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UNIVERSIDADE DO VALE DO RIO DOS SINOS

FORMAÇÃO HUMANÍSTICA
EIXO: AMÉRICA LATINA

Neoliberalismo e globalização na América Latina


Almiro Petry1 (2008)2

1 Introdução

O neoliberalismo dissemina-se, como doutrina econômica – com fundamentos filosóficos,


políticos e ideológicos liberais - a partir do final da década de 70 e, em duas décadas, torna-se
um guia teórico e prático de partidos políticos e governos em quase todo o Ocidente. Seus
princípios doutrinários passam a ser aceitos, apesar dos veementes protestos de expressivos
segmentos da sociedade politicamente organizada, assumindo a condição de hegemonia como
“pensamento único”. Consolida seu ideário no Consenso de Washington (1989)3.
A vertente histórica deste pensamento surge com o liberalismo dos séculos XVIII e
XIX, que ganhou espaço e influência na sociedade européia com o desenvolvimento do
capitalismo e com a consolidação da ordem burguesa. A doutrina liberal afirma que o
propósito do Estado - como associação de indivíduos independentes – é facilitar os projetos
de seus membros e de seus empreendimentos. Os Estados, portanto, não devem impor seus
próprios projetos. Esta doutrina fundamenta a doutrina econômica do capitalismo. No século
XIX esta doutrina incorporou idéias como o livre mercado, a democracia e a
autodeterminação nacional dos Estados. O contrato social do liberalismo explora toda a esfera
de escolhas privadas (consciência, opinião, família, iniciativas, educação etc.) que o Estado
não deve invadir com vistas a garantir a ordem e a proteger a propriedade privada. Para
Locke, propriedade inclui “vida, liberdade e posses” e seu gerenciamento “é um dever a nós
imposto por Deus”. Os governantes têm suas prerrogativas regidas pela lei e a “autoridade
resulta da aquiescência do governado, e o povo tem o direito, como último recurso, de

1
Mestre em Sociologia Rural (UFRGS) e Doutor em Ciências Sociais (Unisinos); Professor do Curso de
Ciências Sociais da Unisinos e do Departamento de Sociologia da UFRGS (almiro.petry@gmail.com).
2
Atualização da versão publicada em 2007.
3
O Consenso de Washington (1989), denominação cunhada pelo economista inglês John Williamson, refere-se a
um conjunto de dez medidas (reformas) que poderiam implementar o crescimento econômico dos países da
América Latina. Essas reformas seriam: disciplina fiscal; uma mudança nas prioridades para as despesas
públicas; reforma tributária; liberalização do sistema financeiro; uma taxa de câmbio competitiva; liberalização
comercial; liberalização da entrada do investimento direto; privatização das empresas estatais;
desregulamentação das relações de trabalho e da economia e direito da propriedade assegurado. Além destas dez
medidas, os governos ainda optaram pela “reforma previdenciária” em que os trabalhadores perderam muitos dos
direitos historicamente (e heroicamente) conquistados.

1
derrubar o governante que viole essas condições”4. Esta é a essência doutrinal: reconhecer o
desejo individual como fato básico de uma associação civil moderna.
O liberalismo opõe-se a qualquer intervenção do Estado e formula a tese de que o
indivíduo se caracteriza como a célula elementar de constituição da sociedade. Nesta
condição, o indivíduo tem direito à total liberdade econômica e política, não podendo o
Estado inibir ou coibir qualquer iniciativa sua. O mercado, regido pela “mão invisível”,
harmonizaria as ações e os comportamentos individuais, alicerçados nos interesses
particulares. Assim, as sociedades modernas ocidentais, que constituíram economias de livre
mercado, se desenvolveram com base no que A. Smith chamou de “troca, permuta e
intercâmbio” de todos os membros.
No plano internacional, esse pensamento deu origem à doutrina econômica das
“vantagens comparativas”, fundamentada na total liberdade comercial entre as nações,
sustentado no princípio do individualismo liberal e da teoria das relações econômicas
racionais. No entanto, esta concepção produziu imensas disparidades e desigualdades que se
traduziram em novas formas de dominação e exploração, configurando um imperialismo. As
dimensões das desigualdades são crescentes. Segundo Sunkel5, “em 1770 os países mais
desenvolvidos apresentavam um Produto Interno Bruto por habitante apenas 1,2 vezes maior
do que o dos países ou colônias subdesenvolvidos. Duzentos anos depois, em 1970, esta
diferença já era dez vezes maior.” No final da década de 1980 atingia a ordem de 15 vezes. E,
em 2004, elevou-se a cifra de 20 vezes. Neste contexto formula-se o conceito de
interdependência, ou seja, nenhuma nação é tão autosuficiente que possa prescindir das
outras. É necessário encontrar as complementaridades de recursos, com base nas “vantagens
comparativas” e aí intercambiar. Para Z. Bauman, o fenômeno da desigualdade entre as
nações é recente, pois, “por volta de 1870, a renda per capita na Europa industrializada era 11
vezes maior do que nos países mais pobres do mundo. No curso do século seguinte, esse fator
quintuplicou, chegando a 50 em 1995”. Para o Banco Mundial, essa diferença duplicou nos
últimos 40 anos.
O neoliberalismo emerge como uma reação teórica e política ao socialismo e ao
Estado intervencionista keynesiano, presente nos EUA (com o New Deal) e na Europa
(sociais-democracias), conhecido como o Estado de bem-estar social. Movido pelos
princípios clássicos dos direitos individuais, da utilidade, da escolha racional e da
racionalidade instrumental, o neoliberalismo revive a questão do contrato social frente aos
benefícios sociais concedidos pelo Estado. Como pode o indivíduo gerar bens públicos se isto

4
DICIONÁRIO do Pensamento Social do Século XX, Outhwaite, W. e Bottomore, T. Verbete: Liberalismo.
5
Apud: PETRY, A. SCHNEIDER, J. LENZ, M. Realidade Brasileira. 10ª ed. Porto Alegre: Sulina, 1990.

2
não é do seu interesse particular? A controvérsia atinge “uma estrutura de regras
constitucionais” consolidadas na medida em que o Estado liberal defende a

independência e a imparcialidade” frente às preferências individuais de seus membros que, nas


sociais-democracias, recebem a proteção do Estado, mormente os pobres. Para Daniel Bell,
“as sociedades capitalistas modernas exigem tanto uma ética protestante austera e
parcimoniosa na área da produção quanto uma atitude hedonista para com o consumo – uma
propensão tende a destruir a outra.6

Os principais ideólogos do neoliberalismo são: L. von Mises (1881-1973), F. von


Hayek (1899-1992), M. Friedman (1912-2007), K. Popper (1902-1994) e L. Robbins (1898-
1984), partidários que se associam para combater o socialismo, o solidarismo e o Estado do
bem-estar social. Afirmam a liberdade econômica e política como absolutas, que se regeriam
pelo funcionamento dos mecanismos de mercado. A cartilha deste ideário está consignada no
Consenso de Washington (1989). O “laboratório” deste ideário é o regime totalitário de
Pinochet, no Chile (golpe de Estado em 11-09-1973). De lá, espraia-se pelo mundo. A década
de 1980 foi marcada pelo “surto da ideologia neoliberal”, frente à crise do capitalismo,
iniciado na Inglaterra com M. Thatcher (1979-1990), passando por R. Reagan dos EUA
(1982-1990) e, depois, H. Kohl na Alemanha (1982-1998), após a reunificação, etc.

2 O pensamento liberal de Hayek


No livro Os fundamentos da liberdade7 Hayek analisa questões básicas da Filosofia Política.
Ele parte da constatação de que cada época ou período da história humana, ou cada cultura, ou
até cada geração em cada civilização têm sua linguagem própria, e para que os conceitos,
mesmo de verdades perenes (ou velhas verdades) estejam vivos na mente humana, precisam
ser reafirmados na linguagem das novas gerações. Entende que as idéias fundamentais de uma
civilização têm sempre o mesmo valor, mas as palavras e os argumentos, para serem
proferidos com a mesma convicção, necessitam ser elaborados para a nova formação social.
Acredita que a civilização ocidental, construída sob o ideal da liberdade, teve seus
fundamentos abalados no último século (expressou isso em 1959), e os homens, em vez de
melhorarem o conhecimento e a aplicação daqueles princípios, buscaram ordens sociais
alternativas. Julga, portanto, ser tarefa premente a reconstrução da sociedade e não a redenção
dos indivíduos.

6
Apud: BOTTOMORE, op. cit. Recomenda-se a leitura do texto clássico de Max Weber: A Ética protestante e o
Espírito do capitalismo.
7
HAYEK, F. A. Los fundamentos de la liberdad. 5ª ed. Madrid – España: Unión editorial S. A., 1991, 510p.

