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IV Encontro Regional da ABEM

Educação Musical Hoje: múltiplos espaços e novas demandas


Mesa redonda: “O formal e o informal da educação infantil, ensino fundamental e médio”.
Palestrante: Leda de A. Maffioletti - UFRGS

MAFFIOLETTI, Leda de A. Musicalidade humana: Aquela que todos podem ter. In: Anais do IV
Encontro Regional da ABEM Sul, I Encontro do Laboratório de Ensino de Música/LEM-CE-UFSM.
Educação Musical hoje: Múltiplos Espaços. Novas demandas profissionais. UFSM/RS, 23 a 25 de
maio de 2001. p.53-63.

MUSICALIDADE HUMANA
AQUELA QUE TODOS PODEM TER

Leda de A. Maffioletti - UFRGS

Introdução

Existe uma razão pela qual estamos empenhados em discutir a Educação Musical.
Acreditamos na importância dessa área de conhecimento e qualificamos nosso pensar
argumentando, discutindo e socializando nossas idéias. Foi pensando no que é comum
nos três níveis de ensino, Educação Infantil, Ensino Fundamental e Médio, que optei por
expor alguns aspectos referentes à Musicalidade Humana. A crença de que ela pode ser
desenvolvida em todas as pessoas nos leva a refletir sobre as contradições do cotidiano:
porque as pessoas amam tanto a música e tão poucas se dedicam a desenvolver sua
capacidade musical?
A etnomusicologia nos coloca uma questão importante: Existe uma enorme
variedade de músicos, membros de diferentes sociedades, que categorizam a música
como sistema cultural de forma diferente (Blacking, 1990). Como compreender o
conceito de música em uma sociedade que, ao mesmo tempo que admira um clássico da
música popular, consome os produtos de pouco valor divulgados pela mídia?
Como explicar a universalidade da musicalidade no ser humano, enquanto existem
culturas nas quais a música é um ato pecaminoso e uma atividade imprestável? (Baily and
Doubleday, 1990).
O que compreendemos como música tem sua relação com o que compreendemos
sobre musicalidade (Gembris, 1997) refletindo-se nas formas de ensinar. Por esse motivo,

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dedico-me a pensar sobre o tema: “A Musicalidade Humana – aquela que todos podem
ter”.
Neste texto exponho alguns conceitos de musicalidade, detendo-me um pouco
mais no conceito mais recente, trazendo sua implicação para a Educação Musical geral,
em qualquer um dos espaços onde ela possa se desenvolver.

Música e Musicalidade

Nos últimos 200 anos, o conceito de musicalidade esteve sempre relacionado ao


predomínio do conceito de música e estética musical (Gembris, 1997, p. 17). A revisão da
literatura mostra que as discussões sobre o assunto mudaram desde as primeiras
preocupações com o tema “aptidão para música”, “talento musical”, “competência
musical” ou simplesmente “musicalidade”.
Gembris (1997) identificou na história das definições sobre musicalidade, três
grandes enfoques, “fenomenológico”, “psicométrico” e, mais recentemente, a fase do
“significado musical” localizando-as entre os séculos XIX e XX. (p. 17).

Fases históricas da definição de Musicalidade

I Abordagem Fenomenológica

Michaelis e Billrotth Kreis


(1805) (1895) (1926)

II Abordagem Psicométrica

Seashore Wing Gordon


(1919) (1919/61) (1989)

III Abordagem do Significado Musical

Stefani Sloboda
(1987) ( 1993)
Blacking
(1990)

1800 1900 Hoje


Fonte: Heiner Gembris, 1997, p. 18

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Não entrarei em detalhes, pois o estudo pode ser melhor explorado a partir do
próprio texto de Gembris (1997) relacionado na bibliografia e nas leituras que apoiaram o
seu trabalho. Mas vale a pena salientar a importância de compreender um conceito no seu
contexto histórico, para que fique bem claro que, aquilo que estamos pensando hoje sobre
musicalidade será também visto como uma forma de pensar do nosso tempo, nem melhor,
nem mais verdadeira do que a forma de pensar de outras épocas.
Isso não quer dizer que vamos deixar de lado o conceito de musicalidade.
Enquanto educadores musicais, precisamos mapear as habilidades musicais, para tornar
mais próximo o contato com as manifestações da nossa cultura. Falarei sobre isso mais
adiante.

