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Capítulo Seis

Ryan Walsh

E u me sentia leve, como se não sentisse nada. Estava em um lugar claro, com flores, árvores,
assobios de pássaros, cheiro de lavanda, como o do Hyundai de Amber, e uma brisa deliciosa como a
que eu senti em Holly Springs. Tive a impressão de não estar sozinha e me virei pra trás num reflexo
comum e involuntário, encontrando uma Amber sorridente. Ela esticava a mão para que eu a pegasse
e fossemos juntas, assim como andamos de mãos dadas pelos corredores da Julliard’s uma vez. No
entanto, eu não conseguia me mover, tive a impressão de que algo me segurava forte, como alguém
numa camisa de força. Sua feição, então, mudou-se para triste, como se se sentisse abandonada ou
deixada de lado. Eu quis alcançá-la, mas a força que me prendia era maior do que tudo que eu já
sentira ou do que qualquer coisa eu já vou sentir.
Ela se virou de costas e caminhou para fora do bosque em que eu me encontrava. Senti uma
tristeza sem igual por ela me deixar sozinha; tristeza esta, que aumentou pelo fato de eu perceber que
não tinha como sair dali. Antes que eu começasse a chorar, eu ouvi uma voz. Uma voz feminina e que
expressava carinho e cuidado comigo. Estava longe e eu não identificava quem era a dona. Agora
estava mais próxima... A cada vez se aproximava mais...
— De novo! Vamos Sophie, está me ouvindo?
— Sim, eu te ouço. Mas cadê você? Quem é você?
— Sophie! Vamos, abra os olhos, Sophie — ouvi Julie.
— Mas estão abertos, mas tá tudo branco!
— De novo, vamos lá! Sophie tente acordar! — ouvi a voz da mulher. Fiz força pra pensar e vi tudo
rodopiar e cair numa luz branca contínua que estava na minha cara.
— Graças a Deus! — agradeceu Julie.
— Você está bem Sophie? — disse a dona da voz: uma mulher que aparentemente tinha quarenta
anos.
— Sim, estou — murmurei fraca. Olhei em volta assustada. Estava em uma maca com vários fios
pregados em minha pele e em meu peito.
— Olá. Sou a doutora Elizabeth Barker. Você foi encontrada em um acostamento da Rodovia 59.
Sabe me dizer o que aconteceu? — demandou ela, apagando a luz que me cegava.
Tentei organizar minha mente, ligando cada palavra que ela dissera.
— Eu... Eu estava via-viajando... Com uma... Uma amiga para casa — disse gaguejando. — Mas —
comecei, forçando a memória, olhando para Julie ali, sorrindo por eu estar bem —, não me lembro de
mais nada.
— Hmm... Compreendo. Não aconteceu nada de grave. Você fraturou uma costela, mas o
procedimento já foi feito, ok? Nada que um belo repouso de uma semana não resolva. Tem sorte por
ter saído desta viva. Agradeça ao cinto de segurança. E, ah, você pode ter uma amnésia temporária
quanto a tudo que aconteceu há alguns minutos antes da viagem. Nada muito comprometedor, mas
com o tempo, será possível se lembrar, se trabalhar isso. — informou ela minutos antes de começar a
anotar coisas numa prancheta que apanhou numa mobília.
— Como assim “Tem sorte por ter saído desta viva”?
— É que... Bem, Sophie... — tropeçou-se Julie com suas palavras, ligeiramente corada.
— O que aconteceu? Cadê a Amber?
— A Amber está morta — comunicou Julie.
Eu não falei nada, a força, em vão, que eu fizera em tentar repelir o choro apenas me aumentou a dor
de cabeça. Julie me abraçou e secou as diversas lágrimas que se escorriam pelo meu rosto. A última
memória que eu tinha dela era de vê-la dirigindo brava por algum motivo. Será que Justin contou a
verdade de que ele não a amava? Eu estava cada vez mais agarrada ao braço de Julie, que me
consolava dizendo palavras boas.
“— E, olha, prima, isso não foi culpa sua e nem tinha como você impedir” — dizia ela entre outras
coisas. Todavia, entre essa notícia que eu tive que engolir, eu reparei ao lado em algum tipo de
escrivaninha onde havia um buquê de flores ao lado de um bilhete.
— Quem deixou isso aqui? — choraminguei ainda abatida.
— Eu cheguei fazem apenas trinta minutos e esse buquê já estava aqui — falou Julie, alisando meus
cabelos. Ela, então, pegou as flores e me entregou. Li cuidadosamente cada palavra enquanto alisava
a cabeça.

