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Adolescência: um fenômeno sociocultural - Feizi Milani

Entrevista publicada por "Presente! Revista de Educação" - editada pelo CEAP (Centro de  
Estudos e Assessoria Pedagógica) - ano XV, n. 4, set/nov. 2007, pag. 5 a 11.
Há mais de vinte anos, Feizi Masrour Milani, doutor em Saúde Pública e hebeatra,
trabalha com adolescentes, pais, pro ssionais e instituições de diferentes áreas,
tendo por base uma visão holística do ser humano e um compromisso com a
transformação pessoal e social.

Feizi é professor da Universidade Federal do recôncavo da Bahia (UFRB)-(*),


fundador e diretor do Instituto Nacional de Educação para a Paz e os Direitos
Humanos (INPAZ) e pesquisador sobre a prevenção da violência na adolescência e
a promoção de uma cultura de paz no contexto escolar.

Na entrevista que segue, concedida à Presente!, Feizi fala de como a nossa


sociedade – dominada por um fatalismo paralisante – deixa escapar a
oportunidade de educar e orientar as novas gerações – fortemente manipuladas
por interesses econômicos. Para solução dessa crise que, segundo ele, é
fundamentalmente espiritual, aponta o diálogo e a re exão – orientada pelo
Dr.Feizi Masrour Milani, doutor em
raciocínio lógico e crítico sobre os valores universais ensinados pelas religiões. Saúde Pública e hebeatra

(*)informação atualizada

Por Zulamar Aurélio

Presente! - A adolescência é uma fase natural de crescimento ou é um processo cultural?

Feizi Milani - A adolescência é um fenômeno sociocultural, enquanto a puberdade é um fenômeno natural. A puberdade
consiste nas mudanças físicas, na siologia e na morfologia da pessoa em crescimento, que caracterizam a transição entre a
infância e a adultice - é quando o menino se transforma em rapaz e a menina, em moça. Adolescência é mais ampla que
puberdade, é o conjunto das transformações psicossociais e também biológicas, quer dizer, transformações psicossociais
que via de regra vêm acompanhadas ou são desencadeadas pela puberdade.

A puberdade é universal. Existe em todos os povos e em todas as épocas. A adolescência não é universal, não é um dado da
natureza, e sim, um fenômeno sociocultural. Ela não existia em eras passadas e não existe em todos os povos. O signi cado
da adolescência vem se transformando ao longo do tempo. De acordo com o Estatuto da Criança e do Adolescente, a
adolescência vai dos 12 aos 18 anos de idade, enquanto a Organização Mundial da Saúde a situa entre 10 e 19 anos. Já a
juventude é de nida como o período entre 15 e 24 anos.

Presente! - Quer dizer que o quê atualmente chamamos de adolescente é uma invenção nossa?

Feizi Milani - O que nós temos hoje - toda essa caracterização da adolescência como um período de rebeldia, de inde nição,
de humor instável, de crise e do adolescente como o “aborrecente” - é um fenômeno cultural e ao dizer isso, não estou
a rmando que não é real. A cultura não só é real como permeia todas as nossas experiências. Então, tem gente que pensa,
quando eu digo que não é biológico e sim cultural, que a adolescência é fantasia da nossa imaginação. Não. Somos seres 2
culturais.

Por exemplo, há povos na África e povos nativos das Américas nos quais quando o garoto chega a uma determinada idade
ou atinge uma certa altura, ou a menina tem a sua primeira menstruação, são levados a um local, passam por um ritual e, ao
retornarem, são recebidos pela comunidade como homem e como mulher, já de posse de todos os direitos, prerrogativas e
deveres de um adulto.

Presente! - E na nossa sociedade como vemos o adolescente, culturalmente falando?


Feizi Milani - Na nossa sociedade a adolescência tem cada vez se transformado numa coisa muito complicada e complexa,
principalmente porque está sendo manipulada por interesses econômicos. Quanto mais o adolescente se rebelar contra os
pais, ou for “do contra”, não importa contra o quê, quanto mais os adolescentes forem subdivididos em tribos e galeras, e,
nalmente, quanto mais precocemente se iniciarem esses fenômenos e mais tardiamente se encerrarem, melhor será para
os interesses econômicos da indústria do consumo, da diversão, do lazer. É exatamente isso que está sendo promovido.
Então, essa história de "pré-adolescente" é uma invenção extremamente recente. Aconteceu na frente dos nossos olhos. Isso
não existia há cinco anos atrás e, “de repente” meninos e meninas de oito e nove anos de idade começaram a dizer “eu sou
pré-adolescente”. Ora, isso não partiu de nenhum deles em especí co, isso foi induzido pela propaganda, pela mídia e por
outros mecanismos e estratégias. Mas com que objetivo?

Com o interesse de segmentar um novo nicho mercadológico. Então, existe o nicho das crianças pequenas, depois o das
crianças maiores e agora, inventaram o pré-adolescente, sendo que, para cada um desses nichos há produtos especí cos:
roupas, sapatos, marcas, brinquedos, bandas musicais... . E o que é o pré-adolescente? Nada mais que uma criança que
assume arti cialmente os comportamentos que ela própria observa no adolescente e que, conseqüentemente, quer ter os
mesmos direitos de um adolescente. É uma invenção arti cialmente induzida, mas que está plenamente atingindo o seu
objetivo de vender mais.

Presente! - Ao falar sobre a caracterização do adolescente, o senhor lembrou que às vezes ele é chamado de “aborrecente”.
Parece que ao mesmo tempo em que o admiramos não o poupamos de crítica. Não sabemos o que fazer com ele?

Feizi Milani - Somos uma sociedade permeada por paradoxos. Somos uma sociedade enferma porque ninguém quer ser o
que de fato é. A criança quer ser adolescente, o adolescente quer ser jovem, o jovem quer ser adulto e o adulto quer ser
jovem. Então, o adolescente é criticado, pressionado a amadurecer por que tem que se tornar adulto, tem que assumir
responsabilidades.

Por outro lado, adultos e idosos querem ser jovens. A diversão deles, o seu "faz de conta" é que eles também são jovens.
Ninguém quer ser velho. Na verdade, poucos querem ser o que são, aceitando a beleza, as possibilidades e as limitações de
cada etapa da vida. A maioria das pessoas está tentando aparentar alguma coisa, exceto o que é, de fato. Por que o
adolescente não pode simplesmente viver essa fase? Porque o adulto não pode se assumir como tal? Agora, é bom lembrar
que adulto não precisa ser chato, monótono, sem criatividade, sem espontaneidade, sem alegria. Por que o idoso tem que
car dizendo: “Nós somos os jovens da terceira idade”? Qual é o problema de ser velho? Não é o destino de todo mundo?
Quer dizer, é preciso ser sortudo, para se viver o su ciente para chegar lá. Mas não, tem que existir a negação. Até as
reportagens sobre idosos procuram mostrá-los indo para a farra e com um comportamento bem adolescente. De maneira
alguma estou dizendo que o idoso não deva dançar, curtir, passear, namorar, mas cada um assumindo o que é. O que
preocupa e angustia, ao ver essa sociedade, é essa enfermidade 3 coletiva. Ninguém está satisfeito com o que é, ninguém
aceita viver o momento presente.

Presente! - Se ninguém quer ser o que é, signi ca que o adolescente está sem referência, sem espelho, não é mesmo?

FM - Exatamente. Essa geração, que agora está na adolescência e na juventude, eu a estou chamando de “sem noção” . Essas
pessoas, não apenas os jovens, pois há muito adulto sem noção também, foram educadas dentro do modelo familiar da
complacência, da liberalidade sem responsabilidades, da falta de limites. São pessoas que não têm noção da existência do
outro, nem de seus próprios limites, não têm noção que o mundo não gira em torno do seu umbigo e não conseguem
entender a necessidade de leis e normas de convívio. Pensam que todos ao seu redor estão a seu dispor e a seu serviço.
Diariamente vejo pessoas assim, onde moro, no trabalho... nos gestos mais simples e em comportamentos como estacionar
o carro em local proibido, como subir com o carrinho de compras do prédio e largá-lo no corredor, chegar atrasado para a
aula e deixar a porta da sala aberta. Obviamente, os "sem noção" são fruto de uma educação familiar que se baseou na
premissa de que os pais devem realizar todas as vontades dos lhos, de que não se pode dizer não, para que a criança não
que frustrada... Bem, essas crianças inevitavelmente crescem! Algumas se tornam adolescentes delinqüentes, outras se
tornam jovens irresponsáveis e, muitas, adultos sem noção.

Presente! - O senhor trabalha com adolescentes de diferentes contextos sociais. Por exemplo, o sujeito que começou a
trabalhar ainda criança também tem direito a crise de adolescência? Temos diferentes tipos de adolescência?
FM - Ele vive uma adolescência diferente, mas a in uência do materialismo e do consumismo é tão grande que ele sonha
com a mesma coisa do outro que vive num condomínio de luxo. Os sonhos e as fantasias são os mesmos, inclusive as
angústias. Quando converso com meninos que trabalham e passam o dia na rua, descubro que, para muitos deles, o maior
sonho é ter um celular e, no caso de alguns, o fato de não ter, se transforma em angústia. Aí eu perguntei: para quê você
quer ter um celular?

Presente! - É a representação dos sonhos e da angústia num objeto.

FM - Exato. Mas até bem pouco tempo atrás, nenhum de nós tinha celular. Depois se popularizou. Para que serve um celular
para quem não tem para onde ligar, ou não tem de quem receber ligação ou não tem como pagar a conta? Isso se torna uma
fonte de angústia porque o reconhecimento dele como ser humano e cidadão passa pela posse de um bem de consumo.
Está correto dizer que não existe "a" adolescência, mas "adolescências e juventudes", no plural,porque as experiências são
completamente diferentes. Porém, no nal das contas, essa cultura consumista, que só reconhece e valoriza o outro quando
ostenta certos bens de consumo - verdadeiros sinais de poder aquisitivo -, permeia todas as classes econômicas e acaba
afetando a todos. Só que alguns têm condições de responder a isso, ainda que se submetendo de forma acrítica, ao
adquirirem esses bens e sinais, enquanto que a imensa maioria é excluída dessa possibilidade. Isso gera enormes
sofrimentos.

Presente! - No seu trabalho, quais são as questões mais recorrentes trazidas pelos pais?

FM - Duas coisas. A primeira se refere ao temor de exercer o papel de autoridade, de disciplinar e dar limite aos lhos. O
medo de traumatizá-los. O conceito de trauma é uma descoberta da 4 Psicologia que se popularizou, penetrou no senso
comum, e muitos se apoderaram dele, de forma equivocada. Com freqüência a gente ouve: “Ah! não fala assim comigo que
eu vou car traumatizado”. Agora as pessoas se traumatizam com qualquer coisa? Os pais acreditam que se disserem um
"não" para a criança, se a contrariarem ou derem um castigo por algo que ela conscientemente fez de errado, ela vai car
traumatizada. Isso é balela. É uma distorção do conceito. A outra questão se trata de uma angústia, principalmente por parte
das mães: o sentimento de culpa por não terem tempo su ciente para se dedicar aos lhos. Culturalmente, a mãe traz essa
obrigação do papel materno. Por isso, ela acredita ser a maior responsável pela educação e o cuidado com os lhos e, ao
mesmo tempo, quer dar conta da sua vida pro ssional, dos papéis de dona de casa, mãe e esposa. Então, há um sentimento
muito grande de culpa, o qual se associa ao medo de dar limites. Aí está uma boa justi cativa do porque os pais não estão
exercendo seu papel disciplinador, além de confundir amor com ser bonzinho. A pior maldade que se pode fazer a um lho é
ser bonzinho com ele. "Bonzinho" entendido como aquele que faz todas as vontades, que tolera todo tipo de
comportamento, que não dá limites... Isso é maldade, é descaso para com o futuro dos lhos.

Presente! - Certamente o adolescente reconhece essa fragilidade dos adultos?

FM - Reconhece e tenta explorar em benefício próprio, muitas vezes, da forma mais egoísta possível. Bene ciar-se disso
pode aparentar ser bom para os interesses imediatistas da criança ou do adolescente, mas com certeza é péssimo para os
interesses maiores de sua vida, a longo prazo. Eu pergunto aos pais: vocês sofrem frustrações? Passam por di culdades?
Têm decepções? Eles dizem que sim. Então, volto a perguntar: todos os dias? Eles respondem que sim. Eu também passo por
isso, tenho contrariedades todos os dias, mas tenho que lidar com elas e aprender a ser feliz. Mas se você criar seu lho
superprotegido dentro de uma redoma, onde ele não precisa se esforçar para nada e já recebe tudo pronto, que capacidade
ele terá para lidar com as frustrações?

Que competências ele terá para enfrentar as di culdades da vida e para não achar que a vida precisa ser destruída quando
as coisas não saem exatamente como ele queria? Essa vida a ser destruída pode ser a sua própria ou a do outro. Estou
falando de jovens que matam os pais ou outras pessoas devido a um aborrecimento ou frustração, e de jovens que se
matam, seja cometendo suicídio, se drogando ou afundando em qualquer forma de dependência, en m, se autodestruindo.

Presente! - Falamos das perguntas dos pais. E como chegam os adolescentes?

FM - Eu sintetizaria em uma palavra: perdidos. Não no sentido moralista ou religioso. Mas perdidos no sentido de “O que é
mesmo a vida?” “A vida é só isso?”. Quer dizer, há algo dentro do adolescente que lhe diz que a vida não é só ir para a escola,
curtir as festas, “ car”, ganhar no esporte... Há algo dentro dele que o inquieta e que o faz questionar se existe alguma coisa
mais signi cativa, mais profunda, mais ampla do que isso. Só que a maioria deles não consegue descobrir indícios para
responder a essas perguntas. Quer dizer, nós não damos a eles elementos para que possam encontrar as respostas. Então,
isso acaba sendo sufocado dentro do adolescente pela enxurrada de apelos consumistas que prometem o prazer e a
satisfação imediata.

Presente! - Isso sufoca o altruísmo juvenil?

FM – Sufoca o altruísmo, o desejo de mudar o mundo, os ideais maiores, a busca de um sentido para a vida. Todos esses
anseios são inerentes ao ser humano, mas a nossa cultura massi cou os apelos externos que repetem: “Saia de si”, “não
entre em contato consigo”, “não ouça essa voz interna, saia em busca de coisas vendáveis ou compráveis”. É tanto ruído
externo, chamando para fora, para a super cialidade e a mediocridade, que realmente são poucos aqueles que conseguem
ouvir essa voz interior.

Presente! - Não acha que a gente pode esvaziar de sentidos essa nova geração, julgando que em outros tempos era melhor?

FM - Eu não assumo esse discurso de “no meu tempo era melhor”. Não idealizo a minha geração, mas vejo que a pressão
externa aumentou muito, os mecanismos de gerar alienação foram aprimorados in nitas vezes, o poder da mídia cresceu
assustadoramente. Acho que hoje está menos freqüente o adolescente ou o jovem com uma postura protagonista, de
assumir uma causa, um ideal seja religioso, ecológico, social... Embora existam muitos projetos trabalhando nessa direção.
Então, eu não parto da idealização de uma outra geração, nem de uma postura preconcebida diante da atual, mas venho
constatando o quanto essa geração está sendo manipulada. Uma das formas de manipulação é a disseminação do fatalismo.
Quanto mais pessoas acreditarem que as coisas sempre foram assim e que, conseqüentemente, sempre serão assim, menos
vão se mobilizar em prol de qualquer coisa que represente uma mudança. Apagar a história, fazer com que as pessoas
esqueçam a história é uma excelente estratégia de dominação.

Presente! - Esse fatalismo também chegou à escola?


A pior maldade que se pode
fazer a um filho é ser bonzinho FM - O fatalismo é um tipo de infecção que mistura de pessimismo, ceticismo e
com ele impotência, e que está altamente disseminada também entre os professores.
Estão se sentindo impotentes diante de toda essa situação. Só que, na verdade,
os professores são aqueles que têm a maior possibilidade de desencadear alguma mudança. Não que seja fácil,
absolutamente. Mas “difícil” não é a mesma coisa que “impossível”! A prova de que é possível é que em muitas escolas,
apesar de tudo, existem professores que estão fazendo um excelente trabalho educativo e transformador, um trabalho que
vai além da mera transmissão de conhecimento. Porém, esses professores são uma minoria. Existe uma outra minoria que
não acredita em mais nada e faz questão de disseminar o vírus do fatalismo. Entre essas duas minorias, encontra-se a
maioria acomodada e passiva. Essa é a realidade em todos os campos da vida humana, não apenas na escola. Se
analisarmos o fenômeno da violência, veremos que há uma minoria que vive da violência e a provoca, outra que promove a
paz, enquanto a maioria ca no meio se sentindo vítima, se lamuriando, se queixando e esperando uma solução mágica. Se
essa maioria se engajasse, a sociedade se transformaria rapidamente. Então, a responsabilidade maior recai sobre esses que
só pensam nos seus interesses pessoais, numa postura imediatista e mesquinha, e não assumem um compromisso em prol
da coletividade. Quando falo desses três grupos - uma minoria que está ativamente comprometida em promover a
transformação, outra minoria que está engajada em evitar qualquer transformação e uma maioria que está apática e
silenciosa - lembro das palavras de Martin Luther King Jr.: “O problema não é a ação dos maus, mas a omissão dos que
deviam fazer alguma coisa pelo bem”.

Presente! - Para não se omitir...

FM - A escola precisa se repensar e entender que o seu papel mais importante não é o de transmitir conhecimento. A ciência
não é um m em si mesmo, e é incapaz de revelar o sentido das coisas. O ser humano - criança, jovem ou adulto - não é
atraído, não internaliza, não 6 compreende, não aprende um conhecimento destituído de sentido e signi cado. Por isso, o
conhecimento precisa ser questionado e debatido. Os alunos perguntam: “Professor, para que serve isso que o senhor está
ensinando?” Alguns respondem: “Porque vai cair na prova”, ou “porque é exigido no vestibular” ou “serve para arrumar um
emprego”. Todas essas respostas são utilitaristas.

Uma de curtíssimo prazo, outra de médio prazo e outra de longo prazo, mas as três colocam o conhecimento como meio
para se obter um interesse pessoal e material. Quando o aluno faz esse tipo de pergunta, temos que entender o seu sentido
mais profundo. Na verdade, ele quer saber o sentido de tudo isso e a gente deixa escapar a oportunidade de um rico diálogo
ou re exão, ou dá uma resposta utilitarista que esvazia de signi cado qualquer conhecimento. A raiz da crise planetária está
na falta de sentido e signi cado da existência humana, e a resposta para isso não se encontra na ciência, até porque estas
questões extrapolam o seu campo de investigação e atuação. Não é papel da ciência dar sentido a vida, como também não é
o de apresentar ou constituir valores que possam nortear o convívio social. Estou falando de uma crise cuja raiz é
fundamentalmente espiritual.

Presente! – E como podemos encontrar esse sentido e signi cado?

FM – Pessoalmente, conheço duas vias. A primeira é a do diálogo, ou seja, a construção coletiva de valores através do
diálogo. Isso não é possível em uma sala de aula na qual ainda vigora o estilo bancário de ensino. Para dialogar sobre
valores, o professor precisa reconhecer os educandos como co-partícipes e co-responsáveis no processo de construção de
conhecimento e de pactuação das normas de convívio. Abordei detalhadamente essa temática em meu livro “Tá combinado!
Construindo um pacto de convivência na escola”. Então, é imprescindível se dialogar: para que serve tudo isso que estamos
aprendendo? Como é que isso se aplica a vida?

Quais são os valores que devem nortear a aplicação desse conhecimento? A nal, todo conhecimento pode ser usado para o
bem ou para o mal. Por exemplo, a TV pode ser instrumento de dominação e alienação como também pode ser de
educação. Então, como é que se de ne a forma que o conhecimento cientí co é usado? A partir dos valores que norteiam as
ações humanas. Enquanto o valor supremo for a riqueza material, vale qualquer coisa para se alcançar esse objetivo.
Quando os valores forem de solidariedade e cooperação, todas as coisas serão usadas de outra forma, em prol de um
mundo justo e de paz.

Presente! – Qual seria a outra via?

São as grandes tradições espirituais da humanidade. A religião é uma grande fonte de saber. Ela representa o conhecimento
espiritual da humanidade acumulado ao longo de milênios, e expresso nas diversas escrituras sagradas. Estou me referindo
à base comum e essencial de todas as religiões universais (Cristianismo, Budismo, Judaísmo, Islã, Fé Bahá'í, Hinduísmo,
tradições africanas...). Todas essas tradições possuem uma sabedoria profunda e lidam com as questões de sentido e de
propósito da existência. Não estou propondo que as pessoas voltem ao dogmatismo religioso, mas sim, que façamos uso do
raciocínio lógico e crítico que a ciência nos ensina para re etir sobre os valores universais ensinados pelas religiões. E isso
pode ser feito em bases transreligiosas e transculturais.

Presente! - Para encerrar, aponte um gesto para o nosso adolescente?

FM - Um gesto coletivo, certo? Acho que tudo começa com um olhar sobre nós mesmos, como seres humanos, para
reconhecer que não somos meramente “animais racionais”. Quando 7 a rmamos que o homem é um animal racional
estamos dizendo uma meia verdade, pois estamos reconhecendo apenas as suas dimensões biológica (o animal) e a
intelectual (o racional). Faltou pelo menos uma dimensão: a espiritual. Se a nossa visão sobre nós mesmos é incompleta,
de ciente e super cial, não damos conta de viver uma vida na plenitude. O que o ser humano está buscando,
conscientemente ou não, é viver na plenitude. Uma vida plena nasce do reconhecimento que somos essa
multidimensionalidade e que a nossa plenitude - saúde, bemestar e felicidade - depende de um equilíbrio dinâmico no
cuidado com essas várias dimensões.

Equilíbrio dinâmico, porque não se trata de dedicar uma hora para cada uma delas. Não é assim que as coisas funcionam. A
sociedade hoje vive um desequilíbrio muito grande porque toda a nossa energia está concentrada em apenas uma ou duas
dimensões, ou seja, no lado material e no intelectual. Nos tornamos “gigantes atômicos”, embora continuemos “anões
morais”. Temos o conhecimento cientí co capaz de coisas extraordinárias, inclusive de destruir toda a vida que existe sobre
a face da Terra, precisamos conquistar a estatura moral e espiritual para saber o que fazer com esse conhecimento, para
criar uma civilização da qual todo ser humano possa se orgulhar. Acho que, hoje, nenhum ser humano se orgulha do mundo
em que vive; pode até estar satisfeito, por ser um dos poucos bene ciados, mas orgulhar-se, acho difícil. Na medida que
cada um de nós - pai, mãe, educador, gestor escolar, político - perceber e trabalhar a sua própria multidimensionalidade,
estaremos oferecendo ao adolescente a chance de se reconhecer como um ser multidimensional e de se desenvolver na
plenitude.

www.feizimilani.blogspot.com

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