Compreendendo a história dos conceitos de musicalidade

Na primeira fase, identificada por Gembris de fenomenológica, temos Christian


Friedrich Michaelis (1770-1834) que publica em 1805 “Sobre a avaliação da habilidade
musical”, onde descreve com detalhes as habilidades de discriminação musical, memória,
atenção musical, prazer musical, bom gosto, imaginação para compor e outras. Para
Michaelis o traço musical mais importante seria o gosto e a habilidade de discriminação
musical, a fim de discriminar a boa música e a medíocre (p.19). Hoje temos outra
concepção sobre música, na qual o critério “bom” ou “ruim” não é valor confiável de
julgamento, como em nenhuma outra área do saber. Mas no tempo de Michaelis, o
critério predominante na forma de compor e ouvir música obedecia à idéia clássica de
beleza, buscava a uniformidade das variações, a proporção e a harmonia das partes.
Gembris (1997) observou que na fase inicial do conceito de musicalidade houve busca de
uma descrição geral e fenomenológica nas habilidades musicais, caracterizando o período
(1805- 1926) como “fenomenológico”. Embora nomeie desta forma, não tem qualquer
filiação com a corrente filosófica fenomenológica. Encontraremos alguma semelhança da
denominação de Gembris com a “psicologia descritiva” – significado que Hamilton
(1859-1860) atribuiu à fenomenologia. Para conhecermos mais sobre os diferentes

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significados que o termo fenomenologia assumiu desde o século XVIII até hoje, podemos
consultar Abbagnano (1999).
Mais adiante, Theodor Billroth (1895) propôs que a percepção musical seria a
forma mais importante do critério de musicalidade. De onde ele tirou essa idéia? Ocorre
que Billroth era grande amigo do crítico vienense Eduard Hanslick, o qual criticou
veementemente a concepção de música como expressão dos sentimentos. A propósito,
Hanslick, em seu livro “Do belo musical” (original em 1854), critica algumas definições
sobre música correntes em sua época, dentre elas cita a definição do influente Michaelis:
“A Música é a arte de exprimir sentimentos através da modulação dos sons. É a
linguagem das paixões” (Michaelis, apud Hanslick, 1992, p. 26). Opondo-se a esse tipo
de colocação, Hanslick argumenta que o efeito sobre os sentimentos não diz
absolutamente nada do valor estético da obra de arte, o importante é entrar no interior da
obra (p.21). Para Hanslick “O conteúdo da música são formas sonoras em movimento”
(Hanslick, 1990, p. 62).
Para atender a esse critério musical, perceber as formas foi compreendido como o
ponto central da concepção de musicalidade. Mesmo tendo sido escrito no século XIX,
este modo de pensar ainda é encontrado no século XX. Embora se trate de uma
retrospectiva, está muito clara a conecção entre estética musical e a concepção de
musicalidade – aspecto que será também observado no período contemporâneo (Gembris,
1997, p.19).
Embora Michaelis tenha mostrado intenção de medida da musicalidade, somente a
partir dos avanços da psicologia experimental isso se tornou possível. Na abordagem
psicométrica os pesquisadores acreditavam que seria possível testar as habilidades musicais
independentemente da socialização musical da pessoa. Os testes da época tinham esse
objetivo, inclusive o teste de Seaschore (1919) e a primeira bateria de testes de Gordon
(1989) (Gembris, 1997, p. 20).
Por curiosidade, gostaria de comentar que Robert Seashore realizou estudos
complementares para medir o talento musical nos aspectos mais complicados do ritmo.
Seus estudos sobre o desenvolvimento da precisão da ação rítmica, realizado em 1926, teve
por objetivo analisar esta função e sua relação com aspectos motores e cognitivos, como
forma de predizer o sucesso na performance. Ele acreditava, como disse Gembris, que os