Oi Sophie. Se você esta lendo este bilhete, é porque está bem!


Puxa! Que belo susto pregou em nós, hein? Cuidado da próxima vez. Sinto muito pela sua amiga.
Beijão!

— Doutora, tem ideia de quem me deixou as flores com o bilhete? — indaguei-a interrompendo suas
anotações frenéticas.
— Ah sim! Foi um rapaz loiro. Ele disse que é de seu colégio. Não deve ter muitos amigos. Ele foi o
único que a visitou fora seus pais, é claro, que, por sinal, estão aí fora.
— Que dia é hoje?
Doutora Elizabeth checou o relógio e informou: — Três de Outubro.
— Há quanto tempo exatamente estou aqui?
— Três dias.
— Meu Deus! Quanto Tempo!
— Pois é, agora entende por que eu disse que você teve sorte em ter saído viva desta. Bem, de
qualquer forma, meu filho soube que você está internada e lhe mandou lembranças.
— E ele é...?
— Jared. Jared Barker.
Enquanto a Doutora Elizabeth desligava alguns aparelhos desnecessários, me peguei pensando em
Jared, que mandara lembranças. Eu pisei nele na Festa DeVollury e mesmo assim ele se importou
comigo quando deveria ter me mandado pro inferno. Entretanto, eu não conseguia sequer parar de
pensar em Amber. Se eu tivesse escutado minha mãe, e não tivesse ido, hoje a Amber estaria aqui,
sorridente, feliz e tagarelando. A culpa é minha! Eu só queria agora ir pra casa, tomar um banho, cair
na minha cama e adormecer não por três dias, mas pela eternidade. Como ficaria com a minha própria
consciência sabendo que eu fui a causa indireta da morte de minha amiga? Como eu pude deixar isso
ocorrer? Mas Deus teve um propósito para isto e eu tenho que aceitar as consequências do destino,
mesmo que eles doam na alma. Ninguém sabe como eu estou me sentindo inútil e perversa. Minha
maldade vai além do impossível. Não tenho culpa direta ao acontecido, mas em partes eu tenho sim.
Amber era feliz, alegre e não merecia esse fim trágico. Ela tinha apenas 17 anos e uma vida inteira
pela frente. A doutora, após ter desligado os aparelhos, disse que já podia ir embora, porém, meus
pais adentraram no quarto e ali fizeram prantos e deram graças. Minha mãe, como sempre, dizendo
que poderia ter evitado tudo se eu não tivesse ido, o que não estava ajudando na minha consciência.
Saímos do hospital d’ali duas horas após conversas e mais conversas tidas com meus pais a fim de
que eu lembrasse o que ocasionou todo o acidente, mas eu não conseguia me lembrar de nada a não
ser de que Amber, por algum motivo, estava muito irada. Papai informou que iria contratar uma
perícia para descobrir, mas Cecily o proibiu de fazê-lo, alegando de que isto não iria permitir que
Amber fosse em paz já que sempre alguém estaria cutucando o ocorrido. Na tarde chuvosa que se
seguiu deste dia cinzento, aproveitei o dia livre para ir ao Cemitério Trinity onde, segundo informou a
Doutora Elizabeth, Amber fora enterrada há dois dias, em NY. Ao chegar à cova de Amber não
aguentei a emoção: Era incrivelmente inacreditável ver que alguém tão novo já tivesse uma cova.
Joguei-lhe uma rosa de desculpas e lágrimas que supostamente Julie deveria estar derramando sobre a
minha sepultura.

M inha espinha correspondeu ao piso gelado do meu quarto com um calafrio. Meus passos
arrastados me levaram até o banheiro, onde escovei os dentes e mirei no espelho o reflexo da
preguiça.
— Definitivamente eu não deveria ter pegado essa semana de repouso — eu disse a mim mesma.
Porém, eu estava mesmo me sentindo péssima, precisava descansar (lê-se “assistir todos os filmes da
Cameron Diaz e Drew Barrymore em uma semana”). O cheiro que vinha da cozinha era formidável e,
a julgar pelo meu faro, waffles com cobertura de mel estavam sendo preparados.
Penteei o cabelo logo antes de prendê-lo em um rabo de cavalo.
— Ah! Você acordou! — exaltou Cecily, fechando as mãos numa palma.
— Bom dia mãe, bom dia pai — sorri.
— Pelo visto está bem disposta, não é, meu amor? — animou-se papai após o beijo correspondente ao
seu bom dia que estalou em minha bochecha.