3
Na contenda ideológica (liberdade x servidão), o Ocidente só poderá triunfar
consolidando a convicção no seu credo, isto é, clareando as mentes daquilo que se quer
preservar e daquilo que se quer evitar, construindo posições inequívocas.
O Ocidente mostra-se inseguro e perde a fé nas tradições que constituíram sua
civilização. A raiz está na crescente descrença na liberdade. Exatamente a liberdade que
possibilitou a construção do sistema econômico, social e político, resultando num bem-estar
social e de crescimento sem precedentes. Acredita que todas as conquistas do Ocidente podem
ou deveriam ser transplantadas para outras culturas e civilizações e reavivar a tradição para a
construção de uma sociedade livre, com base na dignidade humana, nas liberdades
individuais e com um mercado livre.
Para Hayek, liberdade individual (ou pessoal) é o estado (ou condição) no qual o ser
humano não está sujeito a nenhuma coerção decorrente da vontade arbitrária de outrem (ou de
outros), sendo, portanto, a tarefa de uma política de liberdade minimizar ou até, se possível,
eliminar a coerção e seus efeitos danosos. Fundamenta seu conceito no processo civilizatório
ocidental que inicia sob a distinção dos humanos em livres e escravos. Assim, o ser livre
significa a independência frente à vontade arbitrária de um terceiro (p.27). Por isso, a
liberdade trata, exclusivamente, da relação do homem para com seu semelhante, aplicável
somente à sociedade humana. Nesta perspectiva, pressupõe-se que o indivíduo tenha
preservado certo âmbito de atividades privadas, ou seja, exclusivo, em que os outros não
possam interferir, que ele descreve como um estado de liberdade.
Denomina-se liberdade política a participação na escolha do governo, no processo
legislativo e no controle da administração. Faz parte, portanto, do conjunto das liberdades
coletivas (isto significa que um povo livre não é necessariamente um povo de homens livres,
p.29). O povo livre está na condição de ausência coactiva externa. Em geral, os simpatizantes
(adeptos e defensores) da liberdade individual aspiram (lutam e defendem) à independência
da nação (os movimentos de independência de povos e nações incluem-se nesta perspectiva).
A liberdade interior refere-se à possibilidade de uma pessoa humana pautar-se em suas
ações por sua própria e deliberada vontade e consciência (opõem-se a ela as emoções
momentâneas, a debilidade moral e a debilidade intelectual; sendo escrava de suas paixões, a
pessoa humana não é livre, p.31). Da mesma forma, aplica-se isso à ignorância, às
superstições etc., o que permite proclamar que o conhecimento liberta (p.31). Nessa medida, a
liberdade interior e a liberdade individual determinarão, conjuntamente, o quanto a pessoa
humana aplicará seus conhecimentos e aproveitará as oportunidades.

4
A liberdade interior diferencia-se, porém, do livre-arbítrio, que se refere “às ações e à
vontade humana, e pretende significar que o homem é dotado de poder de, em determinadas
circunstâncias, agir sem motivos ou finalidades diferentes da própria ação8”.
Quanto ao livre-arbítrio, Hayek busca uma fundamentação histórica e afirma que a
crença no freedom of the will foi invalidada pela ciência moderna, que gerou a crescente
convicção determinista. Assim, a controvérsia configura-se em duas correntes: os
deterministas e os voluntaristas. Os deterministas em geral argumentam que, como as ações
humanas são completamente determinadas por causas naturais, não há fundamento pelo qual
os indivíduos possam ser responsabilizados, nem elogiados ou criticados por suas ações. Os
voluntaristas afirmam que, como existe no homem um agente que se encontra fora da cadeia
de causa e efeito, é esse agente quem deve ser responsabilizado, constituindo o objeto
legítimo de elogio ou crítica. Para Hayek, os voluntaristas estão bem mais próximos da
verdade, enquanto os deterministas se acham equivocados (p.97). Desta forma, livre define a
ação de acordo com a vontade própria, e não com a vontade alheia.
Uma confusão que muitas vezes se estabelece é identificar liberdade enquanto poder,
descrevendo-a como a faculdade física de fazer o que alguém quiser (p.32). Essa confusão
decorre da utilização das palavras limitação (restrição) e coerção no conceito de liberdade.
Assim, por exemplo, John Dewey defende que a liberdade é poder, poder efetivo para uma
atuação específica, e a exigência de liberdade é exigência de poder, ou ainda, se o uso da
força está ou não justificado em essência, é uma questão de eficiência dos meios para a
consecução dos fins, e só se valorizará como um meio para a liberdade o que é poder (p.34).
Dessa forma, a interpretação da liberdade enquanto poder foi facilitada – pela tradição
filosófica – ao utilizar a palavra limitação em vez de coerção. A limitação, em sentido
restritivo, pressupõe a ação de um agente humano, isto é, a ação de impedir que as pessoas
façam determinadas coisas. A coerção dá ênfase à idéia de compelir as pessoas a fazer
determinadas coisas. Hayek julga que, para ser exato, dever-se-ia definir liberdade como a
ausência de limitação e coerção9. Mas a preferência é pela definição de ausência de
obstáculos à realização de nossos desejos, ou ainda, como ausência de impedimento externo.
Isto equivale a interpretá-la como poder efetivo de fazer qualquer coisa que se queira (p.33).
Consolidando o conceito de liberdade como a ausência de qualquer coerção que
deriva da vontade de outrem (p.36), a liberdade torna-se positiva através do uso que dela se
fizer, contrapondo-se, dessa forma, à escravidão. A relação liberdade, coerção e lei depende
do conceito de coerção, mas também o conceito de arbitrariedade é indispensável para a

8
Novo Dicionário Aurélio, verbete: livre-arbítrio.
9
Conforme o Pequeno Dicionário Oxford: a 1ª. acepção de coerção: compelir ou restringir, pela força, ou por
autoridade baseada na força.

5
definição de norma ou lei. A sociedade livre confere ao Estado o monopólio da coerção10,
impedindo que seja exercida por pessoas particulares. Isto só será possível se o Estado
proteger as esferas privadas contra a interferência de outros, apoiado nas regras que
estabelecem esses limites (p.38).
Segundo Hayek, para compreender a sociedade, a máxima socrática de que o
reconhecimento da ignorância é o começo da sabedoria, tem um profundo significado,
porque as formas mais avançadas da vida humana que se denomina de civilização, repousam
no fato de que o indivíduo se beneficia de mais conhecimentos do que os que ele possui. Isto
significa que a civilização começa quando, na persecução de seus ideais, o indivíduo utiliza
um volume de conhecimentos muito maior do que o adquirido por ele próprio, podendo
ultrapassar os limites de sua ignorância e usufruir conhecimentos que não possui. Por outro
lado, o conhecimento existe unicamente como individual, pois falar em conhecimento da
sociedade é tão-somente uma metáfora. A mente humana, contudo, é um produto da
civilização na qual o indivíduo nasceu, cresceu e desenvolveu seus hábitos, sua linguagem,
suas crenças e seus saberes. A mente, porém, é um sistema em constante mudança. Para
evoluir, deve-se permitir uma revisão contínua das concepções e ideais presentes. Assim, o
conhecimento que o indivíduo manipula é uma pequena parcela daquilo que contribui para o
êxito de suas ações. A evolução da mente humana faz parte da evolução da civilização. Desta
forma, a liberdade individual é essencial para a pessoa humana ultrapassar seu conhecimento
limitado, confiando no seu esforço independente e na competitividade, para fazer frente às
suas necessidades.
A teoria da liberdade desenvolveu-se, a partir do século XVIII, na Inglaterra (que
conhecia a liberdade) e na França (que não conhecia a liberdade), configurando duas correntes
(tradições): a anglicana, empírica e assistemática; a francesa, especulativa e racionalista. A
anglicana baseia-se numa interpretação das tradições e do crescimento espontâneo das
instituições, que foram compreendidas imperfeitamente. A francesa, formula uma utopia que,
em várias tentativas, se tentou pôr em prática, mas que não se constituiu em êxito.
O moderno liberalismo considera as duas tradições como suas vertentes,
diferenciando-as pela cosmovisão peculiar: a anglicana, essencialmente empírica, encontra a
essência da liberdade na espontaneidade e na ausência da coerção; a francesa, com postura
racionalista, encontra a essência da liberdade somente na perseguição e consecussão de um
propósito coletivo absoluto (p.76).

10
Ihering afirma: o Estado é uma comunidade humana que reivindica, com êxito, o monopólio do uso legítimo
da força física; ou, Malinowky: o Estado é a única instituição histórica que detém o monopólio da força; ou,
Clark: admite-se que a coerção apoiada por força é monopólio do Estado.

