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Grupo Dziga Vertov | Dziga Vertov Group

Book · August 2005

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Jane De Almeida
Universidade Presbiteriana Mackenzie
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Apoio Cultural

Patrocínio e Realização
O Centro Cultural Banco do Brasil exibe obras que, por sua heterogeneidade,
não só abrem espaços para a análise da evolução da linguagem cinematográfica,
como induzem à reflexão histórica.
Os filmes que integram a Mostra Grupo Dziga Vertov resgatam uma produção
radical dos anos 1960 e 1970 da qual participaram Jean-Luc Godard e
Jean-Pierre Gorin. No rescaldo das agitações políticas de maio de 1968, os
cineastas se uniram a intelectuais franceses em torno das idéias de Mao
Tse-Tung para formar o grupo cujo nome homenageia o cineasta soviético
que revolucionou a linguagem do cinema nos anos 1920. O Grupo Dziga Vertov
rompeu definitivamente com o cinema comercial e, segundo o próprio Godard,
procurou estabelecer uma nova unidade que produziria não filmes políticos,
mas "filmes políticos politicamente".
Destas experiências coletivas participaram pensadores, atores e outros cineastas,
entre os quais Daniel Cohn-Bendit, Gian Maria Volonté, Yves Montand,
Jane Fonda e até mesmo Glauber Rocha. O principal parceiro de Godard,
o ativista político e cineasta Jean-Pierre Gorin, na época editor do jornal
Le Monde, vem pela primeira vez ao Brasil apresentar os filmes realizados
pelo Grupo. São obras raras, de difícil exibição e ainda pouco conhecidas
do público brasileiro.
Vistas em retrospecto, essas experiências são ainda hoje consideradas revolucionárias
em todos os sentidos. Acrescentaram inovações à linguagem cinematográ-
fica que, anos depois, viria a sofrer profundas mudanças a partir dos meios
eletrônicos. Ao apresentar a obra completa do Grupo Dziga Vertov, o Banco do
Brasil promove e enriquece o debate sobre a memória e a história do cinema.

Centro Cultural Banco do Brasil


Abrindo latas de sopa Campbell’s 6
Jane de Almeida

O Grupo Dziga Vertov 14


Colin MacCabe

Jean-Pierre Gorin 36
Erik Ulman

O amigo de Glauber [e Godard] 50


Jane de Almeida

Vento do Leste ou Godard e Rocha na encruzilhada 58


James Roy MacBean

Vento, barravento [Glauber e Godard na porta da usina Lumière] 79


José Carlos Avellar

Carta a Jean-Pierre e a Jean-Luc 89


Kent Jones

Sinopses | Fichas técnicas 95


Bibliografia selecionada 116
Abrindo latas de sopa Campbell’s
Os filmes do Grupo Dziga Vertov estão sendo
exibidos pela primeira vez no Brasil. Devido a seu
quase ineditismo, sua complexidade e seu deslo-
camento temporal, várias perguntas fazem parte
dessa produção desde que a Mostra foi concebida,
há mais de dois anos.
Algumas delas: como mostrar um conjunto de filmes de
extrema complexidade e que, de forma simplista,

Jane de Almeida | curadora


foram vistos como meros planfetos políticos pela
crítica cinematográfica, ou como extravagantes exer-
cícios cinematográficos para o engajamento político?
Como introduzir ao público brasileiro uma experiên-
cia única no cinema quanto ao descolamento entre
a imagem e o som e os efeitos do processo dialéti-
co produzido pela proposta (tendo ela sido bem
sucedida ou não), num momento em que se dis-
cutem nacionalmente as políticas de financiamento
do cinema como patrimônio do povo e o retorno
financeiro como resposta ao que se deve produzir
como imagem? Como falar de uma proposta de pro-
dução coletiva contrária à assinatura autoral e que
gera, como conseqüência, uma série de mal-enten-
didos sobre a própria autoria dos filmes? Sem men-
cionar que um dos participantes é um dos maiores
diretores da história do cinema e foi ele mesmo um
dos responsáveis pelo fenômeno do cinema de
autor. Por fim, como apresentar filmes feitos há mais
de 30 anos sob uma intensa polêmica política da
qual os brasileiros foram forçados a se retirar?
São perguntas que pautam essa publicação e às quais ela
6

certamente não conseguirá responder. Os artigos


foram selecionados a partir de três vertentes: o Gru-
po Dziga Vertov e sua história, a relação de Glauber
Rocha com o Grupo e a presença de Jean-Pierre
Gorin na Mostra. Espera-se que ela sirva de referên-
cia inicial e de inspiração para novas questões que
certamente surgirão, a partir de esclarecimentos e
mal-entendidos abordados pelos autores.
Quando surge o Grupo Dziga Vertov, surgem também outros grupos, como o Grupo
ARC (Atelier de recherche cinématographique) e o grupo SLON, de Chris Marker,
ajudados pelas novas tecnologias de captação e montagem dos ciné-tracts — já que
os pequenos filmes podiam ser editados na própria câmera, promovendo a idéia
da ausência de autoria (ou de autoria única) em nome de um trabalho coletivo.
Assim, Um filme como os outros é o precursor da série, sem ainda ser creditado
como pertencente ao grupo Dziga Vertov1 . Só mais tarde, provavelmente depois
de British Sounds, é que o grupo acaba se intitulando “Dziga Vertov”, por influên-
cia de Jean-Pierre Gorin. Com Vento do Leste, o grupo se estabelece, e Godard
anuncia que para o cineasta soviético Vertov a definição de Kinoki não é “cineas-
ta”, mas sim “operário do filme”, diferenciando moviemaker de film worker2 .
Ao lado de Jean-Luc Godard e de Jean-Pierre Gorin, alguns outros membros tiveram par-
ticipações mais freqüentes, como as de Jean-Henri Roger, responsável por British
Sounds e Pravda, que escreveu roteiros e dirigiu com Godard; o fotógrafo Paul
Burron; Gérard Martin, algumas vezes citado como co-diretor de Vento do Leste; e
Anne Wiazemsky, na época casada com Godard e atriz de vários dos filmes pro-
duzidos pelo Dziga Vertov. Outros participantes estiveram ao redor desse movi-
mento e não se sabe qual foi exatamente sua contribuição, o que, de certa forma,
reflete a proposta coletiva de fazer cinema. Ironicamente, a despeito do desejo
colaborativo, os filmes são geralmente comentados e analisados apenas como
parte da filmografia de Godard. Outra conseqüência é que até há pouco tempo
eles parecem ter ficado à deriva nas distribuidoras, que não sabiam a quem pedir
os direitos de exibição. Estivemos por algum tempo sem nenhuma pista sobre
como consegui-los, até que, depois de um festival de filmes políticos em Nantes,
em 2003, a Gaumont nos respondeu3 . Um problema parecido surge no momen-
to de citar os créditos, pois às vezes toda a ficha técnica fica resumida ao Grupo
Dziga Vertov, com um ou outro nome agregado. Em casos extremos, como no
texto de James MacBean sobre Vento do Leste aqui publicado, os filmes são cred-
itados apenas a Jean-Luc Godard.
Em vez de creditar os filmes apenas ao “Grupo Dziga Vertov”, optamos por publicar
7

um guia de créditos apresentando referências de fontes diferentes. Se por um

[ 1 ] O próprio Godard admite em entrevista para Kent E. Carrol, publicada em “Film and revolution: Interview with
the Dziga Vertov Group”, em Focus on Godard, New Jersey, Prentice-Hall, Inc, 1972. p.53, que Um filme como os
outros é o primeiro da série de filmes revolucionários que havia feito.
[ 2 ] Na mesma entrevista a Carrol concedida em inglês em 1970, p. 50.

[ 3 ] Os Cahiers du Cinéma comentam esse problema quando escrevem sobre o Festival de Nantes. Patrice BLOUIN,

Mémoire. Où est le cinéma politique?, Paris, abril de 2003. pp. 10-12.


lado isso parece contraditório com os propósitos do Grupo, por outro traz um
pouco da historicidade do processo e de sua recepção, além de, de alguma forma,
elencar subjetividades e abordar questões sobre o fazer coletivo. Ao se pensar no
caminho traçado pelos filmes do Grupo, tal iniciativa parece até coerente. Cada
filme tenta responder questões pendentes dos anteriores e, quase no fim, em Tudo
vai bem (que não é mais um filme do grupo, mas de Godard e de Gorin e assim
assinado), a conclusão sobre o coletivo, proveniente de uma decepção inicial com
as organizações de trabalhadores, é de que a grande história é construída pela
história individual. De certa forma, esse é também o procedimento de Carta para
Jane. Hoje, é mais comum pensar que o Grupo aconteceu por esforço e desejo de
Godard e de Gorin. Ao perguntarem a ele e a Godard quantas pessoas faziam
parte do Grupo Dziga Vertov, Gorin respondeu, numa entrevista em 1970: “Neste
momento, duas, mas nem nós temos certeza. Existe uma ala da esquerda e uma
ala da direita. Às vezes, ele é a esquerda e eu sou a direita, é uma questão de prati-
cidade”.4 Complementando, Godard nessa época declarou em vários momentos
que trabalhar em grupo era uma forma de destruir a ditatura do diretor.
Depois de mais de 35 anos desde o seu início, tendo sido imediatamente recebidos
com certo furor pelos primeiros espectadores e logo sendo relegados ao limbo,
qualificados como “extremistas”, “radicais”, “inassistíveis”, demasiadamente
politizados para os amantes do cinema e também demasiadamente estetizantes
para o cinema político feito na época, esses filmes retornam em conjunto — seja
em apresentações, seja como parte da cinematografia de Jean-Luc Godard, seja
em homenagens que apresentam a filmografia de Jean-Pierre Gorin ou seja
ainda dentro de uma temática política sobre os anos 1960 e 1970. São poucas
as vezes em que acontece uma mostra de filmes “Grupo Dziga Vertov”, apenas,
e, por isso, outra questão se faz necessária: o que significa hoje assisti-los? Antes
de tentar enquadrá-los em uma perspectiva mais temporal, que obriga o recep-
tor a tentar entender o objeto de fruição por meio do que ele carrega do seu
tempo, estes filmes são experiências singulares sobre as conseqüências ideológ-
icas daquilo que se escolhe como forma. Levam Brecht para além do distanci-
8

amento e do estranhamento, dando continuidade à propria lição brechtiana de

[ 4 ] “For the moment two, but we are not even sure. There is a left wing and a right wing. Sometimes he is the left
and I am the right, it is a question of practice.” Em Michael GOODWIN, Tom LUDDY e Naomi WISE. The Dziga Vertov
film group in America, Take One. The film magazine, vol. II, n.10. Canadá, março/abril de 1970. pp. 8-27. Ou em The
Dziga Vertov film group, em “America: an interview with Jean-Luc Godard and Jean-Pierre Gorin”, Cinefiles.
Versão na Internet: http://www.mip.berkeley.edu/cgi-bin/cine_doc_detail.pl/cine_img?11165?11165?1
que o problema da forma é em si o problema da política. E nisso trazem o fres-
cor da liberdade com que foram feitos, no contraste ousado das cores de quem
fazia filmes para serem vistos e não para serem lidos, como insiste Gorin ao
argumentar contrariamente sobre o proclamado fim da escrita5 . Em todos os
nove filmes, em maior ou menor intensidade, o som e a imagem são elemen-
tos autônomos que às vezes dançam e às vezes brigam. Nesse sentido, a
acusação de verborragia panfletária é uma acusação pouco refletida, de um
ponto de vista apressado, sobre aquilo que se apresenta. Há uma primeira cama-
da com a presença maciça de falas, mas até pela complexidade do que elas
propõem o espectador fica na posição de admitir que há outras camadas a
serem percebidas por conexões inesperadas que lhe foram despertadas.
É muito raro ver algum filme de caráter político que tenha levado tão longe sua pro-
posta, tal como fizeram os filmes do Grupo Dziga Vertov. É claro que depois da
fase política mais estudantil, de prolongadas e arriscadas tentativas políticas ter-
roristas, do crescimento das ideologias consumistas, do cultivo de uma posição
independente como ideal subjetivo, é difícil para o homem comum contemporâ-
neo se ver no grupo do “burguês” ou do “trabalhador”, já que ele desde sem-
pre esteve em ambos. Mas desde então, os filmes mais políticos, contrários ao
poder, têm sido tão conteudistas, tão despreocupados no pensar a forma (se
quisermos, submetidos àquilo que Hollywood define como forma), com leituras
tão simplificadas do poder, que parece termos perdido o elo entre o que acon-
teceu na época do Grupo e o que acontece hoje. Há nesse sentimento de perda
o desejo de uma evolução que nem sempre acontece. Contudo, rever e repen-
sar esses filmes para além de um sentimento nostálgico pode fazer movimentar
cadeias de ligações não percebidas, mas já consideradas estabelecidas, principal-
mente sobre o mundo que construímos depois de maio de 1968.
O primeiro dos filmes, Um filme como os outros, mostra uma explosão de imagens
dos ciné-tracts de maio de 1968 em preto-e-branco entrecortando a discussão
estudantil sobre as lutas de classes. Ele é o precursor do filmar coletivo na obra
de Godard e parte de discussões políticas entre Godard e Gorin6 . A concepção
9

desse filmar que não mostra as identidades, na medida em que privilegia as


falas em detrimento dos rostos dos personagens, já é em si um procedimento
da forma de pensar que tomará corpo nos próximos filmes. No entanto, o con-

[ 5 ] Gorin em entrevista para Jump Cut: Christian Braad THOMSEN, Jean-Pierre Gorin interviewed. Filmmaking and

History, n. 3, 1974. pp. 17-19. http://www.ejumpcut.org/archive/onlinessays/JC03folder/GorinIntThomson.html


[ 6 ] Afirmação de Gorin em Jump Cut.
traste entre a paisagem pastoril colorida e calma dos debatedores e as imagens
de bombas e greves dos trabalhadores gera a princípio duas interpretações:
uma, a respeito das diferenças entre as próprias classes (ou seja, uma que posa
para o filme), e outra, que “posa” para a luta. A segunda abre o problema que
será adiante questionado pelo Grupo — como em Lutas na Itália — a respeito
da realidade da teoria e da realidade da prática.
O próximo filme, British Sounds, foi feito na Inglaterra logo após One Plus One e
desde o princípio declarou-se o desejo de filmar em conjunto. Roger
trabalha com Godard e o maoísmo dá o tom mais forte do esquema político
da fita. A cor do filme é vermelha e o som é o da repetição. As seis
seqüências, mesmo que declaradamente políticas, não deixam de ser apre-
sentadas com certa ironia e certo humor no jogo com clichês revolucionários,
como a bandeira sendo rasgada na abertura e a mão ensanguentada
em busca da bandeira vermelha no fim. A ironia revela em si o incômodo de
participar de duas posições, um recurso usado com freqüência por Godard.
Aliás, o núcleo do filme é carregado de cenas irônicas, como a cena do
locutor de televisão que parte de uma posição liberal para anunciar precon-
ceitos entrecortada por cenas da realidade britânica que não acompanham
a fala desse mesmo locutor. Porém, se pensamos na seriedade do som
revolucionário com que o filme termina, em sincronia com a imagem, seu
contraste com essa ironia parece revelar uma certa hesitação entre o Godard
de Alphaville e o Godard revolucionário.
Vento do Leste, depois de Pravda, é o próximo da série. Todo ele é tomado pela voz
do gênio maligno que, com exceção de Tudo vai bem, permanecerá até Aqui
e acolá. Na realidade são vozes (no caso de Vento do Leste, feminina), mas
uma em especial cumpre a função de alteridade dialética que, como um fio
principal, garante a estrutura dos filmes. E garante também a sua descons-
trução no sentido mais formal. Aos poucos, o descolamento identificatório
entre som e imagem toma os filmes, e também aos poucos os sons ganham
10
vida própria. Vento do Leste é um filme mais vigoroso, com questões em
aberto. A voz do gênio maligno responde a British Sounds sem hesitações e
abre todo um caminho de experiências — uma delas com a participação de
Glauber Rocha. Gorin explica que, ao elaborar a cena com Isabel Pons, a
garota grávida com a câmera, transformou-a na metáfora das dificuldades e
esperanças da época que encontra na encruzilhada a impossibilidade da
conciliação entre os tropicalistas do Terceiro Mundo e os conceitualistas do
Primeiro quanto à revolução do meio. Impossibilidade marcada pelos três
passos hesitantes da grávida na direção indicada por Glauber e logo depois o
seu retorno desse caminho7 . A voz de Glauber canta e indica o caminho do
“cinema perigoso, divino e maravilhoso”. Daquela época.
O Brasil entrava na fase mais aterrorizante da ditadura política. Nosso cinema é cen-
surado, nossos pensadores são presos, torturados, vão para o exílio — e o
Brasil fica sem o diálogo entre o dentro e o fora que tinha acabado de retomar
da tradição modernista. Glauber não deixa de filmar e seu filme Der leone
have sept cabeças é claramente uma influência do Grupo Dziga Vertov, como
nota Jean-Pierre Gorin e José Carlos Avellar, que, em artigo aqui publicado,
também sugere uma troca mais afinada de influências com soluções desen-
contradas entre as cinematografias de Glauber e Godard, do Primeiro e do
Terceiro Mundos.
Assistir a esses filmes hoje é como poder ver uma parte perdida de uma importante
discussão que talvez pudesse ter alimentado uma linha de cinema um pouco
abandonada pelos espectadores e pelos produtores de filmes, cujo projeto
estético inclui a refletividade do aparato e a experimentação formal do cinema.
Uma linha que une Mário Peixoto a Júlio Bressane e que, ironicamente, nada
tem a ver com o chamado cinema “político”. Tal linha inclui Glauber, mas
parece que é o “político” de Glauber, naquilo que diz respeito à interpretação
mais comercializada de sua estética da fome, que tem sido cultivado no nosso
cinema. Uma pena, pois isso diminui a diversidade de leituras da complexi-
dade do mundo.
Os filmes do Grupo Dziga Vertov, hoje menos importantes politicamente — no que
diz respeito ao aspecto político mais evidente, pois de certa forma a escolha
estética é em si um ato político — e mais interessantes experimentalmente, são
aquilo que o cinema pode considerar como situação limite, na medida em que
ainda são considerados filmes e se utilizam do aparato cinematográfico básico:
película, projetor, tela, cadeira, sala escura, bilhetes para entrada, tempo cine-
matográfico tradicional. No entanto, o que se vê na tela é muito mais próximo
daquilo que hoje se vê com freqüência em museus em tempo reduzido: as
11
chamadas instalações, que foram mais freqüentes em vídeo e hoje são feitas

[ 7 ] Correspondência por e-mail. “Foi a minha namorada da época, Isabel Pons, que eu coloquei para encontrar

Glauber na encruzilhada e cuja gravidez transformei numa metáfora de nossas dificuldades e esperanças, munindo-a
de uma câmera; Glauber está nesta cena porque Raphäel Sorin e eu fomos procurá-lo em Roma, e o procedimento,
o “roteiro” que capacitou Glauber a improvisar suas falas, a idéia de tê-lo na encruzilhada improvisando musicalmente
em cima do “cinema do Terceiro Mundo” é minha; e esta impossibilidade de encontro entre os tropicalistas do Terceiro
Mundo e os conceitualistas do Primeiro em busca de uma revolução do meio, marcada pelos três passos hesitantes de
Isabel na direção indicada por Glauber e o seu retorno ao caminho pelo qual ela veio, eu que articulei…”
com material digital. São vários filmes dentro de cada filme, feitos com uma
disponibilidade de material barato, criando imagens de imagens recicladas den-
tro dos próprios filmes. Nada mais “pop” do que as impressões da luz do sol
na tela escura, os cartazes com esquemas escritos, os quadros vermelhos e as
tiras recortadas de películas em Vento do Leste. Os movimentos econômicos
materiais do cinema e das artes plásticas são contrários. Enquanto o cinema
custa muito e é vendido a preço baixo, as artes plásticas custam geralmente
muito pouco e são vendidas a alto preço. Nesse sentido, os filmes do Grupo
acompanham a arte contemporânea, ao utilizar ao máximo o material cotidiano
daquilo que estava ali presente, em lugar de propor o acabamento cuidado que
é exigido cada vez mais intensamente pelo cinema. Kent Jones, em artigo aqui
publicado, usa a metáfora de Gorin do “abridor de latas” (“Nós fizemos este
filme da mesma maneira que você faria um abridor de latas”) para descrever o
processo artesanal com que os filmes foram feitos. Fazer um filme como um
abridor de latas é dotá-lo do poder de servir de ferramenta para abrir aquilo que
se apresenta hermeticamente fechado, como a imagem de Jane Fonda no
Vietnã. Se pensados como um artefato “pop”, os filmes não se contentam em
apresentar a nova cultura ou revelar a realidade do consumo. Mesmo latas de
sopa Campbell’s devem ser abertas.
Em entrevistas da época com o Grupo, geralmente representado por Godard e Gorin,
eram feitas várias perguntas a respeito da audiência para a qual aqueles filmes
eram dirigidos. A dupla realmente se preocupou com essa questão ao produzir
Tudo vai bem. Apesar da presença dos atores famosos, do cuidado com o
acabamento, na época o filme não foi bem-sucedido nem pública, nem critica-
mente. Vendo-o hoje, essa preocupação se torna sem sentido e apreciamos o
fato de ele ter sido feito. Sem querer dizer que ele afinal tenha alcançado sua
audiência, ou que as obras do Grupo Dziga Vertov tenham agora atingido um
público, ao se pensar as políticas de apoio e financiamento ao cinema seria
bom que fosse possível argumentar também no sentido do eixo paradigmático,
12
perguntando: quantas gerações verão esses filmes?
Em Godard: A Portrait of the Artist at Seventy
O Grupo Dziga Vertov
Tanto o filme One Plus One como o One A.M. foram
financiados para serem exibidos no cinema e,
apesar da experimentação formal e do cansativo
conteúdo político dos mesmos, pode-se imaginá-
los como sendo filmes teatrais. É impossível,
porém, imaginar os cinco filmes seguintes de
Godard fora do âmbito da sala de aula ou da
reunião política, mas todos, com apenas uma

Colin MacCabe ©
exceção, foram feitos para exibição em televisão.
A história da produção foi semelhante em todos os
casos. Uma emissora européia de televisão comis-
siona o grande cineasta para fazer um documentá-
rio sobre alguma atualidade da política e depois se
nega a veicular o filme por algum motivo técnico.
Todos os filmes, de maneira bem simples, são
“inassistíveis” – a premissa de cada um é a de que
a imagem não consegue fornecer o conhecimento
que o filme promete; que a câmera não é um
meio de captação neutro de realidade, mas sim
um elemento essencial na realidade que está
sendo representada. Eles demonstram a realidade
da câmera de forma constante, principalmente por
meio da ênfase dada ao som, que não funciona
meramente como um complemento invisível à
imagem, mas como elemento independente.
Esses filmes foram classificados por Jean-Pierre Gorin como
OVNIs, Objetos Visuais Não Identificados, e tal descri-
ção não é de todo ruim. É difícil lembrar algum para-
lelo na história do cinema. Nunca nenhum outro
14
diretor de filmes comuns decidiu usar cinco orça-
mentos comerciais para fazer experiências com som
e imagem, e nunca nenhum diretor experimental fez
cinco filmes que ainda são reconhecíveis dentro do
gênero de documentários sobre “assuntos atuais”. O
próprio Godard declara que eles não são ”filmes”, * © 2003 por MacCabe, Colin,
in: Godard: A Portrait of the
Artist at Seventy. Reimpresso
com a permissão de Wylie
[ * ] Jogo feito com a palavra em inglês “movie”. (N. do T.) Agency Inc.
mas admite que eles contêm alguns ”movimentos” interessantes. Considerados
como documentários convencionais, são “inassistíveis”; considerados como
experiências de som e de imagem, eles contêm lições que são ainda mais rele-
vantes hoje do que quando foram feitos.
O primeiro desses filmes foi feito na Grã-Bretanha e sua programação estética foi
declarada na cartela onde, após a palavra British (britânicos), a palavra Images
(imagens) é riscada e substituída pela palavra Sounds (sons). O filme é com-
posto por seis longas seqüências: uma linha de produção de automóveis; uma
mulher nua andando por uma casa; uma manifestação direitista denunciando a
imigração, um grupo de trabalhadores falando sobre o capitalismo; um grupo
de estudantes de Essex, na Inglaterra, tentando escrever uma letra radical para
uma das músicas dos Beatles; e uma mão ensangüentada se esticando para al-
cançar uma bandeira vermelha. O som e a imagem nunca se encontram numa
relação convencional.
Enquanto seguimos pela interminável linha de produção de automóveis, ouvimos
seqüências de O Manifesto Comunista, mas estas são quase impossíveis de se
ouvir devido ao barulho ensurdecedor produzido pela linha de montagem que
não pára de trabalhar. A mulher nua anda em total silêncio pela casa, enquanto
um dos primeiros textos britânicos feministas, escrito por Sheila Rowbotham, é
lido na trilha sonora. Diferentemente da primeira seqüência, há um momento
em que o texto pode ser entendido como descrição da imagem, mas então a mu-
lher pega o telefone e começa a repetir algumas das palavras de Rowbotham,
num estranho contraponto com a voz over. O orador neofascista se dirige à
câmera na forma clássica de abordagem direta comum à televisão, mas é impos-
sível fazer uma leitura de som e imagem em conjunção, em parte pelo choque
sentido ao ouvir o racismo sendo articulado de uma posição de autoridade libe-
ral, e em parte porque as imagens da Grã-Bretanha que pontuam seu discurso,
no formato clássico da reportagem de notícias, não fornecem uma ”ilustração”
daquilo que ele está dizendo. A conversa sobre a política entre os funcionários de
15
uma fábrica de automóveis em Cowley, perto de Oxford, nunca combina o som
com a imagem; a câmera não focaliza a pessoa que está falando, somente aque-
las que estão ouvindo. Enquanto a seqüência com os estudantes de Essex não
tem nenhuma tomada de pessoas falando individualmente, a câmera filma o
grupo na sua procura pelos sons certos que irão transformar uma música dos
Beatles numa canção revolucionária. Mas, mesmo assim, o filme não fornece o
começo ou o fim que colocaria os esforços desses jovens dentro de um contexto
”compreensível”. É somente a última seqüência que sugere o casamento
entre som e imagem, quando um braço ensangüentado avança lentamente
pela neve para segurar uma bandeira vermelha, enquanto uma mistura de
canções revolucionárias forma a trilha sonora.
Sons britânicos foi produzido pela Kestrel Productions, uma empresa fundada por
Tony Garnett e outros cineastas esquerdistas para aproveitar o processo de
reavaliação de concessões enfrentado pela televisão britânica. Mo Teitelbaum,
esposa de um dos sócios, Irving Teitelbaum, teve a idéia de que a Kestrel
deveria juntar seis diretores europeus para fazer documentários sobre a Grã-
Bretanha. Mo conhecia Godard desde maio de 1968, quando Gérard Froman-
ger os apresentou, e eles se encontraram em Londres quando Godard estava
filmando One Plus One. Quando Mo apresentou a idéia, Godard concordou
sob a condição de que ela fosse sua assistente, e também que o filme fosse
produzido de modo não convencional.
Assim, os Teitelbaum viram sua pequena casa, no bairro de St. John’s Wood, se
transformar em sede de produção e cenário para duas das seqüências; e também,
sem querer, se viram administrando um hotel para a revolução 1 . Godard havia le-
vado junto com ele um estudante maoísta chamado Jean-Henri Roger, para que,
conforme explicou aos seus anfitriões, o filme pudesse ser feito de forma ”demo-
crática”. Mo Teitelbaum ficou impressionada ao ver o quanto Godard se
esforçava para imprimir suas credenciais revolucionárias nesse jovem. Roger havia
praticamente adotado Godard e Wiazemsky desde os eventos de maio, e isto não
agradava Anne Wiazemsky – ela não ficou nada satisfeita em ser tratada como mãe
adotiva por uma pessoa da sua idade, tampouco em ter Roger como hóspede
freqüente no apartamento deles 2 . Mas para ela, tudo isso fazia parte da grande
necessidade que Godard tinha de adular a juventude.
A convivência durante a produção foi difícil. O operador de câmera, Charles Stewart,
usava um bigode do tipo ”guidão de bicicleta” e envergava paletós de tweed.
Os Teitelbaum acreditam que Godard sentia-se quase que obrigado a provocar
discussões com uma pessoa de aparência tão burguesa. Além disso, havia o
problema de sempre: Godard era muito pouco inclinado a explicar o que queria.
16

[1 ] Além de Godard e Roger, havia vários outros visitantes de Paris, incluindo Daniel Cohn-Bendit e sua namorada.
[2 ] O próprio Roger diz que a situação era bem complicada, e que ele e Wiazemsky freqüentemente faziam piadas
às custas do “Pépé” (Vovô) Godard. Não pode haver dúvidas sobre a força da ligação entre o maoísta turbulento e
o cineasta de meia-idade. Roger casou-se com Juliet Berto, que viria a morrer tragicamente jovem, em 1990. Em
luto, Roger decidiu abandonar tanto a França como o cinema e ir para as Índias Ocidentais. Godard ligou pra ele e
o convidou para ir a Rolle, num esforço para dissuadi-lo. Roger passou dois dias na Suíça, durante os quais Godard
não disse uma palavra. Quando Godard foi deixá-lo na estação de trem, disse a ele: “Sabe – você não pode ir para
as Índias Ocidentais, porque isso vai me deixar sem ninguém para conversar”.
Nas palavras de Irving Teitelbaum, ”tudo estava na cabeça dele, mas se você
não estava dentro da cabeça dele, então a culpa era sua”. Algumas discussões
eram mais engraçadas. Os Teitelbaums eram membros de um grupo trotskista,
e quando Godard conheceu o líder, Gerry Healey, este o informou que ele
estava ”no negócio de esmagar os negócios”. ”Ah,“ disse Godard, ”então você
está no mesmo ramo”. Isso levou a aproximação maoísta/trotskista a uma
conclusão muito rápida.
Para Mo Teitelbaum, a filmagem foi dominada pela ”frustração e pelo desespero de
que o significado de 1968 houvesse enfraquecido na França, e por um desejo
desenfreado de recriá-lo e redescobri-lo”. Quando eles foram até Essex, que
naquela época era tida como uma universidade revolucionária, Godard ficou
”horrorizado ao ver quão comportados eram os estudantes”. Alguns estudantes
mais politicamente ativos foram rapidamente reunidos, mas a decepção de
Godard era tão grande e tão visível que Teitelbaum até cogita a possibilidade de
que algumas das pessoas filmadas acabaram por fundar a assim chamada
Angry Brigade (Brigada Raivosa), o único grupo terrorista da Grã-Bretanha,
cuja origem pode ser rastreada pelas emoções daquele dia.
O filme conseguiu seus quinze minutos de fama devido à longa seqüência em que
uma mulher nua anda pelas dependências de uma casa. Apesar de não haver
nenhum conteúdo erótico ou pornográfico na cena, a London Weekend Televi-
sion, através da qual a Kestrel estava fazendo o programa, se recusou a exibi-lo.
A idéia de Godard para esta seqüência veio quando Mo Teitelbaum mostrou a
ele uma matéria de Rowbotham na revista esquerdista Black Dwarf. Este foi um
dos primeiros textos sobre a liberação da mulher na Inglaterra, e Godard ime-
diatamente decidiu incluí-lo em seu filme. Sheila Rowbotham relembra seu
encontro com Godard em suas memórias sobre os anos 1960:

A idéia dele era me filmar sem roupa, recitando palavras sobre a


emancipação, enquanto eu subia e descia um lance de escadas – a supo-
17
sição era que, depois de um tempo, a voz iria se sobrepor às imagens do
corpo. Isto me deixou desconfortável por dois motivos. Meu número era
36 e eu achava meus seios flácidos demais para a moda dos anos 1960.
Ser fotografada, deitada e sem roupa, não era problema, mas a idéia de
ficar andando escada abaixo me deixava constrangida. Além do mais,
embora eu não considerasse a nudez um problema em si, os primeiros
grupos de mulheres eram contra o que chamávamos de ”objetifica-
ção”… Por que diabos a danada da mente masculina pulava tão rapida-
mente da conversa sobre libertação para a nudez, eu me perguntava….
Godard veio até Hackney (um bairro na zona leste de Londres) para me
convencer. Ele se sentou no chão de madeira lixada do meu quarto, um
homem franzino e de compleição escura, seu corpo retorcido em nós
persuasivos. Nem o homem Godard, e nem o Godard criador mitológico
de Acossado, foram fáceis de contentar. Eu sentei desconfortavelmente
ao pé da minha cama e declarei: ”Eu acho que se tem uma
mulher sem roupa na tela, ninguém vai prestar atenção nas palavras”,
assim sugerindo que talvez ele pudesse filmar os nossos adesivos com
os dizeres “This Exploits Women” (Isto Explora as Mulheres) no metrô.
Godard me lançou um olhar terrível, seus lábios retorcidos. ”Você acha
que eu não consigo deixar uma boceta desinteressante?”, ele exclamou 3 .
Nós estávamos presos num momento etnográfico efêmero.