— Isso é muito bom, Sophie! — acrescentou Cecily — De qualquer modo, preparei waffles pro nosso
café da manhã. — Eu agradeci abocanhando um waffles e bebericando do leite quente que papai
colocara na minha xícara.
— E esse bacon aí? — perguntei com a boca cheia.
— Seu pai preferiu bacon a waffles — informou ela. — Mas, ele não vai exagerar, não é mesmo
Senhor Priston, já que a Doutora Elizabeth lhe recomendou não extrapolar por causa do colesterol —
gemeu ela, antes de engolir seu waffles. — E então, vai à Julliard’s hoje já que está tão bem disposta?
— Sim, — afirmei bebericando leite —, até porque — dei uma pausa para engolir um bolo de waffles
na minha boca — não sei como andam as matérias. A senhora Shield, obviamente deve ter nos
enchido de lição.
— Ah, mas você tem o atestado médico.
— Eu sei, mas detesto ficar atrasada com lição.
— Não se preocupe com isso, querida. Se estiver se sentindo bem, vá — aconselhou Cecily.
— Você me deixa lá?
— Claro — falou ela com um riso de lado, obviamente por eu ter dito, há alguns dias, que isso era
brega. Pela cara dela, pude ver algum comentário a respeito, mas ela se conteve.
— Vou me trocar e, ai, saco, terei de entrar no segundo tempo.
— Por que? — perguntou papai.
— Olha a hora! 7h10AM! O primeiro tempo já começou...
— Dá tempo de entrar no segundo?
— Ah, sim, o segundo começa 07h45AM.
— Então corre, lá, filha!
A primeira coisa que notei, após passar atrasada pela catraca de entrada da Julliard’s e adentrar o
pátio interno correndo, foi a quantidade de olhares curiosos que me observavam. Se não me engano, e
creio que não, o colégio inteiro já deve estar sabendo das notícias. Era o meu primeiro dia sem a
Amber na Julliard’s. Fiz uma promessa que não pensaria em nada que me lembrasse ela. Qualquer
tipo de recordação seria destinada à lixeira do meu cérebro.
Ao entrar na sala, os alunos conversavam e a professora de Inglês saía. Brittany parecia estar
recuperada do caso da traição — também, já fazia bastante tempo, Pennelo fazia uma cara de
excitação enorme — deve ter dado graças a Deus por Brittany seguir em frente e fofocar tudo que
deixaram de fofocar na fase down dela.
— Bom dia, amados! — cantarolou uma Senhora Shield felicíssima que acabara de adentrar pela
porta alta da turma beta. — Hoje estou tão animada que mal posso esperar: Abram as apostilas de
Matemática na página... hum, foi em que página mesmo que paramos na aula passada?
— Foi na 14, Sra. Shield — informou Ashe.
— Obrigada, broto! — exultou a mestra, distribuindo felicidade — Abram na página 16, por
gentileza, queridos!
Eu levantei a mão.
— Sim, querida?
— Perdão, mas eu estive ausente por um tempo e... eu... estou completamente perdida.
— Qual seu nome?
— Sophie. Sophie Priston Von Debourth.
— Ah sim! Ai, você está melhor, flor? — disse ela, levemente interessada e se aproximando aos
poucos, em passos longos. — Eu soube do ocorrido! Meus pêsames acerca de sua amiga! Foi trágico
— pronunciou ela, colocando a mão no peito. Eu abaixei a cabeça num desconforto visível e quente,
onde eu percebi a sala inteira se virar pra me ver. — Mas, enfim, alguém pode ajudar a Srta. Von
Debourth?
Ninguém respondeu.
— Valendo dez pontos?
Ninguém respondeu.
— Ah... Com licença? — ouviu-se lá na frente.
— Sim?
— Eu... ah... Eu me atrasei, perdão. Posso entrar?
— Você é o... DeVollury, certo?
— Isso. Matthew — concordou, ele.
— Ah sim. Considerando o meu ótimo humor hoje, meu caro Don Juan, e o fato da nossa coleguinha
ali estar de volta depois de uma semana repleta de novidades, eu vou abrir uma exceção — sorriu ela,
perfeitamente — Mas, que isso não se repita ouviu, mocinho? — avisou ela, chacoalhando o nariz de
Matthew — E músculos não me intimidam! — avisou, então, já de costas. A pressão posta sobre ele
não o deixou com alternativas. E, mais uma vez, me senti péssima com essa situação que a mesma
professora me colocou. Odiava ela.
Coloquei a minha bolsa Dior em cima da mesa e puxei meu fichário a fim de encontrar minha
seção de anotações de Matemática e, em seguida, abri a apostila na página 16.