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aspectos mais complicados do ritmo, como o julgamento das semelhanças e os aspectos
afetivos poderiam ser isolados e mantidos sob controle: “Estes fatores complicantes do
ritmo devem ser isolados, o mais afastado possível, e trazidos sob controle” (Seashore,
1926, p. 148). Não só naquele tempo alguém pensou assim, Gembris cita que também
Edwin Gordon teve semelhante intenção. O leitor poderá saber um pouco mais da teoria de
Gordon lendo o artigo escrito por Beall, G. (1991) “Learning sequences and music
learning”, publicado no periódico Quarlety 2 pp. 87-96.
A terceira fase enfoca o sentido musical, a idéia principal é que a geração de sentido
é o núcleo da musicalidade, o que implica num trabalho pedagógico voltado para o saber
fazer, compreender e comunicar.
E de que modo a cultura ocidental produz sentido com a música? A partir do que
podemos imprimir significados aos sons de nossa cultura?
A esse respeito acredito que seria muito interessante conhecermos o pensamento de
Shephard J. e Wicke, Peter, exposto na obra ‘Music and cultural theory’. Cambridge:Polity
Press, 1997, onde analisa várias teorias sobre a compreensão do significado sócio-cultural
da música; e também Christopher Small, já traduzido para o espanhol “Música. Sociedad.
Educación. Un examen de la función de la música en las culturas ocidentales y africanas,
que estudia su influencia sobre la sociedad y sus usos en la educación’, publicado pela
Editora Alianza, Madrid, em 1989.

O Sentido Musical

Com certeza algumas condições são necessárias para que seja possível atribuir
significado aos sons. Segundo Stefani (1987), o nosso esquema sensorial e perceptivo capta
aspectos sonoros básicos (como a dinâmica, as alturas, a proximidade e as distâncias) e
aplica uma identidade, (por semelhança, equivalência, oposição, graduação, variações, ou
inclusões) e assim aprendemos, na experiência do cotidiano, a distinguir barulho e música,
dando uma forma geral à realidade sonora, ou seja, temos a compreensão do código geral.
Porém, só isso não é suficiente, para dar sentido musical é preciso uma determinada
prática social. É graças a essas experiências sociais que uma obra musical clássica é
percebida como uma entrada de cerimonial; que as articulações de uma melodia vêm

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cultivadas como um fraseado sobre o modelo verbal que lhe inspira; que a curva das
inflexões do canto assume a expressividade conhecida na linguagem falada. É assim que o
grito, o lamento, a raiva e a ternura tomam forma de música. É por causa dessa rede de
sentido que chegamos a construir, de modo mais ou menos sistemático, as relações entre as
diversas práticas sociais de uma sociedade (idem, p. 88).
Em nossa cultura ocidental, continua Stefani, existe um espaço reservado à técnica
musical, que inclui conhecimentos sobre os instrumentos e os procedimentos
especificamente musicais. Em nosso modelo social constituiram-se outros níveis de
competência, que são o sistema musical como linguagem de códigos, a compreensão do
estilo e da obra. Para um detalhamento maior, o leitor poderá consultar o capítulo sobre a
teoria da competência, na obra de Gino Stetafi (1987) entitulada “Competenza musicale e
cultura della pace”.
Conforme observou Gembris (1997) a terceira fase das definições de musicalidade
pode ser compreendida no interesse dos pesquisadores atuais. Sloboda (1993), por exemplo,
diz que a habilidade musical é a habilidade de fazer sentido (p.20). Welch e Durant (1995)
publicaram “Making sense of music”, no qual vislumbram um novo conceito de Educação
Musical, com base na crença de que cada pessoa possui a habilidade de fazer sentido
musical (idem, p. 21).
Ao contrario da abordagem psicométrica, a abordagem do sentido musical inclui a
idéia subjetiva de sentido musical e responde à questão “porque ouvimos música”, e
“porque fazemos música”. A resposta é simples: “porque a música faz sentido em nossa
vida” (Stefani, 1997, p.21).

