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Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação

A Idade da Terra e a expressão do transe

Samuel Averbug

Resumo: Esta análise enfatiza a seqüência do desfile de carnaval de A Idade da Terra


(Glauber Rocha, 1980), a linguagem do olhar (espectadorial) em transe, a performance e
a encenação do ator. É uma abordagem dos procedimentos de construção do olhar da
mise-en-scène e da performance do ator/personagem tendo como fundamentação a teoria
dos gestos do homem visual, que traduzem uma “experiência interior” (Balázs) e o
conceitos moderno de performance.

Palavras-chaves: Análise fílmica; Glauber Rocha; cinema de performance.

Considerações iniciais

Este trabalho divide-se em três partes: o transe na interpretação, o transe da miseen-


scene (encenação) e o transe no olhar espectadorial. É uma abordagem dos procedimentos
de construção do olhar da mise-en-scène e da performance do ator/personagem, tendo como
fundamentação a teoria dos gestos do homem visual que traduzem uma “experiência
interior” (Balázs), e o conceito moderno de performance.
Em A Idade da Terra (1980), Glauber concebe quatro personagens-Cristo - numa
síntese afro-ameríndia dos povos do Terceiro Mundo - e reivindica um Cristo vivo, fora da
cruz. O corpo despedaçado dos personagens Kryztos tenta, mas não consegue, recompor as
partes. No ato de fabulação, falta a imagem constituinte do corpo do(s) Cristo(s), assim
como o sentido de nação (ou de bloco econômico regional) falta àqueles povos . O artista
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pode contribuir na invenção do povo, mas não é capaz de substitui-lo quando ele está
faltando; “nenhuma imagem pode identificá-lo e constitui-lo como nação porque ele está
estilhaçado numa infinidade de povos” (corpos).
A utopia do novo Cristo é anunciada em off pelo diretor que vislumbra o nascimento
de uma “nova e verdadeira democracia no Terceiro Mundo”. Para isto se tornar realidade
seria “necessário uma revolução econômica, social, tecnológica, cultural, espiritual e
sexual a fim de que as pessoas possam realmente viver o prazer como vitória não como
derrota”. Teríamos que “multinacionalizar e internacionalizar o mundo dentro de um
regime interdemocrático. Com a grande contribuição do Cristianismo ...E de todas, ...todas
as religiões ...E o entendimento dos religiosos e dos políticos convertidos ao amor”.
Quantos de nós somos capazes de inventar, de imaginar ou pelo menos, acreditar em
utopias? Esta é uma questão com a qual nos deparamos quando assistimos A Idade da Terra,
vemos/ouvimos os personagens-Kryzto postos em cena e a própria voz de Glauber. Como
afirma Deleuze, o cinema de Glauber “arranca do invivível um ato de fala que não se pode
calar, um ato de fabulação que não é um retorno ao mito mas a elaboração de enunciados
capazes de elevar a miséria a uma estranha positividade e a invenção de um povo.
A indignação radical com a miséria secular brasileira leva a uma “saída pelo mito, pelo
místico e pela revolta armada”. Os personagens desterritorializados de Glauber buscam um
novo corpo, uma nova terra: o corpo armado do cangaceiro, o delírio e o desespero do poeta,
o ascetismo do beato e do santo-guerilheiro e cangaceiro. Todos eles buscam constituir um
plano de imanência, ou seja, um lugar promissor, uma Terra, em que possam viver.

A linguagem do corpo no cinema


Na década de 20, Bela Balàzs teorizou sobre o lugar que o cinema deveria ocupar
-um lugar semelhante à pintura e escultura (“as velhas artes visuais”) - pela sua
qualidade intrínseca e potencial para desliteralizar as artes, considerando que no cinema
o espectador pode vivenciar “acontecimentos, personagens, emoções, estados de
espírito e pensamentos sem a necessidade de muitas palavras”. As palavras, segundo o
teórico, “não atingem o conteúdo espiritual das imagens, elas são meros instrumentos
passageiros de formas de arte ainda não desenvolvidas”.
O homem visual (os seus gestos nas novas artes visuais) não deve transmitir conceitos
que podem ser expressos por palavras, mas “experiências interiores, emoções não racionais
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que ficariam sem expressão quando tudo o que pudesse ser dito fosse dito”. Pois as palavras
são apenas reflexos de conceitos e na maior parte das vezes o que aparece na expressão de
um rosto humano não pode ser definido através de conceitos racionalizados. No sentido
oposto, “a expressão facial, é uma experiência espiritual visualizada imediatamente, sem a
mediação de palavras”.