— Você... está... bem? — disse ele, se sentando de leve. A roupa de sempre não parecia ser a de
sempre. Hoje, ele veio com um tênis Nike, calça skinny preta e a usual pólo com a gola azul-marinho.
Os lábios, de perto, eram iguais aos do irmão: vermelho-morango, enquanto os olhos verdes refletiam
as sobrancelhas e o cabelo loiro-mel.
— Estou legal.
— Sinto muito pela... sua amiga.
— Sente mesmo?
— Não, mas... ah, você entende.
— Rum, todos dizem sentir, numa hora dessas.
Matthew sorriu para frente, sem olhar diretamente a mim. Tive a impressão de que ele quisera dizer
algo, mas, contudo, não se manifestara.
— Bem, olhando aí na página 16, nós podemos observar quatro exemplos de probabilidade.
Explicando-se aqui, rapidamente, anjinhos, esta área matemática visa calcular as chances de
ocorrência de um evento, como por exemplo, olhando aí na apostila, as chances de cair cara ou coroa
ao se jogar uma moeda. Esse assunto é muito delicado e requer atenção, portanto, dez minutos pra
leitura teórica, depois partiremos pros exercícios. Trabalhando! — introduziu, então, a Senhora
Shield. Matthew cessou os olhares furtivos e começara a ler sua apostila. Eu fiz o mesmo e me
surpreendi.
— Tá bom! Já chega! — soltou ele, levemente arfante.
Olhei pra ele e disse a mim mesma — Não acredito! Ele está falando comigo! — Fiquei vermelha e
disse:
— Oi?
— Por favor, só quero conversar, não pense qualquer coisa antes...
— Não pode ser. Ele só deve estar querendo tirar com a minha cara. Não Sophie! Não dê ouvidos a
ele.
— Eu... hãm... Nós temos que ler... probabilidade.
— Por favor?
Havia como negar um pedido desses a um anjo como aquele?
— É sério... temos que nos concentrar em probabilidade.
Ele respirou fundo, olhou em volta e cochichou:
— Ok, qual a probabilidade de você me desculpar?
— Eu ouvi direito? — fingi-me de surda, pulando de felicidade por dentro.
— Eu acho que a gente não se conheceu da maneira certa... — disse com um riso pelo cantinho da
boca.
— É... — só consegui dizer isso, extremamente encabulada.
— Você me perdoa?
— Fofi-nhá, vem cá! — interpôs a professora.
— Eu?
— Isso, meu bem... Vem você também, grandalhão.
Matthew e eu nos levantamos, confusos, e fomos até a mesa da mestra, onde ela permanecia em pé.
— Agora virem-se de costas pra lousa. — obedecendo-a, ela prosseguiu — Agora eu quero uma
explicação sobre Probabilidade que vocês obviamente já sabem já que estavam tricotando ao invés de
ler o que eu mandei. E sem repetir o que eu já expliquei, hein. Pode começar...
Meus olhos vacilavam e minhas mãos suavam; a sala inteira me olhando enquanto Brittany se ria ao
que Ashe e Pennelo tiravam fotos. Matthew, entretanto, me surpreendeu, novamente:
— Usamos a Probabilidade pra calcular a possibilidade de ocorrer algum evento. Vou usar como base
uma moeda, como o exemplo que a apostila usa. Nós usamos o número de vezes que é possível
ocorrer o evento igualado ao número de eventos desejados, no caso da moeda, você colocará o lado
que quer que caia, que no caso, seria apenas um; sobre o número de eventos possíveis que, na mesma
explicação, são dois, cara ou coroa.
— E aí...?
— E aí, é calcular.
— Então calcule, fofinho! — revirou os olhos a mestra.
— No caso do meu exemplo, ficará 1=1/2, resultando em 50%.
— Muito obrigado, queridos, podem voltar — ordenou a mestra, triste por não nos dar uma bronca.
Nunca fiquei tão quente na vida de tanta vergonha. — Entenderam, então, meus amores? Vamos lá,
exercícios de A a U da página 17. Trabalhando!
— Valeu por me salvar — sorri.
— Tenho matemática financeira no meu currículo — piscou ele.
— Ah, é?
— Sim, eu ajudo os meus...
— Calma, é melhor a gente conversar no intervalo senão o chumbo grosso caíra n’a gente de novo!
— Nos intervalos de hoje eu ficarei com meus amigos... Prometi ajuda-los numas... coisas — disse
ele, estranhamente se entristecendo. Pela terceira vez, então, me surpreendendo, ele abriu um rosto
feliz e lançou: — O que você acha de almoçarmos no Central Shopping depois do colégio?