No final, chegamos a um acordo. O Electric Cinema tinha acabado de ser


inaugurado no bairro de Notting Hill e precisava de dinheiro. Uma
jovem (com seios pequenos) de lá concordou em subir e
descer a escada, e eu fiz a locução. Quando Sons britânicos foi exibido
na França… a platéia aplaudiu quando eu declarei: “Eles nos dizem o
que nós somos… Simplesmente não existe a consciência de ‘homens’
que são autores, de ‘homens’ que são cineastas. Eles são apenas ‘auto-
res’, apenas’cineastas‘. A imagem refletida para as mulheres, criada por
eles, será absorvida diretamente pelas próprias mulheres. Estas persona-
gens ‘são’ mulheres.” Quanto à intenção de Godard de tornar uma boceta
desinteressante, não posso dizer nada, exceto que um amigo envolvido no
socialismo internacional me contou que seu primeiro pensamento
tinha sido ”mulher gostosa” – até perceber que a tomada se repetia... e
se repetia… e se repetia; então ele começou a escutar 4 .

A última seqüência do filme, em que o desejo de revolução triunfa quando um braço


18
ensangüentado se arrasta pelo chão coberto de neve para alcançar uma bandeira
vermelha, foi filmada no quintal dos Teitelbaum. Quando foi sugerido que
o braço estivesse sangrando, Teitelbaum se ofereceu para dar um pulo na sede da
Kestrel, onde havia um frasco de sangue artificial. Godard disse para não se pre-
ocupar com isso e cortou o próprio braço para fornecer a “cor” para a cena final.

[ 3 ] Godard disse que não usou esta frase.


[ 4 ] Sheila ROWBOTHAM. Promisse of a Dream: Remembering the Sixties. London, Penguin, 2000. pp. 220-221.
Godard fez seu filme seguinte na antiga Tchecoslováquia, quase que imediatamente
após deixar a Grã-Bretanha. O pedido veio de uma emissora de televisão da Ale-
manha Ocidental, que solicitou um documentário sobre a Tchecoslováquia seis
meses depois da invasão soviética, em agosto de 1968. Mais uma vez, Godard
foi acompanhado por Jean-Henri Roger, mas agora eles estavam também com
Paul Burron, o operador de câmera que Godard queria usar para filmar Sons
britânicos. O filme se chama Pravda, que em russo significa verdade, e era tam-
bém o nome do jornal oficial da União Soviética. Este filme é até mais
explícito que Sons britânicos em sua negação dos padrões convencionais para
documentários e seu ceticismo sobre a possibilidade de encontrar alguma
verdade na imagem. Seu ataque a todas as ideologias de visão é muito mais
explícito do que no filme anterior de Godard, em que as seqüências longas de
fato levam a um considerável conteúdo de verdade. (Até não seria difícil imagi-
nar Sons britânicos como sendo uma refilmagem mais bem sucedida de One
Plus One.) Pravda é uma negação de tais luxos.
A tomada inicial da Tchecoslováquia é acompanhada por um comentário semi-irônico
que enfatiza o ”revisionismo” da sociedade tcheca. O ”cinema direto” de Sons
britânicos foi substituído por um formato de documentário convencional para a
televisão, com relação direta entre som e imagem, mesmo que esse
som – ”Muitos trabalhadores preferem lavar seus carros a comer suas esposas”
– se encontre fora das normas de televisão. Mas essa seção de abertura é logo
descartada como sendo uma mera ”projeção cinematográfica sobre a viagem”.
O filme então começa a desenvolver sua análise racional da situação política,
enquanto, ao mesmo tempo, destrincha as relações normais entre som e ima-
gem que transmitem a informação nos documentários de televisão.
Conforme a câmera focaliza numa conversa entre trabalhadores tchecos, no lugar da
usual locução dublada somos informados que, ”se você não fala tcheco, é bom
que aprenda rápido”. De forma semelhante, uma conversa sobre o campesi-
nato é acoplada a uma imagem de camponeses carregando feno, enquanto a
19
câmera faz um zoom in e um zoom out. Em termos convencionais, esse zoom
significa nossa aproximação da realidade, mas há uma total desconexão entre
o comentário e o zoom, de modo que nós nos tornamos cientes deste como
sendo uma mera alteração da distância do objeto filmado, e a alteração não
nos fornece nenhum conhecimento real.
Em certo nível, os problemas do filme são os problemas da distorcida corrente
maoísta na Tchecoslováquia, que foi contra a invasão russa, e mais contra
ainda à liberalização tcheca que a precedeu, sendo ambos exemplos do peca-
do mortal do ”revisionismo”. Mas são estes problemas que permitem uma
desconstrução hilariante das convenções do documentário televisivo, um
ataque feroz ao dogma do “ver para crer”.
Enquanto editava esses filmes, Godard passava bastante tempo discutindo a respeito
dos mesmos com outro jovem maoísta, Jean-Pierre Gorin. Gorin não acompa-
nhava as filmagens e nem freqüentava as salas de montagem, pois estava
hospitalizado por ter sofrido um grave acidente de moto. Mas vinha
conversando com Godard sobre cinema há mais de dois anos. Eles se conhe-
ceram num jantar oferecido por Yvonne Baby, crítica de cinema do Le Monde,
quando Godard estava filmando A chinesa. Gorin tinha acabado de começar a
trabalhar como crítico literário no Le Monde. Ele estava com 23 anos de idade
e, conforme os comentários, era tão brilhante quanto charmoso.
Apesar de não ter conseguido uma vaga na Ecole Normale Supérieure, as aulas
preparatórias na Louis le Grand fizeram com que se engajasse profundamente
com novas correntes de pensamento, fosse o marxismo althusseriano ou o
estruturalismo literário.
Para Godard, ele aparentava ser “alguém melhor do que eu em pensamento e filosofia”.
Ao final da noite na casa de Baby, Godard disse a Gorin que eles deveriam se
encontrar para conversar outra vez. Eles se encontraram diversas vezes, e em
uma dessas ocasiões, Godard deixou Gorin atônito ao mostrar-lhe não somente
Duas ou três coisas que eu sei dela como também um trailer que ele havia
editado para o filme Mouchette, a virgem possuída, de Bresson, um trailer que
segundo Gorin era ao mesmo tempo ”puro Godard e puro Bresson”.
Gorin, como tantos jovens esquerdistas daquela época, tinha uma verdadeira paixão
pelo cinema. A cinefilia dos anos pós-guerra ainda era uma realidade; o Quar-
tier Latin tinha vários cinemas de repertório e, além desses, também existia a
nova revista Cahiers, editada por Rivette. Para Gorin, a Cahiers representava
um elo entre a alta e a baixa cultura, juntando as duas de forma inovadora –
era o ”novo paradigma”. A associação entre Gorin e Godard estreitou-se quando
ele foi despedido do Le Monde, no início de 1968, porque não conseguiu
20
escrever uma matéria sobre Cuba, e pediu que Godard lhe desse emprego.
Naquela época, Godard trabalhava num projeto para produzir 24 horas de
filmes, das quais duas ele mesmo planejava filmar, enquanto as
restantes seriam feitas por terceiros. Godard sugeriu que Gorin poderia fazer
um dos filmes: “Eu te pago por semana”. Gorin ficou aterrorizado com o mon-
tante de dinheiro envolvido e deu para trás. Ao invés de receber semanalmen-
te, ele se retirou para escrever um roteiro inteiro, mas quando voltou
para apresentá-lo, descobriu que o projeto havia desmoronado em meio a um
bombardeio de recriminações.
Apesar disso, as conversas entre os dois continuavam, e quando Godard estava
prestes a ir à Itália para fazer seu próximo filme, Vento do Leste, estrelando Anne
Wiazemsky e Gian Maria Volonté, ele insistiu que Gorin o acompanhasse. Os
médicos disseram enfaticamente que Gorin tinha de ficar. A solução encontra-
da por ele foi mandar Raphäel Sorin em seu lugar. Sorin era um dos
amigos mais íntimos de Gorin; eles haviam freqüentado juntos a escola Louis le
Grand, onde o fato de os dois terem mães judias representava um laço forte,
e falavam em fundar uma produtora coletiva de filmes. As recordações de
Sorin sobre a filmagem de Vento do Leste fazem com que esta pareça ter sido
um pesadelo cômico em que todas as desilusões coletivas de 1968 foram des-
tiladas na sua forma mais pura.
O dinheiro foi fornecido por um milionário radical italiano e parece ter sido de origem
duvidosa – Sorin lembra-se de ter transportado enormes volumes de dinheiro
da França para a Itália. Existiam muitos rumores sobre o paradeiro final do
dinheiro que financiou Vento do Leste – talvez o mais encantador seja o que diz
que o dinheiro foi usado para montar um bar para travestis em Milão. Um
aspecto ainda mais desastroso é que o filme deveria ser feito de forma ”demo-
crática”, ou seja, através de reuniões coletivas (assemblée générale). Se havia
um tema unificador do movimento estudantil no final dos anos 1960, esse era
a desconfiança de qualquer tipo de órgão representativo. O slogan de Lenin,
”Todo poder aos sovietes”, foi usado como mera estratégia para destruir as
instituições de democracia representativa, mas dentro dos movimentos estu-
dantis após 1968, uma crença na democracia direta determinava que todas as
decisões precisavam ser tomadas em enormes e desengonçadas assembléias
coletivas. Nos primeiros momentos de ”liberdade de expressão” em Berkeley,
ou nos dias das barricadas em Paris, as assembléias coletivas talvez fossem uma
inovação empolgante e libertadora, mas isso rapidamente se tornou um fórum
repetitivo e impossível de controlar, aberto para todo tipo de oportunismo e
uma eterna forma de chantagem moral baseada na premissa ”eu sou mais de
21
esquerda do que você”.
Anne Wiazemsky, que sempre se mantinha cética perante toda retórica revolucionária
mais desenfreada, não acreditava muito que o filme pudesse ser feito dessa
maneira. A sucessão de reuniões colocou os anarquistas, liderados por Cohn-
Bendit, o ”garoto propaganda” de 1968, contra os maoístas. Independentemen-
te de suas descrenças nas instituições da democracia representativa, os anarquistas
não eram contra a representação em si; eles queriam um faroeste de esquerda
que pudesse representar a luta de classes no gênero mais popular possível. Os
maoístas, versados em Althusser e Brecht, não queriam nada disso. Nas
palavras do filme Sons britânicos, ”se você produzir um milhão de cópias de um
filme marxista-leninista você chega a E o vento levou”. Não podia haver questio-
namento quanto ao uso da forma padrão de narrativa, quanto a permitir que
som e imagem se tornassem compreensíveis para uma platéia sem embasa-
mento. Eles somente podiam fazer um filme militante que agisse como uma
“lousa” para uma platéia militante – um ponto de partida para o pensamento.
O impasse foi resolvido quando Godard intimou Gorin. Ele telefonou para o hospi-
tal em Paris e disse: “Ou você vem fazer o filme comigo, ou eu encerro os
trabalhos. Tem uma passagem já paga esperando você na Alitalia“. Os médicos
de Gorin tentaram impedi-lo de partir, mas ele chegou à Itália. Em Roma, ele
se hospedou no mesmo hotel que Godard e, portanto, encontrava-se numa
posição privilegiada durante as caóticas semanas finais de filmagem. Foi
nesta época que o relacionamento entre Godard e Gorin entrou na sua fase
mais produtiva e intensa, que durou até 1973, e na qual eles produziram
cinco filmes juntos: Vento do Leste, Lutas na Itália, Vladimir e Rosa, Tudo vai
bem e Carta para Jane.
Em Vento do Leste eles prevaleceriam juntos, no que Wiazemsky chamou de putsch 5 ,
após o qual o ceticismo inicial de Wiazemsky se tornou ainda mais forte. Tudo que
restou do filme de faroeste de Cohn-Bendit, que almejava a greve dos mine-
radores como seu foco narrativo, são alguns fragmentos de narração na trilha
sonora no começo do trecho de abertura. Em vez de representar uma greve
específica em imagens específicas, o filme pergunta o que seria a representação
de qualquer greve. Talvez a seqüência chave seja uma assembléia, não de mine-
radores grevistas, mas da equipe de produção discutindo a idéia de usar ou não
uma imagem de Stalin no filme. A segunda voz na trilha sonora (em Vento do
Leste o som é ainda mais dominante do que em Sons britânicos ou Pravda)
afirma que, assim como as assembléias devem ser analisadas em termos de suas
circunstâncias específicas – de quem são a favor e de que são contra – as ima-
gens devem ser analisadas da mesma maneira. A imagem de Stalin é
22
utilizada pelos capitalistas para representar a repressão, mas do ponto de vista
revolucionário, esta é uma imagem repressiva que inibe uma análise adequada
de Stalin como um fenômeno político. Vento do Leste é o mais experimental da
série de filmes maoístas; é o mais coerente na sua aplicação da política althusseriana.

[ 5 ] Godard e Gorin dão uma descrição similar numa entrevista americana. Gorin: “ O que aconteceu foi que os dois

marxistas que realmente estavam querendo fazer o filme tomaram o poder”, e Godard: “Todos os anarquistas foram
à praia”. Michael GOODWIN; Tom LUDDY e Naomi WISE. op. cit.
Os seis ou sete meses seguintes, primeiro em Roma e depois em Paris, represen-
taram um intenso período de discussão e experimentação. Para Gorin,
Godard funcionava como um sismógrafo; ele havia previsto o terremoto de
1968, mas agora o terremoto já havia passado e ele tinha de se reinventar.
Como conseqüência, estava aberto a idéias e receptivo a um jovem cheio de
ideais. Ao falar de sua colaboração com Gorin e o amplo domínio de Gorin
sobre a teoria contemporânea, Godard fala em termos de som (“Eu não tinha
conhecimento daquilo que foi gravado”), pois é o som que está no centro
destes filmes experimentais. Para Gorin, o foco no som tinha muitos fatores
determinantes – econômicos, políticos e tecnológicos.
O final dos anos 1960 foi um período em que a tecnologia dos equipamentos de som
se desenvolveu rapidamente, especialmente a capacidade de mixar mais de um
canal numa faixa. Politicamente, não existia nenhum desejo de reverter o
desdém generalizado pelo som, um desdém refletido no fato de que o
operador de som direto sempre ganhava muito menos que o diretor de fotogra-
fia. Também existia um verdadeiro prazer pelo didatismo. Economicamente, era
muito mais fácil experimentar com o som do que com a imagem. Tudo isso veio
para colocar ênfase sobre a edição e o som, em vez da filmagem e da imagem,
ênfase que Godard manteve quando voltou a fazer filmes mais convencionais.
Para Godard, a desconfiança da imagem tinha um componente mais
pessoal. Ele associa Vento do Leste com o final de seu relacionamento com
Wiazemsky. A diferença de idade e o mesmo ciúme 6 que infernizou seu casamen-
to com Karina foram fatores importantes, mas o problema também era que am-
bas as mulheres haviam chegado a ele como imagens – eram criações da
tela, e não mulheres de verdade. De fato, Godard não se retirou do aparta-
mento na Rue Saint-Jacques (para o qual eles tinham mudado três dias antes
do primeiro distúrbio público de maio de 1968) até fazer a montagem de Jusqu’à
la victoire (Até a vitória), mas a produção de Vento do Leste parece ser, consen-
sualmente, uma linha divisória.
23
Godard estava tão entusiasmado com a colaboração de Gorin que eles resolveram
assinar Vento do Leste com o nome coletivo de Grupo Dziga Vertov. A pri-
meira vez que Gorin mencionou a idéia de um grupo coletivo Dziga Vertov
foi para Raphaël Sorin, no começo de 1968, quando Godard pediu que ele
escrevesse um roteiro para o malfadado projeto de 24 horas de
filmes. Dziga Vertov foi um cineasta soviético do período revolucionário, cujo

[ 6 ] Para Wiazemsky, o ciúme obsessivo de Godard foi a maior causa do fim do casamento.
trabalho enfatizava tanto a montagem como a importância da luta de classes
em andamento 7 . Num certo nível, a escolha de Vertov foi uma provocação
deliberada. Não sabiam todos que Eisenstein era o grande cineasta revolucio-
nário? Em 1969, a provocação era forte; Vertov não era a figura canônica que é
hoje. Mas tinham motivos tanto políticos quanto estéticos para escolher Vertov.
Politicamente, isto possibilitava a condenação de Eisenstein pela sua decisão
em 1924, de fazer um filme histórico sobre o Potemkin, ao invés de se concen-
trar na luta de classes. Isso se encaixava com a linha althusseriana de dizer que
a revolução soviética só começou a desandar no meio da década de 1920. Mais
importante era a distinção estética entre a noção de Eisenstein de que a mon-
tagem era, primeiramente, um processo de edição, e a prática de Godard e
Gorin, para quem a justaposição dos elementos diferentes era necessária em
cada fase da filmagem, desde a escolha do material a ser filmado à própria
filmagem, bem como na assim chamada edição.
A idéia de organização coletiva não era incomum. O período entre o final dos anos
1960 e início dos anos 1970 testemunhou várias tentativas, em todo o Ocidente,
e em todos os níveis, do doméstico ao profissional, de estabelecer formas de
organização não baseadas no indivíduo. O desejo por tais organizações era geral-
mente político, e resultado do desgosto pelo individualismo ocidental;
o seu fracasso geralmente catastrófico é um elemento crucial na atual inabilidade
de imaginar relações sociais a não ser na sua forma hiperindividualizada. Qualquer
tentativa de analisar este desejo ou este fracasso vai muito alem do escopo deste
livro. Mas para Gorin a idéia de uma organização coletiva estava no ar desde
que adquirira consciência política; e o Slon, grupo de Chris Marker, bem como a
colaboração entre Deleuze e Guattari, ofereceram modelos contemporâneos.
Existia também uma ressonância específica dentro do filme – um ataque à própria idéia
do autor. Ao mesmo tempo em que a Cahiers se ocupava com a promoção da
idéia de autor, o estruturalismo atacava a mesma, e em 1967 tanto Barthes
como Foucault publicaram ensaios famosos na intenção de deslocar a noção de
24
autor como uma consciência individual autônoma. Barthes argumentava que
esse conceito obscurecia os códigos e as linguagens que um escritor usava e que
não criara. Foucault enfatizava que falar de um autor imutável obscurecia as prá-
ticas (legais, comerciais etc.) que definiam a noção de mudança de um autor.

[ 7 ] Vide Georges SADOUL. Prefácio de Jean Rouch. Dziga Vertov. Paris, Editions Champs Libres, 1971. Annete

MICHELSON (ed.) Kino-eye: The Writings of Dziga Vertov. Berkeley e Los Angeles, University of California Press, 1984.
Vlada PETRIC. Constructivism in Film: The Man with a Movie Camera. Cambridge, Cambridge University Press, 1987.
Independentemente da acuidade destes ataques ao conceito literário de autor,
herdado dos românticos, uma boa parte da sua força se perdeu com a Cahiers.
A Cahiers foi a primeira revista a produzir uma teoria sobre o autor do ponto
de vista da platéia e, como resultado, enfatizou os códigos específicos do cine-
ma (de fato, era através dos códigos que se encontrava o autor) e as práticas
legais e comerciais que posicionavam os autores em relação às condições de
produção e distribuição. Partindo de outra perspectiva, a ênfase dada pela
Cahiers ao autor chegava a glorificar o indivíduo em termos românticos tradi-
cionais, e se os românticos glorificaram o autor às custas do leitor, a
Cahiers acrescentava insulto ao injúrio, ao negligenciar todas as outras pessoas
que trabalhavam num filme.
A questão de como as decisões são tomadas no set era, segundo Claude Nedjar,
uma obsessão de Godard desde o meio da década de 1960. Para Nedjar, a par-
te excitante do grupo Dziga Vertov era que, desta vez, as decisões não
ficariam com uma pessoa somente 8. Numa entrevista que deu a Mike Dibb
em 1968, enquanto filmava a seqüência da “Eve Democracy” para One Plus
One, Godard deixou claro o quanto não gostava que o diretor tomasse todas
as decisões de maneira ”fascista”. O ideal utópico era que todos os
50 membros da equipe deviam participar. Este ideal utópico não foi
abandonado por Godard até o começo da década de 1980 e as experiências
de Passion e Prénom Carmen. O que nunca foi abandonado é o ideal de
colaboração. Em retrospecto, para Godard, a colaboração foi a chave para a
Nouvelle Vague, e em Gorin ele encontrou alguém cuja vontade de colaborar
se comparava à sua.
O grande problema que confrontava a colaboração, problema que Gorin
caracteriza em termos de ”angústia”, era o da platéia. O enorme ponto fraco da
posição do Dziga Vertov era presumir que a política revolucionária
proveria uma outra platéia. Podia-se criticar a platéia de E o vento levou por
aceitar uma falsa união entre som e imagem, mas essa crítica dependia da
25
possibilidade de haver uma outra platéia, uma platéia militante, para a qual a
tela seria o quadro-negro e a trilha sonora, nada mais que o início de um
diálogo. Na verdade, quando Godard e Gorin fizeram um filme que realmente
tentava atingir os estudantes militantes, além de a emissora que solicitou o
trabalho se recusar a exibi-lo (sob o agora previsível pretexto de que não era

[8 ] Christine Aya, que trabalhou como montadora em todo o material do Grupo Dziga Vertov, enfatiza a natureza
alegre do trabalho colaborativo.
suficientemente político) o filme também não conseguiu conquistar qualquer
tipo de platéia politizada. O nome Lutas na Itália pode evocar imagens de
estudantes e trabalhadores em confronto com a polícia, mas, para o Grupo
Dziga Vertov, a luta foi sempre entre o som e a imagem. Mais de 30 anos
depois, ainda é motivo de risos para Gorin o fato de o filme ter sido feito
quase que inteiramente em Paris, porque todo o ímpeto de sua análise
se encontra no fato de que é impossível “ver” uma situação social. Se a
jovem estudante italiana, protagonista do filme, se torna uma revolucionária, é
através do exame repetitivo de uma série muito pequena de imagens; através
da reflexão a respeito das mesmas, ela entende como sua própria subjetivi-
dade é constituída pela luta das classes 9.
O filme é tranqüilamente o trabalho mais político e teoricamente coerente do Grupo
Dziga Vertov. Pelo menos em parte, porque é baseado quase que inteiramente,
na reação do próprio Althusser aos eventos de maio de 1968, descrita no seu
ensaio Ideology and Ideological State Apparatuses (Ideologia e aparelhos
ideológicos do Estado) 10. Althusser foi junto com a esposa assistir ao filme na
sala de montagem, na Rue de Rennes e, segundo Gorin, chorou.
Althusser pode ter se emocionado muito, mas não constituía uma platéia grande.
O único lugar onde tamanha platéia podia ser encontrada era nos campi
americanos. Quando Godard fez uma turnê com o filme A chinesa, em 1968, a
viagem incluiu uma mostra no Pacific Film Archive, onde o curador Tom Luddy
organizara uma retrospectiva total. Luddy foi estudante de Berkeley, o epicentro
do movimento antiguerra, e era filiado ao Maoist Progressive Labour Party (Par-
tido Trabalhista Progressista Maoísta). Ele acompanhou Godard a Los Angeles,
onde King Vidor, Jean Renoir e Fritz Lang estiveram presentes numa exibição de
A chinesa e participaram de uma manifestação pela liberdade de Huey Newton,
na cadeia de Oakland 11. 26

[ 9 ] Para uma análise mais extensa de Lutas na Itália e de outros filmes do (grupo) Dziga Vertov, vide Colin MACC ABE,

Godard: Images, Sounds, Politics., capítulos 3-5.