A performance do corpo em transe: o transe do ator e o olhar espectadorial


Segundo Costa, em A Idade da Terra, Glauber “continua a teatralização dos corpos
encenada desde Barravento e, no limite, eleva o cinema à categoria de arte da
performance”. O diretor “encena com corpos, afetos, idéias e pensamento” e revela a
dinâmica e os movimento internos dos personagens, concretizando assim o que Balàzs havia
conceituado sobre o homem visual.
A noção de performance traduz uma maneira especial de dar vida e expressão a
conceitos e formas, geralmente tendo o próprio corpo como suporte material e essencial da
expressão. O estudo da performance no cinema abarca a interpretação dos atores (elementos
como expressão facial, vocalização, gestualidade), a mise-en-scène (a encenação do evento
para câmera) e as orientações de marcação (dramáticas/cinematográficas) dadas pelo diretor.
Em relação a este último, os trabalhos do diretor e do ator se somam na autoria e
composição da persona(gem)/máscara Krysto Militar: Tarcísio Meira a constrói com a
própria pele, com seu próprio rosto, enquanto o diretor através dela dá expressão a
(corporifica) uma espécie de militarismo salvacionista ao qual se alinhou, no início da
década de 70, quando apoiou o nacionalismo militar dos generais Alvarado (Peru) e
Albuquerque Lima (Brasil).
O veículo de expressão do estado de transe ou incorporação (mística/histérica) é o
corpo. O ator entra no êxtase interpretativo e o seu corpo incorpora-se ao do personagem.
Em cena, no transe da interpretação, ele é o personagem e parece agir de maneira
inconsciente. Na obra de Glauber podemos encontrar personagens em estados de transe
diferenciados. No transe visionário dos Kryztos de A Idade da Terra, os personagens não
são dotados de subjetividade, devendo, portanto, serem vistos como ícones.
O filme documenta um desfile de escola de samba carioca no final dos anos 70. Imerso
na atmosfera vibrante da locação, o ator presencia (vivencia) a cena, compartilhando com os
passistas o momento do desfile, que ocorre como um acontecimento (pertencente à
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dimensão histórica da realidade) e é, simultaneamente, incorporado à cena ficcional. Neste


carnaval real incorporado, surge no meio do desfile, pela primeira vez em cena, o Kryzto
Militar, como representante estilizado do Poder Militar, da autoridade do Estado.
Interpretando o personagem magnificamente, Tarcísio Meira encarna este Kryzto que se
insere, metaforicamente, numa linhagem de tipos históricos emblemáticos que se inicia com
Dom/São Sebastião e Dom Pedro I e chega aos generais-presidentes da República. Se por
um lado, este personagem incorpora a ordem e a disciplina militares (a herança republicana
positivista), por outro, sua gênese ibérica, traz um componente messiânico-sebastianista que
o torna ambíguo e rico em termos dramatúrgicos.
A sua movimentação no meio da Bateria, se assemelha à de um militar passando em
revista a tropa, que no caso é o povo. O personagem parece estar ali para “controlar” a mise-
en-scène, a dança e o transe do carnaval e “autorizar” aquele evento que é uma espécie de
“pão e circo”, diversão para as massas. Neste sentido, revela uma determinada maneira de
olhar a situação em volta (olhares tensos, meio paranóicos) característica do indivíduo que
pretende manter tudo sob controle. Num determinado momento o personagem esboça um
pequeno sorriso contido, seguido de tiques nervosos, que indicam um certo desconforto
naquele ambiente, ao mesmo tempo, regulado (“controlado”) e “descontrolado” das escolas
de samba.
O transe não é apenas um elemento da encenação. É também um componente do texto
fílmico, parte integrante do complexo imagem-som passível de leitura. Assim, o corpo em
transe determina o modo de apreensão do texto fílmico: a) No âmbito da interpretação; no
corpo e na performance do ator: os gestos, as expressões faciais e os movimentos do
personagem em cena. Isto é, o transe, no registro da imagem, apreendido como um estado
do personagem - um olhar indiferente, sem envolvimento ou jogo de identificação do
espectador. Apenas esta identificação cinematográfica primária com o olhar da câmera, a
“instância que dá-a-ver”, é insuficiente para fazer o espectador entrar em transe. Ao impedir
a identificação, Glauber oferece ao espectador a possibilidade da reflexão e não da catarse.
b) Nos procedimentos técnico-estéticos, que possibilitam uma outra espécie de transe. Estes
proporcionam um efeito de transe no olhar do espectador e decorrem dos movimentos de
câmera (aparentemente aleatórios e, às vezes, bruscos), das montagens de som e imagem
com inúmeros cortes seguidos (“Montagem Nuclear”) e da utilização intensa do close-up,
que juntamente com os movimentos da câmera, impedem uma visão centrada,
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perspectivista, da imagem. Tais procedimentos determinam um modo de ver em que o transe


das imagens captam o olhar.

No carnaval de A Idade da Terra (a partir da segunda metade da seqüência) o sentido


de sincronismo e harmonia coreográfica do samba são (re)trabalhados pela montagem
hiperfragmentada, que chega a comprimir até seis planos no curtíssimo intervalo de um
segundo! Se constatamos ali a presença do transe, ele não advém do desfile de carnaval, tal
como apreendido (impresso pela câmera) no puro registro da imagem. O efeito do transe
decorre do trabalho de seleção (corte e montagem), que atribui um novo sentido diegético às
imagens. A Montagem Nuclear bombardeia o olhar do espectador com imagens em excesso,
que produzem um efeito de transe. Se convencionalmente é o olhar que capta as imagens,
aqui são as imagens - processadas pela montagem - que captam o olhar.
De forma semelhante à Terra em transe, em A Idade da Terra, a trilha sonora é
explorada de “maneira imprevista não para assegurar uma continuidade emocional, mas
sobretudo para operar rupturas”. No clímax da seqüência do carnaval, por exemplo, a
montagem sonora sobrepõe-se a das imagens e determina os cortes dos planos. Elementos
visuais e sonoros díspares ou inusitados (músicas, ruídos e imagens) são inseridos nesta
sequência através da Montagem Nuclear, que acelera e cria uma dinâmica entre os micro-
planos, causando um efeito mais intenso (radicalizador) que o provocado pela montagem de
atrações eisensteiniana.
Sublinhado por rupturas imprevistas da música, este clímax é introduzido por tons
agudos de um instrumento de sopro que soam como uma espécie de toque de alvorada
militar ou anúncio apocalíptico. A atmosfera épica das imagens do Kryzto Militar
andandona avenida é interrompida diversas vezes por cortes que introduzem o Kryzto Índio
no ambiente idílico da orgia primitiva, iluminada por uma luz quente. O som da flauta e do
berimbau silenciam abruptamente a música solene e dramática de Villa-Lobos. Em seguida,
retornam os planos do Kryzto Militar, com um fundo de música clássica trágica mixada ao
samba-enredo O Amanhã (cujo refrão deixa no ar a interrogação “Como será o
amanhã?...”). Numa fusão aparentemente aleatória - que acentua ainda mais a
“desarrumação” da montagem - , surgem fragmentos de corpos em transe - baianas,
ritmistas, o Kryzto Militar, a Aurora Madalena, Brahms e uma ala destoante de casais
vestidos com figurinos da época do Brasil Colônia que executam uma coreografia que
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mistura passos de valsa com samba.

Conclusão
Em A Idade da Terra não há propriamente uma narrativa, mas uma linguagem em
transe (em transição, crise). Ao deslocar o mito cristão numa síntese do(s) “Kryzto(s) fora
da Kruz”, Glauber proclama e põe em cena (edita cinematograficamente) uma espécie de
novíssimo Terceiro Testamento: um devenir-porvir, antecipado para os povos do Terceiro
Mundo.
O Brasil idealizado por Glauber propõe um modelo de existência fora do contexto da
“razão dominante”. A sua busca radical e generosa da verdade atingiu em determinado
momento um ponto de saturação na ordem do real e desembocou no mito. Nos seus filmes, o
que deve ser levado em conta não é a técnica mas o discurso humanista. Talvez isto explique
a má repercussão de Idade da Terra, um filme que, como Glauber “previu” numa carta à
Celso Amorim, seria compreendido a partir do ano 2000.

Bibliografia

Averbug, Samuel. “A Idade da Terra: a utopia do novo Kryzto”, in


Cinemais 3, janeiro-fevereiro de 1997. RJ, Uenf/Funarte.
Balázs, Béla. “O Homem visível”, in A experiência do cinema. RJ, Graal/
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Bentes, Ivana. “Glauber e o cinema como instauração”, in Cinemais 5,
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Da Costa, Luiz Cláudio. O cinema dissimétrico ou a lógica das passagens,
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Embrafilme, 1985.
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