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Fisiologia e Metabolismo Do Ferro PDF
Fisiologia e Metabolismo Do Ferro PDF
DE HEMATOLOGIA
E HEMOTERAPIA
Revisão / Review
Helena Z. W. Grotto O conhecimento sobre a fisiologia e metabolismo do ferro foi bastante incrementado
nos últimos anos. A identificação de alguns genes e as repercussões quando de suas
mutações, principalmente as relacionadas ao acúmulo de ferro, auxiliaram no entendi-
mento dos mecanismos regulatórios responsáveis pela manutenção da homeostase
desse nutriente essencial para numerosos processos bioquímicos. A função de diversas
moléculas já está bem estabelecida, como da transferrina e seu receptor e, nas últimas
décadas, novas moléculas têm sido identificadas, como a ferroportina, o transportador
de metal divalente e hemojuvelina. Um elegante mecanismo de controle mantém o
equilíbrio entre os processos de absorção do ferro, reciclagem, mobilização, utilização
e estoque. Alterações no sincronismo desses processos podem causar tanto a deficiên-
cia como a sobrecarga de ferro, ambos com importantes repercussões clínicas para o
paciente. Nessa minirrevisão serão abordados aspectos relacionados ao metabolismo
do ferro e à participação de várias proteínas e mediadores envolvidos. Serão também
apresentados os mecanismos regulatórios celular e sistêmico responsáveis pela dispo-
nibilidade do ferro em concentrações ideais para a manutenção de sua homeostase.
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Metabolismo do ferro sobre proteínas, lípides e DNA causa graves lesões celulares
e teciduais.1,2
O ferro é um mineral vital para a homeostase celular. A O heme é constituído por um anel tetrapirrólico com um
sua habilidade em aceitar e doar elétrons o torna imprescin- íon central de ferro (Figura 1). Parte de sua síntese ocorre nas
dível para diversas reações biológicas. É componente es- mitocôndrias e parte no citosol. Diversas enzimas estão en-
sencial para a formação da molécula heme e participa da volvidas na formação do heme, conforme esquematizado na
formação de diversas proteínas. Na forma de hemoproteína, Figura 2. Tem como primeiro estágio a formação do ácido
é fundamental para o transporte de oxigênio, geração de aminolevulínico a partir da condensação da glicina com a
energia celular e detoxificação. O heme é sintetizado em succinil Co-A, reação catalisada pela delta aminolevulínico
todas as células nucleadas, sendo que a maior quantidade é sintetase 2 (ALAS-2) e requer a participação do piridoxal 5-
produzida pelo tecido eritroide. Sua síntese é controlada fosfato (vitamina B6) como cofator. Um importante mecanis-
por mecanismos enzimáticos e de degradação, e esse con- mo de regulação da ALAS-2 acontece no nível de tradução
trole tem que ser rigoroso, uma vez que o excesso de ferro da síntese proteica . O RNAm da ALAS-2 contém elementos
irá reagir com o oxigênio gerando radicais hidroxil e ânions reguladores do ferro (IRE= iron regulatory elements) na ex-
superóxidos (reação de Fenton). A ação desses radicais tremidade 5', que interagem com proteínas reguladoras do
Hematologista. Professor Associado do Departamento de Patologia Clínica da Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp – Campinas-SP.
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próprio macrófago dentro das moléculas de ferritina ou ser irá formar o heme, que, em combinação com as cadeias de
exportado pela FPN. Após a exportação pela FPN, o Fe2+ será globina, formarão a molécula de Hb.
