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Introdução
Pode ser que a vida contemporânea traga o peso de um ritmo demasiadamente ace-
lerado, sugerindo que estamos desatentos para com nossas atitudes e que tudo segue para
uma existência que se assemelha à ruína. Pode ser, também, que tudo seja dado como
líquido (Bauman, 2001), que já não seja mais possível reter qualquer coisa com concre-
tude, ou que chegamos ao vazio (Lipovetsky, 2005), alheios aos valores modernos que
edificaram, idealisticamente, um mundo que conhecíamos.
Por esse “pode ser” multiplicaram-se os teóricos que, distraídos, elegeram formas
de representação que teimam, e teimam em demasia, em situar o que vivemos como um
momento marcado por perdas, por uma queda moral ou, se se quer, por uma alarmada
afoiteza da condição humana.
No entanto, se olharmos a vida em sua crueza realística,2 o que podemos pressentir
é que somos figuras descuidadas. E ainda que a História nos apresente o eterno retorno,
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ou seja, que não há nada de novo por aí, lutamos por esperar falsas novidades e crer que
o homem pode, de uma hora para outra, se regenerar. É de regeneração, ou de uma certa
expectativa em relação ao que todos nós conhecíamos – como gramática3 –, que vociferamos
por alguma retomada e, nunca, em sentir o presente como ordinário, nada mais que uma
simples passagem num tempo de nada.
Afastando-se dessa nulidade do real e da existência, sucumbimos, como intérpretes,
à ideia de que coisas ruins prefiguram um estado para o homem e que, já não podendo
muito, ele se arranja corrupto, temeroso, ultraconservador ou imolado pela má sorte de
viver o que tem de viver em uma performance nada prazerosa. Mas o simples prazer
de existir está em qualquer canto, às vezes onde menos se espera. E a infelicidade, por
seu turno, onde a suntuosidade desmoronaria qualquer possibilidade de se encontrar a
dor. A vida ordinária, que é a vida de todos nós, traz todas as expressões e nada pode ser
descartado. Se observassem todas as possibilidades e dessem vazão à simplicidade de tudo,
os intérpretes da contemporaneidade, com suas belas narrativas, elucidariam o comum, a
vulgaridade de tudo, e não o fantástico das estruturas ou a queda de um tipo de homem
prodigioso, agora substituído por um mané desqualificado.
A narrativa de Byung-Chul Han passa por esse caminho. E não se trata de negar suas
teses. Estamos cansados? Estamos. Mas o que significa esse “estamos”? Acelerados? Sim.
Mas onde? Trabalhamos em excesso? Sim. Mas tratamos de que tipo de trabalhador e de
trabalho? Sujeitos de anabolizantes, ultra-aceleradores de performance? Sim. Mas quem é
essa figura performática? A totalidade? Totalidade? “Mas que porra é essa?”
Perseguindo algumas noções da crítica de Byung-Chul Han à sociedade contempo-
rânea, a ideia aqui é discutir algumas de suas posições teóricas. Posições em relação ao que
se tem como experiência humana e que acabam, como conclusão, por enquadrar a todos
nós na gramática da sociedade do cansaço.
3. “A organização articulada de uma percepção, uma reflexão ou uma experiência; como a estrutura nervosa
da consciência quando se comunica consigo mesma e com os outros” (Steiner, 2003, p. 14).
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O homem está aí, ou por aí, a despeito de qualquer desculpa. E estar é projetar-se
ativo, sempre instigado pela fome (Kodo, 2015), já que sua sobrevivência exige que ele se
faça como um animal extrator, removendo para si aquilo que do mundo pode garantir a
sua conservação. Conservar-se, então, implica digladiar-se com o mundo, a única forma
para suscitar algum produto. É necessário, assim, esforço. Alguns, para tanto, afadigam-
se à exaustão enquanto outros seguem de uma forma mais leve. Mas todos, e aqui não há
exceção, precisam.