— Por mim, tudo bem — sorri, escondendo meus sentimentos em três, dois, um.

O final do expediente de aula nunca fora tão esperado. Acabara de contar a Justine que iria
passar o almoço com Matthew e ela cruzou os dedos por mim. Mandei uma SMS à Julie, já que ela
faltara à aula. Combinei com Matthew de nos encontrarmos no chafariz do pátio às 13h35 e ele ainda
não tinha chego. Será que se arrependera do que propusera? Já eram 13h32 e nada dele!
— Oi — disse ele por trás de mim —, de novo!
— Ah, oi — repliquei com um suspiro de alívio.
— Achou que te daria o bolo, né?
— Pra ser sincera, sim.
— É, eu sei... Vamos? — perguntou ele, levantando as sobrancelhas.
Eu fiz que sim com a cabeça e lá estávamos nós, escorregando catraca afora. Seguimos para o
estacionamento de alunos — a primeira vez que eu fui pr’aquele lado — e ele suou o alarme de uma
BMW X6 preta. Não fiz qualquer comentário quanto ao carro e não parei de desejar que chegasse
logo Janeiro pra eu ganhar o meu de aniversário.
— Sem correr, ok? Estou ainda traumatizada.
— A senhorita é quem manda! — disse colocando a mão na cabeça de uma forma que me lembrou
dos soldados de um exército dizendo “Sim, Senhor!”
Ele dirigia incrivelmente calmo.
— E então — iniciou ele, após seguir pela Avenida Madison —, você veio da Sharvarty, não é
mesmo?
— Pois é, estudava lá desde a quinta série.
— E o que te trouxe aqui pra cima?
— Eu me decepcionei com um cara.
Ele olhou pra mim por um segundo, e se virou para frente, então.
— Deve ter sido algo barra pesada pra te fazer sair de um lugar que já havia te consolidado.
— Foi algo muito... perturbador, eu diria.
— Perturbador? — repetiu ele o termo.
— Eu considero perturbador algo que lhe tire o sono — informei, levemente desgastada com a
lembrança. Matthew me olhou como se não quisesse me fazer sentir desta maneira.
— E hoje você vê esse evento “perturbador” como?
— Vejo como uma página virada.
— Tem certeza?
— Não diria que tenho certeza porque não sei como reagiria se eu o visse, por exemplo.
— Acha que vocês têm volta?
— Não.
Ele sorriu.
— Julie me contou que você se machucou muito e boa parte da culpa era dela. O que exatamente ela
teve a ver com isso?
— Vocês, da Julliard’s, são tão abelhudos! — brinquei.
— “Vocês”? — riu, ele, fingindo.
— É! Vocês sabem tanto da vida das pessoas...
— Amamos questionar e obter respostas.
— Eu estou bem percebendo — sorri.
— Brincadeira, Sophie. Eu... Bem, boa parte dessa má impressão que você tem, eu levo os créditos.
Sei que não te tratei bem desde o início, mas... mas eu vejo a pessoa boa que você transmite ser e que
os outros dizem que você é.
Eu não falei nada e ele prosseguiu:
— Talvez você pode achar estranho essa mudança radical, meio que “da água pro vinho”, mas eu
estou ensaiando isso há tempos. Não achei legal a forma como te tratei, sabe?
— E não foi mesmo. Até porque, se eu tivesse escolha, não teria visto o que eu vi.
— Essa vida de popularidade nos acarreta a tomar certas atitudes que às vezes não queremos, mas a
própria pressão de ser um popular nos leva a agir como um popular.
— E aonde o popular DeVollury quer chegar?
Matthew sorriu e soltou “Só um instante”. Havíamos acabado de chegar no estacionamento do
shopping, onde ele acabara de estacionar. Nós descemos do carro e caminhamos até o elevador que
nos levou rapidamente até o quinto andar, onde se encontravam os restaurantes, e fomos lanchar no
McDonald’s.
— Você quer o que, Sophie? Peça qualquer coisa.
— Hmmm, um quero um Big Mac com Coca.
— Ok — concordou ele, e se virou para a balconista dizendo: Dois Big Macs, duas batas grandes,
duas Cocas, um molho barbecue e... O que você quer de sobremesa?
— McFlurry com M&M’s.
— ... e adiciona um McFlurry com M&M’s e outro com Cookies — finalizou ele, então. Dali
pouquíssimo minutos, já estávamos sentados nas cadeiras externas da cobertura do shopping; o sol
nos saudou com fortes raios solares e eu percebi que os olhos verdes de Matthew brilhavam mais no
sol.