oxidado pela ceruloplasmina, sintetizada no fígado. O Fe3+ Há indícios que alguns sistemas são capazes de captar
será transportado pela Tf até os locais onde será reutilizado, o ferro na ausência ou quando a Tf está saturada. Isso foi
predominantemente medula óssea, onde participará da observado no coração e fígado; no entanto, os reticulócitos
hemoglobinização de novos eritrócitos.6,15 não são capazes de captar o ferro se o mesmo não estiver
ligado à Tf.20
Transporte e captação do ferro pelas células Um produto da clivagem do TfR tecidual circula no
Como foi mencionado, o ferro é transportado no plas- plasma na forma solúvel do TfR (sTfR). A proteólise do TfR
ma pela Tf, uma glicoproteína de 80 KDa sintetizada e acontece próximo à 2ª ponte dissulfeto, na posição 100 da
secretada pelo fígado, além da retina, testículos e cérebro.16 cadeia polipeptídica, numa ligação arginina-leucina. Ainda
Possui dois sítios homólogos, que em pH neutro podem não está esclarecido em que momento ocorre essa proteólise
transportar dois átomos de Fe3. Além de solubilizar o ferro, e qual protease estaria atuando no processo. O que já está
a Tf atenua sua reatividade e facilita a sua liberação para as bem documentado é a correlação direta entre a quantidade
células. Em condições normais, a Tf plasmática tem a de sTfR circulante e a TfR celular. A forma solúvel do recep-
capacidade de transportar até 12 mg de ferro, mas essa tor que circula no plasma reflete a massa de TfR celular,
capacidade raramente é utilizada e, em geral, 3 mg de ferro 80% dela nas células da linhagem eritrocítica da medula
circulam ligados à Tf, ou seja, 30% da Tf está saturada com óssea. Assim, a concentração de sTfR circulante é
o ferro. Quando a capacidade de ligação da Tf está totalmente determinada primariamente pela atividade medular eritroide.
saturada, o ferro pode circular livremente pelo soro, na forma Situações caracterizadas por hipoplasia da série vermelha,
não ligada à Tf (NTBI), que acumula nos tecidos paren- como anemia aplásica ou insuficiência renal crônica,
quimais, contribuindo para o dano celular nos casos de apresentam níveis reduzidos de sTfR, enquanto condições
sobrecarga de ferro. Quando complexado à Tf, a interna- com hiperplasia eritroide, como anemia falciforme ou outras
lização do ferro é iniciada pela ligação desse complexo a um anemias hemolíticas crônicas, estão associadas com níveis
receptor específico (TfR) presente na superfície da maioria elevados de sTfR. Outro fator que regula a expressão do
das células.17 Esse receptor é um homodímero trans- TfR e, consequentemente, altera as concentrações circu-
membrana constituído de duas subunidades idênticas lantes do sTfR é o estado do ferro intracelular, mediado
ligadas por pontes dissulfeto. Cada subunidade apresenta pelos IREs e as IRPs, mecanismo apresentado anteriormente
um domínio C-terminal extracelular, um domínio trans- (Figura 3). A deprivação de ferro favorece a formação do
membrana e um pequeno domínio N-terminal citoplasmático. complexo IRE-IRP no mRNA do TfR, aumentado sua síntese.
No domínio extracelular encontra-se o sítio de ligação para É o que pode ser observado em pacientes com anemia
a molécula de Tf, enquanto no domínio citoplasmático, entre ferropriva que apresentam concentrações séricas elevadas
os domínios 20 e 23, encontra-se a sequência responsável de sTfR.21,22
pela endocitose do Tf complexado ao ferro.18 Um outro membro da família de TfR é o TfR2, bastante
A afinidade do TfR à Tf diférrica parece ser determina- semelhante ao TfR descrito anteriormente, com 66% de simi-
da pela proteína produzida pelo gene da hemocromatose, a laridade na sequência de aminoácidos, mas que se expressa
HFE, também presente na membrana plasmática dos predominantemente no fígado e em algumas linhagens celu-
eritroblastos. A interação Tf-TfR é facilitada pelo pH extra- lares, como a K562 (eritroleucemia) e HepG2 (hepatoblastoma).