6
O homem, como produto de sua civilização, na sociedade livre não encontra limites às
suas aspirações, mas os ineficazes serão abandonados e os eficientes mantidos. A
concorrência, na qual se baseia o processo de seleção, deve ser entendida no seu mais amplo
sentido, isto é, concorrência entre os indivíduos e também entre grupos organizados e não-
organizados. A organização, por sua vez, baseada em conhecimentos, constitui um dos meios
mais poderosos que a razão humana pode empregar. Defender a liberdade, porém, é opor-se a
toda organização exclusiva, privilegiada ou monopolista, como também ao emprego da
coerção, para impedir que outros tentem apresentar melhores soluções.
Grande parte do progresso social é devido ao fato de que o homem não controlou a
vida pela razão. O processo evolutivo da razão baseia-se na liberdade e na imprevisibilidade
da ação humana. O racionalista, por sua vez, deseja sujeitar tudo à razão humana, visando ao
controle e à possibilidade de previsão. Não estamos longe do momento em que as forças
deliberadamente organizadas da sociedade poderão destruir as forças espontâneas que
tornaram possível o progresso (p.54-7).
Os pensadores (filósofos) anglicanos lançaram os fundamentos da teoria da liberdade,
proporcionando uma análise da evolução da civilização. Segundo eles, a origem das
instituições deve ser buscada na sobrevivência das mais funcionais, pois, segundo Ferguson,
as nações tropeçam em instituições que são o resultado da ação humana, mas não a execução
de desígnio humano. A. Smith, D. Hume e A. Ferguson têm em comum a explicação em
termos da evolução espontânea e irreversível de certos princípios óbvios e que lhes permite
compreender como as instituições e a moral, a linguagem e o direito, evoluíram por um
processo de crescimento cumulativo11 (p.76-7).
No desenvolvimento das idéias sociais, duas tradições assim se configuram: os
evolucionistas e os racionalistas. Os primeiros acreditam que a civilização seja resultado
cumulativo e conseguido com esforço mediante o processo de tentativa e erro; a civilização é
a soma de experiências, transmitida de geração em geração como conhecimento explícito...
Os segundos afirmam que o homem foi originalmente dotado dos atributos intelectuais e
morais que lhe permitiram moldar a civilização de acordo com um projeto. A tradição
racionalista – teoria de construção social deliberada – baseia-se no pressuposto de que o
indivíduo é propenso à ação racional e dotado de inteligência e bondade naturais. A tradição
evolucionista mostra que certas estruturas institucionais levam o homem a utilizar da melhor
forma sua inteligência e que as instituições podem ser estruturadas de modo a minimizar o
mal praticado pelos homens (p.80-2).

11
Opõem-se à uma concepção cartesiana de uma razão humana preexistente e independente, ou à idéia de que a
sociedade civil foi formada por um primeiro legislador sábio ou por um contrato social originário.

7
Pode-se afirmar que a tradição racionalista se opõe a quase tudo que é produto
específico da liberdade e, para eles, liberdade é sinônimo de caos. Por outro lado, para a
tradição evolucionista o valor da liberdade consiste principalmente na oportunidade que ela
proporciona para o desenvolvimento de tudo que não é planejado. Daí nasce o apreço pela
tradição e pelo costume, por instituições que são o resultado de uma evolução e por normas
cujas origens e justificativas se desconhecem. Uma sociedade livre e bem-sucedida, por mais
paradoxal que pareça, será, em grande parte, uma sociedade ligada às tradições (p.83-4).
Entre as normas de conduta, a moral é a mais importante. Os defensores da liberdade –
os não adeptos da escola racionalista – jamais deixaram de enfatizar que a liberdade nunca
produziu bons resultados quando não existiam convicções morais firmemente arraigadas. A
obediência às normas morais não deve resultar da coerção. A coerção em si é maléfica.
Assim, o indivíduo tem a liberdade de observá-las ou transgredi-las. A flexibilidade de ação
possibilita a evolução gradual e o desenvolvimento espontâneo no campo da moral, o que
permite que a experiência futura conduza a modificações e melhoramentos. Nessa
perspectiva, D. Hume afirmou que as normas de moralidade não são conclusões de nossa
razão, mas conduzem a uma submissão como resultado do respeito pela tradição ( p.84-6).
Para Hayek, a liberdade individual é um dos poucos princípios que a humanidade
conseguiu aperfeiçoar e, por isso, deve ser considerada como um princípio moral de ação
política. A história humana mostra que as normas morais de ação coletiva são aperfeiçoadas
com dificuldade e muito lentamente. Mas isso só acontece nas sociedades livres, pois nas
sociedades em que todos são obrigados a servir os mesmos ideais e onde não se permite aos
dissidentes seguir outros ideais, as normas só se demonstrarão inadequadas com a
decadência de toda a nação. Surge, nesse caso, a questão se o consenso da maioria a respeito
de uma norma moral é suficiente para justificar que se obrigue uma minoria dissidente a
segui-la ou limitar tal poder. Em suma, a defesa da liberdade é a defesa de princípios em
contraposição ao imediatismo da ação coletiva, porque a liberdade não constitui apenas um
sistema no qual toda a ação governamental é orientada por princípios, mas também um ideal
que só será preservado se for aceito como princípio soberano que governa toda legislação
específica. É fundamental a adesão a esse ideal último, porque os “casuísmos” (para a
concessão de vantagens momentâneas ou materiais) certamente destruiriam a liberdade por
violações gradativas, pois, em cada caso particular, seria possível prometer vantagens
tangíveis e concretas como resultado de uma redução da liberdade (p.90-1).
Hayek pergunta, e nesse contexto, qual é o papel da razão no ordenamento da
atividade social? Para ele, a razão, sem dúvida, é o bem mais precioso que o homem possui.
Afirma, porém, a tese de que a razão não é onipotente e que a idéia de que ela pode dominar

8
a si mesma e controlar sua própria evolução pode destruí-la. O homem precisa usar sua razão
com inteligência, mantendo a matriz da espontaneidade e da não-racionalidade (o que não é
irracionalismo). Não significa abdicar da razão, mas um exame racional do âmbito em que a
razão pode ser controlada adequadamente. Assim, para o uso inteligente da razão no
ordenamento das atividades sociais, é preciso conhecer o papel que ela de fato desempenha e
pode desempenhar no funcionamento de uma sociedade baseada na cooperação de muitas
mentes individuais. Aí, quando se acredita compreender seu funcionamento, pode-se estar
equivocado. Por isso, é fundamental aceitar que a civilização humana tem vida própria e só
se pode aperfeiçoá-la quando se aproveitam suas forças endógenas insubstituíveis e que
condicionam tudo que se quer alcançar. Os esforços visando ao progresso devem sempre se
dar dentro deste todo, em construção gradativa, utilizando os recursos históricos disponíveis
(condena tentar recriar o todo). Nisso consiste o papel da razão no ordenamento da atividade
social (p.91-3).
Para Hayek, a liberdade antecede a igualdade e a democracia, apesar de confessar que
não acredita em que a causa da liberdade venha um dia a prevalecer, a não ser que nossos
sentimentos estejam envolvidos. Por outro lado, o grande objetivo da luta pela liberdade
sempre foi a igualdade perante a lei. Essa igualdade, no âmbito das normas que o Estado
obriga a observar, é uma extensão do princípio de igualdade às normas de conduta moral e
social. A igualdade estabelecida pelas normas legais e de conduta gerais é, todavia, a única
forma de igualdade que conduz à liberdade e a única que podemos obter sem destruir a
liberdade. As diferenças individuais não justificam que os governos tratem os indivíduos de
maneira diferente. De um lado, os atuais partidários de uma igualdade material mais ampla
costumam negar que suas exigências se baseiam no pressuposto de uma igualdade de fato
entre todos os homens. Para Hayek, nada, contudo é mais prejudicial à reivindicação de um
tratamento igualitário que partir de um pressuposto tão obviamente falso como o da
igualdade de fato de todos os homens. Por outro lado, a desigualdade de fato não justificaria
um tratamento desigual e é essencial à reivindicação de igualdade perante a lei que as
pessoas sejam tratadas do mesmo modo, embora sejam diferentes umas das outras (p.109-
110).
A espécie humana é ilimitada em sua diversidade e a evolução tornou o homem a mais
diversificada de todas as criaturas. A natureza (biológica) dá a cada homem individualmente
um conjunto de atributos únicos que lhe conferem uma dignidade que, de outro modo, ele não
teria. A importância das diferenças dá a importância à liberdade. Por isso é incorreto afirmar,
segundo Hayek, que todos os homens nascem iguais. O que não se opõe ao ideal legal e moral
de que todos os homens devam ser tratados com igualdade. O Estado, que tem o monopólio

9
da coerção, deve dispensar tratamento igual a todos, mas não pode nivelar as pessoas em suas
condições individuais. Isso não pode ser aceito numa sociedade livre, pois seria arbitrário e
discriminatório. Assim, ele se posiciona contrário a qualquer modelo distributivo
preconcebido que almeja a ordem da igualdade. Defende, porém, uma distribuição mais
próxima do mérito individual, sustentada pela liberdade (p.110-12).
Hayek identifica um ponto de convergência entre o liberalismo tradicional e o
movimento democrático que é a igualdade perante a lei, donde decorre a exigência de que
todos tenham a mesma participação na elaboração da lei. São, contudo, duas correntes de
pensamento que buscam objetivos diferentes. O liberalismo (acepção da Europa do século
XIX) visa a limitar os poderes coercitivos de todos os governos, sejam democráticos ou não.
O democratismo só reconhece um limite aos governos: a opinião corrente da maioria. Pode-
se esclarecer os dois ideais definindo seus opostos: o do liberalismo é o totalitarismo e o da
democracia é o governo autoritário (nenhum dos dois sistemas exclui necessariamente o
oposto do outro).
As diferenças podem ser mais esclarecidas: o liberalismo é uma doutrina sobre o que
deveria ser a lei; a democracia é uma doutrina sobre a maneira de determinar o que será lei. O
liberalismo tem como objetivo persuadir a maioria a observar certos princípios (considera
desejável que seja lei aquilo que é aceito pela maioria) e aceita o governo da maioria como
método para a tomada de decisões (mas não como autoridade para determinar que decisão
deve ser adotada). O democratismo considera razão suficiente aquilo que a maioria quer para
ser lei e não só lei, mas boa lei. O liberalismo é uma doutrina que trata da ação e da finalidade
do governo, e a democracia, do método, em especial para atingir objetivos igualitários (p.127-
9).
As tradições democrática e liberal concordam que sempre que se torne necessária a
ação do Estado e, sobretudo, sempre que seja preciso elaborar medidas coercitivas, a
decisão deve ser da maioria. O conceito fundamental para a democracia é o de soberania
popular, que constituirá um governo da maioria como ilimitado e ilimitável. Assim, nascendo
para coibir todo o poder arbitrário, passa a justificar uma nova forma de poder arbitrário,
por isso, quando uma democracia afirma que justo é aquilo que a maioria determina que seja
justo, a democracia degenera em demagogia.
Hayek cita L. von Mises, que afirma: “para assegurar a paz interna, o liberalismo visa
ao governo democrático. A democracia não é, portanto, uma instituição revolucionária; ao
contrário, ela é o único meio de impedir as revoluções e guerras civis. Ela oferece um método
de ajustamento pacífico do governo à vontade da maioria” (p.133, n.9) e complementa com a
frase de K. Popper: “pessoalmente, chamo ao tipo de governo que pode ser destituído, sem se

