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De igual modo, os idealistas sempre declararam uma guerra sem quartel ao
individualismo. “O utópico detesta o que é único, original, aquilo que diferencia e
personaliza. De A República de Platão ao coletivismo de Estaline, passando por A
Cidade do Sol de Campanella, procede-se a uma verdadeira nivelação de todas as
pessoas, tranformadas em peças anónimas e substituíveis de uma máquina
escrupulosamente lubrificada”, diz o antropólogo francês François Laplantine.
Alguns limitaram-se a espelhar no papel a sua visão da perfeição, mas outros não se
contentaram com a fantasia. Foram várias as tentativas para construir comunidades
isentas das estruturas e dos princípios das sociedades do seu tempo. Socialistas
utópicos, seitas religiosas, humanistas e iluministas empreenderam as mais audazes
façanhas e conseguiram, muitas vezes, que as suas enteléquias se tornassem
realidade. […]
A desenfreda irrupção da industrialização na Europa Ocidental começou a suscitar
fortes críticas e reações violentas. Naquele período, foram muitos os que tentaram dar
vida a alternativas ao avanço do capitalismo. Foi então que se começou a desenvolver
aquilo que Karl Marx (1818-1883) e Friedrich Engels (1820-1895) designariam por
“socialismo utópico”.
Um dos protagonistas foi o francês Charles Fourier (1772-1837), um sonhador
incurável que chegara a planear a transformação do deserto do Sahara num jardim.
Nas suas cidades ideais, os falanstérios, as pessoas viveriam numa grande casa
comum e as crianças aprenderiam o igualitarismo. O professor Neil McWilliam, da
Universidade de Warwick (Inglaterra), critica o projeto de Fourier e chama-lhe
“socialismo de champanhe”, pois pretendia que os cidadãos levassem uma existência
sumamente opulenta, vivessem em mansões inspiradas nos palácios reais e
usufruíssem diariamente de requintados banquetes. Muitos discípulos de Fourier
quiseram tornar realidade a sua fantasia, mas todas as comunidades faliram em
poucos meses.
Censura na imprensa
O filósofo Étienne Cabet (1788-1856), compatriota de Fourier, estava empenhado em
acabar de uma vez por todas com o individualismo. Na sua proposta para uma nova
sociedade, que se chamaria Icária, os governantes deviam instituir a censura na
imprensa, regulamentar a educação e estabelecer as doses que cada cidadão podia
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receber na mesa comum. Outro francês, Henri de Saint-Simon (1760-1825), defendia
que os dirigentes tinham o dever de moldar a consciência dos indivíduos. As ideias
deste teórico social chegaram a ser consideradas quase como uma religião pelos seus
partidários. Por isso, não será de estranhar que muitos dos seus contemporâneos,
como o anarquista Pierre-Joseph Proudhon (1809-1865), tenham começado a criticar
o despotismo daqueles estilos de vida presumivelmente modulares.
Outro idealista da época foi Robert Owen (1771-1858), empresário inglês que quis
construir cooperativas que permitissem aos trabalhadores levar uma vida simples, mas
digna. Eram formadas por casas idênticas, em forma de paralelogramos, e
proporcionavam serviços excecionais para a época, como escolas e bibliotecas
públicas. A vida comunitária começava aos três anos de idade, e foi mesmo criada
uma indumentária oficial, semelhante à usada na antiga Roma. No entanto, as
comunidades não tardaram a ficar à beira da ruína.
A experência de Owen teve uma consequência ainda mais preocupante: a total
anulação do indivíduo. O poeta inglês Robert Southey (1774-1843) dizia que o pai do
cooperativismo chegara à “monstruosa conclusão” de que, dado que ele conseguira
manipular a consciência de mais de 2000 pessoas, toda a humanidade podia ter sido
governada com a mesma facilidade. Infelizmente, a história dos totalitarismos do
século XX, que iriam transgformar os povos em massa dóceis e apáticas, acabou por
confirmar o seu presságio. […]
No final do século passado, o politólogo Francis Fukuyama sugeriu que o tempo das
utupias terminara e que se iniciara, após a queda do Muro de Berlim, uma nova fase, a
última da história, na qual não existiria qualquer opção que divergisse da atual
sociedade democrática-liberal-capitalista. Na mesma altura, o historiador Russell
Jacoby afirmava que o espirito utópico desapareceu no mundo atual. Assim, podemos
perguntar-nos se as fantasias de perfeição seriam, deveras, o único caminho para
melhorar a sociedade. Em 2004, José Saramago aconselhava a mudar de estratégia e
a concentrarmo-nos em projetos que, levados a cabo no presente, possam alterar de
forma paulatina o futuro da nossa civilização: “Deixemos a linha do horizonte,
deixemos a utopia: o dia de amanhã é o resultado do que tenhamos feito hoje. É muito
mais modesto, muito mais prático e, sobretudo, muito mais útil.”
Revista Super Interessante, maio 2013
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