celular de 7,4 e, a partir dessa ligação, inicia-se o mecanis- Aparentemente, o TfR2 tem atividade de captação do ferro,
mo de captação de ferro pela célula. O complexo Tf-TfR- mas, diferentemente do TfR, tem uma afinidade muito baixa
HFE é internalizado por endocitose. Dentro do endossoma, (cerca de 25 vezes menor) pela Tf diférrica.23 Mutações no
a bomba de prótons dependente de ATP encarrega-se de TfR2 têm sido descritas em pacientes com hemocromatose
reduzir o pH, facilitando a liberação do ferro da Tf, que hereditária.24
permanece ligado ao seu receptor, e o complexo apoTf-TfR-
HFE é reciclado de volta à superfície celular, quando então Transporte do ferro mitocondrial
a apo-Tf é liberada do TfR. O ferro do endossoma atravessa A mitocôndria é essencial para o metabolismo do ferro,
a membrana da vesícula e alcança o citoplasma.3 A proteína já que é o único local onde ocorre a síntese do heme e a
DMT-1 é essencial para o efluxo do ferro do endossoma biossíntese dos clusters Fe-S. Ainda não está totalmente
para o citoplasma. O ferro liberado pela Tf no endossoma esclarecido como ocorre a entrada do ferro na mitocôndria.
está na forma férrica (Fe3+) e a DMT-1 tem grande afinidade Um modelo sugere que a liberação poderia ser feita direta-
pelo Fe2+. Uma ferriredutase recentemente identificada e de- mente do endossoma para a mitocôndria, desviando do
nominada Steap 3 é responsável pela redução do ferro libe- citosol. Em reticulócitos, esse mecanismo estaria presente,
rado pela Tf, que será então transferido para o citosol pela conhecido como kiss and run entre as duas organelas. Outra
DMT-1.19 A incorporação do ferro ao anel de protoporfirina possibilidade seria a presença de um transportador median-
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Homeostase do ferro
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do ferro. Por outro lado, a IRP2 é inativada por um mecanis- aminoácidos (aa) e subsequentemente processada e secre-
mo dependente de ferro, e, nas células repletas de ferro, não tada na circulação, onde é detectada no plasma e na urina
ocorre a ligação IRP2-IRE. Os elementos IRE localizados pró- como um peptídeo de 25 aa. Fragmentos de 22 e 20 peptídeos
ximos à região não codificadora 3', quando não ligados ao são também encontrados, mas não são biologicamente
IRP, permitem que haja a clivagem do mRNA e a síntese ativos.34,35
proteica é interrompida. A não ligação do IRP aos IRE locali- A FPN é o receptor da HPN, e a interação HPN-FPN
zados próximos à região 5' permite que o complexo de controla os níveis de ferro nos enterócitos, hepatócitos e
inicialização da tradução seja ativado, induzindo a síntese macrófagos. O complexo HPN-FPN é internalizado nos domí-
proteica.5,28,29 nios da membrana basolateral dos macrófagos. Ocorre então
A DMT-1 e a FPN apresentam estruturas "IRE-like", a fosforilação da tirosina em um dos domínios citoplasmáticos
embora a função dos IREs nesses transportadores de ferro da FPN, com internalização da proteína, defosforilação,
pareça ser mais complexa e ainda não totalmente esclarecida. ubiquitinação e degradação de ambas as proteínas no com-
Os níveis de mRNA da DMT-1 aumentam significativamen- ponente lisossomal do endossoma. Desse modo, o ferro não
te na deficiência de ferro em modelos experimentais, suge- é externalizado, levando ao aumento dos níveis de ferro no
rindo que as IREs na região 3' podem mediar a expressão da citosol que serão estocados como ferritina. Como conse-
DMT-1, estabilizando seu transcripto por um mecanismo quência ocorre o acúmulo de ferro nos hepatócitos e macró-
ferro-dependente, embora não de maneira uniforme, entre as fagos. A redução da passagem do ferro para o plasma resulta
diversas células. A presença de estruturas "IRE-like" foi con- na baixa saturação da Tf e menos ferro é liberado para o
firmada na região não traduzida 5' do mRNA da FPN. Estudos desenvolvimento do eritroblasto (Figura 6) (revisado em 16 ).