10
recorrer à violência, democracia; ao outro, tirania (p.133, n.9). O fundamento da democracia
está, em primeiro lugar, no fato de que é o único método de mudança pacífica que o homem
descobriu até hoje; segundo, representa uma valiosa garantia da liberdade individual; e,
terceiro, na possibilidade de as instituições democráticas promoverem maior entendimento
dos assuntos públicos pela população (p.131-4). Por outro lado, a tese liberal acredita que a
maioria deva limitar seus próprios poderes. Caso isso não ocorra, o poder levará, com o
tempo, à destruição não só da prosperidade e da paz, mas da própria democracia. Mais
adiante, afirma: se a democracia é um meio de preservar a liberdade, a liberdade individual é
também uma condição essencial para o funcionamento da democracia. Embora a democracia
constitua, provavelmente, a melhor forma de governo com poderes limitados, torna-se
absurda quando passa a ser um governo com poderes ilimitados (p.143). E arremata: o
liberal, segundo os moldes antigos, é muito mais amigo da democracia do que o democrata
dogmático. O liberal está preocupado com a exeqüibilidade, e o democrata, com a soberania
popular (p.143).

3 O pensamento liberal de Friedman

No livro Capitalismo e liberdade12 Friedman analisa, como tema principal, o papel do


capitalismo competitivo – a organização da atividade econômica por meio da empresa privada
operando num mercado livre – constituindo um sistema de liberdade econômica como
condição para a liberdade política; como tema secundário, o papel do governo numa
sociedade dedicada à liberdade e contando com o mercado para organizar sua atividade
econômica.

Da crença popular de que a economia e a política são campos separados e de que a


liberdade individual é um problema político e de que o bem-estar material, um problema
econômico, Friedman reage afirmando a tese de que existe uma relação íntima entre
economia e política, ocorrendo entre determinadas combinações de organizações econômicas
e políticas. Também julga imprópria a crença contemporânea num socialismo democrático,
quando se condenam as restrições à liberdade individual impostas pelo socialismo totalitário
russo. Contrapõe a essa compreensão a tese de que uma sociedade socialista não pode
também ser democrática, no sentido de garantir a liberdade individual.

Para Friedman, a organização econômica desempenha duplo papel na promoção de


uma sociedade livre: a liberdade econômica é, de um lado, um fim em si própria (na acepção

12
FRIEDMAN, M. Capitalismo e liberdade. 3ª ed. São Paulo: Editora Nova Cultural, 1988, Série: Os
economistas, 185p.

11
mais ampla da liberdade); por outro lado, é um instrumento indispensável para a obtenção da
liberdade política.

A liberdade econômica, como fim em si própria, em geral, é tratada pelos intelectuais


de forma preconceituosa. Merece, contudo, especial atenção porque se trata do aspecto
material da vida, em que se buscam valores mais altos para sua promoção. Por isso, os
cidadãos devem ter liberdade para produzir e consumir sob as chamadas leis do mercado
livre, porque a liberdade econômica, nela própria e por si própria, é uma parte extremamente
importante da liberdade total.

A liberdade econômica, como meio para a obtenção da liberdade política, é


importante porque gera o efeito na concentração ou dispersão do poder. O capitalismo
competitivo – organização econômica que promove diretamente a liberdade econômica –
proporciona a liberdade política, porque separa o poder econômico do poder político e,
desse modo, permite que um controle o outro.

Para Friedman, há uma evidência histórica na relação existente entre liberdade


política e mercado livre. As sociedades livres organizaram-se com um mercado livre, para a
maior parte de suas atividades econômicas, associado a uma grande liberdade política para
combater a tirania, a servidão e a miséria. Sem dúvida, a relação entre liberdade política e
econômica é complexa e de modo algum unilateral.

Os filósofos radicais do liberalismo estavam inclinados a considerar a liberdade


política como um instrumento para a obtenção da liberdade econômica. Isso trouxe reformas
políticas acompanhadas por reformas econômicas no sentido do laissez-faire. Após, a reação
dos governos foi uma crescente intervenção do governo nos assuntos econômicos
(especificamente na Inglaterra). Com a tendência para o coletivismo, nos países democráticos,
o bem-estar, em vez da liberdade, tornou-se política dominante. Essa escolha significou, para
Hayek e outros pensadores, o caminho para a servidão (referência ao livro The road to
serfdom, de Hayek). Essa geração de pensadores liberais coloca a ênfase na liberdade
econômica como instrumento de obtenção da liberdade política.

Na questão da liberdade econômica em si mesma, Friedman afirma que o mercado é o


primeiro componente, seguido pela relação entre organização do mercado e liberdade política
e a construção da sociedade livre.

Afirma que só há duas maneiras para coordenar as atividades econômicas de milhões


de pessoas: a direção central, utilizando a coerção, e a do mercado, através da cooperação
voluntária dos indivíduos.

12
A possibilidade da coordenação pelo mercado – freqüentemente negada – tem por base
a proposição elementar de que ambas as partes de uma transação sejam bilateralmente
organizadas e voluntárias. O modelo mais típico com base na troca voluntária é a economia
livre da empresa privada, denominada, aqui, de capitalismo competitivo, em que a
cooperação é obtida sem coerção.

A organização desse mercado – do simples (famílias entre si) ao complexo (empresas


entre si) – possibilita a cooperação, desde que: a) as empresas sejam privadas, de modo que
as partes contratantes sejam sempre, em última análise, indivíduos; b) os indivíduos sejam,
efetivamente, livres para participar ou não de trocas específicas, de modo que todas as
transações possam ser realmente voluntárias.

O requisito básico é a manutenção da lei e da ordem para evitar a coerção – um


problema que se pode configurar é o do monopólio (inibe a liberdade efetiva). Mas enquanto
a liberdade efetiva de troca for mantida, a característica central da organização de mercado
da atividade econômica é a de impedir que uma pessoa interfira com a outra no que diz
respeito à maior parte de suas atividades. Desta forma, o consumidor é protegido da coerção
do vendedor; o vendedor é protegido da coerção do consumidor; o empregado é protegido da
coerção do empregador etc., e o mercado faz isto, impessoalmente, e sem nenhuma autoridade
centralizada.

Na sociedade de mercado livre não se elimina a necessidade do governo. Ele é


essencial para a determinação das regras do jogo e um árbitro para interpretar e pôr em
vigor as regras estabelecidas. O mercado, por sua vez, reduz sensivelmente o número de
questões que devem ser decididas por meios políticos, de um lado, e permite, por outro lado,
uma grande diversidade. Essa, em termos políticos, oportuniza um sistema de representação
proporcional. Friedman insiste de que é isso que garante a liberdade econômica que, por sua
vez, sustenta a liberdade política, tida como a ausência de coerção sobre um homem por parte
de seus semelhantes. Em decorrência, a preservação da liberdade requer a maior eliminação
possível de tal concentração de poder e a dispersão e distribuição de todo o poder que não
puder ser eliminado – um sistema de controle e equilíbrio.

Quanto à descentralização do poder, Friedman considera que o poder econômico pode


ser amplamente disperso, mas que é mais difícil descentralizar o poder político. Por isso, é
necessária a independência dos poderes, o que permite a defesa e o controle de um pelo outro.
Isso assegura a liberdade na sociedade livre, não ocorrendo o mesmo na sociedade socialista.
Nessa existe somente o Estado todo-poderoso.

13
Para o empreendedor competitivo, numa sociedade de mercado livre, é suficiente ter
fundos. Numa sociedade socialista, não seria suficiente ter os fundos. O empreendedor teria
que persuadir vários segmentos do mercado e do governo o que, provavelmente, o levaria à
desistência. Não é desnecessário reafirmar que uma sociedade capitalista de mercado livre
preserva a liberdade. Reafirmar o que é fundamental: o comunismo destruirá todas as nossas
liberdades.

Na sociedade de mercado livre, ninguém que compra pão sabe se o trigo usado foi
cultivado por um comunista ou um republicano, por um constitucionalista ou um fascista ou,
ainda, por um negro ou um branco, porque o mercado é impessoal e separa as atividades
econômicas dos pontos de vista políticos e protege os homens contra a discriminação com
relação a suas atividades econômicas por motivos irrelevantes para a sua produtividade
(p.17-28).