Recentes pesquisas e a implicação no conceito de musicalidade

Novos recursos tecnológicos empregados nas pesquisas contribuem para o


crescimento na compreensão do desenvolvimento musical. Principalmente o uso do
computador tem inovado as formas de expressão. Como observou Gembris (1997), na
tecnomusica, no rap e outros estilos de música pop, os músicos desconhecem a teoria
formal da música, não usam notação musical e não tocam instrumentos musicais
convencionais. Mas eles compõem no computador e mostram ter a habilidade de fazer

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sentido musical (p.22). Ao considerarmos que compor música no computador promove o
desenvolvimento da musicalidade, estamos frente a um tipo de musicalidade que não havia
50 anos atrás (p.23).
Shusterman (1998) faz interessante estudo sobre a estética da música popular,
reconhecendo que o Rap é o gênero musical que mais se desenvolve atualmente, ao mesmo
tempo em que é um dos mais condenados. Vemos aqui um contraste entre o que
concebemos como música e o que a juventude concebe como música. O autor coloca o Rap
entre as tantas manifestações trazidas pelo pós-modernismo, tendo como característica
básica a tendência mais para uma apropriação reciclada do que para uma criação original;
mais para localização espacial e temporal do que sobre o universal ou eterno. Comenta,
também, sobre a adesão entusiasmada das possibilidades do computador na composição, e
o desafio que estas composições trazem com sua autonomia estética e pureza artística. O
rap – diz Shusterman (1998) “desafia o ideal tradicional de criatividade, que durante tanto
tempo escravizou nossa concepção de arte” (p. 149).
De duas décadas para cá, a aplicação do computador tem mudado muito seu modo
de auxiliar a aprendizagem, e vai continuar mudando a maneira como ensinamos, quando e
onde nós ensinamos ou aprendemos. Já não há mais dificuldades em incorporar gráficos
sonoros nos software, até mesmo os desenhos infantis, como os Teletubes incorporaram a
tela do computador como modelo característico (Hair,1997 p.27)
O enorme avanço da tecnologia tem oferecido novos recursos para a pesquisa,
através de meios não invasivos como Tomografia Computadorizada (PET Positron
Emission Tomography) e Ressonância Magnética (MRI Magnetic Resonance Imaging), e
têm propiciado novas interpretações do funcionamento cerebral que antes eram
impossíveis. Não se deu a devida importância à capacidade comunicativa do homem nos
estudos sobre a evolução biológica das espécies. Os psicobiologistas reclamam a ausência
de estudos sobre a forma de comunicação tipicamente humana, estudos sobre a consciência
e sobre a cultura (Hair, 1997, p.27).
Na área da pesquisa em música, os métodos utilizados por Papoušek, M. (2000) na
pesquisa com bebês, incluem transcrição musical, análise acústico digital e sonográfica de
frenquências fundamentais, amplitude, tempo e aspectos harmônicos, que abriram acesso
empírico, permitindo identificar, entre outros detalhes, a sinalização emocional, os

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precurssores da fala e criatividade no canto espontâneo, que interrelacionados constituem as
três facetas da comunicação pré-verbal (p.91). Estudos comparativos realizados por esse
autor, mostram certa universalidade na forma de funcionamento dos elementos incluídos
nas comunicações dos pais com seus bebês. Essa universalidade revela mais propriamente
uma pré-disposição biológica nos intercâmbios pais/bebê do que somente uma transmissão
de tendências comportamentais de uma cultura (p.92).
Papoušek, H. (2000) salienta que estão surgindo novas interpretações a respeito da
infância do homem, que têm colocado ênfase nos aspectos evolutivos da adaptação,
integrando os fatores biológicos, socioculturais, interrelação funcional e processos
dinâmicos. Torna-se possível compreender as mais remotas predisposições humanas, dentre
elas a predisposição para a música (p. 41).
Papoušek M.(2000), por exemplo, afirma que tal predisposição pode ser estimulada.
Os pais ou pessoas que cuidam de crianças aprendem uma didática, que lhes é
característica, envolvendo comunicação verbal, tátil, cinestésico que facilita a educação
musical precoce. Eles ajustam a voz, a visão, a face e a estimulação tátil de forma que
corresponda à capacidade perceptual e integrativa da criança, promovendo de forma
intuitiva a educação musical precoce. A título de exemplo, podemos apreciar as melodias
que os pais entoam para atrair as crianças no momento de bater fotografias: “Ana Lúcia,
Aninha... u..u... Oh!” ( fazem intervalos de 8ª, terceiras, descendentes, glissandos, etc.),
além das brincadeiras folclóricas que envolvem interações através do toque cantarolado
(Palminhas de São Tomé, Cadê o toucinho daqui e outras).
À medida que a criança se desenvolve, muitos aspectos da gramática musical são
incorporados de maneira informal. Sloboda (1985) (apud Davidson, Howe e Sloboda 1997,
p. 189) encontrou em crianças de 10 anos a capacidade de distinguir nas sequências
musicais, quais delas se encaixavam, ou não, nas regras de sua linguagem específica. A
maioria foi capaz de capaz de fazer julgamentos apropriados sobre o caráter emocional de
algumas composições (Gardner, 1979, apud Davidson, Howe e Sloboda p.189)
Na experiência de alfabetização que fiz com alunas de Pedagogia da UFRGS, sem
experiência musical formal anterior, pude observar que ela eram capazes de compor,
executar instrumentos musicais e improvisar empregando regras musicais de maneira