Esforçando-se, o homem segue – ainda que lutando para negar sua necessidade –
acossado por ruídos que levam-no para baixo, para uma untura com o real. Untura que
faz desse real algo cruel (Rosset, 1989b) e que, de tão cruel, motiva-o à renunciá-lo. Cruel
não implica ruim ou que nada há. Essa crueldade relaciona-se à dureza da existência, que
se desdobra num ritmo tão ordinário que não se apreende que a vida não pode ser grande,
ou aqui ou lá, ou, se se quer, algo como uma totalidade. Na vida não se pode mais do
que repetir e repetir lances eternos: numa autofertilização de nossos vícios. E um animal
viciado como o homem não pode sobrestar seu fluxo. Impelido, e sem o peso da tradição
de uma velha gramática, o homem se vê enorme e pequeno, habilitado e desabilitado para
agir, intenso e fraco e, mais que tudo, humano. E percebe que seu itinerário passa por
um canto estreito, e que a máscara da globalização, ainda que o coloque alhures, ele não
está lá. Globalização ou qualquer outra coisa como totalização é blefe ou uma traiçoeira
perspectiva de conjunto. Segundo Han (2016a, p. 53-54),
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Pode ser que em alguns momentos essa percepção da totalidade, de que trata Han,
atinja esse sujeito. Mas o que mudou? Nada. O homem sempre esteve entre agudezas
perceptivas e, dependendo de seu ânimo, acolhendo ou recusando o aqui ou o ali. Retido
em um pequeno corte perceptivo – físico e imagético –, o homem é tudo o que pode, mas
nunca nem a totalidade do aqui nem a totalidade do ali. É sempre parte que desliza por
uma – interminável – atmosfera que acaba por lhe entregar um ensaio, um ensaio vital.
Por esse ensaio, que o liga ao mundo, esse homem responde às necessidades imperiosas que
são exigidas por suas diligências cotidianas. E será o grau das diligências que vai colocá-lo
no mundo para ser um songamonga ou um peremptório espertalhão. E sendo o que for,
nada altera. Por isso, não está na ausência de limiares o processo que vai levar o homem a
uma visibilidade total. Primeiro, essa visibilidade total é impraticável; segundo, os limiares
estão todos aí; terceiro, essa visibilidade só advém por experiência, é intuitiva, vai e vem
com os lapsos de pertencimento e de recusa desse mesmo pertencimento.
A vida, a nossa vida mais comum, não condena as ocorrências que pipocam ao nosso
lado. Outros lances – estes sim, e em outras fronteiras – ecoam como expressões anônimas
e, ainda que possam repercutir, não trazem uma correspondência séria. Acrescem tensão,
mas falta-lhes profundidade, ou seja, o hábito/hálito do que respiramos. E mesmo que um
drama colossal – Estado Islâmico, aquecimento global, genocídio sírio, degradação da vida
urbana etc. –, ele gira-gira-gira à nossa volta e fica aí... girando, com baixa comunicação.
Sua sedução é pequena. Mas é possível ignorar esses dramas? Podemos ignorar a violência?
“La violencia siempre aparece cuando las relaciones ya no son concebibles ni negociables, y aún
menos instituibles o instituidas, o dicho de otro modo, cuando fracasa la simbolización” (Augé,
2004, p. 144). Relações não concebíveis ou negociáveis? Simples: o homem aberto para
o diálogo. É que temos parâmetros ou protocolos até para assolar o outro e, claro, uma
margem para a prática da violência. E outra coisa: como significá-la, dependendo de quem a
pratica. Por exemplo, o Estado e certos grupos econômicos utilizam-se dela sob o manto da
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lei. Violência? Não há violência intrínseca. O que há é a percepção dela, como ela repercute
sobre àquele que sofre com suas mazelas. Por isso, na maioria das vezes, ela é ignorada.
Ignorada, como tudo mais.
É neste sentido que Han transforma-se num belo poeta. Ao tratar da beleza e do
belo, e de como o império atual da beleza absolutiza “lo sano y lo pulido” eliminando o
belo – sentido clássico –, ele deixa de lado a perspectiva humana de sempre ignorar as
totalidades. Nada é em demasia e nada pode ser aceito por completo. O que são o belo
e o feio? Absolutização do belo declarando a morte da própria sanidade? Ohhhhhh! Se
as coisas, antes, surgiam mais inteiras, enormes, isso era só aparência. É o pequeno que
compõe o todo... sobre os respingos do que é enorme. Neste sentido, nada elimina nada, e
nenhuma falência ou crise pode gerar um cansaço tão extremado capaz de supor a figura
humana como um zumbi, sem ânimo para nada. Por isso, insisto, ao tratar da decadência
do belo, Han faz poesia como se fosse filosofia.
Ora, viver não permite essa experiência de morrer antes do que se tem para viver, ou
seja, se se perde o mundo vivendo, perde-se não para a morte, mas para certas expectativas
que ainda representam a vida. No sentido de Han, só para loucos magistrais, para artistas!
A vida nunca carece de vida. E se admitíssemos, como ele quer, “que a vida sana é agora a
expressão de uma supervivência histérica”, creio que nos encontraríamos com o Dr. Simão
Bacamarte, personagem do conto “O Alienista”, de Machado de Assis (1994), para quem
toda a vida e todas as pessoas da vila de Itaguaí enlouqueceram, quando era ele mesmo –
médico – quem perdera o juízo. Na maioria das vezes o real é tão obsceno que lutamos para
jogar sobre ele algum tipo de totalidade para encobri-lo.