Para Friedman (e os liberais), o fim último da sociedade livre é a unanimidade, que se


obtém pela discussão livre e pela cooperação voluntária, como expressão máxima da
liberdade. Em decorrência, qualquer outra forma de obtê-la, é coerção.

Esse é o papel do mercado: permitir unanimidade sem conformidade e ser um sistema


de efetiva representação proporcional. Na medida em que a unanimidade é um ideal, na
prática prevalece a regra da maioria. No contexto da pluralidade, quando as minorias não se
satisfazem com a derrota, por questões de conveniência, nem a decisão por uma maioria
simples será suficiente. Por isso, é indispensável que haja a discussão livre e a unanimidade
com respeito aos meios.

Quando as regras, as normas e os costumes não conduzem ao consenso, entram os


papéis básicos do governo numa sociedade livre: prover os meios para modificar as regras;
regular as diferenças sobre seu significado; e garantir o cumprimento das regras por aqueles
que, de outra forma, não se submeteriam a elas. A liberdade absoluta é impossível (a não ser
para a filosofia anarquista) e as liberdades dos homens podem entrar em conflito, e quando
isso acontece, a liberdade de uns deve ser limitada para preservar a de outros (minha
liberdade de mover meu punho deve ser limitada pela proximidade de seu queixo ...).

Em suma, a organização de atividade econômica através da troca voluntária presume


que se tenha providenciado, por meio do governo, a necessidade de manter a lei e a ordem
para evitar a coerção de um indivíduo por outro; a execução de contratos voluntariamente
estabelecidos; a definição do significado de direitos de propriedade, a sua interpretação e a
sua execução; o fornecimento de uma estrutura monetária. Esse é o papel do governo como
legislador e árbitro (p.29-33).
14
Além de determinar, de arbitrar e de pôr em prática as regras – papel do governo –,
cabe ainda ao Estado, em situações excepcionais, ou seja, quando a troca voluntária se torna
cara ou impossível (por razões técnicas, por exemplo), assumir atividades específicas (que
poderiam ser feitas pelo mercado). Trata-se do monopólio técnico e de seus efeitos laterais. O
monopólio implica a ausência de alternativas (portanto, a liberdade efetiva da troca), e
somente razões técnicas justificam um monopólio no mercado competitivo. Apesar da
inconveniência (é a escolha entre males), são três os tipos: o privado, o público e o de
regulação pública.

Quando constituídos, devem ser revistos, pois, numa sociedade em mudança rápida,
as condições que levam ao monopólio técnico alteram-se freqüentemente. Friedman afirma
que, tanto nos EUA quanto na Inglaterra, se as estradas de ferro não tivessem sido monopólio
estatal ou submetidas à regulação pública, seriam uma indústria altamente competitiva, com
poucos ou nenhum elemento de monopólio. Por isso, as razões históricas que levaram à
decisão e justificaram um monopólio público de fato, devem ser redimensionadas e
atualizadas. Isso também é válido para as outras categorias. Esse mal (do monopólio) deve ser
reduzido e, se possível, erradicado da sociedade de mercado competitivo.

Os efeitos laterais são os resultados das ações de indivíduos, ou seus


empreendimentos, sobre a natureza ou os outros, como, por exemplo, a poluição de um rio por
uma indústria (quem o fizer, está forçando os outros a trocar água boa por água má. Qual é o
preço da troca?). Isso acontece com as estradas, as habitações etc. Nesses casos, é possível
identificar os usuários e cobrar uma taxa pelo uso, pela operação etc. Mas, no caso de um
parque na cidade, como cobrar dos usuários? Já para um parque fora da cidade, é
perfeitamente viável a cobrança de taxas... Friedman, porém, é categórico: não posso
imaginar nenhum tipo de efeito lateral ou efeitos de monopólio importantes que justifiquem a
atividade governamental nessa área. Por outro lado, julga que, após uma rigorosa avaliação –
vantagens e desvantagens – dos riscos envolvidos, quanto à intervenção governamental e seus
efeitos laterais na ameaça à liberdade, pode-se conceder, ou não, o monopólio de
determinada atividade (p.33-7).

Friedman defende a tese de que a liberdade é um objetivo válido somente para


indivíduos responsáveis. Para os não-responsáveis ou irresponsáveis (os insanos, as crianças
etc.) cabe uma ação paternalista pelo governo. Em decorrência, julga que a justificativa
paternalista para a atividade governamental é a mais incômoda para um liberal. Porque
envolve a aceitação de um princípio – o de que alguns podem decidir por outros – que
considera questionável. Essa é uma proposição dos coletivistas, quer se trate de comunismo,

15
de socialismo ou do Estado de bem-estar social. Acha, contudo, ser inevitável o uso de
algumas medidas paternalistas.

Em suma, o papel do governo é manter a lei e a ordem; definir os direitos de


propriedade; servir de meio para a modificação dos direitos de propriedade e outras regras do
jogo econômico; julgar disputas sobre a interpretação das regras; reforçar contratos; promover
a competição; fornecer uma estrutura monetária; envolver-se em atividades para evitar o
monopólio técnico e evitar os efeitos laterais; e suplementar a caridade privada e a família na
proteção do não-responsável.

O liberal consistente (que defende essas teses) não é um anarquista. Ele apenas teme a
concentração do poder. Seu objetivo é preservar a liberdade individual, compatível com a
não-interferância na liberdade de outrem (p.37-40).

4 Neoliberalismo: balanço e paradoxos


O termo neoliberalismo se aplica a um conjunto de receitas econômicas e programas
políticos, inspirados no ideário de F. Hayek e M. Friedman, que começou a ser proposto na
década de 70, em substituição ao legado keynesiano e ao socialismo real. O keynesianismo
atingiu seu auge nos anos 40, 50 e 60, com a difusão e consolidação do Estado de bem-estar
social na Europa Ocidental e na América do Norte. Durante esse período, em outras regiões,
houve o crescimento do Estado sob a fórmula do socialismo real. Na América Latina, a
industrialização se desenvolveu e se expandiu com forte intervenção estatal.
Esse modelo se esgotou pelos altos e constantes gastos sociais (em saúde, em
educação, em infra-estrutura social etc.) e pela crescente participação e interferência do
Estado na economia. As propostas básicas para uma virada histórica se referem às relações
entre o mercado e as empresas e entre o Estado e o mercado.
A primeira experiência foi a chilena, que não teve a repercussão esperada (inclusive
com severas restrições dos liberais), porque foi executada pelo governo autoritário e ditatorial
do General Pinochet (a partir de 1973).
Por isso, a referência histórica mais relevante, para a aplicação do receituário
neoliberal, é a crise do modelo econômico do pós-guerra, em 1973, “quando todo o mundo
capitalista avançado caiu numa longa e profunda recessão” (Anderson, 2000, p.10)13. Essa
crise (a financeira, das fontes energéticas etc.) combinou “baixas taxas de crescimento com
altas taxas de inflação” (idem, p.10). Aí as idéias de Hayek e os neoliberais ganharam espaço,

13
ANDERSON, Perry. Balanço do neoliberalismo. In: SADER, Emir e GENTILI, Pablo (orgs.). Pós-
neoliberalismo: as políticas sociais e o Estado democrático. 5ª ed. São Paulo: Paz e Terra, 2000, p.9-23.

16
e os discursos passaram a apontar, como causas da crise, a concentração de poder no Estado, o
excessivo e nefasto poder dos sindicatos. Isso teria destruído os lucros das empresas e
disparado os processos inflacionários. Com esse diagnóstico, buscou-se a terapia: um Estado
forte, mas com reduzidas intervenções e poucos gastos sociais; a estabilidade monetária a ser
alcançada pela disciplina orçamentária (cortes nos gastos públicos para não excederem as
receitas); as reformas fiscais; restabelecer as condições para o livre mercado; e a reforma
monetária. “O crescimento retornaria quando a estabilidade monetária e os incentivos
essenciais houvessem sido restituídos” (idem, p.11).
Com as eleições, em 1979, na Inglaterra, surgiu a oportunidade. “Foi eleito o governo
Thatcher, o primeiro regime de um país de capitalismo avançado, publicamente empenhado
em pôr em prática o programa neoliberal” (idem, p.11). Sucederam, em 1980, R. Reagan, nos
EUA; em 1982, H. Khol, na Alemanha Ocidental (que, depois, reunifica a Alemanha); em
1983, Schluter assume na Dinamarca (Estado modelo do bem-estar escandinavo); em seguida,
excluída a Suécia e a Áustria, os demais Estados da Europa Ocidental (países do Norte)
adotaram políticas inspiradas no neoliberalismo.
O triunfo neoliberal nas economias de capitalismo avançado foi precedido pela
intervenção, em 1978, da URSS no Afeganistão. Isso alterou os rumos da guerra fria, pois os
norte-americanos, com seu programa a guerra nas estrelas e a construção do escudo anti-
míssel, investiram somas vultosas em novas gerações de foguetes nucleares e aviões de caça,
bem como em equipamentos sofisticados de espionagem. O programa neoliberal foi uma
fantástica alavancagem à indústria bélica (vide guerra das malvinas – para os do norte, guerra
das ilhas Falkland; a guerra do golfo – turbilhão de deserto etc.), porque a prioridade dos
EUA era derrubar o regime comunista da URSS, através da estratégia de quebrar sua
economia. Além do mais, uma das colunas de sustentação do neoliberalismo é o anti-
comunismo (incluído no genérico anti-coletivismo).
Os governos desses países, na década de 80, adotaram com maior ou menor
intensidade o receituário neoliberal, que assumiu evidências nas políticas concretas das
privatizações, do controle monetário, da desregulamentação (ou legislação anti-sindical, por
exemplo) etc.
Enquanto no Norte da Europa, o furacão neoliberal devastava antigas conquistas da
social-democracia, no Sul do continente, pela primeira vez, os euro-socialistas chegavam ao
poder: Miterrand, na França; González, na Espanha; Soares, em Portugal; Craxi, na Itália;
Papandreou, na Grécia. “Todos se apresentavam como uma alternativa progressista, baseada
em movimentos operários ou populares, contrastando com a linha reacionária dos governos de
Reagan, Thatcher, Khol e outros do norte da Europa” (idem, p.13). Sucessivamente, os

