sengai é fruto dessa relação, em que mundo e
pessoa (sujeito) se compõem mutuamente. O antropólogo francês estava certo, a arte de
Sengai é uma “arte de se acomodar no mundo” e de deixar o mundo se acomodar em si!

Novamente voltamos para o contraste que Lévi-Strauss percebe entre o pensamento ocidental
e o pensamento japonês – aquele entre o centrípeto e o centrífugo. E aqui, já me encaminho
para a conclusão. No início desse ensaio usei um koan como analogia para o efeito que tentei
criar. O efeito era um efeito de alteração. Como se alterar a partir de um encontro com a
alteridade?

O Japão de Lévi-Strauss é uma imagem complexa porque certamente o Japão é uma realidade
que nos escapa. E isso ele nos ensina: que o discurso é irremediavelmente inadequado para o
mundo. Esse ensaio, sendo a construção sobre outra construção, pode parecer potencializar
essa inadequação. Mas espero, que algo ele possa nos ensinar: que ao lidarmos com o Outro
precisamos ser criativos para poder diminuir o máximo possível a inadequação de nossos
conceitos ao descrevermos os conceitos dele. E para isso não há um lugar seguro, apenas um
9

entre-lugar extremamente perigoso, pois é um entre-lugar que pode nos transformar. E quem
melhor que o Japão, uma cultura que vive se reinventando, para mostrar que isso é possível e
apreciável.

Notas

1 Esse ensaio é uma versão modificada e estendida de uma apresentação feita em 2013 no Grupo de Estudos A Arte Japonesa:
Diálogos, coordenado pela Prof. Dr. Michiko Okano. Agradeço pelos comentários feitos pelos presentes na ocasião, em
especial, Michiko Okano e Karina Ayumi.
2 A inspiração aqui vem de Roy Wagner (2009) e a maneira como ele pensa a antropologia. Para o autor, a antropologia é
oriunda de uma relação – entre antropólogos ou antropólogas e nativos – em que os primeiros, para lidar com o que
comumente chamamos de choque cultura, inventam para esses últimos uma cultura. Contudo, nesse processo de inventar uma
cultura para o Outro, o antropólogo ou antropóloga inventa uma cultura para si. Portanto, ao se construir uma imagem sobre o
Japão, construímos no mesmo ato uma imagem sobre nós mesmos; a tarefa seria, então, deslocar essas imagens de tal modo
que o antropólogo ou a antropóloga seja capaz de familiarizar o “estranho” e estranhar o “familiar”.
3 Tomo emprestada a expressão de Viveiro de Castro (2002, p. 123 – grifo nosso): “A expressão 'experiência de pensamento'
não tem aqui o sentido usual de entrada imaginária na experiência pelo (próprio) pensamento, mas o de entrada no (outro)
pensamento pela experiência real: não se trata de imaginar uma experiência, mas de experimentar uma imaginação”.
4 Junzo Kawada, o autor do prefácio de A outra face da lua, descreve que encontramos no livro um “Lévi-Strauss amoroso do
Japão” (p. 9 – grifo do autor).
5 A negatividade é uma estratégia antropológica de descrição, que consiste na afirmação de que certo conjunto de conceitos
não se aplica ao material etnográfico (STRATHERN, 2006). A negatividade também nos informa muito sobre a importância
de determinados conceitos em sua metafísica de origem.
6 Retirado de Tennyson (2009).
7 Tradução nossa. Retirado de Scheper-Hughes e Lock (1987).
8
Confesso que essa análise foi inspirada pela análise que Strathern (2006) faz das concepções melanésias acerca da pessoa e
da ação. Também devo muito de minha inspiração para essa análise ao fascinante artigo de Benito Ortoloni (1972) sobre a
importância da audiência no Teatro Nô.
9 Outro texto de McKinnon (1952) me ofereceu pistas que também contribuíram para a análise.
10 O termo provém de Strathern (2006) que define objetificação como “a maneira pela qual as pessoas e as coisas são
construídas como algo que tem valor, ou seja, são objetos do olhar subjetivo das pessoas ou objetos de sua criação” (p. 267).
11 A frase completa atribuída a Sengai é: “Meu jogo com o pincel e a tinta não é pintura nem caligrafia; ainda assim pessoas
desavisadas pensam equivocadamente: isto é caligrafia, isto é pintura” (tradução nossa – retirado de STEVENS, s/d).

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CAMPOS, Haroldo de. Hagoromo de Zeami. São Paulo: Estação Liberdade, 2006.
KUSANO, Darci. O que é teatro nô. São Paulo: Brasiliense, 1988.
10

LÉVI-STRAUSS, Claude. A outra face da lua: escritos sobre o Japão. São Paulo: Companhia das
Letras, 2012.
LÉVI-STRAUSS, Claude. Antropologia diante dos problemas do mundo moderno. São Paulo:
Companhia das Letras, 2012.
MCKINNON, Richard N. The No and Zeami. The Far Eastern Quarterly, v. 11, n. 3, maio 1952.
MCKINNON, Richard N. Zeami on the art of training. Harvard Journal of Asiatic Studies, v. 16, n.
1-2, jun. 1953.
ORTOLANI, Benito. Zeami’s Aesthetics of the No and Audience Participation. Educational Theatre
Journal, v. 24, n. 2, maio 1972.
SCHEPER-HUGHES, Nancy; LOCK, Margaret M. The Mindful Body: A Prolegomenon to Future
Work in Medical Anthropology. Medical Anthropology Quarterly, New Series, Vol. 1, No. 1, mar.
1987.
STEVENS, John. The appreciation of Zen Art. s/d. Disponível em:
<http://www.zenpaintings.com/stevens.htm> Acesso em: 16 mar. 2014.
STRATHERN, Marilyn. O gênero da dádiva. Campinas: Editora Unicamp, 2006.
TENNYSON, Alfred. Poemas de Alfred Tennyson. Seleção, tradução, notação, introdução e organi-
zação de Octávio Santos. Lisboa: Editora Saída de Emergência, 2009.
VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. O nativo relativo. Mana, v. 8, n. 1, abr. 2002.
WAGNER, Roy. A invenção da cultura. São Paulo: Cosac Naify, 2009.

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