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Novamente: qualquer totalidade é sempre um blefe! Afirmar que o sujeito está assim
ou assado sempre nos guiará para infortúnios. Somos, e sabemos bem disso – é claro que
temos medo em aceitar essa possibilidade –, meio cegos, tontos, descuidados, mas que é
assim que vivemos. E vivemos assim porque a cegueira, a tontaria e o descuido são as nossas
maiores marcas. Se não fosse assim, saberíamos que a maioria das coisas que fazemos é
inútil para nomear a boa vida. A boa vida? Cada época gera esse significado. Hoje pode ser
que viver bem seja apoiar-se na ideia de que é preferível “o excesso de positividade”, que
para Han (2015, p. 31) nos aproxima de um tédio profundo, a regressar às missivas comuni-
tárias, e aí ver-se responsável pelo parque humano. Mas a porta do parque humano está
aberta, trazendo o dentro e fora para um mesmo ambiente. Neste caso, não para elucidar
uma sociedade do controle, de restrição mercadológica ou digital. Questão de ocasião!
Mercado e medias comungam com o que o homem é neste momento. Não se morre pelo
mercado e muito menos por pertencimento/filiação digital. O parque aciona qualquer
perspectiva. E se o sujeito se deixa tomar pelo enjamble, isso não vai implicar, como Han
(2014, p. 25-32) deseja, ao polemizar com Hardt e Negri, que “en el império propiamente
no gobierna nadie. Él constituye el sistema capitalista mismo, que recubre a todos. Así, hoy
es posible uma explotacíon sin dominación”.
As gramáticas contemporâneas parecem descobrir suas reservas. E abrir reservas não
implica a fantasia de que tudo pode. Tudo pode ser visto? Não, claro que não. Se se elegem
coisas para serem vistas, essa visibilidade só abre o necessário! E abre sem se deixar ver
como totalidade, porque o sinal de aberto não quer dizer que tudo pode passar. O que viam
os homens do século XVIII? O que era possível, assim como nós neste momento. Se viver
no enjamble é o prato do dia, que se viva. E outras formas de intercambiar relações vão saltar
à nossa frente, aclarando uma gramática e excitando inúmeras narrativas. Perdas e mortes
serão expostas como em qualquer outro programa gramatical. Isto porque não há vida
para além da própria vida. Han parece sempre desejar uma outra vida. Ao problematizar
com Arendt sobre a Vita activa, ele afirma que
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Por volta do final de seu tratado Vita activa, sem querer, Arendt acaba
falando a linguagem da vida contemplativa. Ela não consegue ver que
precisamente a perda da capacidade contemplativa, que não por último
depende da absolutização da vida ativa, é corresponsável pela histeria e
nervosismo da sociedade ativa moderna. (Han, 2015, p. 50)
Novamente: não perdemos nada. Nem vida contemplativa, nem vida ativa, nem o
fluxo de todas as esbórnias se desfez. Nossa época é a da fervura, lugar onde o ordinário
borbulha, arrastando e isolando, isolando e arrastando para um mesmo sítio tudo o que
pode trazer para o sujeito alguma receita. Morre-se, é claro, por falta de receita. E não ter
receita é não pertencer, é estar fora desse enjamble. Pressa, drogas, vida digital, miséria
ou luxo, espanto, alegria, pertencem ao enjamble. Pertencem e trazem a estirpe de uma
prática. Poucos morrerão pelo infortúnio de ser parte do mercado financeiro ou do mundo
“desgraçado” de uma urbe marginalizada. Morre-se, como sempre, por miséria absoluta,
por violência, pelo estigma de ser o outro sujeito do outro lado do mundo, do mundo dos
financeiramente desmantelados. O resto? Balela! Erudição!!!
O jogo (Rosset, 1989c, p. 190) corre! E para jogar o jogo humano é fundamental
compreender o mínimo de seu campo normativo. Esse campo? Uma mescla de narrativas
que elegem rumores como verdades e verdades como belas caraminholas. Entre aqui e ali,
entre isso e aquilo, ou e ou, o homem se faz como um animal destemperado. Anormalidade?
Não. O homem sempre foi destemperado. E esse destempero não serve para alcunhá-
lo de decadente ou de cansado. Uma coisa é quando o homem se esconde sob fofocas
cultas, quase sempre meladas por metafísica e cientificismo; outra, quando abre esse seu
manto de embustes e deixa sair suas mais fortes cobiças e se mostra puramente humano.
