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Introdução
É dia 6 de julho de 2016 quando Otacílio Azevedo chega pela primeira vez à
Universidade de Aveiro, onde é recepcionado pelos técnicos Miguel Ribeiro e António
Santos que aqui estão para ciceroneá-lo na visita à Coleção José Moças, um dos mais
importantes acervos de discos de 78 rpm em Portugal. Otacílio, mal chega à sala,
começa a olhar com atenção para todos os discos expostos na parede, observando
detalhes como espessura, tipos de goma-laca, informações de rótulo, títulos de
músicas. Otacílio é seguramente o maior especialista brasileiro em restauração sonora
de discos 78 rpm: seu pai, Miguel Ângelo Nirez, um dos maiores colecionadores do
Brasil, tem um acervo de mais de seis mil discos e é – do alto de seus mais de oitenta
anos – a figura referencial sobre fonografia no país. Com seu forte sotaque cearense,
Otacílio observa os discos e ao mesmo tempo discorre sobre sua longa relação com
estas bolachas pretas de goma-laca; sobre como cresceu em uma casa repleta de
discos e como aprendeu desde a infância com o pai a reconhecer marcas, fabricantes,
detalhes de rótulos, números de série e de matrizes. Mas sobretudo sobre como
aprendeu a amar os artistas, as canções e músicas instrumentais registradas naqueles
suportes. De súbito, para e toma um dos discos expostos na parede: hipnotizado pela
leitura de seu rótulo, pega a mochila e abre imediatamente seu notebook, à procura de
uma planilha excel onde consta a íntegra da coleção de seu pai. Depois de alguns
minutos de consulta, abre um largo sorriso e afirma no melhor dialeto cearense: “esse
bichinho aqui é um disco inédito na Discografia Brasileira!”
O trecho acima foi retirado de meu caderno de campo, escrito durante os anos de 2015 e
2016 no âmbito de pesquisa pós-doutoral por mim realizada na Universidade de Aveiro,
Portugal. Tendo como foco a coleção de discos 78 rpm do pesquisador, radialista e
produtor cultural José Moças, constando de mais de seis mil discos, doados àquela
universidade em 2013, minha pesquisa procurou dimensionar os trânsitos e fluxos entre
artistas brasileiros e portugueses na fonografia de ambos os países no início do século
XX (Aragão, 2016 e 2017). Para além deste aspecto, a pesquisa procurou também
incentivar a troca de metodologias e recursos tecnológicos entre colecionadores e
instituições ligadas à acervos sonoros em ambos os países, processo que culminou com
a organização de um encontro científico intitulado “Música e Lusofonia em Acervos de
78 rpm”, realizado na Universidade de Aveiro entre os dias 7 e 9 de julho de 2016.
Reunindo especialistas de países como Brasil, Cabo Verde, Angola, Moçambique, São
Tomé e Príncipe e Portugal, o encontro marcou também a vinda do técnico Otacílio
Azevedo para um workshop sobre restauração digital com os técnicos da Universidade
de Aveiro responsáveis pela Coleção José Moças, encontro descrito na referida página
de meu diário de campo.
A presente comunicação versa sobre relações de mediação e construções de sentido
entre colecionadores brasileiros e portugueses a partir deste contexto específico de
pesquisa e é dividida em duas seções: na primeira proponho uma reflexão sobre acervos
discográficos em 78 rpm à luz de um duplo referencial teórico: por um lado os estudos
etnomusicológicos que entendem arquivos sonoros não como simples repositórios de
som, mas como saberes fragmentados e inacabados que estão necessariamente sob
ingerências políticas, ideológicas e estéticas por parte de pessoas e instituições (García,
2011); por outro, o escopo de uma recente sociologia da música (DeNora, 2001;
Hennion, 2007) que propõe um novo olhar sobre a figura do amateur, incluindo-se neste
conceito os colecionadores de discos. Tal como propõe Hennion (2009) procuro
entendê-los não como canais neutros por onde relações sociais pré-determinadas
operam, mas como mediadores ativos na construção de diferentes significados sobre
música. Com base neste referencial teórico realizo, na segunda parte da comunicação,
uma análise sobre relações de mediação e construções de sentido entre colecionadores
brasileiros e portugueses a partir do Acervo José Moças da Universidade de Aveiro,
Portugal.
Referências Citadas
Aragão, Pedro. “Gravações mecânicas no Brasil e em Portugal (1900-1927): entre
indústria fonográfica, soundscapes e registros etnográficos”. PER MUSI (ONLINE), v.
36, p. 1-17, 2017.
_____________. “Diálogos luso-brasileiros no Acervo José Moças da Universidade de
Aveiro: um estudo exploratório das gravações mecânicas (1902-1927)”. Opus (Belo
Horizonte. Online), v. 22, p. 83-114, 2016.
Born, Georgina. “On musical mediation: ontology, technology and creativity” In:
Twentieth-century music 2/1, 7-36, 2005.
Bourdieu, Pierre. As regras da arte. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
De Nora, Tia. Music and everyday life. Cambridge University Press, 2000.
Garcia, Miguel. “Archivos sonoros o la poetica de un saber inacabado”. Revista
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Malm, Kristen. The Music Industry. In: MYERS, H. (org). Ethnomusicology : an
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