— E então, continue — eu disse, pegando uma batatinha.
— Hmm, claro — falou ele mastigando uma batata melada no barbecue. — Onde eu parei mesmo?
— Eu perguntei onde você queria chegar com aquele papo de popularidade...
— Hmm, sei... então, ah, Julie me contou que você era uma Brittany Weston na Sharvarty.
— Aff, aquela bocuda — revirei os olhos.
— Não tem problema, todos temos passados que nos condenam.
— Você que o diga não é, Drew.
Ele, levemente, corou. Seu sorriso de lado, por ora, travesso, respondeu por si próprio.
— Mas, respondendo a sua pergunta, sim, eu já fui popular. Não sei se você sabe, mas meus pais são
donos da Priston.
— Logo deduzi ao ouvir seu sobrenome na classe.
— É. E isso meio que atraiu pessoas pra perto de mim.
— Sei como é.
— E muitas pessoas vieram pelo meu poder aquisitivo, sabe, e acabaram por me glorificar. Não vou
negar que é um gostinho ótimo ter tudo e todos aos seus pés, mas tenho que concordar que agora vejo
que não é fácil pra quem está do outro lado.
— Ah, qual é, você não é tão anônima assim. Lembro-me de já ter visto seu pai na tevê.
— Mas eu não sou popular na Julliard’s.
— Não é ainda.
— Eu não quero ser popular. Por mais que eu esteja comendo o pão que o diabo amassou, é bom ir
descabelada pra escola e ninguém comentar, usar o mesmo laço por três dias seguidos sem ninguém
caçoar... coisas simples, mas que te trazem bem-estar.
— Já comigo é diferente. Eu nunca soube o que é ser anônimo. Minha mãe é apresentadora de um
programa de culinária em Londres de um canal a cabo local.
— Sério? — arregalei os olhos, engolindo goles gigantes de Coca.
— É, desde que eu nasci ela trabalha na teve, sempre como apresentadora.
— E seu pai?
— Meu pai se aproveitou dessa “fama” da minha mãe e criou uma empresa metalúrgica com o
mesmo sobrenome dela, sabe, pra fazer as vendas mais fáceis por ser um nome conhecido no
mercado.
— Mas eles moram juntos... separados, como que é?
— Meus pais são separados, mas mantém uma amizade colorida, sabe? Sempre vivi mais com a
minha mãe, na época em que ela gravava os programas aqui mesmo. Mas, devido uma queda de
gastos dentro do canal, ela teve que se mudar pra lá pra emissora não gastar tanto.
— Entendo, e como é ser filho de uma apresentadora?
— Não é normal. Algumas pessoas me param na rua pra perguntar, mas não é algo que me priva
completamente, sabe, já que o programa é transmitido apenas em Londres.
— Você vive, então, lá na rua 78, sozinho?
— Não. Quem mora lá é o Jimmy. Eu moro sozinho num duplex que meu pai deixou pra mim antes
de transferir a empresa pro Mississippi.
— E como você lida com essa solidão?
— Eu gosto de ficar sozinho. Na maioria do tempo estou trabalhando ou na Julliard’s, fico em casa
mesmo só pra dormir.
— Mentira que você trabalha!
— É sério! Eu administro o escritório da matriz da empresa do meu pai. Você sabe, finanças,
contratos, gastos... tudo fica por minha conta.
— E como é ser tão jovem e ter tanta responsabilidade?
— É ótimo. Me considero tão adulto... — sorriu, destampando seu lanche e enchendo a boca — Mas
já falei demais. Fale você um pouco.
— Bem, eu, er... Meus pais, como eu já disse, administram a Priston há alguns anos e a empresa já
está bem posicionada e com clientes fiéis. A minha vida se resume apenas na Julliard’s, não tenho
outra atividade paralela.
— Quanto ao carinha lá... o que te decepcionou?
— Ah, Ryan foi um... momento da minha vida muito especial. Meu primeiro amor, meu primeiro
namorado. Na verdade, ele que quis me conhecer, tinha acabado de voltar à Sharvarty, depois de um
expediente em Londres; eu não estava muito a fim, mas por pressão do meu melhor amigo, Jean, e da
Julie, e também por ele ser lindo e maravilhoso, acabei cedendo. A gente ficou e se conheceu melhor
com o passar dos dias; nos pegávamos nos intervalos, cabulávamos pra ficar escondidos debaixo da
escada da praça de alimentação ou apenas na casa da árvore da Sharvarty.
— Tinha uma casa da árvore na escola?