Abusivamente humano, ele está pronto para qualquer coisa, para viver no enjamble, no
caos, num tipo de ordenação, ou para além de todas as promessas modernas. E tudo isso
sem viver num “tédio profundo”.
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II
Se olharmos bem para o homem – e sua história –, ele sempre esteve entre um e outro
estado: ora faustoso, ora em sua mediocridade, ora ambos. Sempre, no entanto, humano.
O seu grande lance: lutar para ser. Mas ser o quê? O que ele ganha sendo isso ou aquilo?
Existem momentos em que ele planeja, exibe sair de sua humanidade mais carrancuda e
parece atingir outra humanidade, supostamente sóbria. Mas são só momentos. O homem
não pode deixar ou afastar-se daquilo que é! O que ele é? Homem... nada mais.
No entanto, indo e vindo de uma e outra condição, ele ama iludir-se, manter-se
iludido, porque é isso o que parece mantê-lo distante de sua própria sombra, sempre aberta
para a insensatez. E quando ele percebe essa insensatez à sua volta, ele se assusta com o
que vê, e o seu primeiro lance é execrar esse momento e, ainda que curta e se banqueteie
nele, fingir ou atestar que é necessário um outro caminho. E logo ele grita: a humanidade
se perdeu! Vivemos a decadência! Estamos desorientados (Masi, 2017)! E então, mestres,
doutores e profetas se erguem para destrinchar essa insensatez e, maldizendo-a, eleger seus
pontos fracos e, se possível, apontar do passado aquilo que de humano era mais humano
do que o que de não humano encontramos neste momento. Então, num tom saudosista –
como para Han –, desejando a vida contemplativa.
Assim, ser o que se é – humano demais – parece conformar um ato blasfemo. Saber-
se ordinário é blasfêmia. É reconhecer que foda-se tudo o que deseja rearranjar o real
e criar, sobre sua face ordinária, a desculpa de uma gramática maior. Maior, ainda que
sobre o desvairo da tomada das ações e do poder pelo próprio homem. Ações e poder
em deslocamento, quando instituições/empresas e o próprio Estado deixam-se minar, e
como num passe de mágica o homem ascende à sua própria fatuidade de ser, ele mesmo, o
punctus do que elege, seu próprio rendimento. Alucinação!!! O homem sempre é limitado
por soberanias obscenas, continuamente humanas. E suas escolhas se dão nesse pertenci-
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mento, num vínculo perverso que posiciona sua existência e condiciona sua liberdade,
expressões de um rendimento gerado nesse circuito de soberanias. É ilusão imaginar,
como Byung-Chul Han (2016c, p. 92) deseja, que a
Às vezes não sei para onde olhar, porque quando olho não consigo perceber este
homem como ator e vítima. Não creio, assim, no sentido de estabelecer que “El explotador
es, a la vez, el explotado. El actor y la víctima coinciden”. Isso é poesia, boa poesia, pura
demais para jogar como explicação para a condição humana atual. O homem nunca esteve
tão ferrado!!! Nunca esteve, se se pensar em uma maioria, tão moída ou dada como informe
e, tudo isso, sob um sistema que sabe muito bem o que executa. O sujeito sobre si mesmo
alocando sua própria morte? Coisa de almofadinha! Essa maioria, ainda que sob a miséria
de uma terra que não lhe oferece quase nada, e sob patronos fantasmas, que a exploram em
demasia, pensa em crescer – ainda que esse crescimento seja só para obter a energia para
seguir no dia de amanhã. Assim, sempre, essa maioria se vê preenchida por envoltórios
de absolvição. Se a fadigam, ela ainda caminha; se arrancam sua pele, ela se renova,
retomando o seu lugar e o lugar dos seus num espaço que ela sabe ser quase eterno. E ela
surge com mensagens próprias, valendo-se de sua entrega à vida, sujeita de um desempenho
pequeno, mas ainda seu desempenho. Cansada? Quando o escravo não se cansou? Quando
não estivemos cansados? Só agora? Pense nos escravos gregos e romanos, no servo na
idade média, no assalariado em plena revolução industrial? O cansaço é a manifestação
empossada da inferioridade. E nem por esse apossamento, pobres e miseráveis morrem ou
desejam morrer ou, ainda, são deprimidos. Sofrem! Mas a dor é humana. Por isso, quando
Han (2015, p. 28-29) trata da sociedade do cansaço, ele potencializa
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Como um alarde insosso, afirmar esse cansaço é esquecer que temos um tráfego,
ruídos para seguir, trabalhos exigidos, ordens... e que seguimos. E seguimos sabendo que
um momento salta do outro, vive no outro, que se mesclam e cruzam-se. Que nunca um é
capaz de anular os porões do outro. Que um está sempre à espreita para se soltar, aguardando
o jogo humano para lançar-se a uma prática e banhar-se em outras possibilidades, então
aceitáveis naquela hora. Se se esgota sobre algo, espera-se algo mais leve; se há tédio num
dado sítio, quer-se outro lugar de pouco peso; se a morte pode espreitar ali do lado, vai-se
para o outro... sempre vivemos assim.