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intuitiva, além de ler e escrever música a partir de uma forma de compreensão pessoal, que
lhes facilitou a compreensão das regras convencionais da leitura musical.
Davidson, Howe e Sloboda (1997 p.189) acreditam que as pessoas que não
receberam instrução específica em música podem fazer apreciações sobre a estrutura
musical, de forma muito semelhante das apreciações feitas por pessoas que estudaram
música. Falta a elas o vocabulário específico para se referir aos eventos musicais.

“Portanto, existem evidências de que algum tipo de desenvolvimento ocorre


‘naturalmente’ com o aprendizado da música e suas estruturas em todos os
indivíduos como resultado da exposição aos produtos musicais da cultura”.
(Davidson, Howe e Sloboda, 1997 p. 189).

A partir dessas pesquisas, podemos compreender porque a musicalidade pode surgir


tão precocemente. Por outro lado, o compromisso com a formação musical das crianças
acentua-se, uma vez que a habilidade musical pode ficar adormecida por falta de interação
social.
Diante de tantas comprovações sobre a natureza da musicalidade humana, como
ocorreria o processo de educação musical em famílias que pouco cantam para seus filhos,
ou sociedades que não valorizam a música?

O lugar da música em uma sociedade do Afeganistão

Gostaria de falar um pouco sobre a pesquisa realizada por John Baily e Veronica
Doubleday, em 1970 em Herat, uma representativa província do Afeganistão.
O Afeganistão tem uma definição de música muito diferente da nossa, compreender
essa cultura poderá nos mostrar como a musicalidade não é um traço isolado de outros
conceitos sociais, e como as concepções se entrelaçam na formação cultural de uma
sociedade.
O que nós chamamos de música, no Afeganistão usa-se para se referir à música
instrumental. Canto sem acompanhamento, por exemplo, não é considerado música, nem o
canto que usam para chamar os fiéis. E, como é de se esperar, o canto das mulheres quando

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tocam seu tamborzinho sem pele, também não é considerado música. (Baily e Doubleday,
1990, p. 89).
As pessoas têm pouquíssimas oportunidades de fazer música. Os jovens encontram-
se no teatro ou nos casamentos para fazerem música juntos.
A música ocupa um lugar ambíguo no sistema de valores de Herat. Ao mesmo
tempo em que julgam ser apropriado utilizar a música em rituais religiosos, é desaprovado
o seu uso como entretenimento em outras instâncias da vida social, sendo considerado um
ato pecaminoso e uma atividade imprestável. Essa visão puritana contrasta com o uso
popular da música, que na tradição Sufi é considerada “música como um alimento da alma”
(p. 90).
Com tal situação, os músicos também têm um lugar ambíguo. Ao mesmo tempo em
que têm algum prestígio quando são considerados artistas, como pintores ou grafólogos, são
ridicularizados e considerados de baixo escalão, como se fossem bárbaros rurais, acusados
de desobedecerem as regras do islanísmo. As mulheres que tocam instrumentos (os
permitidos, pois instrumentos de cordas elas não podem tocar), podem trabalhar
regularmente e quebrar as regra do purdah, mas elas têm baixo status social, uma mistura
de fama e notoriedade como mulher vulgar, até mesmo como prostituta (idem, p. 90)
As crianças não recebem aulas de música na escola. Não existe um repertório típico
infantil, e muito há poucas canções para os adultos cantarem para elas. O fazer musical das
crianças do Afeganistão resume-se em imitar o que fazem os adultos nas festas de
casamento, ou aquilo que ouvem no rádio. Às vezes as mães cantam canções de ninar bem
ritmadas para seus bebês, quando os colocam nos berços, e os balançam vigorosamente.
Algumas vezes as palavras são afetuosas, mas na maioria dizem: “Ele é Alá...” (p. 91).
Se comparadas às crianças da cultura ocidental, podemos imaginar a pobreza que
existe nas relações afetivas e na construção da subjetividade que a música possibilita ao ser
humano.