— Tinha. Nós montamos no campo de futebol.
— Como isso? — arregalou ele os olhos, limpando o canto da boca com um guardanapo.
Eu ri e prossegui:
— Assim, naquele ano, as aulas de futebol foram canceladas por causa de um dos alunos ter sido
machucado seriamente e intencionalmente durante um torneio. A culpa ficou completamente na
Sharvarty, ficando, então, vetada de realizar qualquer esporte no campo. Julie, Jean, Ryan e eu
aproveitamos isso e criamos uma casa da árvore num fim de semana inteirinho.
— Escondidos?
— É claro! A fizemos em uma das árvores mais longínquas a fim de evitar ao máximo qualquer um
de encontrar o nosso oasis. E já que ninguém ia lá mesmo... facilitou, sabe?
— Doidos! Mas, me conta, e esse Ryan? Vocês ficaram juntos por quanto tempo?
— Foram três meses de agarração. Depois de tudo isso foi que ele me pediu em namoro. E foi a coisa
mais linda que me aconteceu, Matthew. Ainda me lembro como se fosse ontem: “Estávamos na praça
de alimentação do colégio. Ele gritou para todos se calarem e me fitou com os olhos negros” — agora
me vinha na mente a cena de como tudo aconteceu, desde o grito dele até cada palavra que disse:
— Todo o mundo, cale a boca! Eu quero dizer aqui, e deixar super claro o quanto essa garota é
importante pra mim! Meu amor, eu sei que começamos faz pouco tempo, mas me sinto como se meu
coração fosse seu. Não imagino um segundo sequer de minha vida sem você. Se ficasse um minuto
sem sentir sua pele na minha, sua respiração em mim e seus olhos me olhando a cada instante; se
não tivesse tudo isso, me consideraria um homem vazio.
— Mas, e você?
— Oras, eu não dizia nada! Ficava ouvindo cada palavra que ele dizia e arquivando em minha mente
com os olhos lacrimejados e os lábios, com gloss, tremendo ao tentar segurar o choro.
— Você quer namorar comigo? Por favor, diga que sim. Faça de minha felicidade completa. Faça
com que você seja a causa de eu acordar todos os dias e vir pro colégio.
— E, sabe, ele disse cada palavra sem vergonha do colégio inteiro olhando para nós, entende? E,
entretanto, eu senti que estávamos apenas nós dois ali.
— E o que você respondeu pra ele? — perguntou curioso, quase roendo as unhas, mas não chegou a
este ponto.
— Ele me pegou pelo braço e me fez subir na mesa do refeitório.
— Claro que aceito meu amor, não tem nem como eu não aceitar.
— Eu disse no impulso; disse o que meu coração sentira no momento. Já não agüentava as lágrimas, e
as deixava que escorressem em meu rosto. Minha voz estava falhada e horrível como de quem tinha
chorado durante dias. Ele me mandava bilhetes e cartas, assim como algum engraçadinho andou
fazendo, só que sem cantadinhas baratas. Antes de ir para o colégio, ele passava no meu condomínio
e deixava uma carta com o porteiro. Todos os dias — reforcei. — Eu saía de casa e pegava sua carta
que lá me esperava. Nós namoramos durante dois anos, os melhores da minha vida. Os dois anos que
me senti mulher. Os dois anos que me senti completa com alguém.
Depois de uma pausa, Matthew finalmente falou.
— Puxa, foi mal fazer você voltar neste assunto. Deve ser duro você falar nele — reprimiu, então.
— Tudo bem , eu raramente penso nele — menti enquanto tirava o picles do meu lanche.
— Mas estou curioso — continuou —, se tudo era tão perfeito e rosa, por que terminou com ele?
Dei uma mordida no lanche com força ao me lembrar.
— Porque ele me traiu. Haveria um baile de Halloween no colégio, como tinha todos os anos. Eles
enfeitavam tudo, desde as escadas até a porta dos banheiros. Eu já havia comprado minha fantasia da
Minnie, até que meus pais disseram que eu teria de ficar em casa. Aquela noite chovia muito para eu
ir a qualquer festa e, pra ajudar, meu celular estava sem bateria e o telefone, mudo, provavelmente
devido à chuva, então não teve como avisá-lo que eu não iria. Chorei até adormecer. Ao acordar no
outro dia, fui ao colégio e, chegando lá, Ryan disse no primeiro tempo que precisava falar comigo.
— Ai, odeio quando falam isso — contou Matthew, revirando os olhos.
— Eu também! Sempre me parecia o fim e já ficava esperando o pior. Todavia, não precisou chegar
ao intervalo para eu saber. Jean foi à festa e me contou que ele ficou com minha prima Julie.