Ao contrário de Han (2016c, p. 17), que pensa em esgotamento e cansaço e, ainda,
em sociedade positiva, assegurando que “una sociedad que no admitiera ya ninguma
negatividad de un vacío sería una sociedad sin dicha. Amor sin laguna de visión es
pornografía. Y sin laguna de saber el pensamiento degenera para convertirse en cálculo”,
não podemos afirmar a nulidade ou a positividade de tudo, pois que o homem sempre se
faz pornográfico, desonesto, honrado etc. E, se se deseja um animal sem apaziguamento,
pode-se até imaginá-lo em algum canto, desesperado por ter que viver certas situações.
Mas é necessário ir até aí e parar, porque ele continua, ainda que arrastado para o subsolo
mais cavernoso, vivendo o que reconhece como sua normalidade. Uma normalidade que
se reinventa e que, acometida por um jogo onde supostamente o pensamento se degenera,
recria-se sob a arte – desse sujeito – que sabe como inventar desculpas para afastar o
sentido ordinário de sua vida. Essa desculpa hoje? Falar... tagarelar ininterruptamente,
achar que coabitamos permanentemente com outros e que sempre somos “sujeitos a mais”,4
já que sonhamos, dormimos, comemos, transamos, pagamos nossas dívidas e acomodamos
arapucas, como “um a mais”, sempre acompanhados por ruídos que nos impedem, ou
parecem impedir, uma ação solitária. E essa homilia não leva essa maioria para um tipo
de penúria, o que muitos teimam em afirmar como o grande traço desse “sujeito a mais”.
O que importa é fugir de um tipo de veridicidade do real, já que se sabe que “la verdad
como verdad del ser [não é] es un sucesso, un acontecimiento que es lo único que otorga
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a lo ente sentido y significado” (Han, 2016b, p. 107). Sentido e significado estão aqui, nas
práticas, não no ser. A verdade, sabe-se, realiza-se no jogo, e não existe nenhuma garantia
para assegurar sua força. Desta forma, o “sujeito a mais” se despoja de luxos – epistêmicos
– e parte para a algazarra. Por isso, falar tanto é só um meio de demonstrar que se está
vivo num espaço repleto de ruídos. E ao falar, o sentido é falar de nada, quando o nada se
torna a arte/forma de liberação das mazelas cotidianas – como uma breve suspensão das
obrigações habituais, que se sabe de pouco valor, mas ainda o valor... para sobreviver. E
ainda que um só, reconhece-se que é preferível se fazer assim. É claro que se tem a sensação
de alívio, de que o ordinário que preenche a vida pode ser burlado e que há algo além do
próprio eu para supurar as desgraças. Ohhhhh! Um excelente Blefe!
III
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do mundo e propondo-se a sentir e a fazer-se segundo as tensões que tocam em sua pele e
levam-no ao jogo, que pode ser qualquer coisa, fria ou quente, corruptora ou moralizante.
A vida? A experiência humana? Seguem na proporção dos ritmos dos mais variados
agrupamentos humanos, que sempre moldaram suas cadências expressando qualquer coisa,
anômalas ou monstruosas, mas ainda vida... vida humana, que hoje, como antes, repousa
sobre o cansaço ordinário em nossos dias.
Referências
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AUGÉ, Marc. ¿Por qué Vivimos? Barcelona: Gedisa, 2004.
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JEUDY, Henri-Pierre. A Sociedade Transbordante. Lisboa: Século XXI, 1995
KODO, Louis L. A Consciência do Feio. Lisboa: Chiado, 2015.
LIPOVETSKY, Gilles. A Era do Vazio. Barueri: Manole, 2005.
MASI, Domenico De. Alfabeto da Sociedade Desorientada: para entender o nosso tempo.
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ROSSET, Clément. Lógica do Pior. Rio de Janeiro: Espaço Tempo, 1989a.
____. O Princípio de Crueldade. Rio de Janeiro: Rocco, 1989b.
____. Anti-Natureza. Rio de Janeiro: Espaço e Tempo, 1989c.
STEINER, George. Gramáticas da Criação. São Paulo: Globo, 2003
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