A musicalidade das crianças de Venda

No extremo oposto, temos uma civilização muito musical, que são as crianças de
Venda – uma Província da África do Sul, pesquisadas por John Blacking.

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Durante sua pesquisa de campo (1956-1958), Blackinkg aprendeu com crianças de 5
e 8 anos de idade os conceitos e regras relacionadas à música. As crianças não só
mostraram saber várias canções infantis, como também reconheciam diferenças essenciais
entre fala e música, e conseguiam identificar uma música por sua harmonia. As crianças são
encorajadas para a música e crescem na certeza de que a experiência musical é uma
importante forma de compreender o mundo (Blacking 1990 p. 77).
Na sociedade Venda, quando uma criança faz barulho, ninguém lhe manda parar,
mas transforma esse barulho em música. A criança faz bam bam bam e logo esse som
ganha um ritmo e torna-se música (idem p, 75)
Em Venda aprender-se a compreender os sons musicais da mesma forma de se
entende a fala.(Blacking, 1974 p. 40). Blacking acredita que habilidade de fazer música
depende de uma compreensão do que acontece à nossa volta, do que compreendemos como
música. Aliás, Blacking considera um problema definir música, uma vez que os sons que
definem a música são produtos de diferentes processos, nem sempre estritamente musicais.
Por exemplo, na execução instrumental da música sociedade Venda o padrão de
movimentos do polegar fornece toda a base dos padrões melódicos (Blacking, 1990, p. 71).

Blacking adverte:

“Precisamos ter cuidado sobre o que nós consideramos como música. Porque existe
uma enorme variedade de músicos, membros de diferentes sociedades categorizam
símbolos, sistemas e ações sociais de formas diferentes. – ou que categorizam a
música como sistema cultural de forma diferente” (Blacking, 1990, p. 71).

“A função da música na sociedade é fator que promove ou inibe a musicalidade


latente, tanto quanto afeta os conceitos culturais, materiais com os quais se compõe
música. Não seria possível explicar os princípios da composição e os efeitos da
música sem compreender a relação entre música e experiência humana (Blacking,
1974, p. 35).

Conclusões

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Estamos todos empenhados em promover a musicalidade dos nossos alunos, mas é
importante analisarmos qual o conceito de musicalidade que temos, porque esse conceito
vai inspirar nossas práticas pedagógicas. Precisamos estudar, para estarmos bem a par das
pesquisas na área da música e abrirmos mais depressa os olhos, repensando constantemente
nossos conceitos. E, para não ficarmos tão angustiados com tudo o que existe por fazer, é
bom termos em mente que o conceito de musicalidade está atrelado ao conceito de música e
sua função na sociedade. Nossa atuação precisa ser mais abrangente do que o espaço
restrito da escola.

Referência bibliográficas

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BLACKING, John. Music in children’s cognitive and affective development: problems


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child developmen. (Eds)., St. Louis: Missouri, MMB Inc., pp.68-78, 1990.

DAVIDSON, J. HOWE, M, and SLOBODA. J. Environmental factors in the


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NORTH, A. The social psychology of music. New York: Oxford University Press, pp188-
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pp. 142-182, 1926.

STEFANI, Gino. Competenza musicale e cultura della pace. Bologna, Editrice CLUED,
1985.

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