— A JULIE? — cuspiu ele o lanche.
— A própria. Se tem algo que eu não suporto é traição, ainda mais com alguém da minha família.
— E AÍ?
— E aí que nunca senti uma dor tão forte quanto a dor de terminar um namoro.
Matthew parara de comer e me olhava incrédulo.
— Pois é, esse é o motivo pelo qual eu vim pra Julliard’s. Tudo naquele colégio me lembrava ele, eu
precisei me mudar!
— Meu, nossa... Pera... Sério! Você conseguiu sobreviver?! — ele fez uma cara engraçada. — Digo,
você foi traída pelo cara que você amava e ainda apunhalada pela prima? De boa, eu não aguentaria e
procuraria por giletes pra rasgar o pulso.
— Eu quase fiz isso, mas seria um pecado eu morrer sem usar os Jimmy Choo que eu comprara dois
dias anteriores ao acontecido.
— E como era o nome dele inteiro?
— Ryan Walsh.
— Ele continua na Sharvarty?
— Suponho que sim.
— Hmm, você disse que ele era de Londres...?
— A família dele é de lá. Sabe, todo adolescente morre de vontade de vir pra Nova York, e com ele
não foi diferente. Veio, comprou um flat e tá morando sozinho lá, acredito.
— Vocês usaram esse flat? — perguntou ele, disfarçando o motivo escondido na pergunta.
— Não! — respondi, rindo — Ele deu uma festa de fim de ano lá, mas não usamos!
Nós rimos juntos e eu parei num segundo e me lembrei, não sei por que, da festa na casa do Jimmy. E
eu precisava falar a respeito!
— Tem uma coisa que eu quero te perguntar.
— E eu sei que é a respeito do Drew.
— Por que fez aquilo? Você é gay?
— Não, não!
— Por que beijou o Drew, então?
— Eu e o Andrew nos conhecemos há algum tempo. Por volta dos meus treze anos eu comecei a me
descobrir e a me masturbar feito um louco. Procurei por coisas diferentes: sexo com pessoas presas,
em lugares fechados, com fantasias de heróis, com chicotes e máscaras... toda essa gama de fetiches
sexuais. E eu sempre tive essa curiosidade de saber como era ficar com um homem, mas nunca tive
coragem.
— Então você e o Drew...?
— Calma. Como eu disse, nós nos conhecemos há algum tempo... durante uma aula de um curso de
férias de Matemática Financeira que eu entrei quando eu estava no primeiro colegial. Nós ficamos
amigos e eu compartilhei dessa minha curiosidade que, por sinal, ele também tinha. Então, fomos
úteis um ao outro.
— Mas essa curiosidade se desenvolveu numa opção sexual?
— Não!
— Eu pergunto isso porque, tipo, você estava se preparando pra tirar a calça dele e já morro de nojo
só de imaginar o que viria em seguida.
— Ah, eu não sei... Eu só senti atração, na verdade, por ele. É um impulso, como se você não
soubesse o por que... só sabe que tem que fazer aquilo, saciar aquela vontade, seguir seus instintos. É
difícil explicar. Se você não fizer, isso fica te consumindo depois. Se você fizer, isso fica te
corroendo. É um saco...
— E por mulher... Você sente... Exatamente o que?
— Muito tesão! Não tenho dúvidas. — afirmou num sorriso branco largo.
— Mas você é... virgem?
— Depende... — sorriu maliciosamente.
— Que nooooojo! — gritei, rindo e jogando-lhe um picles.
— Brincadeira! — exaltou — Eu sou um DeVollury... Claro que não sou virgem.
Parei pra pensar — e mastigar — e concluí.
— Você é diferente, Matthew, muito diferente.
— É bom não ser igual aos outros. Além do mais, me diz, o que você estava fazendo lá em cima,
senhora abelhuda?
— Segredo! — gritei no mesmo instante. Eu não poderia contar que eu estava lá exatamente pra me
entregar ao desejo carnal de me saciar desse corpo viril e completamente selvagem.
— Ah é? — ameaçou, ele — Também tenho um segredo! — riu-se, orgulhoso.
— Que segredo?
— Conta você primeiro.
— Ok, eu estava lá por que... Porque queria ficar com você!
Matthew, ao ouvir a revelação, não piscou. Sua feição era completamente pálida.
— Que foi? Algum problema?
Ele ainda não respondera nada, me olhava de forma estranha.
— Per’aí... Qual é o seu segredo?
— Estou apaixonado por você.

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