17
projetos fracassaram, iniciando com a França. No final da década de 80, também a Suécia e a
Áustria sucumbiram à onda neoliberal.
A década de 80 encerra com a queda do muro de Berlim e a de 90 inicia com a
reunificação da Alemanha e o fim do regime comunista da URSS, como conseqüência das
quedas dos regimes comunistas da Europa Oriental, de 1989 a 1991, significando o triunfo do
Ocidente na guerra fria e da ideologia neoliberal.
Na América Latina, a cartilha neoliberal foi aplicada, de forma pioneira, no Chile, sob
a cruel ditadura de Pinochet. O governo Pinochet “começou seus programas de maneira dura:
desregulação, desemprego massivo, repressão sindical, redistribuição de renda em favor dos
ricos, privatização de bens públicos” (idem, p.19).
À experiência do Chile sucederam-se a Bolívia, com Jeffrey Sachs, em 1985; o
México, com Salinas, em 1988; a Argentina, com Menem, em 1989; a Venezuela, com
Andrés Perez, em 1989; o Peru, com Fujimori, em 1990; e, o Brasil, com Collor, em 1990.
No contexto da década de 90, os EUA e a Inglaterra se apresentam como modelos da
nova era do neoliberalismo. Essa posição foi inculcada em organismos internacionais que
começaram a rezar pela cartilha neoliberal, como o FMI e o BM, no campo econômico-
financeiro; a OMC, no campo dos intercâmbios comerciais (aliás, a OMC é cria do
neoliberalismo; com a extinção do GATT, as regras neoliberais prevaleceram na convenção
do Uruguai); por outro lado, há resistências ao vendaval neoliberal na UNESCO, no campo da
educação, da ciência e da cultura; na OIT, no campo do trabalho; e, na OMS, no campo da
saúde.
Para Sunkel14, “existem quatro principais características da situação atual: um
desempenho econômico medíocre do crescimento como um todo; um alto (e incontrolável)
grau de volatibilidade financeira; uma fraqueza exacerbada das instituições públicas
internacionais; e uma contínua deterioração da renda em nível global” (1999, p.175). Isso
contradiz o discurso neoliberal, unitário e dominante, que afirma serem as transformações
tecnológicas, econômicas, sociais, políticas e culturais, com o fracasso dos dirigismos e
intervenionismos, a nova era da liberdade econômica e política, ou seja, do bem-estar
econômico e social.

14
SUNKEL, Osvaldo. Globalização, neoliberalismo e reforma do estado. In: BRESSER PEREIRA, L. C.,
WILHEIM, Jorge, SOLA, Lourdes (orgs.). Sociedade e estado em transformação. São Paulo: Editora UNESP;
Brasília: ENAP, 1999, p.173-195.

18
Para estabelecer um paralelo entre o neoliberalismo e a social-democracia, Pérez
Gómez15 apresenta os decálogos de cada um deles, formulados por Ayuso(1996), com a
seguinte versão:
“O decálogo neoliberal
1. O Estado tem que limitar sua atuação ao estritamente imprescindível.
2. As contas do setor público devem estar sempre equilibradas.
3. Eliminar subsídios a empresas, cortar os gastos sociais e reduzir ao mínimo os
gastos correntes da Administração.
4. Corte drástico dos impostos e encargos sociais de empresas e particulares.
5. Flexibilidade do mercado de trabalho. Eliminação do salário mínimo.
6. Reformas estruturais pela via de uma maior flexibilidade do mercado fundiário
e uma abertura geral à concorrência.
7. Políticas microeconômicas de fomento ao investimento privado e políticas
ativas de emprego.
8. Políticas monetárias baseadas em tipos de interesses baixos.
9. Política fiscal que incentive o reinvestimento de benefícios.
10. Modificação do sistema de negociação coletiva.
Os mandamentos social-democratas.
1. O Estado tem que enfrentar uma séria reestruturação e reduzir seu déficit público
dentro das margens traçadas no Tratado Maastrich – 3% do produto interno bruto –
, mas nunca à custa de deixar indefesos os desempregados e pensionistas.
2. Reduzir o custo do fator trabalho, moderando ligeiramente o fisco sobre o trabalho.
3. Programa de privatizações e manutenção de empresas públicas naqueles setores de
interesse nacional.
4. Política de tipos de interesse a serviço de um desenvolvimento sustentável não-
inflacionário. Controle dos mercados financeiros para evitar turbulências
especulativas sobre as divisas mais fracas.
5. Reforma do mercado de trabalho, com maior flexibilidade na contratação e
barateamento ao despedir.
6. Aposta pela formação profissional que facilite a entrada de jovens no mercado de
trabalho e incentive sua contratação pelas empresas.
7. Reforma fiscal que barateie a atividade empresarial e facilite o investimento.

15
PÉREZ GÓMEZ, A. I. A cultura escolar na sociedade neoliberal. Porto Alegre: ARTMED Editora Ltda.,
2001.

19
8. Modernização do sistema de negociação coletiva, introduzindo elementos que
premiem a produtividade.
9. Buscar nichos de emprego nas novas atividades derivadas do ócio, da cultura, da
educação e das tecnologias avançadas.
10. A nova organização econômica deve levar em conta os ganhos sociais obtidos e
repartir o trabalho escasso entre a população ativa crescente.” (Pérez Gómez, 2001,
p.128-9).
Para Anderson, um balanço atual do neoliberalismo só pode ser provisório, porque é
um movimento ainda inacabado, mas,
economicamente, o neoliberalismo fracassou, não conseguindo nenhuma revitalização básica
do capitalismo avançado. Socialmente, ao contrário, o neoliberalismo conseguiu muitos dos
seus objetivos, criando sociedades marcadamente mais desiguais, embora não tão
desestatizadas como queria. Política e ideologicamente, todavia, o neoliberalismo alcançou
êxito num grau com o qual seus fundadores provavelmente jamais sonharam, disseminando a
simples idéia de que não há alternativas para os seus princípios, que todos, seja confessando
ou negando, têm de adaptar-se a suas normas (2000, p.23).

Em meio à guerra fria e em busca de uma alternativa ao socialismo, o neoliberalismo


se apresentou como a solução definitiva ao comunismo e à crise do capitalismo, na medida
em que sua doutrina propunha uma democracia de mercado “em que imperava a lei da oferta
e da procura e a soberania do consumidor”. A América Latina, como periferia do sistema-
mundo, passou a ser objeto da implantação neoliberal “pela quebra das ordens constitucionais
e por uma involução política antidemocrática”, segundo Rosenmann (2006)16. O exemplo
histórico mais importante é o Chile com o golpe militar de Pinochet (1973) que, assessorado
pela Escola de Chicago, tendo M. Friedman à frente, inicia de forma ditatorial uma
liberalização radical da economia e da sociedade, para deter o “avanço incontido do
socialismo marxista”. A recente história nos demonstra que o neoliberalismo se impôs pela
força (nem sempre militar, mas pela dominação sistêmica), constituindo monopólios ou
oligopólios globais em vários campos econômicos.
O projeto neoliberal traz em seu bojo três objetivos: “promover uma mudança na
estrutura social, articular um novo consenso ideológico-político e impor outra forma de
exercício do poder político” que passaria, necessariamente, pela refundação de uma economia
de mercado e da reforma do Estado, para abandonar o “ranço” keynesiano. Ao não aceitar
propostas contrárias e diferenciais, o pensamento neoliberal construiu uma doutrina totalitária
e excludente, apresentando-se com pensamento hegemônico e único.

16
ROSENMANN, Marcos. Neoliberalismo. In: SADER, Emir (Coord). Enciclopédia Contemporânea da
América Latina e do Caribe. São Paulo: BoiTempo, 2006, p. 848-855.

20
O foco na reforma do Estado sintetiza-se na reforma da gestão pública, na reforma do
regime político e na reforma da constituição política do Estado. A reforma da gestão pública
adota a lógica ditada pelo mercado (privatizar, descentralizar e desregulamentar). A reforma
do regime político delineia-se por uma nova divisão do poder e pelas novas funções estatais.
A reforma da constituição política do Estado abrange os limites dos direitos e deveres do
cidadão nos âmbitos público e privado, ditados pela sociedade fundada na economia de
mercado (o cidadão é visto como mero produtor e mero consumidor).

5 Neoliberalismo na América Latina


Na América Latina, “as democracias liberais” instaladas de cima para baixo, como
sucedâneas aos regimes militares, e que promovem as “reformas neoliberais”, têm em
Fujimori, no Peru, um modelo político autoritário e conservador, na implantação do projeto
neoliberal. No Brasil, com F. Collor e F.H. Cardoso, a “modernização” neoliberal aprofundou
a concentração econômica e submeteu o povo a uma exclusão do trabalho, da educação, da
saúde, etc. Na Argentina, Carlos Menem leva o país à falência; na Bolívia, Paz Zamora e
Hugo Banzer não conseguem arrancar o país da miséria; na Colômbia, Andrés Pastrana
agrava o contexto do narcotráfico; em Costa Rica, Rafael Calderón descaracteriza a
consolidada democracia e precipita o país em tensões internas; na Guatemala, Jorge Serrano
não muda o perfil de pobreza do país; no México, Carlos Salinas não assimila os conflitos
internos provocados pelos movimentos sociais; no Paraguai, Carlos Wasmosy não tira o país
das nefastas conseqüências da prolongada ditadura militar de Stroesner; no Uruguai, Alberto
Lacalle, não projeta a economia no contexto do Mercosul; e, na Venezuela, Rafael Caldera
prepara as condições para o regime populista de H. Chávez.
No contexto do sistema-mundo não há “ajuda econômica”, mas somente imposições
de políticas econômicas consideradas “corretas” e submissas à ideologia dos guardiões do
capitalismo, representados pelo FMI, BM e OMC. Estes organismos olham para a América
Latina com prepotência e se impõem como colonizadores, submetendo os povos daqui a um
pesado jugo de exploração financeira e de preços.
Em 1980, o Conselho de Segurança Interamericano, reunido em Santa Fé, elabora a
doutrina da “guerra permanente” e declara: “O Continente americano encontra-se sob ataque.
A América Latina, a companheira e aliada tradicional dos Estados Unidos, está sendo
penetrada pelo poder soviético. A bacia do Caribe está povoada por agentes soviéticos e
delimitada por Estados socialistas”. É Reagan que tenta impedir este “avanço revolucionário”,
propondo políticas monetaristas de combate à inflação. Entretanto, a década de 1980,

21
caracteriza-se pela crescente restrição de investimentos públicos e, como resultado histórico,
ela é conhecida como “a década perdida”.
Para o sociólogo argentino Atílio Borón17, o modelo neoliberal esgotou-se. “Esse
modelo fracassou rotundamente em todos os países da América Latina”, diz ele. Os dois
casos, sempre destacados como exitosos, o Chile e o México, “evidenciam também esse
fracasso”. Estes dois países destacam-se pelas exportações, enaltecidas como grandes
conquistas (em parte, a política econômica do governo Lula segue, no Brasil, os mesmos
passos). No entanto, naqueles países, na Argentina, no Brasil, na Bolívia, na Venezuela e no
Uruguai, há “sinais de rebeldia” contra o neoliberalismo e está mudando “lentamente o clima
político da região”. No caso do Brasil, Borón entende que a “contaminação ideológica” gera
um mal-estar social e político porque se “jogou fora um processo de construção política de 20
anos do PT” e, lamentavelmente, “Lula não deu certo”, em especial, frente à “postura
política” de Kirchner em relação ao FMI.
Borón considera que as “esquerdas” latino-americanas perderam seu foco frente ao
impacto das políticas neoliberais. Hoje, elas podem ser classificadas em três categorias: a)
“Uma muito sectária que não se atualizou e se mantém aferrada a velhos esquemas e
dogmas”, condenada à irrelevância por seu “sectarismo e fundamentalismo”; b) “Uma
esquerda que tem capitulado: os casos mais notáveis são Chile e Brasil”; c) “Uma nova
esquerda, representada por um conjunto de forças políticas novas e muito heterogêneas como
o bolivarianismo na Venezuela e o MAS18 na Bolívia”.
Após quase três décadas de
política neoliberal, do espetacular desenvolvimento tecnológico e informático alcançado e
da reimplantação dos sistemas democráticos na América Latina, continua a reprodução da
pobreza, alimentada pela crescente exclusão e desigualdade social que nascem como
produto da dinâmica econômica atual. Altos níveis de desemprego, insegurança, violência,
polarização social, fragmentação etc., são os cenários que predominam nas sociedades
latino-americanas atuais (DIAZ e CATTANI, p.7)19

Para Cattani e Díaz,


o modelo global não provocou o crescimento sustentado nem alcançou os objetivos de
conciliar o desenvolvimento econômico com o desenvolvimento social de nossos países,
como se havia argumentado; pelo contrário, seu processo foi excludente, em todos os
sentidos, mas particularmente em dois âmbitos importantes para o crescimento e
desenvolvimento de todo ser humano: no mercado de trabalho e no acesso a bens essenciais
e a serviços básicos; tendências que, em conjunto, estão dando conta de uma maior

17
IHU On-Line, nº 176, 17-04-2006. Disponível: www.unisinos.br/ihu
18
MAS – O Movimento ao Socialismo que tem raízes entre os indígenas e os produtores de coca do país – se
consolidou como uma força política em ascensão.
19
CATTANI, A. e DIAZ, L. (org.) Desigualdades na América Latina: novas perspectivas analíticas. Porto
Alegre: Ed.UFRGS, 2005.

22
polarização social e que, paralelamente, apresentam novos desafios para a superação da
pobreza (p.7).

Frente ao modelo neoliberal implantado na América Latina, a alternativa “populista”


ou “de esquerda chavista” – novo campo político – parece ser insuficiente para se contrapor
ao ideário neoliberal. Com isto não se pretende negar a emergência de um novo modelo no
hegemônico cenário neoliberal latino-americano, na medida em que outras lideranças com
bases populares e de povos indígenas e autóctones se evidenciam cada vez mais.
A adoção do neoliberalismo jogou a América Latina nas profundezas do crasso
subdesenvolvimento, periferizando ainda mais as precárias economias e relações societais no
sistema-mundo. Neste processo houve uma deterioração das condições sociais de vida com o
agravamento da pobreza, do desemprego, da precarização das relações de trabalho, do
aumento das desigualdades internas etc. apesar dos recentes avanços em termos de redução da
pobreza e da indigência.
Pelo ideário neoliberal, a liberalização do sistema financeiro, a flexibilização da taxa
de câmbio e a estabilização monetária – requisitos fundantes para o sucesso do modelo, entre
outros – impeliram algumas economias regionais a um crescimento significativo. Entretanto,
com a abertura econômico-financeira as fragilidades estruturais – estruturas, historicamente,
atrasadas e subdesenvolvidas – não suportaram os impactos competitivos e ataques
concorrenciais, exigências decorrentes das novas regras estabelecidas pela Organização
Mundial do Comércio (OMC). A euforia inicial se esvanece frente à escassez interna de
recursos financeiros e de investimentos, na medida em que o capital estrangeiro fluía no
passado, sob a proteção dos regimes militares e no início da adoção neoliberal pelas
privatizações das empresas estatais dos diferentes ramos da economia e do sistema financeiro.
Na economia globalizada o sistema-mundo capitalista vive e sobrevive na e com a
especulação financeira. Assim, as economias latino-americanas não resistiram aos diferentes
“ataques” especulativos e suas perversas seqüelas, como o ataque ao México em 199420 com
seu “efeito tequila”; a crise asiática de 1997; a crise russa de 1998; a desvalorização da moeda
brasileira de 1999 etc., associadas à queda dos preços dos commodeties agrícolas e minerais
que se estenderam século XXI adentro, resultado do conflito entre EUA e UE frente às

20
A crise mexicana de 1994 coincidiu com o primeiro grande grito internacional contra o neoliberalismo,
emitido pelo Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN), a partir das selvas de Chiapas. De lá em diante
surgem outros movimentos de lutas anti-neoliberalismo.

23
reivindicações dos países emergentes na luta pela extinção dos subsídios agrícolas praticados
por aqueles países21. As perdas forma significativas e constantes.
Neste contexto, surge a Argentina que tenta combinar elementos de política econômica
“ortodoxa” (monetarista, defendida pelo FMI e o BM) e “heterodoxa” (estruturalista e
intervencionista) na busca da estabilidade macroeconômica, mediante saldos positivos no
balanço de pagamentos e da reestruturação produtiva interna. O desafio é superar as
vulnerabilidades – tanto internas quanto externas – frente à volatilidade especulativa do
sistema-mundo22. Inquestionavelmente, ao optarem pelo modelo neoliberal, as nações latino-
americanas escolheram o caminho da globalização23 a partir da periferia24. Atualmente, as
perversas seqüelas massacram e neocolonializam povos e culturas locais, pressionando para
se adequarem ao sistema-mundo (prevalece o mandamento: adapte-se ou desapareça).
O neoliberalismo, na sua consolidação, está vinculado, por um lado, à racionalização
capitalista das potencialidades da revolução científico-tecnológica, da microeletrônica, da
informática e da telecomunicação (as ditas tecnologias da informação – TI) articuladas
globalmente e, por outro lado, continua preso à hegemonia sistêmica norte-americana, sistema
em crise e que se encaminha para o caos, como revelam os sintomas do sistema financeiro
global. No sistema-mundo, as corporações globais criam uma nova divisão internacional do
trabalho para competir no sistema de produção, de modo particular da especialização
produtiva. Os componentes são produzidos em um território e a montagem do produto final é
em outro país (montadoras, “maquiadoras”), caindo o made in... substituído pelo made
globally25.
Nesta relação, a América Latina joga um papel subalterno e sem perspectivas de saídas
porque está na zona hegemônica dos EUA, cujo ciclo capitalista está em decadência. Desta
forma, a América Latina, ajuda a retardar a derrocada dos EUA e caminha para a sua própria
insustentabilidade, na medida em que as burguesias locais alimentam esta dependência e as
demais camadas sociais estão voltadas para o usufruto das benesses do sistema. Tudo isto se
explicita a partir da aplicação do Consenso de Washington que desmontou as estruturas
estatais (refundação do Estado) e alijou a presença do Estado como importante ator político e
social, levando as economias locais a déficits comerciais, a superexploração do trabalho, ao

21
Para fins comparativos e compreensivos: no primeiro semestre de 2007 a Nestlé faturou US$ 42 bilhões
(sendo US$ 4 bilhões de lucro líquido, 18,4% superior ao do mesmo período do ano passado), contra os US$ 32
bilhões de toda exportação agrícola do Brasil (ZH, 16-08-07, p.28).
22
Como ocorreu na segunda semana de agosto de 2007, com despencar sucessivos das bolsas de valores num
efeito dominó. Movimento que volta em fins de 2007 e inícios de 2008.
23
O Chile é tido como “a pequena economia mais globalizada”.
24
No entanto, as “forças” do sistema agem de modo centrífugo, repelindo as economias não regulamentadas
segundo as regras do mercado-mundo.
25
“locally made, globally coordinated”...

24
aumento das taxas de desemprego etc. Isto agrava a periferização da América Latina
aproximando-a mais da África do que dos países centrais e crescendo menos do que as
economias asiáticas emergentes. Temos aí um cenário negativo moldado pelo modelo
neoliberal.
Por isso, o Banco Mundial, em seu relatório de 200626, afirma de que “o desempenho
econômico da América Latina nas últimas décadas tem sido decepcionante, e a região ficou
para trás em relação às economias asiáticas dinâmicas”, apontando como principais fatores “a
própria pobreza” que estaria “dificultando o crescimento da região e, a menos que os entraves
que afetam os pobres sejam abordados, será difícil alcançar um forte crescimento”. Além
disso, é do entendimento dos especialistas de que os países da América Latina “precisam
combater a pobreza de modo mais agressivo, se quiserem promover um maior crescimento e
competir com a China e outras economias asiáticas dinâmicas”. Um círculo virtuoso de
crescimento é um fator importante para a redução da pobreza. Entretanto, “esta impede que
sejam atingidas taxas de crescimento elevadas e sustentadas na América Latina”, diz o Banco
Mundial, além de a região se manter “como uma das regiões com mais alto nível de
desigualdade do mundo, onde cerca de um quarto da população vive com menos de US$2 ao
dia”. Para romper o círculo vicioso da pobreza, seria necessário “uma queda de 10% nos
níveis de pobreza, se outros fatores permanecerem iguais”, o que poderia “gerar um aumento
de 1% no crescimento econômico. Por sua vez, uma elevação de 10% nos níveis de pobreza
reduzirá as taxas de crescimento em 1% e de investimento em até 8% do PIB”.
Para buscar uma estratégia de redução da pobreza que favoreça o crescimento, o BM
recomenda “que os países tornem inicialmente mais eqüitativos os seus programas de gastos
públicos, dirigindo-os às pessoas que realmente precisam deles, em vez de gastar os recursos
subsidiando programas para os mais abastados, como no consumo de energia, aposentadorias,
pensões e universidades públicas”, melhorando a eficácia de suas políticas públicas.

6 Conclusão
Lamentavelmente, três décadas após a implantação do modelo neoliberal na América Latina e
quase duas décadas após o Consenso de Washington, apoiados pelo Banco Mundial, esta
mesma instituição internacional vem reconhecer de que “a transformação do Estado em um
agente que promova a igualdade de oportunidades e pratique uma redistribuição eficiente da
renda talvez seja o principal desafio enfrentado pela América Latina na implementação de

26
BANCO Mundial. Redução da Pobreza e Crescimento: Círculos Virtuoso e Vicioso. Relatório Anual,
2006. Disponível: http://www.bancomundial.org.br

25
melhores políticas que, ao mesmo tempo, estimulem o crescimento e reduzam a desigualdade
e a pobreza”.
No sistema-mundo, a doutrina neoliberal se impôs e o capitalismo reproduz suas crises
cíclicas, tanto no sistema financeiro quanto no produtivo-comerical-distribuidor. As
denominadas economias emergentes são as mais afetadas, à exceção da China, que com o seu
modelo peculiar27, está desequilibrando a maior economia capitalista: os EUA. Os EUA com
seu PIB de US$ 13,8 trilhões, uma renda per capita de US$ 45,5 mil, uma população de 302,5
milhões, uma inflação de 2,7% a.a., uma taxa de desemprego de 5,2% e um crescimento de
2,9% do PIB, reduziu sua participação na economia mundial de 30,8%, em 2000, para 27,4%,
em 2006. Enquanto isso, a China que cresceu em 2007 na ordem de 11,4%, atingiu um PIB de
US$ 3,2 trilhões, constituindo-se a terceira economia mundial (apenas atrás dos EUA e do
Japão, superando a Alemanha), alcançou uma renda per capita de US$ 2,4 mil, para uma
população de 1,321 bilhão, uma inflação de 4,5%, aumentou sua participação na economia-
mundo de 3,8%, em 2000, para 5,6%, em 2006.
A crise financeira norte-americana deflagrada nos últimos anos e agravada em 2007,
possibilita o deslocamento geopolítico de setores produtivos, reconfigurando a geoeconomia e
a geopolítica sistêmica. Em grande parte, a América Latina continua periférica a este
processo, à exceção da exportação de commodities (o Brasil se inclui neste rol), estando as
forças mais dinâmicas concentradas nos países asiáticos emergentes e a Rússia. Por outro
lado, as seqüelas mais perversas de evasão de divisas, de capital e de debilitação do sistema
produtivo são as conseqüências mais perceptíveis que atingem diretamente a América Latina.
Neste cenário, a crise em andamento afeta mais o México por este país depender em 85% de
suas exportações para os EUA. A redução das importações pelos EUA atingirá
expressivamente a economia do México, da China e da UE.
Fica posto e descrito este cenário para o debate na busca de uma explicação e
compreensão das circunstâncias históricas e atuais que reproduzem a indigência e a pobreza, a
exclusão social e as desigualdades sociais.

Referências

ANDERSON, Perry. Balanço do neoliberalismo. In: SADER, Emir e GENTILI, Pablo (orgs.).
Pós-neoliberalismo: as políticas sociais e o Estado democrático. 5ª ed. São Paulo: Paz e Terra,
2000, p.9-23.

27
O modelo chinês – autocrático -, iniciado em 1978, que introduziu a produção capitalista acelerada, baseada
essencialmente em investimentos estrangeiros – modelo de joint-venture - no lançamento das reformas do Estado
e do sistema de produção. Tudo isso sob a égide da ditadura do Partido Comunista. O Vietnã pratica o mesmo
modelo.

26
BANCO Mundial. Redução da Pobreza e Crescimento: Círculos Virtuoso e Vicioso.
Relatório Anual, 2006. Disponível: http://www.bancomundial.org.br
CATTANI, A. e DIAZ, L. (org.) Desigualdades na América Latina: novas perspectivas
analíticas. Porto Alegre: Ed.UFRGS, 2005.
DICIONÁRIO do Pensamento Social do Século XX, Outhwaite, W. e Bottomore. Rio de
Janeiro: Zahar, 1996.
FRIEDMAN, M. Capitalismo e liberdade. 3ª ed. São Paulo: Editora Nova Cultural, 1988,
Série: Os economistas, 185p.
HAYEK, F. A. Los fundamentos de la liberdad. 5ª ed. Madrid – España: Unión editorial S.
A., 1991, 510p.
IHU On-Line, nº 176, 17-04-2006. Disponível: www.unisinos.br/ihu
PÉREZ GÓMEZ, A. I. A cultura escolar na sociedade neoliberal. Porto Alegre: ARTMED
Editora Ltda., 2001.
PETRY, A. SCHNEIDER, J. LENZ, M. Realidade Brasileira. 10ª ed. Porto Alegre: Sulina,
1990.
SADER, Emir (Coord). Enciclopédia Contemporânea da América Latina e do Caribe. São
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SUNKEL, Osvaldo. Globalização, neoliberalismo e reforma do estado. In: BRESSER
PEREIRA, L. C., WILHEIM, Jorge, SOLA, Lourdes (orgs.). Sociedade e estado em
transformação. São Paulo: Editora UNESP; Brasília: ENAP, 1999, p.173-195.

Visitar: 1 http://www.bibli.fae.unicamp.br/etd/art06.pdf
2 http://www.ipea.gov.br/pub/td/2003/td_0989.pdf
3 www.cebri.org.br/pdf/216_PDF.pdf
4 http://www.apagina.pt/arquivo/Artigo.asp?ID=4382

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