sugerem que a regulação de sua expressão ocorra em nível Regulam a expressão da HPN o estado do ferro (a so-
pós-transcricional e é mediada pelo sistema IRE-IRP, embora brecarga de ferro aumenta sua expressão, enquanto a anemia
um mecanismo independente do IRE também participe da e hipoxemia reduzem-na) e o estado inflamatório, em que a IL-
regulação da expressão da FPN em nível proteico.30 6 tem um papel fundamental.36 Trabalhos experimentais mos-
traram que a infusão de IL-6 estimula rapidamente a excreção
Regulação sistêmica urinária de HPN e induz à hipoferremia. Foi demonstrado que
Normalmente o ferro é eliminado do organismo pelas a IL-6 age diretamente nos hepatócitos estimulando a produ-
secreções corpóreas, descamação das células intestinais e ção de HPN.37
epidermais ou sangramento menstrual. O organismo não pos- A relação entre a HPC e as doenças com acúmulo de
sui um mecanismo específico para eliminar o excesso de ferro ferro, as hemocromatoses, veio do conhecimento que as
absorvido ou acumulado após a reciclagem do ferro pelos hemocromatoses hereditárias (HH) primárias cursavam com
macrófagos. Assim, o controle do equilíbrio do ferro requer produção inadequada de HPC em relação aos estoques de
uma comunicação entre os locais de absorção, utilização e ferro no organismo. Bridle et al.38 observaram que níveis de
estoque. Essa comunicação é feita pela HPN, um hormônio RNAm de HPC em pacientes com HH estavam inapropria-
peptídeo circulante que tem um papel regulatório fundamen- damente baixos para os estoques de ferro. Outros estudos
tal na homeostase do ferro, coordenando o uso e o estoque mostraram que indivíduos com hemocromatose juvenil apre-
do ferro com a sua aquisição. Trata-se de um peptídeo anti- sentavam níveis de HPC urinária muito baixos, a despeito do
microbiano pertencente à família das defensinas e é media- acúmulo do ferro.39 As moléculas HFE, hemojuvelina (HJL) e
dor da imunidade inata, principalmente nos vertebrados infe- TfR2 regulam a expressão da HPC de acordo com os níveis
riores. A atividade antimicrobiana é conferida pela proprieda- de ferro circulantes. Havendo aumento dos níveis de ferro
de da HPN em romper as membranas microbiais e na restrição elas estimulam a síntese de HPC pelo fígado, que vai inibir a
da disponibilidade de ferro ao desenvolvimento micro- absorção do ferro intestinal e a liberação do ferro dos
biano.31,32 Nos vertebrados superiores, a sua atividade está macrófagos, restabelecendo o equilíbrio do ferro. Mutações
muito mais relacionada à homeostase do ferro. O papel nessas proteínas causam alterações nesses mecanismos
hormonal da HPN foi descoberto em experimentos animais, regulatórios, levando à redução na expressão da HPN 1. As-
em que camundongos deficientes de HPN desenvolviam sim, a deficiência de HPC e, consequentemente, o excesso de
sobrecarga de ferro, especialmente no fígado, pâncreas e FPN levariam a uma liberação exagerada de ferro dos enteró-
coração e, paradoxalmente, apresentavam depleção de ferro citos e macrófagos, com contínua absorção intestinal e
nos macrófagos. Por outro lado, animais que superex- acúmulo de ferro nos tecidos parenquimais. Aparentemente
pressavam a HPN apresentavam anemia microcítica-hipo- a HJV é um correceptor das BMPs (bone morphogenetic
crômica ao nascimento e morriam rapidamente.33 Ficou assim protein), citocinas com importantes funções na regulação da
estabelecido que a HPN seria um regulador negativo do proliferação, diferenciação, apoptose e migração tecidual. A
metabolismo do ferro. É codificada pelo gene HAMP, locali- BMP e seu receptor fosforilam proteínas intracelulares
zado no braço longo do cromossoma 19 e possui três exons. conhecidas como RSmad. O complexo HJV-BMP2 -
É sintetizada pelo fígado na forma de um propeptídeo de 84 BMPReceptor (BMPR) é deslocado para dentro do núcleo
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Figura 6. Ação da HPN no metabolismo do ferro. Ao formar um complexo com a FPN leva à sua degradação. No enterócito, o ferro não é
transportado para o exterior da célula, e a absorção é inibida (figura à esquerda). Nos macrófagos, o ferro fica acumulado no seu
interior, diminuindo o ferro disponível para a eritropoese(figura à direita)
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