[ 10 ] Ideology and Ideological State Apparatuses (Notes Towards an Investigation). In: Lenin and Philosophy and

Other Essays. Traduzido por Ben Brewster. London, New Left Books, 1971. pp. 121-173. O ensaio foi escrito no
começo de 1969 e publicado primeiramente na França, em abril de 1970. Gorin o leu logo após ter sido escrito e
antes de filmar Lutas na Itália, em dezembro de 1969. A maior parte do filme foi filmada no apartamento de Godard
e Wiazemsky, na Rue Saint-Jacques, embora tenha havido algumas tomadas em Roma e Milão.
[ 11 ] Godard ficou imediatamente fascinado pelos Black Panthers (Panteras Negras). Quase todas as suas cartas e

telegramas a Luddy durante os dois anos seguintes incluíam pedidos de material dos Panthers e este material é ime-
diatamente refletido em One Plus One.
Luddy se tornou a conexão americana de Godard e foi ele quem organizou a primeira
de uma série de turnês do Grupo Dziga Vertov na primavera de 1970. Havia
um motivo financeiro para isso. As solicitações das emissoras de televisão eram
pouco lucrativas e o cachê de mil dólares para falar em cada evento que Luddy
arrumou foi uma adição significante aos fundos do Grupo Dziga Vertov. Para
Gorin, pelo menos, isto satisfez a necessidade desesperada de uma platéia.
De acordo com a leitura das histórias a respeito das visitas de Godard e Gorin na
imprensa underground da época, não se pode dizer que a platéia foi muito
receptiva, mas era enfim uma platéia – e uma que certamente se gabava de um
radicalismo compartilhado.
Os Estados Unidos forneceram uma resposta parcial ao problema platéia, mas uma so-
lução mais satisfatória, de acordo com o esvaziamento da maré revolucionária nos
Estados Unidos e na França, foi filmar uma revolução verdadeira. A guerra de 1967
entre árabes e israelenses havia radicalizado os palestinos de forma violenta. Após
duas décadas de espera pela solução dos seus problemas por parte dos Estados
árabes, os palestinos se encontravam sem a margem esquerda do rio Jordão, que
havia sido ocupado pelos israelenses. Uma grande quantidade de facções revolu-
cionárias surgiu na Jordânia e começou a criar um Estado dentro do Estado.
Godard e Gorin concordaram com um pedido da Liga Árabe para fazer um filme
sobre a situação palestina e, no início de 1970, passaram bastante tempo na
Jordânia, com Godard freqüentemente voltando de avião para a França para ver
Wiazemsky. Para o Grupo Dziga Vertov não havia a questão de simplesmente
“encontrar imagens”, o erro de Sons britânicos e Pravda; o esforço crucial era
“construir” as imagens, praticar a montagem antes da filmagem. Mas estes
esforços foram atrapalhados pelo fato de que nem Godard nem Gorin falavam
árabe. Eles se viram freqüentemente escutando um discurso longo e complicado
só para depois ouvir o intérprete traduzi-lo em poucas palavras: “Nós lutaremos
até a vitória”.
No final, Jusqu’à la victoire se tornou o nome do filme, mas antes que eles pudessem
27
terminar a montagem, o dinheiro fornecido pela Liga Árabe se esgotou. A saída
foi aceitar a oferta de uma emissora alemã para fazer um filme sobre o julga-
mento conspiratório em Chicago, quando, depois dos distúrbios públicos na
Convenção Democrata de 1968, diversos radicais foram a julgamento sob acu-
sações falsas. Em entrevistas nos campi americanos naquela época, Godard e
Gorin deixaram claro que não tinham muito interesse por Vladimir e Rosa,
como eles o chamavam; que este era apenas um instrumento para financiar o
filme palestino, e tal atitude transparece no que é claramente a menos interes-
sante das experiências do Grupo Dziga Vertov.
Mas se Vladimir e Rosa foi uma bagunça que passou por uma arrumação rápida, um
destino muito pior esperava Jusqu’à la victoire. Enquanto Godard e Gorin filma-
vam e montavam, a situação política se tornou cada vez mais volátil, com muitas
vozes palestinas clamando por uma derrubada revolucionária do Rei Hussein e
a tomada do Estado jordaniano como prelúdio de uma guerra generalizada
contra Israel. De fato, a situação estava tão volátil que Godard pediu que Clau-
de Nedjar, que agora trabalhava como produtor de todos os filmes do Grupo
Dziga Vertov, providenciasse uma porta blindada para a sala de montagem.
Nesta época, Godard já havia saído do apartamento na Rue Saint-Jacques e dor-
mia na sala de montagem. Essa conjunção tão imediata de vida e trabalho,
como muitos outros elementos do período Dziga Vertov, trouxe seus frutos
mais tarde. Em retrospecto, Godard viu isto como sendo uma espécie de imitação
da clínica de seu pai12 . Os eventos na Jordânia evoluíram com muita rapidez.
No outono daquele ano, Hussein lançou um ataque contra a revolução
palestina e muitos palestinos morreram num mês que ainda leva o nome de
Setembro Negro. A vitória da revolução se tornou a mais amarga das derrotas.
A esta altura, boa parte do entusiasmo inicial com Vento do Leste tinha se
dissipado. Existia um desejo por parte da dupla Godard e Gorin de aumentar
o grupo, e esforços foram feitos com Gérard Martin e Nathalie Biard,
ex-amante de Gorin, para aumentar a participação ativa, mas estes não
foram bem-sucedidos 13 . Finalmente, desiludidos, eles decidiram fazer um
filme mais comercial.
Uma das maiores ênfases do Grupo Dziga Vertov era a primazia da produção, mas
seus filmes não eram vistos; agora eles fariam um filme que seria distribuído.
Nos primeiros meses de 1971, com a ajuda do carismático produtor Jean-Pierre
Rassam, eles montaram um filme, Tudo vai bem, financiado pela Gaumont, que
examinava a luta de classes na França quatro anos depois de 1968. Yves Mon-
tand, um dos grandes astros do cinema francês, foi convocado junto com Jane
Fonda, que naquela época estava no auge de sua carreira14 . Ambos eram co-
28
nhecidos ativistas de esquerda. Tal era o poder do nome de Godard e tão

[ 12 ] Entrevista, Jean-Luc Godard, dezembro de 1988.


[ 13 ] O Grupo Dziga Vertov não emitia carteirinhas de membros, mas os nomes a seguir foram associados a ele, por
algum tempo: Paul Bourron, Jean-Pierre Gorin, Armand Marco, Gérard Martin, Isabelle Pons, Jean-Henri Roger,
Raphäel Sorin, Anne Wiazemsky. Bourron e Marco eram operadores de câmera. Se as mulheres participaram do
grupo, isso é discutível. Claude Nedjar sempre atuou como o produtor.
[ 14 ] Ela ganharia o Oscar no ano seguinte (1972) por Klute, o passado condena (dir. Alan Pakula).
atraente a possibilidade de fazer um filme político comercial com ele que os
dois concordaram em trabalhar sem adiantamento de cachê e só com a partici-
pação nos lucros.
Também havia uma parte americana no negócio, e no dia 9 de junho de 1971,
Godard e Gorin estavam prestes a pegar um avião para Nova York com o
propósito de assinar contratos com Frank Yablans, da Paramount. Eles se encon-
traram na Rue de Rennes, onde Gorin descobriu que havia deixado seu passa-
porte em casa. Concordaram em se encontrar no aeroporto, mas antes Godard
queria passar numa livraria para comprar Meti – um texto de Brecht. Christine
Aya, a montadora que trabalhava com os dois na época, se ofereceu para
levar Godard na sua moto. “Não faça isso,” brincou Gorin, “você vai sofrer um
acidente.” No final da Rue de Rennes, um ônibus que estava entrando na rua
prendeu a moto e Godard debaixo da roda dianteira. Godard quebrou a bacia,
fraturou o crânio e sofreu várias dilacerações no corpo. Na primeira noite no
hospital, Gorin foi informado que seu parceiro certamente iria morrer. Ele só
recuperou a consciência depois de seis dias e entrou e saiu do hospital diversas
vezes durante mais de dois anos. A montadora também sofreu lesões graves.
Para Godard, isso foi “o final lógico de 1968”.
Mas ainda havia negócios a serem concluídos. O mais importante para Gorin era a
questão do seguro médico de Godard. Rassam telefonara para ele dizendo que
Jane Fonda estava saindo: “Ela evoluiu e não quer trabalhar com homens.” Se
ela saísse, o filme ruiria, e Godard não teria cobertura. Gorin foi visitá-la e
convenceu-a a permanecer no filme. Em dezembro, apesar de ainda estar em
tratamento, e com a perspectiva de mais internações hospitalares à sua frente,
Godard estava pronto para iniciar a filmagem. A trama de Tudo vai bem é
simples: um casal – um diretor de filmes e uma repórter de rádio – faz uma
visita a uma fábrica para que ela faça uma matéria sobre a situação atual da
França. Enquanto estão lá, eles se envolvem na ocupação da fábrica e são apri-
sionados junto com o patrão em seu gabinete. Tais “seqüestros” eram uma das
29
táticas esquerdistas preferidas após 1968. O efeito da visita induz o casal a
refletir historicamente sobre suas próprias vidas, e o filme termina com
a generalização de sua descoberta para toda a França.
A estrutura do filme é, de alguma maneira, parecida com a de Vento do Leste e de
Lutas na Itália, mas o conteúdo é fictício, apesar de distanciado. Tudo vai bem
foi inspirado não em Althusser, mas sim em Brecht. Ficamos cientes da câme-
ra, sempre fixa ou deliberadamente em movimento, sem panorâmicas ou
zooms; ficamos cientes do palco – a fábrica parece um cenário –, e ficamos
cientes dos atores, de Montand e Fonda como personagens, mas personagens
não muito diferentes de suas personalidades públicas. O filme constantemente
demonstra as condições da sua própria produção, especialmente na cena de
abertura dos créditos, em que o custo de cada item é escrito num talão
de cheques que vai ficando cada vez mais com menos folhas. A determinação
do Grupo Dziga Vertov de montar antes de filmar fez com que os trabalhado-
res da fábrica fossem jovens atores desempregados. Godard e Gorin acharam
que se usassem trabalhadores de verdade, estes ficariam tão intimidados pelos
astros que o filme não conseguiria retratar nada do atrito proletário/burguês,
necessário para animar a cena central. Mas atores desconhecidos contracenan-
do com astros era algo digno de ser filmado.
Trinta anos mais tarde, o filme ainda tem valor. Os mecanismos brechtianos realmen-
te funcionam – fornecendo tanto distância como engajamento – e o filme
fornece um retrato bastante fiel das insatisfações de trabalho, tanto na produ-
ção massificada como na mídia audiovisual. O problema, no entanto, continua
sendo a política. Onde a luta de classes dos maoístas e a ideologia althusse-
riana fracassaram, o filme oferece uma seqüência final em que os esquerdistas
saqueiam um supermercado (outra favorita, dentre as táticas contemporâneas).
De muitas maneiras, o filme funciona como uma elegia a um momento histó-
rico, mas falta a coragem dos seus próprios insights, que envolveria uma crítica
muito mais radical à política de esquerda.
Entre a montagem do filme e a veiculação do mesmo, um jovem militante maoísta,
Pierre Overney, foi morto a tiros no portão de uma fábrica da Renault. Seu
enterro se tornou a última grande manifestação de maio. Godard disse a Gorin
que esta era a platéia para seu filme, eles só precisavam achar uma maneira de
alcançá-la. Mas Althusser comentou, talvez com um pouco mais de presciência,
que os enlutados estavam ali “para enterrar o esquerdismo”.15 Tudo vai bem
nunca conseguiu definir se existia para enterrar ou exaltar, e seu final glorifica a
violência, que era um dos aspectos menos atraentes do esquerdismo. De fato,
mesmo em 1980, Godard disse: “Para mim, até hoje os terroristas continuam
30
sendo os herdeiros.” 16
A filmagem de Tudo vai bem foi infeliz e seu lançamento, um desastre crítico
e comercial. Como se para completar um círculo de tristeza, o filme

[ 15 ] Louis ALTHUSSER, L’Avenir dure longtemps. Paris. Stock/IMEC, 1992. p. 225. Em Le fond de l’air est rouge, Chris

Marker descreve o funeral de Overney como o “último cortejo”.


[ 16 ] Colin MACC ABE. op. cit., p. 75. Embora não existam registros de Godard ou Gorin ativamente apoiando o ter-

rorismo, Sorin conta uma estória hilariante e assustadora de Bourron querendo fazer uma bomba durante as filma-
gens de Vento do Leste. Sorin sugeriu que ele fizesse uma “muito pequena”; foi o suficiente para destruir o banheiro
do hotel onde eles estavam hospedados. Godard se refere à estória como uma lenda.
seguinte de Godard e Gorin, Carta para Jane, foi um ataque feroz à sua
estrela recente. O filme é composto de uma única imagem – uma fotografia
de Jane Fonda no Vietnã do Norte. O comentário, a “Carta para Jane”,
analisa a foto em termos da representação do mundo por parte da mídia
contemporânea. Também analisa a foto em termos da história do cinema – a
maneira como a expressão no rosto de Fonda, que é muito parecida com a
de seu pai Henry, é o equivalente em atuação do New Deal: preocupação
liberal benigna.
Para Gorin, o filme continua sendo um dos raros exemplos de um estudo sobre a
história da atuação cinematográfica, e ele defende a inteligência da análise.
Mas na época o filme foi percebido como um ataque feroz de dois homens a
uma mulher que não teve a chance de se defender. Trinta anos depois, ele pa-
rece confirmar o que Anne Wiazemsky lembra como a “misoginia” do Grupo
Dziga Vertov. Godard falou diretamente sobre a relação do grupo com as
mulheres numa entrevista americana:

A base para Lutas na Itália foi a tentativa de conciliar nossas vidas


pessoais com as nossas esposas. Tínhamos problemas como indivíduos,
mas estes eram relacionados ao problema geral. Então escolhemos, deli-
beradamente, um assunto que era fortemente relacionado à nossa ideo-
logia, porque, até quando falamos com a mulher pela qual estamos apai-
xonados, ou quando essa mulher fala conosco, isto é ideologia.

Nós tentamos, e foi um fracasso total, porque terminamos o filme


sozinhos. Nossas esposas pensaram naquela época que aquele era ape-
nas nosso trabalho – aquela coisa, “esse é o seu trabalho. Eu também
tenho meu trabalho, e este é o seu”. Tentamos fazer o filme para expor
o problema – não para resolvê-lo, mas apenas para expô-lo –, para dizer,
“Este é o nosso trabalho do ponto de vista técnico, sim, mas de um
31
ponto de vista mais generalizado é a nossa vida”. A tentativa de
trabalhar juntamente com as nossas esposas nos filmes, quando elas
nem se interessavam muito por filmes, era correta naquele momento 17 .

A fotógrafa do retrato de Tudo vai bem era uma jovem suíça, Anne-Marie Miéville
(creditada com seu nome de casada, Anne-Marie Michel), que Godard conheceu
em 1970. O relacionamento havia se intensificado durante a época em que ele

[17 ] Michael GOODWIN; Tom LUDDY e Naomi WISE., The Dziga Vertov Group. In: “America: an Interview with Jean-
Luc Godard and Jean-Pierre Gorin”, Take One, vol.2, n.10 (março-abril de 1970).
entrava e saía do hospital depois do acidente de moto, e Godard agora queria
encontrar maneiras de alcançar a idéia de um estúdio de verdade, um que
incluiria tanto Miéville como Gorin. A revolução havia terminado e as discussões
eram sobre o tipo de estrutura empresarial necessária para eles poderem realizar
suas ambições cinematográficas. Gorin confessa que essas discussões de negócios
o entediavam, mas elas resultaram na fundação de uma empresa, Tout Va Assez
Bien (Tudo vai mais ou menos bem), da qual ele era o representante legal.
A companhia tinha dois projetos iniciais, um filme escrito por Gorin, com o nome de
Ailleurs immédiat (Imediatamente em outro lugar), e um escrito por
Godard, chamado Moi, je. A injunção final de Tudo vai bem era “pensar sobre
si mesmo historicamente”, e ambos os filmes eram tentativas de fazê-lo, mas
com questões de subjetividade e sexualidade agora misturadas profundamente
com questões de política e história. O nome para o filme de Gorin foi tirado de
Georges Bataille, o grande teórico do erótico que morreu no início dos anos
1960, mas cujos pensamentos foram cruciais para Foucault, Derrida, Barthes
e para a revista Tel Quel. Ailleurs immédiat foi o primeiro filme da TVAB a
ser produzido.
Os sets dos filmes eram notórios pelo seu caos sexual. Ailleurs immédiat, com o ero-
tismo como seu assunto central, e com Gorin no papel principal e como
diretor, estava destinado a estabelecer recordes de caos. A atriz principal, que
estava tendo um caso com Gorin, transferiu suas atenções para uma outra
Mulher do elenco, e quando as duas mulheres decidiram que o diretor estava
se comportando de maneira machista, a filmagem implodiu 18 . Gorin foi para a
Califórnia, onde Tom Luddy estava esperando para cuidar dele e arrumar-lhe
um emprego, e o Grupo Dziga Vertov já era coisa do passado.
É difícil encontrar um maoísta no século XXI. Depois da morte do Grande Timoneiro*,
as terríveis realidades do Great Leap Forward** e da Revolução Cultural começa-
ram a aparecer. Quando a China e o Vietnã entraram em guerra no final dos anos
setenta, o marxismo-leninismo se tornou um termo histórico. Para completar
32
este quadro, o médico de Mao publicou suas memórias19 , que deixaram muito
clara a verdade da frase dita por Lorde Acton, “o poder tende a corromper, e o
poder absoluto corrompe absolutamente”. Mas se pensarmos no grande slogan

[ 18 ] Isabelle Pons. Entrevista, março de 2002.


[ * ] Mao Tse-Tung.
[ ** ] Período de grande crescimento econômico na China, entre 1957 e 1961. (N. do T.)

[ 19 ] Zhisui LI. The Private Life of Chairman Mao (A Vida Privada do Camarada Mao). New York, Random House, 1996.
de Mao, que nós devemos contar com nossas próprias forças, se considerarmos
a ênfase maoísta na negação de uma separação entre o trabalho intelectual e o
trabalho manual, ou sobre a necessidade de encontrar um equilíbrio diferente
entre o campo e a cidade, pode-se argumentar que a vida de Godard desde 1968
demonstra que, independentemente de quão poucos textos de Mao ele tenha
lido, ele os leu com muita atenção. Existia também um legado até mais duradouro.
O maoísmo francês havia se auto definido como uma “Nova Resistência”,
argumentando que o país ainda estava ocupado pelo capital. Esta é uma identifi-
cação que Godard nunca abandonou. A idéia de que o cinema foi vítima de uma
ocupação, uma ocupação a que ele deve resistir, é um dos temas mais recorren-
tes das entrevistas de Godard nas últimas três décadas.
Quanto aos filmes do Grupo Dziga Vertov, eles foram feitos para uma platéia
que não existia na época, e é difícil imaginá-los encontrando uma
verdadeira agora. Sua política parece grotesca, se não ofensiva, mas é
difícil imaginar uma crítica mais abrangente do mundo audiovisual de
informação, um mundo cujo domínio é muito maior hoje do que quando
os filmes foram feitos. Godard desenvolveu essas teses ao invés de
abandoná-las. A separação que Godard efetivou em 1968 nunca foi renun-
ciada; mas sim ampliada e intensificada. Seus filmes não geram muito
prazer, mas qualquer pessoa que queira fazer um documentário, consci-
entemente ou inconscientemente, vai utilizar técnicas, estratégias e proce-
dimentos que foram analisados brilhantemente nas obras do Grupo Dziga
Vertov. A colaboração com Gorin é reconhecida pelos dois como uma
colaboração real. Para Godard, Gorin dava-lhe o impulso quando ele
empacava: “Era uma maneira de continuar no ramo”. Disse Gorin sobre
Godard: “Eu lhe dava esperança quando ele não tinha nenhuma”.
Quanto a maio de 1968 em si, quem sabe o que as gerações futuras poderão
encontrar neste momento extraordinário – dentro de quais linhagens milenares
ele ainda poderá ser inserido, dentro de qual ladainha banal de idiotismo
33
trágico ele ainda poderá desaparecer? Godard disse que na realidade a Nouvelle
Vague (Nova Onda) foi a Última Onda, e 1968 certamente parece ter mais em
comum com um passado de insurreições (haviam existido barricadas em Paris
em quase todas as décadas desde 1789) do que com o futuro da mídia. Para
Raphäel Sorin, agora diretor da editora Fayard, a sua geração deixou a desejar
– na literatura, na política ou na filosofia. Certamente, se nós lembrarmos do
momento na Ecole Normale Supérieure em meados dos anos 1960, quando
Robert Linhart produzia Cahiers Marxistes-Léninistes e Jacques-Alain Miller
produzia Cahiers pour l’analyse (sendo que os dois foram colegas de classe de
Gorin e de Sorin na Louis le Grand), é difícil acreditar que o lugar de Linhart nos
livros de história seja um rodapé aos eventos de maio 20 , e o de Miller,
um rodapé na história da psicanálise21 . Possivelmente, até ainda mais surpreen-
dente e mais difícil de explicar, é a maneira como os pensadores daquela
época (especialmente Foucault e Derrida) se tornaram uma ortodoxia acadê-
mica paralisante nos Estados Unidos.
Talvez o verdadeiro legado de maio de 1968 seja um conjunto de perguntas.
No seu nível mais importante, o movimento estudantil era antiautoritário –
uma recusa ao policiamento sexual ou estético. De muitas formas, ele foi
muito bem-sucedido, mas isto era porque nadava junto com a correnteza do
capitalismo e não contra. Os eventos de maio fracassaram completamente
na tentativa de produzir estruturas alternativas. O fracasso desastroso de
milhares de organizações coletivas em todo o mundo ocidental representa
um testemunho eloqüente à incapacidade de encontrar novas formas de
autoridade. Se toda a autoridade tivesse sido removida, como teria sido
possível regulamentar a falta de acordo quando a retidão revolucionária
tornava a falta de acordo impossível?
O acordo empresarial original entre Godard e Gorin estipulava que o dinheiro seria
dividido meio a meio – após (sem surpresas aqui) os descontos para pagar os
impostos atrasados de Godard. Quando Gorin foi embora, deixou a empresa
para trás. Bem mais tarde, Godard ligou para ele em Los Angeles e disse que
ele precisava voltar a Paris para tratar disso. Para Gorin, as questões de aluguel
e salário não significavam muito e deveriam ser tratadas por Godard; Godard
disse: “Alguém precisava lavar a louça, limpar os cinzeiros... coisas que Gorin –
como todos os militantes que conheci – não queria fazer”.
A Tout Va Assez Bien finalmente faliu sob a bandeira de “insolvência fraudulenta”, para
usar o termo jurídico francês, e Gorin foi proibido de praticar qualquer tipo de
atividade comercial durante três anos. Algum tempo depois, Gorin, agora lecio-
nando na Califórnia, foi informado que Tudo vai bem havia sido exibido na te-
34
levisão francesa. Ele telefonou para Godard pedindo sua parte do dinheiro.
O bate-boca foi tão feroz que Gorin desligou o telefone.

[ 20 ] Linhart sofreu um colapso em maio, incapaz de reconciliar a primazia teórica da classe trabalhadora com a

revolução estudantil que ocorria nas ruas fora da Ecole. Gorin foi ao encontro na Ecole onde Linhart ordenou a suas
tropas marxistas-leninistas que ficassem longe desta batalha enganadora. Gorin, como muitos outros, ignorou
Linhart. Vide Hervé HAMON e Patrick ROTMAN. pp. 464-81.
[ 21 ] Miller casou-se com a filha de Jacques Lacan e se tornou um “guardião da chama” da herança lacaniana.
Jean-Pierre Gorin
Jean-Pierre Gorin conquistou destaque internacional
pela primeira vez como integrante do Grupo
Dziga Vertov, por meio de suas colaborações
com Jean-Luc Godard. Esta parceria lhe trouxe
tanto fama quanto descaso: aqueles que admiram
os filmes do “período Vertov” costumam atribuir
suas virtudes a Godard, com pouca ou nenhuma
referência a Gorin, enquanto muitos dos que não

Erik Ulman
gostam dos filmes costumam considerar Gorin o
culpado por desviar o mestre do caminho enquanto
pegava carona na sua fama. Esta controvérsia tende
a obscurecer e ignorar o pequeno, porém impres-
sionante, conjunto da obra produzida por Gorin
desde que se separou de Godard, em 1973. De fato,
as circunstâncias são tais que é fácil ignorar estes
filmes: são apenas três longas-metragens e dois
trabalhos em vídeo, bem como uma série de proje-
tos abortados ou nunca começados, desenvolvidos
com intervalos de anos, distribuídos de forma incon-
sistente, e de modéstia deliberada.
Estes filmes solo, entretanto, podem se provar tão im-
portantes quanto as colaborações com Godard. O
que lhes falta em provocação e radicalismo lhes
sobra em charme e em complexidade de forma e
nuance, estando eles entre as contribuições mais
inventivas e potencialmente férteis do gênero
“filme-ensaio”. Caracterizados por uma fidelidade
determinada aos detalhes locais, revelados com
ternura e humor, são pessoais e comprometidos
36
de forma jamais imaginada nos trabalhos do
período Vertov. Os três longas – Poto and Cabengo
(1978), Routine Pleasures (1986) e My Crasy Life
(1991) – merecem ser vistos e discutidos mais
amplamente; e os vídeos – Letter to Peter e um
registro audiovisual da ópera St. François d’Assise,
de Messiaen (ambos de 1992) – abrem novos
caminhos, que esperamos Gorin tenha a oportu-
nidade de explorar mais amiúde.
Gorin nasceu em Paris, a 17 de abril de 1943. Seus pais eram judeus esquerdistas: o
pai, um médico respeitado (e trotskista); a mãe, uma mulher de considerável
inteligência e energia um tanto imprevisível. Após uma juventude turbulenta,
porém aplicada, recebeu em 1960 seu bacharelado em Filosofia. Em seguida, ma-
triculou-se na Sorbonne, onde participou dos seminários de Louis Althusser (inclu-
indo aquele definindo a teoria do aparato ideológico do Estado), Jacques Lacan
e Michel Foucault. Além disso, entre 1965 e 1968, Gorin trabalhou como editor
no Le Monde, tendo ajudado a criar o suplemento literário semanal
Le Monde des Livres. Nesse período escreveu dezenas de artigos, contribuindo
para os debates políticos e estéticos que levariam à revolta de maio de 1968.
Gorin conheceu Godard em 1967. Nessa época, Godard mostrava um interesse cres-
cente pela geração mais nova e, conseqüentemente, por uma política mais
radical, como mostra o filme Masculino feminino (1966). Gorin era um contato
perfeito, por ser um dos mais articulados e engajados membros da Nova
Esquerda jovem da França. Cinéfilo desde a juventude, teve o desejo de fazer
filmes despertado pelo rigor formal e político de Nicht Versöhnt (1965), de
Jean-Marie Straub e Danièle Huillet. Gorin e Godard tornaram-se amigos: Gorin
ajudou Godard com o filme A chinesa (1967), oferecendo sua experiência
teórica e prática, de primeira mão, na militância esquerdista emergente; e esteve
presente durante parte da filmagem de Le gai savoir (1968).
Depois dos acontecimentos de maio de 1968, Godard deu as costas à indústria de filmes
convencionais e passou a fazer filmes que refletissem um novo comprometimento
político e desenvolvessem uma nova prática, um método de “fazer filmes politica-
mente”, filmes que não simplesmente promulgassem idéias esquerdistas dentro de
uma estética tradicional e, portanto, desacreditada. A exigência era “voltar à estaca
zero”, como anunciado em Le gai savoir, “construir imagens” do nada, e “combater
a tirania da imagem sobre o som” 1. Com a assistência esporádica de vários apren-
dizes mais jovens, incluindo Gorin e Jean-Henri Roger, Godard criou Um filme como
os outros (1968), Sons britânicos (1968) e Pravda (1969), obras de uma pobreza
37
técnica agressiva e estridência política. Estes filmes começaram a ser assinados pelo
“Grupo Dziga Vertov”, nome escolhido como homenagem ao então negligenciado
mestre do cinema soviético — à sua política radical, à sua exposição dos funda-
mentos materiais e formais do filme, ao seu desmantelamento da ilusão do cinema.

[1 ] Vide James MONACO , The New Wave. New York, Oxford University Press, 1976. p. 221. O capítulo de Monaco
intitulado “Godard: Theory and Practice: The Dziga-Vertov Period” provavelmente fornece a mais clara narrativa
sobre este grupo de filmes.
Apesar de o nome ter aparentemente surgido com Gorin, os primeiros “filmes Vertov”
eram, fundamentalmente, trabalhos do próprio Godard. Vento do Leste (1969),
no entanto, marcou uma mudança. Godard foi para a Itália filmar um faroeste
em colaboração com um número de esquerdistas proeminentes, incluindo o
diretor brasileiro Glauber Rocha, o ativista Daniel Cohn-Bendit e o astro comu-
nista do “faroeste espaguete” (spaghetti western) Gian Maria Volonté. Esta
colaboração rapidamente esvaiu-se devido à indisciplina geral; e Godard convi-
dou Gorin para ajudá-lo a salvar o projeto. Este trabalho inaugurou um período
de genuína co-autoria que se estenderia por Lutas na Itália (1969), Vladimir e
Rosa (1971), Tudo vai bem (1972), e Carta para Jane (1972); Aqui e acolá
(1975) pode ser considerado um apêndice a este conjunto de trabalho. Atribuir
responsabilidades autorais a estes filmes é difícil, e por certo contrário às inten-
ções dos dois: Gorin afirmou que os filmes surgiram de uma “troca constante
de idéias” que visava uma fundamental “transformação da prática”, uma rejeição
ao “autorismo” que Godard ajudou a formular 2. Seja como for, parece que ao
menos Lutas na Itália e Tudo vai bem são mais Gorin do que Godard, e que a
responsabilidade criativa nos outros foi de ambos, igualmente 3. Os dois cineastas
trabalhavam juntos diariamente, não apenas nestes filmes maiores, mas em
projetos menores: “reportagens de notícias” eram exibidas diariamente em
Paris, incluindo entrevistas e esquetes (Juliet Berto numa banheira explicando a
Guerra do Vietnã); e também propostas para propagandas (das quais pelo
menos uma foi realmente filmada), como forma de obter renda.
Apesar de continuar orgulhoso dos filmes Vertov, Gorin dificilmente atribui este fato à
sua pureza ideológica: neste sentido, os filmes, como ele já caracterizou os mili-
tantes de A chinesa, são marcados por uma “seriedade estúpida”4 , todos eles
demasiadamente premonitórios do puritanismo pomposo de muitas artes políti-
cas subseqüentes. Mais duráveis são sua beleza formal5 , sua ousadia, sua ênfase
na trilha sonora sobre a imagem, sua acuidade como cápsulas do tempo, seu
38

[ 2 ] Estes comentários são de uma entrevista em vídeo com Gorin, realizada em Melbourne no ano de 1987; desco-
nheço a identidade do entrevistador.
[ 3 ] Gorin certa vez afirmou, com modéstia, que “basicamente tudo o que eu fiz vem do trabalho prévio de Jean-

Luc; é por isso que alguns de nossos últimos filmes são considerados altamente godardianos, apesar de eu tê-los
feito”. Citado em MONACO, p. 215.
[ 4 ] Entrevista em Melbourne.

[ 5 ] Já negada de forma vigorosa: Godard: “se Vento do Leste tem algum mérito, é por não ter beleza alguma”.

James Roy MACBEAN, Godard and Rocha at the Crossroads of Wind From the East, in: Film and Revolution.
Bloomington, Indiana University Press, 1975. p. 120.
humor (evidente pelo menos a partir de Vladimir e Rosa, e que freqüentemente
passa despercebido), e o que poderia ser chamado de seu espírito protopunk de
“faça você mesmo”. Muitas destas características foram, há muito, removidas
do discurso e prática acadêmicos que constituem o principal legado destas obras
e que não parecem impressionar muito Gorin: para ele, uma leitura destes filmes
baseada em sua mensagem política é de pouco interesse, sendo até mesmo
dispensável. Certamente é difícil acreditar que o conteúdo político de Vento do
Leste, por exemplo, seja irônico ou incidental, e que a arrogância das personas
públicas de Gorin e Godard na época (vide Godard in America, de Ralph
Thanhauser [1970]), não envelheceu bem. Mesmo assim, os filmes Vertov
permanecem extremamente recompensadores e merecem renovada atenção.
Precisei de algum tempo para conseguir assistir a Vento do Leste com uma nova visão:
meus encontros iniciais com o filme foram com cópias em vídeo de qualidade
duvidosa de uma versão americana com uma voz over tenebrosa. Dadas a feiúra
e o caráter indecifrável do som e da imagem, éramos obrigados a nos apoiar na
lista de diálogos publicada e em ensaios famosos sobre o filme, escritos por
autores como Peter Wollen, que parecia celebrar o filme por suprir o que Gilber-
to Perez chamou de “desagrado militante”, uma negação inflexível de qualquer
valor estético como uma superestrutura inadmissivelmente ilusória 6. Esta tenaci-
dade implacavelmente ideológica é parte de Vento do Leste, mas apenas parte:
o que é mais crucial no filme, como pode ser visto no lançamento do excelente
DVD japonês, é sua irresoluta dialética entre a ideologia verbal e a beleza visual,
em que uma se firma como crítica da outra. Se a trilha sonora denuncia Griffith,
o imperialista americano, o esplendor natural luxuriante dos planos quase está-
ticos de abertura remete à última entrevista do mesmo Griffith:

O que falta nos filmes modernos é beleza – a beleza do vento se moven-


do nas árvores, o pequeno movimento contido nas ondulações que o
39
vento causa nas flores das árvores. Isto eles esqueceram totalmente...
Do meu ponto de vista arrogante, nós perdemos beleza 7.

[ 6 ] Peter WOLLEN, Godard and Counter Cinema: Vent d’est, in: Readings and Writings: Semiotic Counter-Strategies.

London, New Left Books, 1982. p. 79-91. Para o comentário de Perez sobre os filmes do “Grupo Dziga Vertov”, vide
The Material Ghost. Baltimore, Johns Hopkins, 1998. p. 362.
[ 7 ] Ezra GOODMAN, The Fifty-Year Decline and Fall of Hollywood. New York, Simon and Schuster, 1961. p. 11.
É fácil perceber que Vento do Leste é um filme excepcionalmente rico, se nos concen-
trarmos em vê-lo e ouvi-lo deixando de lado a retórica que o rodeia – como
extensão e subversão do faroeste, revelando e interrogando suas ideologias
implícitas, como um documento de possibilidades e perigos do projeto revo-
lucionário (como na seqüência aterradora sobre terrorismo perto do fim, no
qual os trabalhos de arte pop do filme Duas ou três coisas que eu sei dela
[1966] se transformam em diagramas de explosivos caseiros), e pelas interseções
complexas da beleza formal com o conteúdo carregado e refratário.
Enquanto Vento do Leste tem amplo alcance e heterogeneidade, Lutas na Itália é
circunscrito, disciplinado, até elegante: Gorin descreveu sua estrutura como se-
melhante a um baralho, construído por justaposições e substituições de painéis
mais ou menos estáticos para articular uma análise “althusseriana” das ideolo-
gias que suportam a existência militante de um jovem italiano. Em contraste,
Vladimir e Rosa, uma reflexão sobre o julgamento “Chicago 8” como teatro po-
lítico, é o mais selvagem e mais miscigenado dos filmes Vertov, com uma abun-
dância descuidada de materiais, esquetes, insinuações: desordenado, mas exu-
berante, contém algumas das reflexões mais significativas de Godard e Gorin
sobre a construção de uma nova linguagem cinematográfica, freqüentemente
formulada em um irresistível formato cômico.
Para mim, entretanto, os melhores filmes que emergiram da colaboração são os três
últimos: Tudo vai bem, Carta para Jane e Aqui e acolá.
Tudo vai bem é, por motivos óbvios, o mais “profissional” dos filmes Vertov. Gorin e
Godard queriam trabalhar novamente numa escala maior e mais “popular”.
Para isso, selecionaram duas estrelas de esquerda, Yves Montand e Jane Fonda,
traçaram uma narrativa e construíram um cenário – uma fábrica de salsichas
durante uma greve. Tendo aceito estas concessões, Gorin e Godard jogam com
elas de maneira habilidosa: na maior parte do filme, as estrelas funcionam
como figurantes, enquanto outras “não-estrelas” assumem o centro do palco; a
“história de amor” das estrelas, quando emerge, fixa solidamente o romance no
40
contexto de seus empregos (como diretor de filmes e jornalista, respectiva-
mente), e, desta forma, imerso nas hipocrisias da cultura comercial; o cenário,
que é um tributo a O terror das mulheres (1961), de Jerry Lewis, é um atalho
que funciona como um outro Verfremdungseffekt 8 brechtiano. Tais estratégias
produzem um filme cuja complexidade formal encontra uma nova variedade de

[8 ] Termo cunhado pelo escritor Bertolt Brecht que significa, em termos gerais, “efeito de estranhamento” ou “dis-
tanciamento”. (N. do T.)
discurso: aqui, Gorin e Godard permitem que o patrão, o sindicalista e o grevista
radical falem por si mesmos, garantindo ao espectador uma maior liberdade
para pesar suas respectivas posições. Tal liberdade é bem-vinda, apesar de
também indicar uma perda de fervor. Como Gorin disse, Tudo vai bem é um
filme de 1972, não de 1968; e a desolação da tomada final com a câmera em
movimento sublinha a inadequação das ações revolucionárias que ele apresen-
ta, a passagem do momento revolucionário9.
Um último sopro de densa teoria militante, Carta para Jane foi particularmente mal
recebido pela crítica, que o taxou como “insuportável” e sem humor 10. Eu acho
isso engraçado e revelador. O filme é uma reflexão de 50 minutos sobre uma
única fotografia de Jane Fonda no Vietnã. Revezando a narração entre eles, e
justapondo a imagem de Fonda com outras fotografias, Gorin e Godard refletem
sobre a função de Fonda e desta imagem dentro da representação midiática oci-
dental da luta vietnamita por autodeterminação. Alguns disseram que os cineas-
tas foram injustos e misóginos em sua crítica à antiga colaboradora; ao contrário,
eles se esforçam repetidamente para distinguir a pessoa de Jane Fonda do papel
social que criticam. Além disso, o modo excessivamente pedante de argumenta-
ção (passando, por exemplo, de “Elementos de Elementos” para “Elementos
Elementares”) zomba de seu próprio absolutismo (porém poucos, como James
Monaco, parecem perceber a ironia) 11, embora constitua, sem dúvida, uma
tentativa de argumentar de maneira lógica 12. Carta para Jane permanece, nas
palavras de Susan Sontag, “uma lição modelo sobre como interpretar qualquer
fotografia, como decifrar a natureza não inocente de uma composição, ângulo
ou foco ”, 13 além disso, é cheio de insights provocativos, especialmente dentro
da história da atuação cinematográfica e do eclipse do “materialismo” silencioso
dos atores por um estilo inexpressivo de “pensamento árduo”, que Gorin e
Godard ligam diretamente a um liberalismo ocidental ineficaz.
Aqui e acolá, concluído por Godard e Anne-Marie Miéville, talvez seja o mais complexo
de todos estes trabalhos, uma reflexão admirável sobre a resistência palestina,
41
sobre as dimensões políticas do som e da imagem, e sobre o fracasso do

[ 9 ] Para uma análise mais detalhada de Tudo vai bem, vide David BORDWELL e Kristin THOMPSON. Film Art: An

Introduction. New York, Knopf, 1986. 2 ed. pp. 335-42.


[ 10 ] PEREZ, p. 362; Jonathan DAWSON, Letter to Jane, in Senses of Cinema. http://www.sensesofcinema.com/

contents/01/19/cteq/letter.html
[ 11 ] Vide a interessante discussão de Monaco em The New Wave, pp. 245-50.

[ 12 ] Vide a interessante discussão de Monaco em The New Wave, pp. 245-50.

[ 13 ] Susan SONTAG. On Photography. New York, Delta, 1977. p. 108.


radicalismo europeu depois de 1968. Encarregados pela Liga Árabe, em 1970,
de fazer um filme a ser intitulado Jusqu’à la victoire, Gorin e Godard captaram
imagens do Al-Fatah na Jordânia. Naquele mesmo ano, a maioria das pessoas
filmadas, que os havia recebido como convidados, foi morta pelo exército
jordaniano no Setembro Negro, tornando o título grotescamente irrelevante e
modificando completamente o significado das imagens captadas. Posteriormente,
Godard, Gorin e Miéville combinaram este material com críticas afiadas às estra-
tégias tanto dos revolucionários como dos cineastas, criando uma conexão direta
com uma esquerda européia mais interessada em lutas alheias do que em
suas próprias, e com a natureza coerciva e ubíqua da comunicação de massa,
na qual “cadeias de imagens que escravizam outras imagens” vêm a condicio-
nar e constituir a consciência humana. Aqui e acolá é um dos maiores filmes
políticos de todos os tempos, alcançando uma densidade formal extraordinária
com suas imagens, sons e histórias sobrepostos, assim como uma lucidez polí-
tica que permanece toda ela muito relevante ainda nos dias de hoje.
O período Vertov havia sido intensamente produtivo e excitante; mas Gorin tinha de
seguir sozinho. Além de ainda estar muito à sombra de Godard, ele se sentia
sufocado pela política e pela teoria e queria explorar novas áreas. Numa entre-
vista com Martin Walsh, Gorin identificou seu cineasta americano favorito como
sendo Russ Meyer e sinalizou: “Não estou mais tentando ser brechtiano. A pró-
pria idéia de tentar pensar através das lentes de um cara que estava pensando
nos anos 1930 me parece agora extraordinariamente retrógrada... Eu pratica-
mente nem sou mais marxista, o que me abre um pouco a visão”. 14
O primeiro filme solo de Gorin está agora perdido. Intitulado L’Ailleurs immédiat, es-
tava quase que totalmente concluído quando a prisão por porte de drogas da
atriz principal paralisou a produção. Tendo de enfrentar um atraso por tempo
indeterminado, os produtores displicentemente decidiram derreter a película
por sua prata. Esta destruição deve ser imensamente lamentada: primeiro,
porque podemos imaginar como a carreira de Gorin teria se desenvolvido se o
42
longa tivesse sido terminado e lançado; segundo, porque o filme era provavel-
mente fascinante. A alusão a Georges Bataille no título indica a direção que
Gorin estava tomando. Segundo ele, L’Ailleurs não tinha compromisso sexual ou
psicológico, o que levou Godard a apelidá-lo de “O Anti-Tango”, em contrapo-
sição ao controverso mas comparativamente seguro filme de Bertolluci, O último
tango em Paris (1972). O próprio Gorin fazia o papel principal; suas descrições

[ 14 ] Martin WALSH. Godard and Me: Jean-Pierre Gorin Talks, in: Take One (Vol.5, n.1, 1976). pp. 14-15.
de alguns trechos do filme, em que ele recita passagens da Genealogia da
moral de Nietzsche enquanto é tatuado, ou se masturba pendurado do lado de
fora de uma janela alta numa rua de Paris, talvez dê uma idéia do extremismo
(e da tolice) do projeto. A contínua deterioração do espírito revolucionário de
1968 coincidia com este trabalho, e de certa forma o motivava. Gorin falou
sobre a natureza cada vez mais louca e fragmentada da esquerda militante e de
seu desejo de se distanciar dela. L’Ailleurs immédiat teria sido talvez a contra-
parte dionisíaca da dissecação fria e objetiva das conseqüências pós anos 1960
de Jean Eustache no filme La maman et la putain (1973).
Em todo caso, após o abandono forçado de L’Ailleurs, Gorin deixou a Europa e, em
1975, aceitou o convite de Manny Farber para ingressar na docência da Univer-
sity of California em San Diego, onde permanece até hoje. Com Farber, Gorin
desenvolveu uma amizade forte e duradoura: nas palavras de Farber, eles se
tornaram “cérebros gêmeos”. Farber atuava já há bastante tempo como pintor
e como um dos mais renomados críticos de cinema dos Estados Unidos, tendo
sido um dos primeiros a advogar seriamente em favor de “diretores de ação”
como Mann, Fuller e Hawks. Mais recentemente, tornou-se um observador
igualmente astuto de vanguardistas como Snow, Straub e Huillet, Fassbinder e
Godard. O trabalho de Gorin na universidade envolveu-o num diálogo enrique-
cedor tanto com Farber quanto com sua esposa e colaboradora, Patricia Patterson.
Além disso, o ambiente acadêmico agradava a Gorin: certamente suas palestras
e atuações como mentor, brilhantes e idiossincráticas, têm sido indispensáveis
a várias gerações de estudantes de arte e cinema na UCSD. Todavia, é lamentá-
vel que a vida acadêmica tenha absorvido tanta energia que poderia ter sido
utilizada para fazer filmes.
As ambições de Gorin como diretor de cinema não foram soterradas pela sua carreira
como professor. Ele queria entrar em Hollywood e trabalhou em Apocalipse Now
(embora seu papel neste projeto lendário e caótico tenha se resumido pratica-
mente a instruir Frederic Forrest sobre as complexidades da cozinha francesa).
43
Ainda assim, Gorin esperava que Francis Ford Coppola pudesse apoiá-lo num
projeto seu. Ele havia obtido os direitos sobre uma série de trabalhos do escritor
de ficção científica Philip K. Dick, que em seguida preparou para Gorin uma adap-
tação extremamente detalhada do seu romance Ubik. Nem Coppola nem George
Lucas, entretanto, deram suporte ao projeto, e Gorin teve a amarga experiência
de ver suas esperanças se desvanecerem nesta e em outras empreitadas.
Se Gorin se sentia frustrado em relação a Hollywood, felizmente teve a oportunidade
de explorar o gênero documentário. Patrocinado pela televisão da Alemanha
Ocidental, começou o primeiro filme do que viria a ser uma trilogia sobre
linguagem, desenvolvimento reprimido e deslocamento cultural no sul da
Califórnia: Poto and Cabengo.
Poto aborda o tema “criança e linguagem” por meio do caso de duas jovens gêmeas
de San Diego, Gracie e Ginny Kennedy, que pareciam ter inventado uma lingua-
gem pessoal. Na verdade, esta linguagem era uma forma modificada do alemão
e do inglês que elas escutavam no seu relativo isolamento doméstico. Gorin
rastreia este assunto em todas as direções: a cobertura da imprensa sobre as
gêmeas, que desbotou do sensacionalismo impreciso para o total descaso;
as opiniões oficiais de psicólogos infantis e lingüistas; as ambições sociais da
família das gêmeas, de situação infeliz e financeiramente precária. Além disso,
Gorin evita a presunção de alternativas recorrentes em documentários, a repor-
tagem neutra ou a onisciência “divina”: ao contrário, ele próprio entra na história
como um investigador decidido e inexperiente, um Philip Marlowe cômico; e
seu envolvimento crescente com as gêmeas, apresentando-as ao mundo, torna-se
mais um fio dentro da “narrativa plural” do filme. Desta complexa rede de
forças, Gorin revela muito sobre o encantamento e as pressões de um sonho
americano ilusório; sobre a natureza social da linguagem; sobre o legado
deslocado da emigração. E, ao mesmo tempo em que mantém estes importantes
tópicos em jogo, Gorin nunca perde de vista a humanidade dos seus objetos de
estudo (ele não é condescendente com os pais patéticos) ou a complexidade
formal do filme, que varia constantemente nas permutações entre som, texto
escrito e imagem — sempre, como no período Vertov, privilegiando o primeiro.
Formal e tematicamente, o filme é uma peça de virtuose polifônica, ainda mais
marcante por nunca perder sua leveza, mesmo quando toca na profundidade
e na tragédia 15.
Se Poto trata de crianças e linguagem, Routine Pleasures faz da sua investigação
sobre “homens e imaginação” na América da década de 1980 “um épico em
pequena escala”, nas palavras de Gorin, um remake de Paraíso infernal 16. O
tema principal de Gorin é um grupo de ferromodelistas que se reúne semanal-
44
mente em Del Mar Fairgrounds, no sul da Califórnia. Suas paisagens em minia-
tura preservam uma América perdida, talvez ilusória, e suas obsessões curiosa-
mente entrelaçam trabalho e infância. Gorin tece esse tema com um outro: seu
amigo e mentor Manny Farber. Farber não aparece, exceto em fotografias; mas

[ 15 ] Vide também Vivian SOBCHACK, “16 Ways to Pronounce Potato”: Authority and Authorship in Poto and
Cabengo, in The Journal of Film and Video (edição XXXVI, outono de 1984). pp. 21-29.
[ 16 ] Entrevista de Melbourne.
aparecem suas pinturas e palavras (e inquietações, como Jimmy Cagney); e
Gorin, mais uma vez assumindo a persona do investigador perplexo, move-se
entre estas linhas com ingenuidade displicente. As narrativas intersecionais do
filme funcionam como as linhas cruzadas da maquete do trem, ou como as
linhas de força das pinturas de Farber, estabelecendo pontos de semelhança e
ressonância; durante todo o tempo, Gorin avalia a identidade americana, sua
experiência com a geografia e as fronteiras, a masculinidade, a História, sua
relação com o pessoal e o coletivo. Como Poto, Routine Pleasures é notável por
sua leveza e seu charme, apesar de a polifonia aqui ser de alguma forma mais
intrincada do que na obra anterior. É também digna de nota a excelente foto-
grafia de Babette Mangolte, maravilhosamente nuançada tanto em preto e
branco como em cores. Por Routine Pleasures Gorin ganhou o prêmio de
Melhor Documentário Experimental no Festival de Popoli, em Florença.
Mais uma vez as obrigações acadêmicas foram a principal razão para o atraso do
filme seguinte de Gorin. My Crasy Life (que ganhou o Prêmio Especial do Júri
no Festival de Sundance, em 1992) completa sua trilogia californiana analisando
a vida de uma gangue samoana em Long Beach. Este talvez seja o mais difícil
dos filmes solo de Gorin, pois deliberadamente intervém na realidade, a qual
ele documenta de maneira mais freqüente e elusiva que em seus filmes anteri-
ores, abdicando da orientação até agora fornecida pela tradicional persona de
investigador de Gorin. Assim como Jean Rouch havia feito em Eu, um negro
(1958), Gorin convida seus objetos de estudo a colaborar ativamente na repre-
sentação de si mesmos, tanto de maneira mais evidente (em algumas cenas
obviamente representadas), como também sutilmente (em monólogos aparen-
temente espontâneos, mas na verdade roteirizados). Além disso, amplia o escopo
do mero registro da vida diária em Long Beach: vários gângsteres vão a Samoa
e encontram suas origens culturais, tanto em família como na fantasia. Até mes-
mo a ficção científica interfere nas ruminações de um computador num carro
de patrulha de um policial indulgente; estas reflexões talvez tomem o lugar do
45
personagem Gorin ausente, mas perturbam o tom do filme. Apesar destes
vôos, My Crasy Life resiste a todo sensacionalismo: não há nenhuma cena de
violência espetacular, nenhuma romantização ou demonização de seus objetos.
Em vez disso, ficamos tocados pela curiosa inocência dos gângsteres e pelo
tédio normativo de suas existências, de onde Gorin consegue inventar uma
textura cuja complexidade se revela apenas por meio de exibições repetidas.
Desde My Crasy Life, Gorin tem, nas suas palavras, “focado na possibilidade de
repensar a narrativa de cinema junto com linhas estruturais musicais”. A musi-
calidade vem sendo, há tempos e de diversas formas, uma preocupação sua:
considere a escolha inteligente das músicas para seus filmes (Erroll Garner e
Mozart interpretados por Gould em Poto; Conlon Nancarrow em Routine; a
partitura intermitente porém elegante de Joji Yuasa para My Crasy Life), e, mais
importante, a ênfase na trilha sonora já característica nos filmes Vertov e as
estruturas rítmicas e polifônicas dos seus trabalhos solo. Letter to Peter (1992),
um longa em vídeo retratando a atuação de Petter Sellars numa montagem da
ópera Saint-François d’Assise, de Messiaen, em Salzburgo, é um tipo de estudo
que estende e sintetiza estas preocupações. Não é, contudo, tão rico quanto
seus filmes: talvez refletindo uma certa impaciência com Sellars (evidenciada
por acelerações bem-vindas, ainda que rudes, durante alguns de seus depoi-
mentos), o vídeo não integra completamente suas visões geralmente interes-
santes do processo de ensaios com suas especulações mais amplas sobre
música e criação. Mais bem-sucedido, ainda que menos ambicioso, é o registro
audiovisual de Gorin da apresentação feita para a Österreichischer Rundfunk 17,
que faz com que a encenação de Sellars (para mim, questionável) seja tão vigo-
rosa quanto o vídeo ao vivo pode registrar.
Em todo caso, estes dois engajamentos diretos com a música em si aguçaram o
interesse de Gorin pela musicalidade cinematográfica; e entre os seus projetos
atuais estão trilhas sonoras construídas como uma camada primária, à qual as
imagens são adicionadas depois, revertendo a prática usual. Gorin também vem
escrevendo roteiros de cinema e histórias, e, em 2001, dirigiu uma oficina no
Japão com uma série de jovens artistas japoneses. Em colaboração com os
estudantes e com o pintor/videomaker Ryuta Nakajima, ele captou imagens
para o projeto de um tributo em vídeo via e-mail aos seus velhos amigos
Godard e Chris Marker. Nos últimos meses, Gorin finalmente começou a editar
estas imagens. Alegra-nos saber que a troca de idéias e entusiasmo com esta
nova geração e o crescente interesse internacional pelo seu trabalho tenham
ajudado Gorin a renovar sua própria energia criativa, e esperamos que o ritmo
intermitente de sua produção se torne mais estável.
46
Se Godard modelou-se como “a imagem suprema do fim da Europa” (como Charles
Olson uma vez escreveu sobre Ezra Pound), Gorin foi mais modesto. Todos os
seus filmes giram em volta de temas recorrentes – infância ou nostalgia da
infância, linguagem e exílio – com intensa concentração local. Se Sans soleil
(1982) ou The Last Bolshevik (1993), de Marker, expandem grandemente seus
assuntos imediatos para a iluminação da História, Gorin, ao contrário, vasculha-os

[ 17 ] Rede de emissoras de televisão e rádio da Áustria. (N. do T.)


em suas localidades. Desde a retórica generalizante do período Vertov, Gorin
tem evitado alergicamente “grandes declarações”: em vez disso, seu trabalho é
dirigido ao que é pequeno, tratado de forma terna e inquisitiva, preocupado
com o detalhe individualizante. É, nas palavras de Manny Farber, uma “arte-
cupim”, “comendo suas próprias limitações”, sem deixar “nada em seu caminho
a não ser os sinais de atividade impaciente, laboriosa, rude”. 18 Nesta própria
modéstia, o trabalho de Gorin talvez tenha especial importância numa época
dominada pelos espetáculos grandiosos e sem alma de Hollywood e pelo
cinismo e falta de sentimento de tantos filmes “independentes”. Ao contrário, a
excentricidade dos filmes de Gorin me lembra outros certamente grandes
contemporâneos, como Abbas Kiarostami ou João César Monteiro, cujas
particularidades ardilosas permitem um alcance extraordinário, engendrando
prazeres profundos e abundantes.

Filmografia como diretor

Vento do Leste (1969; com Jean-Luc Godard)


Lutas na Itália (1969; com Jean-Luc Godard)
Vladimir e Rosa (1971; com Jean-Luc Godard)
Tudo vai bem (1972; com Jean-Luc Godard)
Carta para Jane (1972; com Jean-Luc Godard)
Aqui e acolá (1975; com Jean-Luc Godard e Anne-Marie Miéville)
Poto and Cabengo (1978)
Routine Pleasures (1986)
My Crasy Life (1991)
Letter to Peter (1992; vídeo)
St. François d’Assise (1992; registro audiovisual da encenação da ópera
47
de Messiaen por Peter Sellars)

[ 18 ] Manny FARBER, Negative Space. ed. ampl. New York, Da Capo, 1998. p. 135.
Bibliografia selecionada

Sou imensamente grato a Jean-Pierre Gorin por muitas conversas e muita generosi-
dade com material e informações; sou grato também a Michael Chaiken.

BORDWELL, David e THOMPSON, Kristin. Film Art: An Introduction. 2. ed. New York,
Knopf, 1986.
DAWSON, Jonathan. Letter to Jane. Senses of Cinema, nº 19, março/abril 2002.
http://www.sensesofcinema.com/contents/01/19/cteq/letter.html
FARBER, Manny. Negative Space. ed. ampl. New York, Da Capo, 1998.
MACBEAN, James Roy. Film and Revolution. Bloomington, Indiana University Press,
1975.
MACCABE, Colin. Godard: A Portrait of the Artist at Seventy. New York, Farrar Straus
& Giroux, 2004.
MONACO, James. The New Wave. New York, Oxford University Press, 1976.
PEKLER, Michael (ed). Viennale ’04. Viena, Viennale, 2004.
PEREZ, Gilberto. The Material Ghost. Baltimore, Johns Hopkins, 1998.
SCHAFAFF, Jörn. Routine Pleasures or All About Eve or A Point in the Landscape. In
SCHAFAFF, Jörn e STEINER, Barbara. Jorge Pardo. Ostfildern-Ruit: Hatje Cantz
Verlag, 2000. pp. 45-60.
SOBCHACK, Vivian. 16 Ways to Pronounce Potato: Authority and Authorship in Poto
and Cabengo. The Journal of Film and Video, n. XXXVI, outono de 1984.
SONTAG, Susan. On Photography. New York. Delta, 1977.
WALSH, Martin. Godard and Me: Jean-Pierre Gorin Talks. Take One, vol. 5 #1, 1976
(mais tarde relançado em The Brechtian Aspect of Radical Cinema, London,
BFI, 1981).
WOLLEN, Peter. Readings and Writings: Semiotic Counter-Strategies. London. New
Left Books, 1982.
48

Direitos autorais 2005 por Erik Ulman


Todos os direitos reservados.
O amigo de Glauber [e Godard]
O cineasta Jean-Pierre Gorin conta como
o diretor de Terra em transe virou ator
de Vento do Leste, que será exibido no
Brasil pela primeira vez nesta semana.

Jane de Almeida
especial para a Folha de São Paulo
Jean-Pierre Gorin é conhecido pela sua parceria
com Jean-Luc Godard nos anos 1960 e 1970. Eles
dirigiram juntos seis filmes, quatro deles com
vários esquerdistas revolucionários da época, em
proposta de trabalho colaborativo, sob o nome de
Grupo Dziga Vertov, uma homenagem ao cine-
asta russo, para fazer oposição não apenas a
Hollywood, mas também à tradição de Eisenstein.
O primeiro filme dessa parceria é Vento do Leste
(1969), um western feito na Itália com as partici-
pações de Gian Maria Volonté, como ator, e de
Daniel Cohn-Bendit, como roteirista, além de uma
aparição de Glauber Rocha. Parte do filme mostra
várias pessoas reunidas em local ermo refletindo
sobre o que é fazer cinema e, como era a preocu-
pação do grupo, sobre o que é fazer cinema
politicamente. E é Glauber que, em uma encruzil-
hada, mostra os vários caminhos do cinema,
incluindo aquele do Terceiro Mundo, que é
"perigoso, divino e maravilhoso".
50
Os outros três filmes do grupo são Lotte in Italia (1969),
Vladimir et Rosa (1971) e Jusqu'à la victoire
(1970), que ficou inacabado. Não mais com o
nome Dziga Vertov, Godard e Gorin dirigiram,
em 1972, Tout va bien, com Yves Montand e Jane
Fonda, e Letter to Jane, uma cáustica leitura
de uma foto de Jane Fonda no Vietnã. O filme
mereceu a atenção de Susan Sontag em seu
famoso ensaio Sobre a Fotografia (reeditado
recentemente pela Companhia das Letras), apresentado como uma lição de
decifração de um enquadramento aparentemente inocente.
Gorin conheceu Godard por volta de 1965 quando era editor de literatura do Le
Monde e um dos criadores do suplemento Le Monde des Livres. Ele havia estu-
dado filosofia e participado dos seminários de Louis Althusser, de Jacques Lacan
e Michel Foucault. Era um eminente participante da nova geração da esquerda
francesa que iria culminar na revolução de maio de 1968 e representava uma
força inovadora para os pensamentos de Godard na época, tanto que foi um de
seus confidentes e conselheiros em A chinesa (1967) e Le gai savoir (1968),
filmes anteriores aos do Dziga Vertov.
Desde 1975, Jean-Pierre Gorin é professor do departamento de artes visuais da
Universidade da Califórnia, em San Diego, sem deixar de dirigir, escrever e
produzir filmes. Gorin se dispôs a responder às questões reproduzidas a
seguir e disse que elas lhe trouxeram boas recordações. Disse ainda que, se
pudesse, pegaria um avião imediatamente para ver a apresentação de Vento
do Leste no Brasil.

O papel de Glauber Rocha em Vento do Leste é pequeno, mas crucial, já que ele
é quem aponta os caminhos do cinema na encruzilhada. Como o senhor
e Godard encontraram Glauber, e o que passava pela sua cabeça quando
decidiu convidá-lo para aquele papel?

Glauber, Glauber, Glauber. Sempre na encruzilhada. Ele aparece pela primeira vez
na minha vida em Paris poucos meses depois de eu ter visto Terra em transe
umas 30 vezes seguidas no espaço de dez dias. Nós nos encontramos por
51
intermédio de Raphäel Sorin, atual editor de [Michel] Houllebecq, que estará
ligado a Vento do Leste. Uma conexão imediata. Isso se traduz em um vagar
infinito pelas ruas de Paris (Glauber sabia como esticar a noite!) e em um
tresloucado curso intensivo de 15 dias sobre o tropicalismo. Então, um ano
depois, quando Vento do Leste estava sendo rodado, ele emerge da noite,
senta à nossa mesa naquela imunda trattoria romana e amarra as pontas
da nossa última conversa, como se houvéssemos nos despedido na noite
anterior. Lembro-me de tê-lo apresentado a Godard, mas posso estar errado
a respeito disso.
Eu sei que partiu de mim a idéia de arregimentar Glauber e oferecer-lhe o papel dele
mesmo, como sinal falante na encruzilhada das várias formas de cinema. O
que me passava pela cabeça? É bem óbvio, não? As coisas estavam se descos-
turando. Era como se tudo valesse e tudo estivesse sendo posto sobre a mesa
para ser examinado de novo. As formas das imagens e dos sons estavam
sendo questionadas por todos os lados. De certa forma, estávamos todos na
encruzilhada. A questão não era a busca de um caminho "verdadeiro", mas o
tipo de diálogo que poderia ser amarrado a partir de todo esse questionamento
disparatado que acontecia.
Ninguém podia simplesmente sonhar em adotar no atacado a experimentação de
outrem, precisamente porque essas experimentações refratavam a especifici-
dade da experiência. Por isso os caras do Cinema Novo foram tão importantes.
Pelo quão brasileiros eles estavam determinados a ser, por sua especificidade e
como nos forçaram a nos interrogar a nós mesmos, colocando-nos em uma
direção que não havia sido mapeada.
A aparição de Glauber em Vento do Leste é ao mesmo tempo uma homenagem ao
Cinema Novo e uma peça afetiva de um teatro naïve, que indica que os trabalhos
feitos no Brasil nos obrigaram a desbastar nosso caminho para fora da mata
(Hollywood, a nouvelle vague, a era glacial do cinema político da Guerra Fria
etc.), rumo à especificidade do nosso tempo e nosso espaço.

Após quase 40 anos, como o senhor vê as propostas e a produção do Grupo


Dziga Vertov?

Em 1989, na época do bicentenário da Revolução Francesa, um jornal entrevistou


vários líderes mundiais em busca de uma avaliação sobre o legado daquele fato.
Deng Xiaoping, então líder da China, hesitou um instante e depois respondeu:
"É cedo demais para dizer!". Deixando a brincadeira de lado e com a devida
modéstia, vou usar a mesma resposta.
52
Recentemente assisti a Vento do Leste e enviei a seguinte nota a um amigo: "Longo
e-mail de um centro cultural brasileiro que parece inclinado a exibir Vento do
Leste pela primeira vez na terra de Glauber Rocha (consegui uma edição
japonesa em DVD da velha brincadeira e fiquei surpreso pelo fato de ela ainda
parecer tão impressionantemente linda, sem falar no fato de que parecia em
vez disso: a) a única verdadeira adaptação da Ilíada [desculpe, acabei de sair de
Tróia e estou bem irritado com aquilo!]... Vejo Vento do Leste como a
cultura da guerra vista por duas Cassandra(s) [duas pelo preço de uma!
JLG/JPG]; b) um épico shakespeariano em pequena escala [ninguém se
preocupou/se preocupa em ler o final da década de 1960 como uma farra de
Rosencrantz e Guildenstern, mas eu o fiz/faço ainda mais agora…]. Minha
geração colocou o pobre Y [também conhecido como o marxismo e seus
avatares] na tumba... Ele já estava morto, mas não sabia... Quase 30 anos
esperando que o fantasma se dissipasse no vento [Tian An Men + a queda
do Muro de Berlim]; c) uma das melhores peças de ficção científica já escritas
[se 2001 é Dullards no Espaço, Vento do Leste é Dullards no campo romano,
o post-scriptum para Bouvard e Pécuchet que Flaubert nunca escreveu dire-
ito, no qual pretendia recolher os escritos de seus dois idiotas... Um perfeito
complemento para A chinesa a esse respeito])".
Portanto, "é cedo demais para dizer"... Tenho certeza de que em dez anos eu verei
Vento do Leste e o trabalho que eu fiz na época com outros olhos. O afeto,
a ironia, a fúria que eles geraram em mim na época e que geram agora ainda
permanecerão, mas os trabalhos vão parecer se dirigir a um outro conjunto
de preocupações. Há trabalhos que fazem isso; eles permanecem misteriosa-
mente vivos e capazes de se dirigir aos tempos além do seu tempo. Eu os
chamo de "decentes". São trabalhos que demonstram a batalha de um diretor
com a tarefa à mão, mostram que ele/ela está suando sobre os detalhes,
jogando várias bolas ao mesmo tempo, sem ter medo de que algumas caiam
no chão (por incapacidade e também por exibicionismo, só para ter a
audiência do seu lado). Enfim, fiz trabalhos "decentes".

O senhor acha que a metáfora da encruzilhada ainda é válida, depois que os


"ventos do leste" pararam de soprar com tanta força, e considerando
também que o cinema, hoje em dia, raramente questiona o próprio
cinema, como naquela época?

Peço licença para discordar. As questões estão aí. Posso ouvi-las nos filmes de Lars
von Trier como posso ouvi-las nos filmes de Apichatpong Weerasethakul. Posso
53
vê-las serpenteando e dando forma aos filmes de Abbas Kiarostami e nos
filmes de Hou Hshiao Hshen ou de Tsai Ming Liang. E, se eu gosto ou não
desses filmes, é algo que absolutamente não vem ao caso. Eu poderia
aumentar a lista. Nomes conhecidos e nomes ainda desconhecidos. Tendo
a achar que os cineastas se enquadram em dois grupos: as pessoas do
idioma e as pessoas da gramática. As pessoas do idioma tendem a funcionar
melhor na estabilidade das convenções; as pessoas da gramática são incli-
nadas a interrogá-las.
De vez em quando, os membros de uma tribo vagam (mesmo que só por um
momento aterrorizado) no território da outra. E o fluxo e o refluxo da história
tendem a favorecer alternadamente uma tribo sobre a outra. Chega de
antropologia de poltrona! O fato é que um monte de questionamentos está
acontecendo. Sempre esteve acontecendo. Sempre acontecerá. Sempre...
A questão pode ser colocada de forma mais incisiva a respeito dos críticos. O que os
torna tão pouco dispostos a apanhar as questões que estão sendo levantadas,
tão incapazes de traçá-las, amplificá-las? O que os torna tão determinados a
reforçar a falta de sabor do status quo? Um pouco menos de "polegar para
cima/polegar para baixo" e um pouco mais de reflexão ajudariam.
Acho que os cineastas deveriam assumir a promessa de pegar a caneta e fazer o
esforço de falar dos filmes dos outros (ou dos momentos ou gestos nesses
filmes) que os tocam estética e emocionalmente. Um pouco menos de insula-
ridade e um pouco mais de generosidade poderiam ajudar a retomar o
território que foi perdido com o colapso da crítica.

O senhor acredita que ainda é possível experimentar com a própria


linguagem do cinema, como naquela época? Ainda é possível para o
cinema se questionar?

Sim, enfaticamente. Algumas indicações sumárias desconectadas. O digital, em


primeiro lugar. O que ele nos traz? Quando vai andar por si, com as pro-
priedades do digital sendo exploradas, e não simplesmente consideradas como
uma forma expedita de filmar? Que estética ele traz? Como essa estética vai
afetar e transformar nosso sentido da narrativa?
Em segundo lugar, o sound design. Quando os cineastas vão reconhecer a sofisticação
do seu público no que diz respeito à elaboração do som? Quando vão compreen-
der ativamente que o espectador médio agora tem uma familiaridade com as com-
plexidades das camadas de som, dos samplings, da mixagem, que é derivada da
54
sua familiaridade com a música popular? E quando essa compreensão vai se
traduzir em estratégias narrativas novas e diferentes?
A década de 1960 foi marcada por um salto que levou os cineastas a se afastarem dos
modelos literários (da alta e da baixa literatura) e encontrarem seu ponto de
referência na pintura. O Godard do começo é um exemplo bastante bom do
que isso quis dizer: quantas vezes ele nos obrigou a ler o quadro como lemos
uma pintura de Matisse, com áreas chapadas de cores primárias iluminadas
como se pelo sol do meio-dia? E quanto dessa estratégia se plasmou em uma
nova forma de narrativa? Parece inevitável que a música (ou, dito de forma mais
apropriada, o som) ofereça o próximo referencial. Aleluia.
A era do filme sonoro é a nossa. Olhe, eu poderia continuar enfileirando os sinais de
esperança (ou seja, as viradas e mudanças que forçam os cineastas a abraçarem
seu tempo). As viradas nos ventos políticos figurariam de forma proeminente na
lista, mas isso nos tomaria muitas noites em volta da fogueira.

O senhor fez seis filmes com Godard. Como era tê-lo como parceiro? Que carac-
terísticas de Godard o senhor vê no seu trabalho depois de terem produzido
tantos filmes juntos?

Dessa pergunta eu vou fugir. Compreenda que uma das pragas que minha juven-
tude me impôs é que as pessoas se dirigem a mim como se eu tivesse sido
apanhado num eterno presente, como um cervo sob a lanterna. Suspeito
que se eu a) fosse um pouco menos ingênuo ou b) tivesse menos colhões,
eu teria unido forças a alguém que não concentraria na sua cabeça a mística
do autor com "A" maiúsculo. Mas, sendo assim, eu senti que ele era aquele
cuja prática poderia acomodar minhas questões. Dito isso, é elogioso e
também cansativo ser levado de volta à juventude de alguém com tal
consistência enervante.

Poucos anos depois de sua parceria com Godard, o senhor se mudou para os
Estados Unidos e começou a lecionar em uma universidade. Ainda assim,
o senhor dirigiu quatro filmes (Poto and Cabengo, Routine Pleasures, My
Crasy Life e Letter to Peter) e também escreveu alguns roteiros. Como
concilia sua vida acadêmica com a sua produção cinematográfica?

Do melhor/pior jeito que eu consigo. Lecionar é bastante simples. Consiste em


persuadir as pessoas de que elas não precisam de você. Como todas as coisas
55
simples, exige tempo e esforço para conseguir.
Também vi isso como um dever político, já que sentia a necessidade de passar algo
adiante e mostrar à gente jovem como "nunca subestimar o poder revolucionário
do passado", como disse Pasolini certa vez. Além disso, mantém os pés e a cabeça
bem sintonizados, se for feito com paixão. Poucos o fazem, infelizmente.
Quanto aos filmes, fiquei mais demorado por causa da incapacidade dos produ-
tores de assumirem riscos, da absurda cegueira dos críticos, do meu desdém
quase patológico por jogar o jogo e (sejamos honestos) por meu próprio
jeito procrastinador.
Quais são seus trabalhos (ou projetos) mais recentes?

Acabo de terminar um roteiro, The Devil Dicks. É um filme puramente de gênero, que
escrevi com meu parceiro, Patrick Amos, e que não pretendo dirigir. Uma espé-
cie de Ghostbusters – Os Caça-Fantasmas misturado com Salò, ou os 120 dias
de Sodoma, com cara de cartoon à enésima potência. Dá a sensação de que
esse formato é o mais adequado para lidar com esta nossa época.

Alguns autores o consideram uma espécie de resistência entre a monótona


grandiloqüência dos filmes de Hollywood e o cinismo do cinema "indepen-
dente" norte-americano. Como se sente a respeito?

Ei, vou até onde posso! Olha, faço esse tipo de filme por necessidade. Por hábito,
seria um termo mais apropriado. É minha paleta. É minha voz. Minha
musiquinha. Não posso fazer nada além disso. É tanto a minha glória quanto
a minha maldição. Uma forma limitada, embora ambiciosa, de funcionar no
mundo. E, agora que já respondi às suas perguntas, um pedido. Agradeça a
Caetano Veloso, Tom Zé, Gilberto Gil e Jorge Ben. Sem eles, seria mais difícil
pensar. E visite o túmulo de Glauber. Na última vez em que conversamos, ele
me ligou a cobrar durante duas horas para me dizer: "Nós estávamos
certos". Ele nunca me dava espaço para responder. E eu estava tão falido na
época que a única coisa que eu conseguia pensar era em como fazê-lo
desligar. Agora, em retrospecto, acho que ele fez bem em ligar. Não exata-
mente daquele jeito, mas quem se importa...

56

Tradução de Rodrigo Leite.


ou Godard e Rocha na encruzilhada
Vento do Leste
Próximo do meio de Vento do Leste (Vent d’Est),
há uma seqüência na qual o cineasta brasileiro
Glauber Rocha tem uma participação breve, porém
de simbólica importância. Enquanto Rocha está
parado em uma encruzilhada poeirenta, com os
braços abertos, uma jovem mulher emerge de um
dos caminhos, segurando uma filmadora (e o fato
de ela estar evidentemente grávida é, sem dúvida,

James Roy MacBean


“fértil” em significado). Ela se volta para Rocha e
diz, muito educada: “Desculpe-me por interromper
sua luta de classes, mas você poderia me mostrar
o caminho que leva ao cinema político?”
Rocha aponta primeiro para frente, depois para trás, e
então para a esquerda, e diz: “Aquele é o caminho
do cinema da aventura estética e de indagação
filosófica, enquanto este é o caminho do cinema
de Terceiro Mundo, um cinema perigoso, divino e
maravilhoso, em que as perguntas são de cunho
prático, como produção, distribuição, treinamento
de 300 cineastas para fazer 600 filmes por ano
somente no Brasil, abastecer um dos maiores
mercados do mundo.”
A mulher começa a traçar o caminho do Terceiro
Mundo, quando o inexplicável aparecimento de
um balão vermelho parece desencorajá-la a
continuar nessa direção. Ela chuta, sem muito
entusiasmo, a bola, que mesmo assim volta rolan-
do para onde ela está, como se insistindo em
segui-la – como o famoso “balão vermelho” de
58
Lamorisse, com o qual guarda alguma seme-
lhança –, e refaz seus passos até Glauber Rocha,
que continua plantado na encruzilhada com os
braços abertos, como um espantalho ou um
Cristo crucificado sem uma cruz. Ela parte mais
uma vez, desta vez seguindo a trilha da aventura
estética e da indagação filosófica.
Decidi começar minha análise sobre Vento do Leste
descrevendo esta breve seqüência e sugerindo
alguns de seus divertidos simbolismos por acreditar que sejam de vital
importância, não apenas para o entendimento do que Godard está tentando
fazer neste filme, mas também para a compreensão da maneira como certas
questões de grande importância estão tomando forma na vanguarda do cine-
ma contemporâneo. A presença de Rocha nesta seqüência é particularmente
significativa, mas as questões envolvidas certamente vão além de Godard e
Rocha – e, em última instância, é bem capaz que o próprio cinema esteja agora
em uma encruzilhada crítica.
Para lidar com estas questões e sondar com maior profundidade a significância da
seqüência da encruzilhada, acho que o melhor é primeiro tomarmos um breve
desvio, explicando um pouco as circunstâncias que levaram a Vento do Leste e à
associação problemática de Glauber Rocha a este filme, em vários estágios de seu
desenvolvimento. Logo após os levantes estudantis ocorridos na França em 1968,
Godard contatou um dos líderes militantes desse movimento, Daniel Cohn-Bendit,
e sugeriu que os dois colaborassem no projeto de um filme que exploraria o
funesto declínio ideológico, moral e social enraizado não apenas na política fran-
cesa, mas na situação política do pós-Guerra Fria de forma geral. Godard também
aludiu a seu desejo de fazer o filme de tal forma que fossem criados paralelos
entre a representatividade de estruturas políticas tradicionais e a representatividade
de estruturas tradicionais de filmes, em particular aquelas de padrão ocidental.
Cohn-Bendit concordou, e Godard contatou o produtor italiano Gianni Barcelloni, que
já havia trabalhado com diretores como Pasolini e Glauber Rocha, e o jovem
cineasta underground francês Philippe Garrel. Barcelloni convenceu a Cineriz a
lhe dar um adiantamento de cem mil dólares para “um faroeste em cores, a ser
roteirizado por Daniel Cohn-Bendit, dirigido por Jean-Luc Godard e estrelado
por Gian Maria Volonté”. Aparentemente, o que o produtor e o distribuidor
esperavam era algo na linha de um “Cohn-Bendit le fou”.
As filmagens foram conduzidas no início do verão de 1969, na Itália. Godard, então
comprometido com a criação coletiva, congregou os três membros do seu
59
Grupo Dziga Vertov (que na época em que este texto foi escrito estava reduzi-
do a apenas dois membros – Godard e Jean-Pierre Gorin), sua esposa, a atriz
Anne Wiazemsky, diversos atores e técnicos italianos, e uma série de militantes
franceses e italianos de diversas inclinações esquerdistas. Cohn-Bendit,
que havia discutido a concepção geral do filme com Godard, esteve presente
apenas em parte das filmagens, aparentemente discutiu com Godard e Gorin,
e não aparece na versão final do filme (como Godard colocou em Berkeley
em abril do ano passado, “todos os anarquistas foram para a praia”). Sai
Cohn-Bendit. Entra Glauber Rocha.
Em Roma para reuniões com Barcelloni, Rocha encontrou Godard, que, segundo
Rocha, sugeriu que os dois deveriam coordenar esforços “para destruir o cine-
ma” – ao que Rocha teria respondido estar em um caminho bem diferente, que
seu objetivo era construir o cinema no Brasil e no resto do Terceiro Mundo,
lidando com problemas práticos de produção, distribuição etc.
Esta divergência parece ter dado a Godard a idéia de filmar uma seqüência com
“Rocha na encruzilhada”, para incluir em Vento do Leste como uma maneira de
delinear diferentes estratégias revolucionárias. Rocha concordou em represen-
tar o papel, mas não sem mostrar relutância em “se juntar à mitologia coletiva
da inesquecível Gangue Francesa de Maio”.
De qualquer maneira, a seqüência foi filmada, e Godard e Rocha se despediram ami-
gavelmente, mas, ao que parece, ambos com a sensação de que o outro havia
falhado em entender sua posição. Godard se dedicou à edição de Vento do
Leste, e concluiu o filme no início do inverno. Por acaso, Rocha estava em Roma
novamente na época da pré-exibição particular, assistiu ao filme, e se viu –
como aconteceu com todos os presentes – de tal forma desnorteado e conster-
nado com o caminho tomado por Godard, que decidiu escrever um artigo
sobre o filme para a revista brasileira Manchete1 .
No Festival de Cannes, em maio de 1970, Vento do Leste teve uma exibição à meia-
noite, durante a Quinzena do Diretor. (Godard não queria que o filme fosse
apresentado em Cannes; a exibição foi de total responsabilidade do distribuidor.)
Algumas poucas pessoas admiraram o filme; a maioria detestou. Idem para a
exibição de Vento do Leste no New York Festival, em setembro. O mesmo se
repetiu algumas semanas mais tarde em Berkeley e San Francisco. Este tipo de
reação era mais ou menos esperada sempre que um novo filme de Godard era
lançado. Fora do comum e um pouco mais complicada foi a controvérsia sobre
se Vento do Leste poderia ser considerado um filme “visualmente belo”, e se
esta beleza visual seria um atributo ou uma deficiência, considerando-
se as metas revolucionárias de Godard.
60
Muito da controvérsia sobre a qualidade visual do filme pode ter resultado simples-
mente do fato de que estavam sendo exibidas tanto versões em 35 mm como
em 16 mm do filme; e que, em termos visuais, estas duas versões são bastante
diferentes. Apesar de o filme ter sido filmado em 16 mm (inteiramente em áreas
externas), a cópia em 35 mm é muito superior, com cores luxuriantes (principal-
mente os verdes das belas paisagens interioranas da Itália e o vermelho intenso

[ 1 ] Vide Manchete nº 928 (31 de janeiro de 1970), Rio de Janeiro.


da parede de uma antiga morada rústica, parcialmente em ruínas). A cópia em
16 mm é bastante escura e sombria, com cores muito falsas e melancólicas.
A controvérsia realmente se adensa quando começa o debate sobre os méritos e
deméritos relativos à beleza visual (ou de sua ausência) em Vento do Leste.
Hoje, é até difícil determinar quem disse o que e por quê – e a que cópia se
referiam os comentários. Por exemplo, quando o filme estava sendo exibido em
Berkeley e San Francisco, alguns críticos fizeram objeções ao “lixo visual”, men-
cionando que Glauber Rocha supostamente teria criticado o filme por ser
“demasiadamente belo”, assim se mantendo no domínio da estética, ao invés
de funcionar como um filme politicamente militante. O problema é que a
posição de Rocha nunca foi essa. Esta linha de pensamento, enquanto erronea-
mente atribuída a Rocha, a princípio é aceita por Godard, que, no entanto,
rebate afirmando que “se Vento do Leste tem algum mérito, é o de não ser,
de forma alguma, belo”. Já Rocha, em seu artigo na Manchete, ataca Vento do
Leste não porque o filme se mantém no domínio da estética, mas por acreditar
que Godard estivesse tentando destruir a estética. Rocha elogia o filme por sua
“beleza desesperada”, mas censura Godard por se sentir tão sem esperanças
quanto à utilidade da arte. Rocha lamenta que um artista tão talentoso como
Godard (que ele compara a Bach e Michelangelo) não tenha mais fé na arte,
procurando, em vez disso, “destruí-la”.
Para Rocha, a presente crise intelectual na Europa Ocidental sobre a utilidade da arte
é sem sentido e politicamente negativa. Ele vê o artista europeu – melhor exem-
plificado por Godard – como tendo se colocado em um beco sem saída, e
conclui que, no que diz respeito ao cinema, o Terceiro Mundo pode ser o único
lugar onde um artista ainda pode fazer filmes de forma frutífera. Godard, por
outro lado, censura Rocha por sua “mentalidade de produtor”, por pensar
demais nos chamados termos práticos de produção, distribuição, mercados etc.,
assim perpetuando as estruturas capitalistas do cinema, levando-as ao Terceiro
Mundo – e negligenciando, no processo, questões teóricas urgentes que
61
precisam ser consideradas se o cinema do Terceiro Mundo pretende evitar a
simples repetição dos erros ideológicos do cinema ocidental.
Que tipo de erros ideológicos Godard poderia ter em mente? Bem, voltemos à
seqüência da encruzilhada em Vento do Leste. Se a nossa associação da bola
vermelha de plástico com o “balão vermelho” de Lamorisse estiver correta,
então esta seqüência pode ser lida assim: o cinema, em um estágio muito
fecundo de desenvolvimento criativo, se volta para o Terceiro Mundo procurando
aconselhamento e direcionamento quanto à relação adequada entre o cinema
e a sociedade (“cinema político”). Recebendo uma resposta de certa forma
equivocada de Glauber Rocha, mas suficientemente impressionado pelo que
ele coloca sobre o cinema do Terceiro Mundo (e talvez impressionado pela
maneira como ele argumenta – ou melhor, canta – em Português), o cinema
toma o caminho do cinema no Terceiro Mundo, para descobrir, alguns passos
à frente, que o cinema do Terceiro Mundo está se transformando em uma série
de imitações terceiro-mundistas de O balão vermelho. Desencorajado, o cinema
rapidamente decide que o verdadeiro avanço não está nessa direção, mas sim
em prosseguir pelo caminho de aventura estética e questionamento filosófico –
um caminho que a mulher resolutamente toma.
Agora surge a pergunta: o que há de errado com O balão vermelho? Quais erros
ideológicos, inerentes ao cinema ocidental, se manifestam neste filme? A que
poderíamos possivelmente nos contrapor na charmosa história sobre um menin-
inho francês e um balão vermelho que o segue onde quer que ele vá, como um
cachorrinho brincalhão? Podemos também lembrar que André Bazin dedicou um
de seus ensaios mais importantes (“Montagem invisível”, no volume I de O que
é o cinema?) a O balão vermelho e a outro curta popular de Lamorisse, Crin
blanc. O argumento de Bazin, um trampolim para o desenvolvimento de sua
estética realista, era que, mesmo em um filme de fantasia tão imaginativa
como O balão vermelho, era essencial (ontologicamente essencial) manter a fide-
lidade cinematográfica à realidade, “o simples respeito fotográfico pela unidade
espacial”. O fato de ter sido usado um truque para permitir que o balão parecesse
seguir o menino não era de importância para Bazin, desde que o truque não fosse
uma trucagem – como era, na sua opinião, a montagem. O que importava era
simplesmente que tudo o que fosse visto na tela tivesse sido fotografado
como realmente aconteceu no tempo e espaço. O que não podíamos ver (como
um fio de náilon imperceptível a permitir que Lamorisse controlasse os movi-
mentos do balão) não importava para Bazin, desde que o que nós víssemos
tivesse efetivamente acontecido, fosse pris sur le vif (capturado ao vivo) pela
câmera, não tendo sido adulterado em laboratório ou na moviola.
62
E Bazin não se importava nem um pouco (na verdade, o conceito se encaixava
perfeitamente em seu idealismo humanista burguês) que sua fidelidade à
“realidade” servisse como um trampolim para pretensões metafísicas simplistas
e moralização sentimental – como, por exemplo, em O balão vermelho, em
que a luta entre o menininho e uma gangue de rua simboliza a luta entre o Bem
e o Mal, com o Mal vencendo aqui na Terra e o balão estourando, mas o Bem
vencendo em uma outra esfera “mais elevada”, com milhares de outros balões
miraculosamente descendendo do firmamento, erguendo o menininho e o
carregando para o céu.
Para Bazin, conforme revelado por uma leitura cuidadosa, todos os caminhos levam ao
céu. A terminologia religiosa que aparece repetidamente em seus escritos certa-
mente não tem nada de coincidência ou mesmo de meramente metafórica. Todo
o sistema estético de Bazin se baseia em uma estrutura mística e religiosa (cató-
lica) de transcendência. A fiel "reflexão da realidade", na verdade, nada mais é do
que um pré-requisito – e em última instância simplesmente um pretexto – para
encontrar uma “verdade transcendental” que supostamente existe na realidade e
é “miraculosamente” revelada pela câmera. A realidade, se estudarmos Bazin com
atenção, rapidamente se despe de sua casca material e é “elevada” a uma esfera
puramente metafísica (que poderíamos justificadamente chamar de teológica).
Dada a menor oportunidade (como quando escrevendo sobre Journal d’un curé de
campagne de Bresson), Bazin chega a revelar o segredo – e seu abuso flagrante
do termo “fenomenologia” alcança um pináculo de absurdo em “uma fenome-
nologia da graça de Deus”. Mas mesmo ao escrever sobre um filme como Terra
sem pão, de Buñuel, que é uma documentação mordaz da condição material
de uma população específica (os habitantes do vale de Las Hurdes) em um país
específico (Espanha), sob uma coligação específica de classes prevalentes (da
burguesia e da Igreja Católica), tudo isso apresentado com amarga ênfase no
próprio filme, Bazin ainda consegue varrer a poeira material para debaixo do
tapete, tão rapidamente que é difícil saber o que foi visto e escapar de forma
imediata para as poeiras mais edificantes do paraíso.
Foi observado2 que, em seu artigo sobre Terra sem pão, Bazin nem sequer menciona
as palavras “classe”, “explorada”, “rico”, “capitalismo”, “propriedade”, “prole-
tariado”, “burguesia”, “ordem”, “dinheiro”, “lucro” etc. E quais são as palavras
que encontramos em seu lugar? Expressões grandiosas, conceitos abrangen-
tes e generosos que são a matéria-prima de uma extensa tradição do idealismo
humanista burguês – como “consciência”, “salvação”, “tristeza”, “pureza”, “inte-
gridade”, “crueldade objetiva do mundo”, “verdade transcendental”, “crueldade
da condição humana”, “infelicidade”, “a crueldade na Criação”, “destino”, “horror”,
63
“piedade”, “Madona”, “miséria humana”, “obscenidade cirúrgica”, “amor”,
“dialética pascaliana” (tinha de ser pascaliana!), “toda beleza de uma Pietà
espanhola”, “nobreza e harmonia”, “presença do belo no atroz”, “um infernal
paraíso terrestre” etc. etc.
E não se trata de um caso único, seja nas escritas de Bazin ou na ideologia burguesa
em geral. Quanto mais generosos e gerais os conceitos, mais fácil é cobrir a falta

[ 2 ] Vide a interpretação crítica de Gerard Gozlan sobre Bazin em Positif, nºs. 46 e 47 (junho e julho de 1962).
de uma análise materialista, voltada ao processo da sociedade humana e que,
caso ocorresse, revelaria alguns fatos duros e desagradáveis que poderiam
fazer as pessoas começarem a se rebelar. Em resumo, a ideologia é pelo
menos tão eficiente no que deixa de dizer – naquilo que mantém oculto –
quanto no que diz.
Godard lamenta a forma como o cinema, desde seu nascimento, foi desfigurado por
uma ideologia capitalista burguesa que permeia suas próprias fundações teó-
ricas, sem jamais ter sido corretamente diagnosticada, e muito menos corrigida.
Em Vento do Leste, portanto, ele sistematicamente desmonta os elementos
tradicionais do cinema burguês – principalmente conforme exemplificado pelo
Ocidente – e revela o (por vezes oculto e por vezes escancarado) caráter repres-
sivo que o sustenta.
Godard acusa o cinema burguês de colocar demasiada ênfase nos medos e desejos
emocionais mais básicos da audiência, jogando com esses medos e desejos,
sacrificando a inteligência crítica do espectador. E Godard tenta combater esta
tirania das emoções, não porque seja “contra” emoções e “a favor” da racionali-
dade, nem tampouco porque se oponha a que as atitudes e ações das pessoas
sejam influenciadas por sua experiência artística; muito pelo contrário. Mas por
acreditar fortemente que a audiência não deve se deixar explorar, como acon-
tece no cinema burguês, que não deve ser manipulada emocionalmente, mas
deve, sim, ser tratada de forma direta e franca, em um diálogo lúcido que
evoque todas as suas faculdades humanas.
Hoje, no entanto, cada elemento de um filme burguês é calculado para convidar a
audiência a se perder em uma experiência emocional “vivida” de uma chama-
da “fatia de vida”, em vez de assumir uma atitude crítica, analítica, e, em
última instância, política em relação ao que se vê e ao que se ouve. Alguém
poderia perguntar: por que a atitude de um indivíduo em relação a um filme
deveria ser política? A resposta, obviamente, é que o convite para se perder em
emoções ao custo da análise racional já constitui um ato político – implicando
64
em uma atitude política por parte do espectador, sem que este esteja necessaria-
mente ciente disso.
De fato, ao se deixar “tocar” emocionalmente pelo cinema – e até mesmo exigir que
o cinema seja emocionalmente tocante – o espectador se coloca à mercê de
qualquer um que apareça com dinheiro para investir e que se dê ao trabalho
de garantir que a audiência se sinta “tocada”. Mas as pessoas que têm dinheiro
suficiente para investir também têm um interesse oculto em assegurar que as
audiências sejam tocadas na direção certa, ou seja: em uma direção que
perpetue a posição vantajosa do investidor, em um sistema econômico que
permita a existência de enormes desigualdades na distribuição das riquezas.
Resumindo, o cinema (bem como a televisão) funciona como uma ferramenta
ou arma ideológica, usada pela classe prevalente-proprietária para ampliar o
mercado para os sonhos burgueses que vende.
Além disso, como Godard afirma em Vento do Leste, o cinema tenta vender os sonhos
burgueses como realidade, inclusive jogando com os efeitos de intensificação e
enaltecimento cinematográficos, numa tentativa de nos fazer acreditar que os
sonhos burgueses que aparecem em nossas telas de cinema são, de alguma
maneira, fantásticos, que são não apenas “reais”, mas, de certa forma, “mais
reais que a realidade”. No cinema burguês, tudo conspira para este efeito:
a linha de atuação é ao mesmo tempo “realista” e fantástica; os cenários são
“realistas” (ou, se filmados em locação, simplesmente reais), mas também
são cuidadosamente escolhidos por sua beleza e por seu aspecto extraordinário.
O mesmo vale para os figurinos, roupas, jóias e maquiagem usados pelos atores
e atrizes, que também são cuidadosamente escolhidos por sua beleza e seu
aspecto extraordinário. Por fim, até mesmo o som no cinema burguês é usado
para nos passar a ilusão de estarmos escutando, às escondidas, um momento
de realidade, em que os personagens estão cegos à nossa presença e simples-
mente vivendo as emoções de suas “vidas reais”.
Desde Weekend à francesa, Godard passou a rejeitar o diálogo convencional do
cinema, por achar que ele contribui para esta ilusão mal-direcionada de realidade,
tornando ainda mais fácil para a audiência se imaginar ali com as pessoas na tela,
presente porém “a salvo”, em uma posição perfeita (a de um bisbilhoteiro, de um
voyeur) para uma participação vicarial na emoção do momento. Resumindo, o
cinema burguês finge ignorar a presença do espectador, finge que o que está
sendo dito e feito na tela não é direcionado para o espectador, finge que o cine-
ma é um “reflexo da realidade”; e ao mesmo tempo joga constantemente com as
emoções da audiência e capitaliza seus mecanismos de identificação-projeção, a
fim de induzi-la, de forma sutil, insidiosa, inconsciente, a participar dos sonhos e
65
fantasias que são vendidos pela sociedade capitalista burguesa.
Existe uma seqüência excelente em Vento do Leste na qual Godard demonstra e
desmistifica o que acontece por trás da fachada do cinema burguês. A trilha
sonora explica que “dentro de alguns segundos você irá ver e ouvir um perso-
nagem típico do cinema burguês. Ele está em todos os filmes e sempre faz o
papel de um Don Juan. Ele irá descrever a sala em que você está sentado”.
Vemos então o close-up de um belíssimo jovem ator italiano parado na beirada
de um riacho borbulhante, olhando diretamente para a câmera. Atrás dele –
mas fotografado de modo que a percepção de profundidade seja muito reduzida
e a imagem, como um todo, seja marcadamente plana – ergue-se o talude
gramado e verde da margem oposta do rio.
O jovem fala em italiano, enquanto vozes na trilha sonora nos dão a tradução tanto em
francês como em inglês. A tradução, contudo, é em voz indireta. A voz nos informa:
“Ele diz que a sala está escura. Vê pessoas sentadas na parte de baixo e
também em cima, no balcão. Diz que tem um velho feioso ali, todo encarqui-
lhado; e acolá, ele diz que vê uma garota jovem e bela. Diz que gostaria de dormir
com ela. Pede que ela suba na tela com ele. Ele diz que é lindo lá em cima, com
o sol brilhando, árvores verdejantes em todas as partes e várias pessoas felizes se
divertindo. Ele diz que se você não acredita nele, olhe …” Neste ponto a câmera
move-se subitamente para trás e para cima, mantendo o jovem em foco no canto
direito do quadro, enquanto revela no lado esquerdo – que parece estar quase
30 metros abaixo do jovem – uma cena de beleza estonteante, mos-
trando uma cachoeira que deságua numa piscina natural em um vale estreito e
sombreado, onde jovens mergulham e nadam na água límpida.
Trata-se de uma tomada magnífica. A imagem em si é de extrema beleza, e o
mais surpreendente é a complexa reestruturação do espaço conseguida
através de um simples movimento da câmera. Mas se pararmos para pensar
sobre esta seqüência e sobre seu deslumbrante desenlace, percebemos que
tudo nela é um engodo calculado, direcionado aos sonhos e fantasias da
audiência. O homem é jovem e belo. Quando fala, menospreza a idade e a
feiúra, e glorifica a juventude e o glamour. O que ele quer é sexo, o que ele
oferece é sexo. Na tela, ele nos garante, tudo é belo e as pessoas são felizes.
E esta súbita reestruturação do espaço nos convida, literalmente e por si só, para den-
tro da imagem. Como acontece geralmente no cinema burguês, o mundo
capitalista burguês é apresentado como sendo de grande profundidade, de
uma riqueza inexaurível, e infinitamente convidativo. E a predileção do cine-
ma burguês por uma fotografia com grande profundidade de campo (vide
Bazin) enfatiza a ilusão de que “você está na tela”, e portanto mascara sua
66
própria presença (e o ato de apresentar esta imagem) atrás de uma falsa mo
déstia calculada, que se oculta para fazer o cinema parecer ser o humilde servo
da realidade, ao invés do que é na realidade: o criado bajulador e arrogante da
classe prevalente. O cinema burguês flerta com o espectador, adulador e
lisonjeiro, para que ele suba à tela e se junte às “pessoas belas” para um pouco
de sexo e lazer em um lugar idílico. E o seu grande trunfo é a estonteante
capacidade de oferecer emoções visuais excitantes.
Isto mais uma vez levanta o problema da beleza visual no cinema político; mas também
demonstra como Godard usa esta beleza de novas maneiras, que servem para
desmistificar seus usos antigos no cinema burguês (e nos tornar menos
vulneráveis a eles). Afinal, se a beleza (como a linguagem) é uma das armas
que a classe prevalente usa para nos acalmar e nos “manter em nossos devidos
lugares”, então uma de nossas tarefas seria voltar essa mesma arma contra nossos
opressores. Uma forma de fazer isso seria desmistificar a beleza e mostrar como
ela é usada contra nós; outra maneira seria efetivar uma “transvaloração de
valores”, fazemos do conceito burguês de beleza um vício, ao mesmo tempo
tornando um conceito diferente de beleza em uma virtude (por exemplo, “Black
is beautiful”) que a burguesia será incapaz de reconhecer ou aceitar. Em seus
filme desde Weekend à francesa, Godard utiliza ambas as táticas. Seus filmes
agora têm um visual bastante diferente, que muitos não conseguem
considerar “belo”, e sempre existe algum elemento cinematográfico ou uma
justaposição de elementos que chama atenção para como esta “beleza” é con-
seguida e como é usada como arma ideológica.
Sejam quais forem os prós e contras no que diz respeito à “beleza” em um filme
militante, certamente não faz sentido criticar o uso que Godard faz da beleza
visual em Vento do Leste sem antes compreender como e por que ele a usa –
ou, pior ainda, criticá-lo por tentar “tocar” as pessoas emocionalmente, como
faz o cinema burguês, mas sem ter sucesso nessa tentativa, já que as suas ima-
gens são de uma beleza extremamente formal e austera, provocando de algu-
ma forma uma sensação de desligamento, em vez de atuar como um estimu-
lante. Inexplicavelmente, é exatamente isto que Glauber Rocha parece fazer
quando, em seu artigo na revista Manchete, critica a cena do “oficial da cavalar-
ia americana” atacando a garota militante (Anne Wiazemsky) por não ser, na
verdade, nem um pouco assustadora, mas apenas bela. O que Rocha parece
não perceber é que Godard não quer que a cena seja assustadora: ele a torna
bela precisamente para garantir que não seja assustadora. Enquanto o oficial
(Gian Maria Volonté) torce o pescoço da garota e grita com ela, alguém fora da
tela atira neles uma espessa tinta vermelha que gruda nos cabelos castanhos
67
dela e respinga na jaqueta azul-marinho do oficial. O efeito visual, com sua rica
interação de cores e texturas, é impressionante, e serve para nos distanciar da
ação e da emoção que a cena de outra forma poderia provocar.
Alguns momentos depois, Godard nos mostra outra cena similar, só que desta vez
tratada no estilo mais emotivo do cinema burguês. Em vez de filmar por trás do
ombro direito da garota, como na cena anterior de “tortura” (com o torturado
e a vítima face a face, mas apenas o rosto do torturador visível para a audiência),
Godard agora posiciona o torturador segurando a garota por trás. Assim a cena
pode ser filmada de modo a revelar os rostos de ambos em um close-up frontal,
com enquadramento, composição e iluminação chamando nossa atenção par-
ticularmente para as caretas de dor da moça. Desta vez, no entanto, não há
nenhuma tinta sendo jogada e nenhum elemento abertamente teatral de dis-
tanciamento. O que temos é apenas uma excelente atuação de Anne
Wiazemsky, que realmente parece estar estremecendo de dor. Em um filme
burguês, esta cena poderia ser bastante dolorosa ou assustadora para a audiên-
cia (principalmente se a garota gritasse, como o cinema burguês adora retratar
suas atrizes), mas nesse filme, vindo depois da cena anterior de tortura com a
tinta sendo atirada, seu efeito doloroso ou assustador é minimizado (observe
que eu não digo que é eliminado), e nossa inteligência crítica é alertada para
analisar as diferenças no tratamento das duas cenas.
Mais adiante, nossas faculdades críticas são novamente alertadas de maneira similar
em uma seqüência em que o oficial da cavalaria passeia em seu cavalo, dando
porretadas nos obstinados prisioneiros – outra cena que Rocha acredita ser de
extrema beleza, mas critica por acabar não sendo brutal da maneira que ele (e
mesmo Ventura, o editor de som de Vento do Leste) acredita fosse a intenção
do diretor. O que Godard fez nessa seqüência foi utilizar algumas das técnicas
empregadas com muita freqüência pelo cinema burguês para este tipo de cena
de ação violenta: aumentar bastante o volume do som e usar movimentos
abruptos da câmera continuamente. Tais artifícios normalmente resultam em
uma elevada intensidade emocional e uma sensação muito visceral de violên-
cia e confusão. (Lembre-se do seu uso em Tom Jones.) Mas Godard faz uma
importante alteração nestes elementos que transforma completamente nossa
reação a esta seqüência.
Sua câmera realmente faz, continuamente, movimentos abruptos; mas também traça
um padrão formal bastante preciso – oscilando abruptamente cerca de 35 graus
para a esquerda e então 35 graus para a direita, diversas vezes, depois oscilando
cerca de 35 graus para cima, depois 35 graus para baixo, e assim por diante,
explorando de maneira bastante formal o espaço fechado da luxuriante ravina
68
onde a ação ocorre. A qualidade puramente formal destes movimentos da
câmera (admirado, Rocha os proclamou como sendo “sem precedentes em
toda a história do cinema”) é eficaz em nos distanciar da ação e nos prevenir
de reagir emocionalmente a ela. Em resumo, esta seqüência não foi idealizada
para ser brutal, e sim para chamar nossa atenção para a forma como o cinema
burguês faria com que se tornasse brutal – desta forma, nos brutalizando.
Como nas cenas de “tortura”, nossa inteligência crítica é alertada para comparar a
maneira como diversos elementos cinematográficos são normalmente usados e
os efeitos que produzem com a maneira bastante diferente como são usados
por Godard e os efeitos bastante diferentes que produzem em Vento do Leste.
Ou, pelo menos, é isso que deveria acontecer. Mas, se mesmo uma pessoa
como Glauber Rocha não consegue ver o que Godard está fazendo e por quê,
então há algo de errado em algum lugar. É claro que seria conveniente jogar
toda a culpa em Godard, dizer que seus experimentos com imagem e som são
simplesmente complexos demais ou obscuros demais para serem compreen-
didos. Mas acredito que este argumento é mais uma desculpa para a preguiça
intelectual, que não justifica o desmerecimento de Godard. Seus experimentos
com elementos do cinema não são difíceis de entender; afinal, ele faz questão
de criticamente chamar a atenção para o que está fazendo. E tudo o que ele
pede é que a audiência colabore com um pouco de pensamento crítico próprio,
em vez de simplesmente sentar e esperar que joguem com suas emoções.
Não, o que está errado não é o que Godard faz com a imagem e o som; mas
sim a forma como mesmo aqueles que deveriam ter uma melhor compreensão
do todo olham e escutam essas imagens e sons. O que está errado é o hábito
tremendamente arraigado que temos de ver os filmes de uma maneira bur-
guesa. O que está errado é que esperamos que até filmes politicamente mili-
tantes expressem sua militância na mesma linguagem que os filmes burgueses
usam para inculcar os sonhos e fantasias do capitalismo burguês. O que está
errado é que até mesmo dentre os principais cineastas do mundo – e mesmo
dentre aqueles que buscam uma transformação revolucionária da sociedade –
não há uma reflexão nem de perto suficiente sobre as questões teóricas dos
usos e abusos da imagem e do som e sobre as formas de se
construir novas relações entre eles que não mais explorem a audiência, mas,
ao contrário prendam-na de forma aberta e direta em um diálogo lúcido, em
que a outra parte deve ser cada indivíduo.
Mas, da forma como as coisas são hoje, o espectador raramente parece ver o cine-
ma como um diálogo entre ele mesmo e o filme, estando mais que pronto a
renunciar à sua própria parte ativa nesse diálogo, cedendo a ferramenta de
69
interlocução exclusivamente para as pessoas no filme. E quanto mais emo-
cionalmente carregado um diálogo no filme, mais a audiência se sente “tocada”
por ele. Em Vento do Leste, no entanto, esta passividade habitual é desafiada
desde o início, quando Godard nos oferece uma cena de abertura que incita
nossa curiosidade (um homem e uma mulher jovens são vistos deitados
imóveis no chão, os braços atados por uma pesada corrente), mas sistematica-
mente frustra nossas expectativas, simplesmente mantendo a tomada por quase
oito minutos sem qualquer ação (o homem se mexe o suficiente para gentil-
mente tocar a face da mulher em um dado momento) ou diálogo. De fato,
quando o “comentário” em voz over finalmente começa (sobre os “murmúrios
da floresta” que ouvimos), o que temos não é um diálogo, mas uma crítica
de diálogo.
Ostensivamente falando sobre táticas de greve em alguma disputa trabalhista, a nar-
radora afirma em certo momento que é o diálogo que é necessário, mas este
diálogo normalmente é cedido a um “representante qualificado”, que traduz as
exigências dos trabalhadores na linguagem dos chefes e, ao fazer isso, trai as
pessoas que supostamente representa. Esta discussão em voz over sobre a der-
rota do diálogo se refere claramente aos diálogos de barganha que ocorrem
entre a mão-de-obra e o capital, e alguns minutos mais tarde, na próxima
seqüência, ocorre uma demonstração (no estilo de um faroeste) da maneira
como o “representante qualificado” (o representante do sindicato) distorce as
exigências reais dos trabalhadores (para a subversão revolucionária do sistema
capitalista que os explora), traduzindo tais exigências em termos com os quais
os patrões consigam lidar (salários mais altos, menos horas, melhores
condições de trabalho etc.). De uma maneira estranha e criteriosa, no entanto,
esta discussão do fracasso do diálogo nas mãos de um “representante qualifi-
cado” também se refere ao fracasso do diálogo contido no “conceito de repre-
sentação burguês” do cinema.
“O que precisamos é de diálogo” – esta declaração no “comentário” em voz over
parece ecoar nossos próprios pensamentos conforme assistimos essa cena de
extensão exasperante, estática e sem diálogo. Estamos impacientes para
“começar o filme”, impacientes para o desenrolar do enredo. Imaginamos por
que o jovem casal está deitado no chão e por que estão acorrentados um ao
outro. Desejamos que eles ao menos recobrem a consciência o suficiente para
começar uma conversa, para que possamos descobrir, através de seu diálogo,
o que está acontecendo – ou seja, o que está acontecendo com eles. Como é
normal, no cinema não nos perguntamos o que está acontecendo conosco. Não
nos perguntamos por que um filme nos trata de uma certa maneira. Na ver-
70
dade, raramente pensamos que o filme se dirija a nós, ou, na verdade, a qual-
quer pessoa. Nós nos sentamos e aceitamos o acordo tácito de que um filme é
um “reflexo da realidade”, capturado no espelho daquele mágico “olho de
Deus” que é a câmera cinematográfica. Sentamo-nos passivamente e espe-
ramos que o filme nos leve pela mão, ou, mais literalmente, pelo coração.
Abrimos mão do nosso diálogo com o filme; e quando isso acontece, o filme deixa de
falar conosco, ou mesmo para nós, passando a falar por nós, em nosso lugar. E
na sociedade capitalista burguesa, os filmes (como a televisão) falam a língua
das grandes empresas, que buscam constantemente nos forçar mais bens goela
abaixo, fazendo com que gostemos de ser alimentados à força, fazendo com
que desejemos o próprio estado que perpetua nossa condição explorada e
alienada. Ao deixar um filme falar por nós, permitimos que nossas necessidades
reais sejam distorcidas nas necessidades artificiais que as grandes empresas
querem que tenhamos. Somos cúmplices em nossa traição.
O que deve ser feito, então, para nos tirar desta situação deplorável? Como a narradora
em voz over coloca em Vento do Leste: “Hoje a pergunta ‘o que se deve fazer?’
é feita com urgência para cineastas militantes. Não se trata mais da questão de
qual caminho tomar; é a questão de o que devemos fazer em termos práticos
num caminho que a história de lutas revolucionárias nos ajudou a reconhecer.
Fazer um filme, por exemplo, é perguntar-se: ‘qual é a nossa posição?’. E o que
esta questão significa para um cineasta militante? Significa, primeiro, mas não
exclusivamente, abrir um parêntese no qual nos perguntamos o que a história
do cinema revolucionário pode nos ensinar”.
Segue então um breve histórico sobre alguns dos altos e baixos do que poderíamos
qualificar como cinema revolucionário, começando com a admiração do
jovem Eisenstein por Intolerância, de D. W. Griffith. Griffith certamente foi
uma influência decisiva para Eisenstein e, através de Eisenstein, para o
primeiro grande capítulo do cinema revolucionário: o filme mudo russo. Mas
a comentarista em Vento do Leste afirma que, de um ponto de vista revolu-
cionário, este empréstimo da técnica do expressivo arsenal de um “imperia-
lista norte-americano” (Griffith) no fim fez mais mal do que bem, represen-
tando uma derrota na história do cinema revolucionário. Como conseqüência
deste erro ideológico inicial, afirma, Eisenstein confundiu tarefas primárias e
secundárias e, em vez de glorificar os conflitos do presente, glorificou a revolta
histórica dos marinheiros do encouraçado Potemkin. Como uma segunda
conseqüência, em 1929, quando fez A linha geral (também conhecido como
O velho e o novo), Eisenstein conseguiu achar novas maneiras de expressar a
repressão czarista, mas somente através da utilização das mesmas velhas
71
formas para expressar o processo de coletivização e reforma agrária. Neste
caso, afirma, em última instância, o “velho” venceu o “novo” – e, assim,
Hollywood não teve problemas em contratar Eisenstein para filmar a revo-
lução no México, enquanto ao mesmo tempo, em Berlim, o doutor Goebbels
pedia que Leni Riefenstahl fizesse “um Potemkin nazista”.
Tudo isso pode soar um pouco herético e talvez arbitrário, mas, na verdade, temos
aqui um argumento bastante perceptivo, se acompanhado atentamente. As
mesmas técnicas que Griffith usou para glorificar, em retrospecto, a antiga causa
racista dos brancos sulistas na Guerra Civil Americana foram retomadas e
desenvolvidas por Eisenstein para glorificar, em retrospecto, um episódio que já
datava 20 anos (o motim no encouraçado Potemkin ocorreu em 1905) e que
nem sequer era um episódio particularmente importante na história da
Revolução Russa. Mais tarde, quando confrontado com a tarefa de lidar com
questões de urgência contemporânea (coletivização), Eisenstein somente foi
capaz de se valer das mesmas velhas técnicas, então ainda mais velhas. E, mais
adiante, estas mesmas técnicas se mostraram perfeitamente compatíveis com a
propaganda dos nazistas: o próprio Eisenstein foi considerado, não de forma
totalmente injustificada, como sendo “cooptável” por Hollywood.
O problema é que as formas cinematográficas que Eisenstein herdou de Griffith e
então desenvolveu não eram suficientemente flexíveis para lidar com as com-
plexidades dos acontecimentos do presente, mas eram bastante adequadas para
documentários emocionalísticos e reconstituídos da história passada. Além disso,
precisamente por enfatizarem o aspecto emocional da história “vivida”, do tipo
“você estava lá”, era muito fácil usar tais formas cinematográficas para incitar o
envolvimento emocional das pessoas, até mesmo em doutrinas tão aberrantes
como as da “pureza racial” e da obediência cega ao Führer, de Hitler.
O próximo a ser submetido a um escrutínio crítico é Dziga Vertov, em cujo nome
Godard fundou sua cooperativa de cineastas militantes. Vertov leva o crédito de
alcançar uma vitória para o cinema revolucionário ao declarar que “não existe
um cinema que se posicione acima das classes, um cinema que se posicione
acima da luta de classes” e que “o cinema é apenas uma tarefa secundária na
luta mundial pela liberação revolucionária”. Mas Vertov falha por esquecer que,
nas palavras de Lenin, “a política comanda a economia”. Como resultado, seu
filme O décimo primeiro ano não exalta os 11 anos de sólida liderança política
nas mãos da ditadura do proletariado, glorificando, em vez disso, a economia
emergente e a indústria em rápido desenvolvimento da Rússia, exatamente nos
mesmos termos emocionais que a propaganda capitalista usa para aclamar seu
próprio crescimento econômico. “Foi nesse momento”, afirma a comentadora de
72
Vento do Leste, “que o revisionismo invadiu as telas de cinema soviéticas
de uma vez por todas”.
Próxima no resumo do cinema revolucionário está a “falsa vitória” do início da déca-
da de 1960, quando governos progressistas africanos, tendo conseguido sua
revolução e expulsado os imperialistas, “os deixam voltar, entrando através da
janela de uma câmera de vídeo”, entregando a produção de filmes para a velha
indústria de cinema européia e americana – “assim dando a cristãos brancos o
direito de falar em nome de negros e árabes”. Finalmente, uma vitória pode ser
reivindicada para o cinema revolucionário no recente relatório da camarada
Kiang Tsing3 (esposa de Mao), no qual foi denunciada a teoria da “estrada real
do realismo”, juntamente com uma denúncia da maioria dos cânones das antigas
estéticas stalinistas do “realismo socialista”.
Por toda esta breve visão geral do cinema revolucionário corre o fio unificador da
necessidade de se pensar de forma completa sobre as fundações teóricas da
práxis do cinema. Se existe algo que nós (juntamente com Godard) podemos
apreender com a história do cinema revolucionário, é que se um cineasta
pretende evitar favorecer inadvertidamente os opressores, uma vigilância
autocrítica constante é claramente necessária. E se o compromisso de um
cineasta com a liberação revolucionária é mais que uma mera identificação
emocional com o oprimido, então sua prática cinematográfica deve ir além das
emoções e dos mecanismos de identificação-projeção da audiência. Além do
mais, se ele está firmemente convencido (como é o caso de Godard) que o
processo de liberação revolucionária envolve muito mais que a simples
vingança do oprimido e oferece a possibilidade concreta de colocar um fim em
toda perseguição (em outras palavras, de criar uma sociedade mais justa, na
qual o livre desenvolvimento do indivíduo trabalha em prol ao invés de contra
o livre desenvolvimento do próximo), então a tarefa urgente do cineasta é criar
formas cinematográficas que trabalhem, elas mesmas, em prol e não contra o
livre desenvolvimento do espectador, formas que não manipulem suas
emoções ou seu inconsciente, mas que forneçam uma ferramenta analítica a ser
utilizada para lidar com a complexidade do presente.
E a autocrítica é parte integrante do cinema analítico de Godard, conforme teste-
munhado pelo fato de a segunda metade de Vento do Leste se dedicar a uma
crítica dos seus próprios trabalhos anteriores. A primeira e mais séria crítica
apresentada é sobre sua própria falta de contato anterior (e presente insuficiên-
cia) com as massas. (Desde que começou a trabalhar coletivamente com o
Grupo Dziga Vertov, depois de maio de 1968, Godard vinha tendo contato cada
vez mais freqüente e produtivo com grupos de trabalhadores militantes, em
73
particular em Issy-les-Moulineaux, nos arredores de Paris.) Em segundo lugar,
ele critica a abordagem de “sociologia burguesa” no cinema, na qual o cineasta
mostra a miséria das massas mas não mostra suas lutas. (Enquanto esta crítica
é feita no comentário, vemos uma série de tomadas de casas de favela e

[ 3 ] Vide “Summary of the Forum on the Work in Literature and Art on the Armed Forces with which Lin Piao

Entrusted Comrade Kiang Tsing” (“Sumário do fórum sobre o trabalho em Literatura e Arte nas Forças Armadas que
Lin Piao confiou à camarada Kiang Tsing”), Foreign Language Press, Pequim, 1968.
modernos prédios altos de apartamentos, como aqueles que Godard
fotografou para Duas ou três coisas que eu sei dela, filme ao qual ele se referiu
como sendo “um ensaio sociológico”.) O problema com esta abordagem, bem
como com o cinema-verdade, afirma, é que, ao não mostrar as lutas das
massas, a sua capacidade de lutar enfraquece; e a implicação é que a imagem
de sua miséria no cinema simplesmente reforça sua própria auto-imagem de
miséria, enquanto, por outro lado, a imagem de suas lutas no cinema reforça
sua capacidade de continuar a lutar.
Finalmente, aponta que o cinema contemporâneo na Rússia (“Brezhnev-Mosfilm”) é
perfeitamente intercambiável com o cinema contemporâneo nos EUA (“Nixon-
Paramount”); e que os dois juntos são perfeitamente intercambiáveis com o
que se passa por cinema “progressivo” em festivais de filmes de vanguarda em
toda Europa. Estes chamados filmes “independentes”, afirma, são revisionistas
porque não questionam as relações entre imagem e som no cinema burguês,
e porque, apesar de terem quebrado os velhos tabus burgueses de sexo,
drogas e poesia apocalíptica, continuam a sustentar o mais importante de todos
os tabus burgueses – aquele que proíbe a representação da luta de classes.
(A autocrítica também está claramente implícita nesta declaração, já que a
mesma abordagem poderia ser usada – e foi, pelo próprio Godard – em todos
os seus próprios filmes inclusive, Weekend à francesa.)
Mas a autocrítica de Godard não emerge de uma autodúvida mórbida, de derrotismo,
ou de um desejo de autodestruição, como Glauber Rocha argumenta de forma
deveras vingativa em seu artigo sobre Vento do Leste. Pelo contrário, a autocríti-
ca tem um papel importante na atual prática do cinema de Godard (e, na ver-
dade, sempre teve – ao menos de forma implícita), pela simples razão que
Godard, como Mao, considera a autocrítica uma atividade construtiva da maior
importância. (E, no cinema, como já vimos, urge este tipo de verificação sobre
o poder quase unilateral exercido pelo cineasta sobre sua audiência.)
Os filmes recentes de Godard são certamente politicamente penetrantes; mas apesar do
74
“comentário” verbal ser proeminente – se não preeminente – os filmes não são
exortatórios. Não há nada de demagógico na abordagem de Godard, seja do cine-
ma ou da política. Em termos de método cinematográfico, Vento do Leste é o pólo
oposto de filmes como O triunfo da vontade, de Riefenstahl, ou Encouraçado
Potemkin, de Eisenstein. E, de fato, Sons britânicos, Pravda, e Vento do Leste de
Godard são muito distantes em termos de método cinematográfico de Deus e o
Diabo na terra do sol, Terra em transe, e O dragão da maldade contra o santo
guerreiro, de Glauber Rocha. Existe um forte tom messiânico nos filmes de Rocha,
que é bastante discrepante da maneira de Godard construir um filme. (É bem
claro, aliás, que os braços abertos de Rocha em Vento do Leste – sugerindo um
paralelo entre Rocha e Cristo – constituem um comentário irônico de Godard
sobre os aspectos messiânicos do estilo dos filmes de Rocha.)
E embora tanto Rocha como Godard estejam comprometidos com a luta global pela libe-
ração revolucionária, suas divergências sobre como a revolução pode se desen-
volver e como o cinema pode contribuir para este desenvolvimento são claras.
Rocha adota a abordagem espontânea que desconsidera quase totalmente a
importância de preocupações teóricas, as quais ele concebe como meros “auxi-
liares” à energia espontânea das massas. Ele expressou sua crença de que “os
verdadeiros revolucionários na América do Sul são indivíduos, personalidades em
sofrimento – não envolvidos em problemas teóricos… a provocação à violência,
o contato com a amarga realidade que pode produzir uma mudança violenta na
América do Sul, este levante apenas pode vir de indivíduos que tenham passado
por um sofrimento pessoal, e tenham percebido que a necessidade de mudar
está presente – não por razões teóricas, mas por questões de agonia pessoal”. 4
E Rocha enfatiza sua crença de que a verdadeira força das massas sul-americanas
está no misticismo, em “um comportamento emocional, dionisíaco”, que para ele
surge de uma mistura de catolicismo e religiões africanas. A energia que tem sua
fonte no misticismo, segundo Rocha, é o que, em última instância, levará as
pessoas a resistir à opressão – e é esta energia emocional que Rocha busca fazer
fluir em seus filmes.
Godard, por outro lado, rejeita a abordagem emocional por ela favorecer o inimigo e
busca combater a mistificação em qualquer forma, venha ela da direita ou da
esquerda. Embora não haja indicação de que Godard subestime a importância da
experiência pessoal agoniada da opressão como um ponto de partida para o
desenvolvimento de uma conscientização revolucionária, ele assume a posição
clara de que existe a necessidade premente de uma organização firmemente
desenvolvida sobre sólidas fundações teóricas, caso o movimento revolucionário
pretenda avançar além do estágio de levantes abortivos, de curta duração, “espon-
75
tâneos” (como os eventos de maio de 1968 na França).
Ao enfatizar a luta teórica, Godard segue no caminho de um revolucionário nada
menos prático que o próprio Lenin, que, em seu panfleto intitulado
Que fazer? (do qual abundam ecos em Vento do Leste), denuncia o “culto da
espontaneidade” e aponta que “qualquer culto à espontaneidade, qualquer

[ 4 ] Gordon HITCHENS, The Way to Make a Future: A Conversation with Glauber Rocha. Film Quarterly, outono de

1970.
enfraquecimento do 'elemento de conscientização lúcida'… significa por si só
– e o fato de se desejar que seja assim ou não é secundário – um reforço da
influência da ideologia burguesa” (itálicos do próprio Lenin).5 Ou, como Lenin
coloca algumas linhas adiante, “o problema se coloca nestes termos e em
nenhum outro: a ideologia burguesa ou a ideologia socialista. Não há um meio
termo (pois a humanidade nunca estabeleceu uma ‘terceira’ ideologia; de qual-
quer forma, em uma sociedade dividida por uma luta de classes nunca poderia
haver uma ideologia acima e além das classes)”. E, mais tarde, “mas por que,
pergunta o leitor, o movimento espontâneo, que tende na direção do mínimo
esforço, leva exatamente à dominação pela ideologia burguesa? Pela simples
razão que, cronologicamente, a ideologia burguesa é muito mais antiga que a
ideologia socialista, é muito mais elaborada, possuindo um número infinita-
mente maior de meios de difusão”. E, por fim: “Quanto maior o espírito espon-
tâneo das massas, e quanto mais o movimento se espalhar, maior a urgência
da necessidade da mais completa lucidez em nosso trabalho teórico, em nosso
trabalho político e em nossa organização”.6
Para que ninguém se sinta tentado, contudo, a tirar conclusões precipitadas (que
Rocha parece encorajar em seu artigo sobre Vento do Leste), considerando que
as diferenças de opinião sobre estratégia revolucionária de Godard e Rocha são
simplesmente o resultado de diferenças culturais entre a situação européia e
aquela do Terceiro Mundo, devemos apontar que mesmo no cinema da
América Latina não há, em parte alguma, suporte unânime para a “abordagem”
espontânea. Cineastas sul-americanos estão cada vez mais seguindo os passos
do cineasta argentino Fernando Solanas (La hora de los hornos), clamando por
uma intensificação da luta teórica organizada e lúcida em nível ideológico.
Deve ser entendido, contudo, que Rocha tem um domínio legítimo quando reclama
da inundação de imitações monstruosas de Godard, apresentadas por alunos de
cinema comodistas no Terceiro Mundo e em outras partes. Mas Godard não
pode ser culpado por isso. (Alguém acredita, por um único instante, que estes
76

[5 ] LENIN, Que faire? Editions Sociales, Paris, 1969. Todas as traduções da edição francesa foram feitas pelo autor.
[6 ] Esta última afirmação se aproxima mais da qualificação posterior de Lenin da posição adotada em Que fazer?
– posição, conforme ele indicou, que representa uma resposta tática emergindo da análise concreta de uma situação
concreta (as disputas de 1902 entre diversas facções esquerdistas). Mais tarde, quando os perigos potenciais da
posição espontânea não representavam mais uma ameaça tão grande à revolução, Lenin abrandou os ataques à
espontaneidade e pediu uma abordagem mais dialética da “espontaneidade organizada e organização espontânea”.
(Para maiores informações a este respeito, vide a excelente edição especial sobre Lenin-Hegel de Radical America,
setembro-outubro de 1970).
mesmos alunos não estariam comodamente criando monstruosidades caso
Godard não existisse?) Além do mais, se existe algo que pode combater com
eficácia o tipo de comodismo impensado que caracteriza não apenas a maioria
dos filmes de estudantes de cinema, mas simplesmente a maioria dos filmes em
geral, certamente é a práxis teórica extremamente completa, resoluta e autodis-
ciplinada personificada pelos filmes de Jean-Luc Godard.
Uso a expressão “práxis teórica” de forma bastante propositada, já que quero enfati-
zar que teoria e prática não são, de forma alguma, mutuamente exclusivas. A
fim de ilustrar o que eu quero dizer, voltemos mais uma vez para a metáfora da
encruzilhada. O caminho de Godard – que, como ele aponta, nada mais é do
que o caminho que o estudo da história do cinema revolucionário o ajudou a
reconhecer – é o da criação das fundações teóricas do cinema revolucionário
dentro da prática cotidiana de se fazer filmes. O verdadeiro dilema para os
cineastas de hoje não é uma escolha entre a teoria e a prática. O ato de fazer
um filme necessariamente combina ambos – e isso é verdadeiro para um filme
no Terceiro Mundo, na Rússia ou no Ocidente.
Na seqüência da encruzilhada em Vento do Leste, temos até uma forte sugestão
visual de que a intersecção de três vias é simplesmente o ponto onde dois
caminhos – aquele do Terceiro Mundo e aquele que a mulher européia traçou
até agora – convergem e se unem no que não passa de um grande
caminho contínuo de “aventura estética e indagação filosófica”, que combina,
necessariamente, tanto a teoria como a prática.

77

Artigo publicado na revista inglesa Sight and Sound , vol.40, n.3, verão de 1971.
[Glauber e Godard na porta da usina Lumière]
Vento, barravento
O título do filme, tal como desenhado na tela, mistura
italiano e francês: Vento Le Vent d’Est dell’Est.
Escrever assim, uma palavra depois da outra, e
todas com idêntico tratamento gráfico, pode suge-
rir uma dificuldade de leitura que na realidade não
existe no letreiro de apresentação de Vento do Leste.
O cartão com o título do filme privilegia o que está
escrito em francês, no centro do quadro em letras

José Carlos Avellar


grandes e vermelhas, emolduradas pela linha no
alto da tela em letras menores e pretas, Vento, e
pelo que vem no pé da tela, igualmenteem letras
menores e pretas, dell’Est. Nenhuma dificuldade
de leitura, mas esta se recusa a reduzir o título
italiano a uma legenda para traduzir o título original
deste filme franco-italiano: é um modo de levar o
espectador a ler os dois simultaneamente, italiano
e francês, um dentro do outro.
O letreiro com o título fica pouco tempo na tela. Logo
surge a primeira imagem do filme propriamente
dita, a cena que abre a narração, que segue o
mesmo estilo de composição do letreiro e solicita
também uma leitura simultânea: a imagem
fala uma língua, o som outra. Vemos um casal
deitado no chão de um parque, ouvimos uma
discussão sobre uma greve. Como no letreiro de
apresentação, uma discussão em francês (“La
greve”, diz uma voz masculina), e em italiano
(“Sciopero”, diz uma voz feminina).
O espectador pode imaginar que a voz que nos fala
79
da greve é da mulher deitada no parque, que
estaríamos ouvindo sua voz interior — ela estaria
pensando no que ocorrera ali mesmo, na casa
dentro do parque — ou estaríamos ouvindo uma
conversa, o som se antecipando à imagem, que se
esclareceria adiante.
Assim, a mulher deitada no parque é que estaria contando
a viagem para a casa da família do pai, como de
costume no mês de maio;
dizendo que a casa era distante da cidade, no meio de um parque;

que eles jantavam pontualmente às oito horas;

que numa sexta-feira o tio não veio;

que eles ficaram esperando a noite inteira;

que no sábado por volta do meio-dia ficaram sabendo que o tio estava preso no
escritório da fábrica pelos operários em greve;

e que na noite deste mesmo sábado ela surpreendeu uma conversa entre o pai
(dad, diz ela) e seu outro tio (uncle Sam, diz ela) sobre a greve.

O espectador pode imaginar uma fusão entre a imagem e o som, estabelecer uma
relação imediata entre o que vê (um casal deitado na relva, no quadro de
cabeça para baixo) e o que ouve (uma voz feminina contando que ouviu dad
dizer para uncle Sam que os trabalhadores estavam em greve), como se
imagem e som corressem tal como de hábito no cinema, lado a lado, avançando
na mesma direção, seguindo o mesmo caminho. Mas não é propriamente
esta relação que Vento do Leste propõe: imagem e som contam histórias
diferentes, falam línguas diferentes, seguem caminhos diferentes; o que ouvi-
mos não é a voz interior da mulher deitada ao lado do homem no parque.
Vemos/ouvimos uma imagem somente voz. Ela nos conta que o tio, numa
sexta-feira de maio, não veio para o jantar: ficou preso pelos trabalhadores em
greve. Vemos/ouvimos uma imagem somente visual, sem palavras, sem som
algum, que nos fala de um casal deitado num parque assim como uma pintura
ou fotografia costuma contar qualquer coisa. O filme convida a acompanhar si-
multaneamente uma história e outra: o casal que se deixa ficar tranqüilo na
80
relva não tem ligação alguma com a discussão sobre a greve.
Quer dizer, não é bem assim, existe uma relação: assim como a greve mudou a
viagem de todos os anos no mês de maio e o jantar de todo dia às oito da
noite, assim também a greve mudou a relação entre imagem e som neste
filme. Uma coisa aparece em conflito com a outra: ação na faixa sonora, greve
na imagem; falar de um conflito por meio de um conflito. O que se procura
então (usemos as palavras do Corisco de Glauber em Deus e o diabo na terra
do sol) é desarrumar o arrumado, ou (como grita o Paulo Martins de Glauber
em Terra em transe) deixar o vagão correr solto. Imagem e som em Vento do
Leste se articulam assim como se articulam trabalhadores em greve.
La grève: na imagem do casal no parque tudo está parado — apenas a vegetação se
move suavemente ao vento (do leste?).
Sciopero: a conversa na faixa sonora prossegue bem viva e independente do que
acontece na imagem — mesmo quando ela se move ligeiramente.
O que o som nos conta começa a ser contado no longo plano de abertura, atravessa
o quadro seguinte, em que um homem armado de fuzil passa em frente
a uma casa no campo, e continua no terceiro plano, um contraplano do casal
deitado no parque. Imagens absolutamente fixas; o que nelas se move de
verdade é o som, uma discussão sobre a condição dos trabalhadores (menos
ruim, já conseguem comer frango todos os fins de semana), sobre os sindica-
tos, sobre os representantes dos trabalhadores, sobre representação e sobre o
cinema, que deveria seguir o caminho que a história das lutas revolucionárias
ensina a conhecer.
O que a imagem nos conta parece muitas vezes algo que ocorre antes (atores se
maquiando para a cena) ou depois de um filme (uma reflexão sobre o que é o
cinema e como se deve realizar um filme): um personagem pinta o rosto de
cores bem vivas — amarelo, verde, azul, vermelho; alguém fora de quadro joga
tinta vermelha sobre os personagens; letreiros perguntam “o que fazer?” ou
advertem: “esta não é uma imagem justa, mas justo uma imagem”. Vemos
cartões que não dizem nada, simplesmente cobrem a cena com um manto
preto ou vermelho, e imagens que não mostram nem dizem nada: o quadro é
riscado e rabiscado, a palavra é cortada ao meio ou encoberta por uma algazarra,
todos gritam ao mesmo tempo. No lugar de um filme, algo parecido com uma
assembléia de trabalhadores em greve, e efetivamente a certa altura toda a
equipe se reúne em assembléia — a câmera e o microfone abertos a todos os
integrantes da equipe interrompe a narrativa para discutir de que modo deve-
ria ser filmada a seqüência seguinte.
81
Quase ao mesmo tempo, também em 16 mm (mas em preto-e-branco), Glauber
filma em 1968 um filme não-comercial (cinema em greve?): Câncer. “Não vou
enviá-lo a festivais nem vou exibi-lo nos cinemas”, disse, em depoimento à
revista peruana Hablemos de Cine; “meu prazer foi só filmá-lo e suponho que
talvez o que esteja lá não tem importância. Não o fiz para ser exibido; talvez o
exiba, mas ainda não o terminei, falta fazer a montagem”. Falando de Câncer
(“Foi feito para demonstrar que em cinema não há um só caminho. O cami-
nho do cinema são todos os caminhos”), falando do filme que concluiu somente
em 1972, Glauber parece estar descrevendo Vent d’Est de Godard: “Não tem
história”; estuda “a resistência de duração do plano cinematográfico”;
experimenta “a quase eliminação da montagem quando existe uma ação
verbal e psicológica constante dentro da mesma tomada”.
Um filme em greve contra o modelo de produção da grande indústria.
A idéia vem desde Deus e o diabo na terra do sol, desde a Estética da fome: o cine-
ma a serviço das causas importantes de seu tempo, obrigado a se marginalizar
da indústria, “porque o compromisso do cinema industrial é com a mentira e a
exploração”. Passa por Terra em transe, pelas reflexões sobre “o caráter de um
verdadeiro diretor de cinema” (no segundo capítulo de Cinema moderno, cinema
novo, José Álvaro Editor, Rio de Janeiro, 1966): o diretor de cinema “se
mede, sobretudo, pela sua resistência diante das tentativas da indústria. Nem
só de filme vive um diretor, mas também dos silêncios a que se impõe para
manter sua dignidade”. A idéia se radicaliza adiante, pouco depois de Der
leone have sept cabeças e de Cabezas cortadas, pouco antes de Claro:
Glauber diz que no futuro o cinema será luz, som, delírio; que o espectador de-
verá ver um filme “como se estivesse numa cama, numa festa, numa greve ou
numa revolução”, e se declara em greve “como um trabalhador na porta da
fábrica”, lutando pelo “direito de fazer filmes políticos, sem compromissos
comerciais ou profissionais”. Em greve: “Há um ano e meio que não filmo,
entre outros motivos porque o cinema de esquerda está atravessando uma
crise terrível e porque as relações comerciais e financeiras que existem na
produção cinematográfica se transformaram numa armadilha” (junho de 1972,
depoimento publicado em Cuba internacional, em Afrique-Asie e em Écran).
O cinema em greve: Vento do Leste nem parece filme, e o que Godard desejava era
isso mesmo — juntar-se aos trabalhadores, sair da fábrica de Lumière.
Em dezembro de 1970 (em depoimento para a revista Cinéma 70), Godard conta
como conheceu Jean-Pierre Gorin, depois de maio de 1968. “Duas pessoas,
uma vindo do cinema normal, a outra um militante decidido a fazer cinema co-
mo uma tarefa política. Ele queria teorizar o que aconteceu em maio e daí pas-
82
sar à prática, e eu queria me ligar a alguém que não viesse do cinema. Em
resumo, um desejava fazer cinema, o outro desejava deixar de fazer cinema.
Tratava-se de construir uma nova unidade feita de dois contrários, de acordo
com o conceito marxista, e tentar então constituir uma nova célula — não para
fazer cinema político, mas para fazer cinema político politicamente, o que era
bem diferente do que realizavam então os cineastas militantes”. Assim se criou
o Grupo Dziga Vertov, que produziu seis filmes entre 1969 e 1971. O nome de
Dziga Vertov foi escolhido não porque pretendessem aplicar seu programa, mas
porque o grupo queria tomá-lo “como porta-bandeira em relação a Eisenstein,
que, em nossa análise, era um cineasta revisionista”. Para Vertov, o que se
deveria fazer era “simplesmente abrir os olhos e mostrar o mundo em nome
da ditadura do proletariado”.
Cinema político: Vento (Vertov?)? Barravento (Eisenstein?)? Ou uma coisa e outra?
No espaço entre Terra em transe (“Não me interessam as flores do estilo / Como por
dia mil notícias amargas / Que definem o mundo em que vivo”) e Der leone
have sept cabeças (“Abaixo o colonialismo! Abaixo o colonialismo! Abaixo
o colonialismo!”),

dialogando com o que começa a se desenhar em Deux ou trois choses que je sais
d’elle (“Como nos reduzem a zero é de lá que precisamos partir”)

e em La chinoise (“Cinquenta anos depois da revolução de outubro, o cinema ame-


ricano reina sobre o cinema mundial. Não há muito a acrescentar a este estado
de coisas. A não ser que em nossa escala modesta nós devemos criar dois ou
três Vietnames no meio do imenso império de Hollywood-Cinecitta-Mosfilm-
Pinewood-etc., e tanto economicamente quanto esteticamente, quer dizer,
lutando em dois , criar cinemas nacionais, livres, irmãos, camaradas e amigos”),

dialogando também com o tempo latino-americano (Fanon retomado por Solanas em


La hora de los hornos: “Todo espectador é um covarde ou um traidor”),

pensando o papel do intelectual latino-americano (“A primeira coisa que ele tem a
fazer é negar-se completamente, é desmistificar-se completamente, é sair
desse papel de intérprete, de crítico da história sem nenhuma participação
concreta, política, na história. A única forma de ele se revolucionar e se desmis-
tificar é fazer do pensamento e da ação política uma coisa integrada”),

Glauber propôs um cinema político que “não pretende informar pela lógica”,
83
marcado pela irreverência poética, “pela introdução do plano anárquico”, por
“imagens proibidas no contexto da burguesia”, para aniquilar tudo “aquilo que
o espectador aceita como normal”.
Como fazer um filme político? Filmando politicamente, “sem reduzir os homens a
esquemas sociopolíticos”:
Não basta registrar “comícios, guerras, greves, manifestações, para fazer um filme
político. Isto é positivo e útil. Tais filmes podem ser eficazes, tal como algumas
obras literárias podem ser politicamente eficazes. Em que medida um ensaio
político puro publicado numa revista de pequena tiragem contribui para a
revolução? Não sei. A impossibilidade de responder estas questões vem da
impossibilidade destas questões. A utilidade da arte é uma questão antiga.
Esta discussão resulta de um certo sentimento de culpa tipicamente intelectual,
do intelectual europeu e do intelectual do Terceiro Mundo, um sentimento de
culpa mais cristão que marxista. Em certos momentos históricos um filme pode
ter valor como agitação e propaganda, mas só pode ser eficaz em uma deter-
minada época e em circunstâncias muito especiais. Para os cinéfilos e para o
público do cinema, é sobretudo um provocador onírico: o público procura no
cinema uma visão onírica da realidade, mesmo nos filmes mais realistas. O
intelectual procura algo que corresponda a suas obsessões. O cinema, no
fundo, é uma manifestação lúdica. Em termos de eficácia política, devemos
destacar Godard e Straub, que fazem filmes políticos que no plano imediato são
ineficazes” porque propõem “uma poética revolucionária, a única que pode
modificar a consciência”.
Pensar a revolução como uma estética: assim como Buñuel é essencial para o mundo
subdesenvolvido, “para o mundo desenvolvido é mais do que necessário um
espírito anarcocrítico como o de Godard”, que começa seu cinema “no ponto
onde Joyce parou com o romance. Os maiores momentos de Joyce tendem à
impossível figuração: o passo adiante é dado por Godard”. Ele expressa “o má-
ximo de coisas no mínimo de tempo”, propõe uma “ação simultânea, como
Joyce” e um encontro “da sociologia com a ficção, da antropologia com a poe-
sia, de Shakespeare com a science-fiction, da pintura com a filosofia”. Fala de
Godard “humilde que nem São Francisco de Assis, com vergonha da genialida-
de, pedindo desculpa a todo mundo” e diz que diante dele, “homem magro e
calvo de 40 anos, eu me sinto uma tia carinhosa que tem vergonha de dar um
doce para um sobrinho triste. A imagem é besta, mas Godard desperta um sen-
timento de carinho muito grande. Agora, não é besteira: é a mesma coisa que
você ver Bach ou o Michelângelo comendo spaghetti e na maior fossa, achan-
do que não dá pé pintar a Capela Sistina ou compor o ‘Actus Tragicus’”.
84
Para Glauber, Godard resumia então, pouco depois do maio de 1968, “todas as
questões do intelectual europeu de hoje em dia: vale a pena fazer arte?
A questão da utilidade da arte é velha, mas está na moda. E no cinema Godard
é a própria crise ambulante”.
Entre Glauber e Godard se estabelece um diálogo/debate não planejado, organizan-
do de modo espontâneo, para pensar o cinema, assim como ele começava a
ser feito em torno das idéias da Estética da fome, do Cine Imperfecto, do Tercer
Cine, do Cine Junto al Pueblo, em torno da idéia de uma (o título da revista
francesa resume bem) Cinéthique.
Godard, tomando Vertov como bandeira e repetindo que não tinha sentido fazer
cinema-espetáculo ou cinema de autor:

“É preciso abandonar a idéia de fazer filmes e reaprender a linguagem. Durante a pro-


jeção de um filme militante, a tela é simplesmente um quadro-negro ou a pa-
rede de uma escola, que oferece a análise concreta de uma situação concreta.”

Glauber, mais próximo da tradição de Eisenstein e insistindo que fazer arte tem sen-
tido em qualquer país do Terceiro Mundo:

“Pobre do país subdesenvolvido que não tiver uma arte forte e loucamente nacional
porque, sem sua arte, ele está mais fraco (para ser colonizado na cuca), e essa
é a extensão mais perigosa da colonização econômica.”

Este diálogo/debate não planejado levou ao natural encontro do dois numa dobra da
estrada, em Vento do Leste. Glauber (numa nota ao pé de uma entrevista ao
Cahiers du Cinéma em julho de 1969) resume o encontro e a filmagem do
plano em que Godard “pergunta quais são os caminhos do cinema e ele
mesmo indica a resposta: por ali é o cinema desconhecido da aventura estética
e da especulação filosófica, por aqui é o cinema do terceiro mundo”. Diz:
“Itália. Godard está filmando um western e me pergunta a direção do cinema
político. No primeiro dia eu fico diante da câmera com os braços abertos e
desenho uma direção rumo ao desconhecido e à aventura e mostro uma outra
direção para o cinema do Terceiro Mundo, mas como Godard queria rodar o
plano uma segunda vez, eu cantei que era preciso estar atento e forte porque
nós não temos tempo de temer a morte, e depois o personagem que me
perguntou a direção do cinema político se dirige para o caminho do Terceiro
Mundo, em seguida retorna atrás de mim e vai em direção ao desconhecido e
à aventura, e eu não repeti o discurso do primeiro dia de filmagem, mas cantei
85
que tudo é perigoso, tudo é divino e maravilhoso.”
Adiante (num texto para a revista Manchete, janeiro de 1970), conta mais sobre sua
participação no “western em cores escrito por Cohn-Bendit e dirigido por Jean-
Luc Godard com interpretação de Gian Maria Volonté”; conta as fofocas que
corriam em torno do filme, “encontrei um rapaz que me disse: você já sabe?
No faroeste do Godard tem dois cavalos recitando Mao!”; diz que Godard
pediu “para ajudá-lo a destruir o cinema, aí eu digo para ele que estou em
outra, que meu negócio é construir o cinema no Brasil e no Terceiro Mundo”;
e que perguntou se ele queria filmar um plano de Vento do Leste — “eu, que
sou malandro e tenho desconfiômetro, digo para maneirar, pois estou ali
apenas na paquera”; para a cena, conta, “ele me pergunta quais são os
caminhos do cinema e ele mesmo me indica a resposta: por ali é o cinema
desconhecido da aventura estética e da especulação filosófica (e etc.); por aqui
é o cinema do Terceiro Mundo”.
A cena começa com Glauber, de braços abertos, numa dobra do caminho,
plano fixo, cantando em português:
“Atenção: é preciso estar atento e forte. Não temos tempo de temer a morte”.
Uma voz feminina diz baixinho, em francês (enquanto Glauber canta de novo e de
novo que é preciso estar atento e forte), que o cinema deve seguir a estrada
que a história das lutas revolucionárias ensinou a conhecer. Para saber com
exatidão onde essa estrada se encontra, ela decide perguntar ao cinema do
Terceiro Mundo. Do fundo do quadro, surge uma moça com uma câmera que
se dirige a Glauber e pergunta em francês: “Desculpe interromper a sua luta de
classes, mas é importante: qual é o caminho do cinema político?”. Glauber
responde em português: aponta uma direção e diz que para lá é o cinema do
desconhecido, o cinema da aventura estética. Aponta outra direção e diz que
por ali é o cinema do Terceiro Mundo, um cinema perigoso, divino e maravi-
lhoso, vítima da repressão e da opressão imperialista, cinema perigoso, divino
e maravilhoso, que no caso brasileiro precisa formar 300 cineastas para fazer
600 filmes por ano.
A questão — informar o cinema pela política, informar a política pelo cinema, — não
surgiu neste momento, mas era vivamente debatida neste piquete de greve:
Câncer e Vento do Leste na porta da usina de sonhos. O intelectual abandonando
a sua posição privilegiada para se integrar no processo político, como queria
Glauber. O militante influenciando o cinema e sendo influenciado por ele,
como queria Godard. A questão era debatida bem assim como Godard a repre-
senta na cena em que filmou Glauber. Tratava-se de perguntar ao Terceiro Mundo
qual o caminho do cinema político; tratava-se de avançar simultaneamente nas
86
duas estradas: a da aventura estética e a do divino e maravilhoso cinema do
Terceiro Mundo.
Quando Glauber, na Estética da fome, fala da necessidade de separar a arte útil (útil
ao ativismo político de uma arte revolucionária lançada na abertura de novas
discussões) da arte revolucionária, que para ele não só deveria atuar de modo
imediatamente político como também promover a especulação filosófica e ser
uma impossibilidade de compreensão para a razão dominadora (de tal forma
que ela se negue e se devore diante de sua impossibilidade de compreender),
quando diz assim, Glauber parece estar repetindo o que Godard dizia à frente
do Grupo Dziga Vertov — ou vice-versa, Godard parece repetir Glauber quando
diz que o importante é fazer filmes políticos (o que, com maior ou menor
consciência, todos fazem) politicamente (o que poucos conseguem fazer):
quem diz novos conteúdos deve dizer formas novas, quem diz formas novas
deve dizer novas relações entre forma e conteúdo. Para encontrar novas respos-
tas devemos aprender a perguntar de outra maneira, senão, no cinema, como
em qualquer luta social, continuaremos a responder de maneira antiga a ques-
tões inteiramente novas. Estavam dizendo o mesmo, mesmo quando pareciam
dizer o contrário: destruir o cinema, diz um; construir o cinema no Brasil e no
Terceiro Mundo, diz outro. É como se estivessem dizendo que é preciso lutar
em duas frentes, criar cinemas nacionais, livres, irmãos, camaradas e amigos;
que o caminho do cinema são todos os caminhos. E que, mais importante que
tudo, trabalhadores decididos a participar do processo político, montar um
piquete na porta da fábrica e gritar aos quatro ventos: Greve!

87
Carta a Jean-Pierre e a Jean-Luc
Saudações a ambos do ano de 2004, 32 anos após sua
carta à “atriz” e “militante” conhecida como Jane
Fonda. Vamos falar sobre sua meditação de 52 mi-
nutos – infame, “anormal” (segundo John Simon,
que exclamou este epíteto quando saiu feito um
furacão da coletiva de imprensa do New York Film
Festival) – sobre a célebre foto de “Hanoi Jane”
dando ajuda e conforto ao inimigo.

Kent Jones
Êxtase
“Há um ponto em que, num certo estado mental, o espí-
rito recupera a esmagadora sensação da matéria,”
disse Jean-Pierre Gorin numa entrevista à revista
Jump Cut, em 1974. “Então você chega num ponto
em que não existe certo ou errado, desespero ou
alegria. Você está além destas contradições e tudo é
uma experiência completa e totalizante.” Nos anos
imediatamente seguintes a Carta para Jane, quan-
do as pessoas já não mais falavam no filme – o que
foi raro – o êxtase do materialismo era a última coisa
que passava pelas suas cabeças. Os filmes do Grupo
Dziga Vertov, em geral, e Carta para Jane, em par-
ticular (filmado, gravado, e mixado em tempo re-
corde) eram mencionados como o máximo em
“não-cinema”, “des-prazer”, um pouco demais até
para o mais rigoroso esteta do centro de Nova York.
Se por um lado os filmes eram muito “políticos”
89
para a vanguarda, por outro estavam muito distan-
tes da política nua e crua – muito “cinemáticos” –
para os engajados politicamente.
“Nós fizemos este filme da mesma maneira que se faz um
abridor de latas.”
Gorin devia estar falando de algum outro filme do Grupo
Vertov, mas poderia estar descrevendo este aqui
também. Um filme feito sem grandes ambições,
como uma ferramenta audiovisual, um aditivo
cultural, como aqueles compostos químicos que removem várias camadas de
tinta para chegar à madeira original que está por baixo. Mas, 30 anos depois, é o
êxtase da empreitada que parece mais surpreendente. Gorin muitas vezes
recorre à teorização “rizomática” de Gilles Deleuze, com sua falta de conclusão
máxima, sua substituição de um “portanto” reprimido por um “e… e… e…”
eufórico. Enquanto Carta para Jane parece se destilar em um ponto final conclu-
sivo – que qualquer atividade para os ocidentais que pensavam sobre o Vietnã
em 1972 que não fosse ouvir os vietnamitas e entender o tipo de paz que eles
queriam era nada mais que um disfarce, o filme acaba sendo qualquer coisa
menos uma apresentação com um desenrolar lógico. Em vez de cavar cada vez
mais fundo, ficam apenas acumulando insights (o olhar no rosto de Jane Fonda
ecoando o olhar compassivo usado por seu pai em As vinhas da ira), resolvendo
quebra-cabeças (por que a atriz “em foco” é ideologicamente indistinta, enquanto
o vietnamita “fora de foco” é, como a direita americana, ideologicamente definido),
e desatando nós capitalistas (uma fotografia pode esconder mais do que
revelar, dependendo de como é publicada e posicionada). “Você não vai entender
Marx se não perceber que este cara descrevendo a máquina capitalista estava num
estado contínuo de masturbação mental”, disse Gorin na entrevista da Jump Cut.
“Ele adorava colocar todos os elementos juntos, e é muito importante amar o que
você está fazendo.” Trinta e dois anos depois do fato, você não sai deste filme
sentindo que viu uma inquisição acadêmica seca, mas um engajamento estático
com o presente. Deve ser dito que o prazer é quase todo seu, mas que nós
ganhamos nosso quinhão também.

Dois estrangeiros
Quando escuto a trilha sonora de Carta para Jane – e esse é um filme que você
tem de escutar, acima de qualquer outra coisa – estou ciente de que estou
90
ouvindo dois papéis sendo encenados, interpretados diante do microfone
para uma ocasião especial: um filme feito para “explicar” um outro filme
(Tudo vai bem) para platéias americanas. Quais papéis vocês dois estão
interpretando? Dois intelectuais “marxistas” se queixando? Dois europeus
enxergando a verdade sobre uma americana? Dois homens num lengalenga
sobre uma mulher? Todas as coisas acima. Pode-se dizer também: dois juí-
zes num previsível tribunal stalinista (conforme apontou James Monaco em
The New Wave); dois detetives num confronto verbal com o criminoso an-
tes de chamar a polícia; dois espiões comunistas enviados do quartel-general
para exortar seus camaradas mais conhecidos, direto das páginas do sub-
valorizado romance de Chester Hime, Lonely Crusade. E a idéia de como
uma platéia americana deve ser abordada, o tipo de conversa “na lata” ao qual
eles possam responder, agora parece um mecanismo extremamente antiqua-
do dos Estados Unidos da era Nixon. Por exemplo, o olhar de compaixão
lançado pela atriz enquanto ela supostamente ouve os camponeses vietna-
mitas foi “tomado emprestado, o principal e os juros, do New Deal”. Como
se vocês fossem dois vendedores de seguros que pararam para tomar um
trago no boteco da esquina depois de um dia duro de trabalho estudando
as tabelas atuárias mais recentes.

Uma mulher é uma mulher


é uma mulher
“Por que uma carta para Jane?” Eu pensava enquanto assistia ao filme outra vez.
“Por que não uma carta para Yves?” Aí, é claro, o filme – ou vocês – me deram a
resposta: porque Yves Montand não foi fotografado quando foi ao Chile.
Pelo menos não de forma simbólica. E vocês até abordam a questão de por
que dois caras estão, mais uma vez, repreendendo uma mulher. Em 1972,
todos os caminhos levavam ao Vietnã e a formas de promover a causa do
povo vietnamita. Mais do que qualquer um, foi Fonda quem deu motivos,
seu senso de estratégia e o derradeiro impacto de seu gesto ficaram abertos
ao tipo de inquérito instaurado aqui por vocês. Muito justo.
Mas a pergunta ficava me incomodando do mesmo jeito. Por que não simples-
mente fazer uma interrogação sobre esta fotografia, sem a abordagem direta?
O nível de minúcia na análise da foto, tirada por Gerard Guillaume e publi-
cada no L’Express, parece ser totalmente imaterial para um diálogo genuíno
91
com a mulher que aparece nela. Trinta e dois anos mais tarde, parece que
Jane – “Hanoi Jane”, a santa padroeira do esquerdismo militante americano;
Jane, a antiga estrela que quase desistiu do filme de vocês; Jane, na “função
de Jane”, a incorporação do esquerdismo de celebridades – foi o que botou
o motor de vocês pra funcionar. Ou talvez o ato de dois caras se juntando
para dar uns apertos numa moça tenha sido apenas isso, mais uma ence-
nação. Eu acho que entendo: a direita americana é “nítida” e a esquerda
americana é “imprecisa”, o que significa que a direita é “masculina” e deci-
dida, enquanto a esquerda é “feminina” e inconstante. Um toque de mestre,
então, captar no rosto sensível e terno da “mulher” que está no
coração do esquerdismo toda emoção, e nada de pensamento. Depois de
feitos todos os cálculos conceituais, parece ser uma ótima idéia.
Então, à segunda vista, continua sendo dois caras se juntando para dar uns apertos
numa moça.

Plus ça change
Então, 32 anos depois, os EUA estão, mais uma vez, em guerra por motivos duvidosos.
Mais uma vez o país está polarizado. Mais uma vez, talvez com mais força do que
em 1972, a direita americana está em ascensão. Um de vocês é
agora residente nos Estados Unidos há muito tempo. O outro está entocado na
Suíça. Ambos continuam sendo grandes cineastas.
O filme “abridor de latas” de vocês agora foi fixado no tempo. Ganhou o status de
“curiosidade” – uma obra que é um “produto de sua era” antes de ser qualquer
outra coisa. Pronto para ser encaixotado e enfiado no fundo do armário histórico.
Nós temos infinitas maneiras de nos isolar dentro do nosso próprio presente,
passando tantas demãos de verniz que nem conseguimos tocar sua verdadeira
superfície. Como falou uma vez o velho amigo e colega de Gorin, Raymond
Durgnat, o fato de algo ficar “antiquado” não o torna mais interessante? Por que
devemos rejeitar o que está preso no tempo?
Assistindo a seu filme outra vez, depois de tantos anos, agora que os estudantes inquietos
que o assistiram em 1972 já estão grisalhos, agora que McNamara já foi imortali-
zado por Errol Morris, agora que Jane já passou de pacifista militante
para esposa de político liberal para melhor atriz de Hollwood para Rainha da
Malhação para esposa de aristocrata bilionário para “superestrela” distante de
anos passados, depois que o senhor Gorbachev derrubou aquele muro, depois
que Reagan inaugurou o processo que transformou este país no que parece ser
92
uma fantasia permanente de si mesmo, agora que praticamente todos os mer-
cados imagináveis já estão livres, eu acho que o filme fala de forma ainda mais
poderosa através da natureza do seu passado e de sua idade do que quando
ele tinha acabado de sair do laboratório.
O que há de tão especial no seu pequeno adendo a um filme? Será que é o fato de ele
ser tão “barato”, tão um produto da fome, numa época em que toda a ênfase e
toda a energia do cinema estão sendo dispendidas na criação de uma superfície
apresentável? Será que é o tom deliciosamente impenitente de dois tribunos
marxistas assumindo a responsabilidade de instruir uma platéia, sem humildade
ou autojustificação? Será que é o fato de vocês terem percebido a urgência
em analisar imagens e a maneira como são disseminadas (levando a análise
elegante de Barthes a alturas extáticas), talvez inconscientemente prevendo o mar
de informação visual em que agora nadamos – ou nos afundamos? Será que é o
fato de vocês terem afirmado a verdade concreta do mundo pós-colonial, aquela
que parecemos estar mais uma vez ignorando no Iraque, que os habitantes do
país em questão é que devem ser aqueles a decidir sobre seu futuro
coletivo? Será que é o jeito que vocês focalizaram aquele ar de compaixão
patenteado, que nos anos entre lá e cá saiu dos filmes e agora está na televisão
enfeitando semblantes tão variados como os de Diane Sawyer, Oprah Winfrey
e Michael Moore?
São todas essas coisas. E é sua vivaz avaliação da dignidade liberal, que vocês caracteri-
zam assim: “produz uma boa consciência para nós mesmos de maneira ordinária”.
O que nós ocidentais, de todas as correntes políticas, não parecemos ser
capazes de parar de fazer, ou fazer com que os outros parem de fazer por nós.
E que o mundo não tem mais condições de agüentar.

Vejo vocês daqui a 32 anos – quando estiver na hora de abrir mais algumas latas.

93

Kent Jones é editor independente da revista Film Comment.


Texto publicado no Tout va bien DVD Booklet, Criterion Collection, 2005.
Sinopses e Fichas técnicas
Geralmente, quando se recebem filmes de uma
distribuidora, recebem-se também fichas técnicas
com créditos dos envolvidos nos filmes. Opta-se
por segui-los literalmente ou recorrer a pesquisas
em livros sobre os filmes. Claro, não se espera muito
rigor no caso de filmes mais antigos, no entanto, ao
longo do tempo, os créditos acabam se tornando
consensuais e são material de citação e pesquisa.
A não ser que algum pesquisador revele uma
novidade sobre alguma participação inesperada, os
créditos acabam por ser mantidos. No caso do
Grupo Dziga Vertov, foram encontrados dois
problemas, pois a própria Gaumont, responsável
pela distribuição e divulgação dos filmes, não
possui essas fichas. O primeiro está relacionado ao
tempo de os filmes se tornarem consensuais, pois
a bibliografia sobre o Grupo é ainda pouco estável
e só agora, há bem pouco tempo, é que os filmes
puderam ser vistos em conjunto. O segundo tem a
ver com a própria natureza do Grupo, pois como a
proposta era de trabalho coletivo, muitos dos filmes
não são assinados, sendo citados apenas em livros
como pertencentes ao Grupo Dziga Vertov.
Desmembrar a equipe, como foi feito com as fichas
técnicas abaixo, pode parecer uma contradição com
os propósitos do Grupo. Mas em primeiro
lugar era preciso decidir quais créditos seriam
publicados no material de divulgação, que não
oferece um grande espaço. Os créditos encontra-
95
dos em livros são extremamente divergentes e o
único ponto de partida é o nome de Jean-Luc
Godard. Se fossem mantidos sob o nome cole-
tivo de Grupo Dziga Vertov, apenas, seria preciso
dizer quem foram os participantes, os quais não
trabalharam homogeneamente, às vezes nem
terminaram o filme do qual participaram. Portanto,
decidiu-se publicar o que parecia mais coerente
e mais recorrente no material de divulgação, que
exigia resumo. Contando com este espaço mais generoso, optou-se por publicar
a pesquisa feita sobre os créditos e sinopses, a fim de de tornar mais clara a his-
tória do próprio Grupo, lembrando que os filmes foram feitos num período de
quatro anos – de Um filme como os outros a Carta para Jane – e muitas vezes
ao mesmo tempo.
As referências principais para os créditos são apontadas pelas iniciais dos nomes de
autores de livros que se debruçaram sobre a filmografia de Godard e também
sobre essa fase de seus filmes. Apesar de Colin MacCabe haver publicado um im-
portante livro no início dos anos 1980 sobre essa fase de Godard – Godard: Ima-
ges, Sounds, Politics –, a filmografia publicada com detalhes técnicos é incipiente.
Mas a filmografia publicada em seu livro mais recente – Godard: a Portrait of an
Artist at Seventy – é bem mais consistente e detalhada e, além disso, MacCabe é
um referencial sobre esse período da filmografia de Godard. Este livro de 2003 foi
então usado como referência. Outras referências foram o guia de Julia Lesage, que
oferece detalhes de créditos e sinopses; o catálogo do MoMA, que produziu uma
mostra especial sobre os filmes de Jean-Luc Godard nos anos 1990; e o livro de
Dixon, um pouco mais recente, que apresenta detalhes não comentados nem por
MacCabe, nem por Lesage. Algumas referências históricas foram buscadas em
edições da revista Cahiers du Cinéma, no livro Film and Revolution, de James
MacBean, no catálogo do DVD de Tudo vai bem e Carta para Jane, lançado pela
Criterion Collection e no Internet Movie Database (IMDb).

Julia Lesage, Jean-Luc Godard: A Guide to References and Resources = JL


Colin MacCabe, Godard: Portrait of an Artist at Seventy = CM
Catálogo da mostra dos filmes de Jean-Luc Godard produzido pelo The Museum of
Modern Art, Jean-Luc Godard: Son + Image = MoMA
Wheeler Dixon, The Films of Jean-Luc Godard = WD
DVD de Tout va bien (Tudo vai bem) contendo Letter to Jane (Carta para Jane) = DVD
Internet Movie Database = IMDb
96
Um filme como os outros
Un film comme les autres

França, 1968, 100 min, 16 mm, P&B / Cor

Ciné-tracts filmados em Paris durante maio de 1968 por


Jean-Luc Godard. O grupo de jovens se encontra
num gramado em Flins em julho e agosto de 1968

Grupo Dziga Vertov


Direção
Grupo Dziga Vertov (JL)
Jean-Luc Godard e Grupo Dziga Vertov (MoMA)
Jean-Luc Godard com o grupo ARC e Jacques
Kébadian (CM)
Grupo Dziga Vertov – Godard e Gorin (WD)
Jean-Luc Godard, Jean-Pierre Gorin, Grupo Dziga
Vertov (IMDb)
Roteiro
Jean-Luc Godard (CM)
Jean-Luc Godard e Jean-Pierre Gorin (WD)
Jean-Luc Godard e Grupo Dziga Vertov (MoMA)
Jean-Luc Godard, Jean-Pierre Gorin, Grupo Dziga
Vertov (IMDb)
Fotografia
William Lubtchansky (CM)
Jean-Luc Godard e Grupo Dziga Vertov (MoMA)
Jean-Luc Godard (IMDb)
Montagem
Christine Aya (CM)
97
Jean-Luc Godard e Grupo Dziga Vertov (MoMA,
IMDb)
Elenco
Três estudantes de Nanterre, dois trabalhadores da
Renault e voz de Godard na trilha sonora (CM, WD)
Durante o ano de 1968, Godard produziu uma série de ciné-tracts, pequenos
documentários em preto-branco de três minutos, em 16 mm, editados na própria
câmera. Além de Godard, cineastas como Alain Resnais e Chris Marker também
produziram ciné-tracts com a intenção de trabalho coletivo e sem a assinatura do
diretor. Tratava-se de filmar assembléias, passeatas e discussões com propósitos
políticos. Durante o mês de maio, especificamente, Godard filmou estudantes em
Nanterre e trabalhadores discutindo a situação política da época.
Um filme como os outros faz uso desse material. O filme colorido mostra uma extensa
discussão política de um grupo de jovens sentados em um gramado em local
indistinto. A câmera mostra o grupo de costas, sem distinguir rostos por um
longo tempo. Aos poucos o filme é entrecortado pelos ciné-tracts – que Godard
mais tarde chamou de “film-tracts” – mostrando carros sendo queimados, grupos
de manifestantes, policiais prendendo pessoas em manifestações, Daniel Cohn-
Bendit falando em assembléia de estudantes, estudantes mimeografando
panfletos, além de trabalhadores em greve.
A trilha sonora trabalha com fusões de sons locais, diálogos e slogans em francês e
inglês e vai, se não iniciar, pelo menos fortalecer uma freqüente intervenção
dialética entre imagem e som nos filmes posteriores do Grupo Dziga Vertov.
Aos poucos, o espectador identifica os personagens, mas o faz pela voz. Eles
discutem o papel do partido comunista, das organizações de trabalhadores e
também a sociedade do espetáculo. No entanto, não concordam em todos os
assuntos e nenhum ponto de vista é privilegiado. São duas falas: a da discussão
do grupo e a outra com voz over, e são duas imagens: uma colorida, pastoral,
quieta, versus uma em preto-e-branco, em conflito e agitada.
Colin MacCabe não credita Um filme como os outros ao Grupo Dziga Vertov, mas a
Godard e o Grupo ARC (Atelier de recherche cinématographique), em seu último
livro Godard: Portrait of an Artist at Seventy. Mas em seu livro anterior, Godard:
Images, Sounds, Politics, de 1980, ele credita o filme ao Grupo Dziga Vertov e aos
“Etats Généraux du Cinéma”. O filme não foi produzido nem com componentes
98
do Grupo, nem exatamente com as propostas do Grupo Dziga Vertov.
Na realidade, pode ser considerado um precursor do Grupo, na medida em que
se propôs a trabalhar em conjunto sem autoria única e com propósitos explicita-
mente político-revolucionários.
Esse filme-documentário ficou famoso por Godard deixar um recado para o projecionista
“tirar a sorte na moeda” para definir qual dos rolos deveria ser mostrado
primeiro, depois de uma exibição no Lincoln Center em Nova York, em dezembro
de 1968, da qual restaram apenas cem pessoas de uma audiência inicial de mil.
Sons britânicos
British Sounds (ou See you at Mao)

França, 1969, 52 min, 16 mm, Cor

Filmado na Inglaterra em fevereiro ou março de 1969. Produzido pela London Weekend


Television

Direção
Grupo Dziga Vertov (CM)
Jean-Luc Godard (WD)
Jean-Luc Godard e Jean-Henri Roger (MoMA, IMDb)
Jean-Luc Godard com Jean-Henri Roger, em nome do Grupo Dziga Vertov (JL)
Roteiro
Jean-Luc Godard e Jean-Henri Roger (MoMA, CM, IMDb)
Jean-Luc Godard (WD, JL)
Pesquisa
Mo Teitelbaum (JL)
Fotografia
Charles Stewart (JL)
Som
Fred Sharp (JL)
Mixagem de Som
Antoine Bonfanti (CM)
Montagem
Christine Aya (CM) (MacCabe afirma que Kozmian só tem sido citada porque
Godard precisava dar créditos à equipe britânica. Godard, p. 413, nº 36)
Elizabeth Kozmian (MoMA, WD, JL)
Elenco
99
Estudantes de Oxford, estudantes de Essex, grupo de trabalhadores militantes
da região de Dagenham e trabalhadores da GM; voz de Godard na trilha
sonora
British Sounds foi reivindicado como realização do Grupo Dziga Vertov apenas
em retrospecto, daí ser considerado o primeiro filme da série. Feito na Inglaterra,
o filme consiste de seis longas seqüências: a produção em série numa fábrica de
carros; uma mulher nua em sua casa; o discurso de um jovem na televisão, en-
trecortado por cenas silenciosas e coloridas de trabalhadores; trabalhadores em
um apartamento discutindo suas condições de trabalho; estudantes universitários
fazendo pôsteres e canções revolucionárias; e, por fim, uma mão ensangüentada
deslizando como uma serpente na direção da bandeira vermelha. A trilha sonora
mescla os sons repetitivos da fábrica de montagem e textos em voz over para
refletir sobre a alienação dos trabalhadores dentro do processo de reprodução.
A princípio, a bandeira sendo rasgada de dentro, os signos da revolução (como mão em
punho sangrando em direção à bandeira vermelha), e os estudantes fazendo can-
ções revolucionárias parecem por demais panfletários aos olhos atuais. Ao mes-
mo tempo, pode-se perceber o distanciamento do olhar da câmera que está
dentro e fora ao mesmo tempo, algo que cada filme do Grupo Dziga
Vertov irá perseguir, crescendo em intensidade. A seqüência em que um locutor
na televisão aparece como a voz da “direita” é uma paródia divertida do jornalis-
mo televisivo. Com a assinatura de Godard, a câmera joga com os nossos olhos
na seqüência que mostra um grupo de trabalhadores trotskistas ao redor de uma
mesa falando sobre as condições de trabalho. Ao não revelar as faces dos interlo-
cutores e só mostrá-las no final, depois de sugerir e nos frustrar com o momento
da revelação, nos damos conta de termos sido manipulados pela escolha da ima-
gem e do discurso cinematográfico.
As cenas se propõem a refletir sobre várias outras questões, como a manutenção do
processo hierárquico masculino pela reprodução do feminino como imagem
sedutora ou os meios que reproduzem a imagem, como o cinema e a televisão,
mas principalmente aquilo que não se ouve quando se é seduzido pela imagem.
Esse filme foi produzido a pedido da London Weekend Television, em 1968, mas não
100
foi exibido integralmente na televisão. Algumas de suas partes foram exibidas e
analisadas negativamente em um programa chamado Aquarius, da própria
London Weekend, no início dos anos 1970. Conta-se que Godard teria, ele
mesmo, se cortado para fazer o braço com mão em punho sangrando deslizando
na neve (MacCabe, Godard, p. 220).
Pravda
Pravda

França, 1969, 58 min, 16 mm, Cor

Filmado clandestinamente na antiga Tchecoslováquia em junho (março,


segundo Lesage) de 1969. Editado meses depois com algumas imagens
da televisão tcheca

Direção
Grupo Dziga Vertov (CM)
Grupo Dziga Vertov (Jean-Luc Godard, Jean-Henri Roger, Paul Burron) –
(WD, MoMA, IMDb)
Grupo Dziga Vertov (Jean-Luc Godard, Jean-Henri Roger, Paul Burron,
Jean-Pierre Gorin) – (JL)
Roteiro
Jean-Luc Godard (JL)
Grupo Dziga Vertov (Jean-Luc Godard, Jean-Henri Roger, Paul Burron) –
(WD, MoMA, IMDb)
Fotografia
Paul Burron (CM)
Grupo Dziga Vertov (Jean-luc Godard, Jean-Henri Roger, Paul Burron) –
(WD, MoMA)
Montagem
Christine Aya (CM. Apesar de nota de rodapé que não explica a origem do crédito)
Jean-Luc Godard (JL)
Grupo Dziga Vertov (Jean-Luc Godard, Jean-Henri Roger, Paul Burron) –
(WD, MoMA, IMDb)
Produção
101
Claude Nedjar (JL, WD, CM, MoMA, IMDb)
Elenco
Jean-Pierre Gorin (Vladimir Lenin) em voz over e voz de mulher como Rosa
Luxemburgo. Voz over em inglês. MacCabe afirma que Lesage (seguida por
Dixon) atribui erroneamente a voz de Lenin a Godard
Filmado clandestinamente na antiga Tchecoslováquia em março de 1969, logo
após as agitações da Primavera de Praga e da invasão russa. Várias imagens do
cotidiano da Tchecoslováquia são acompanhadas pelas vozes over de Vladimir e
Rosa, que analisam os paradoxos da situação política do país e os novos sentidos
do vermelho (comunismo) tcheco. Vermelho que servirá ao filme não apenas por
sua ambigüidade com o sangue, mas também como reflexão sobre o desbota-
mento das imagens do mundo. Neste sentido, os comentários iniciais a respeito
do revisionismo do socialismo tcheco são sarcásticos . A imagem de uma rosa ver-
melha aparece em diversas circunstâncias como metáfora mais direta à delicade-
za das propostas revolucionárias. Ao final, as vozes perguntam como se deve che-
gar a uma teoria adequada seguindo as idéias de Mao e elas mesmas respondem,
afirmando que a teoria deve vir junto com a prática social, com a luta de classes
e pela produção, além da experimentação científica.
O filme repensa o fazer documental que dificilmente percebe som e imagem como
materiais distintos, e repensa também as relações entre conceito e imagem.
Pravda faz uma crítica radical à prática documental, revisitando os propósitos de
Dziga Vertov, daí ser considerado o “mais vertoviano” dos filmes do grupo.
O filme foi feito com material Agfa, cujo logotipo é mostrado juntamente com
todo o imaginário do capitalismo ocidental. Outra referência metalingüística é a
imagem do cinegrafista com uma câmera vermelha filmando o próprio filme.
O filme foi encomendado pela West German Television. Em seu quarto de hotel, Paul
Burron filmou e fotografou imagens diretamente da televisão tcheca. Jean-Henri
Roger não acompanhou a montagem do filme até o fim. Nesse período,
Jean-Pierre Gorin inicia com Godard uma parceria que influenciará o filme
politicamente e irá se efetivar em Vento do Leste. Os diálogos do filme foram
publicados na Cahiers du Cinéma, n.240, julho/agosto de 1972 creditados a
Godard e Roger. 102
Vento do Leste
Vent d’Est

França, