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Samuel Averbug
Considerações iniciais
pode contribuir na invenção do povo, mas não é capaz de substitui-lo quando ele está
faltando; “nenhuma imagem pode identificá-lo e constitui-lo como nação porque ele está
estilhaçado numa infinidade de povos” (corpos).
A utopia do novo Cristo é anunciada em off pelo diretor que vislumbra o nascimento
de uma “nova e verdadeira democracia no Terceiro Mundo”. Para isto se tornar realidade
seria “necessário uma revolução econômica, social, tecnológica, cultural, espiritual e
sexual a fim de que as pessoas possam realmente viver o prazer como vitória não como
derrota”. Teríamos que “multinacionalizar e internacionalizar o mundo dentro de um
regime interdemocrático. Com a grande contribuição do Cristianismo ...E de todas, ...todas
as religiões ...E o entendimento dos religiosos e dos políticos convertidos ao amor”.
Quantos de nós somos capazes de inventar, de imaginar ou pelo menos, acreditar em
utopias? Esta é uma questão com a qual nos deparamos quando assistimos A Idade da Terra,
vemos/ouvimos os personagens-Kryzto postos em cena e a própria voz de Glauber. Como
afirma Deleuze, o cinema de Glauber “arranca do invivível um ato de fala que não se pode
calar, um ato de fabulação que não é um retorno ao mito mas a elaboração de enunciados
capazes de elevar a miséria a uma estranha positividade e a invenção de um povo.
A indignação radical com a miséria secular brasileira leva a uma “saída pelo mito, pelo
místico e pela revolta armada”. Os personagens desterritorializados de Glauber buscam um
novo corpo, uma nova terra: o corpo armado do cangaceiro, o delírio e o desespero do poeta,
o ascetismo do beato e do santo-guerilheiro e cangaceiro. Todos eles buscam constituir um
plano de imanência, ou seja, um lugar promissor, uma Terra, em que possam viver.
que ficariam sem expressão quando tudo o que pudesse ser dito fosse dito”. Pois as palavras
são apenas reflexos de conceitos e na maior parte das vezes o que aparece na expressão de
um rosto humano não pode ser definido através de conceitos racionalizados. No sentido
oposto, “a expressão facial, é uma experiência espiritual visualizada imediatamente, sem a
mediação de palavras”.
Conclusão
Em A Idade da Terra não há propriamente uma narrativa, mas uma linguagem em
transe (em transição, crise). Ao deslocar o mito cristão numa síntese do(s) “Kryzto(s) fora
da Kruz”, Glauber proclama e põe em cena (edita cinematograficamente) uma espécie de
novíssimo Terceiro Testamento: um devenir-porvir, antecipado para os povos do Terceiro
Mundo.
O Brasil idealizado por Glauber propõe um modelo de existência fora do contexto da
“razão dominante”. A sua busca radical e generosa da verdade atingiu em determinado
momento um ponto de saturação na ordem do real e desembocou no mito. Nos seus filmes, o
que deve ser levado em conta não é a técnica mas o discurso humanista. Talvez isto explique
a má repercussão de Idade da Terra, um filme que, como Glauber “previu” numa carta à
Celso Amorim, seria compreendido a partir do ano 2000.
Bibliografia
1981.
____ Roteiros do terceyro mundo. Org. Orlando Senna. RJ, Alhambra/
Embrafilme, 1985.
Stam, Robert e Magalhães, Mª Rosa. “Sobre Terra em transe. Análise de
duas seqüências”, in Glauber Rocha. SP, Paz e Terra, 2ª ed., 1991.
Vieira, João Luiz. “Cinema e Performance”, in O Cinema no século. RJ,
Imago, 1996.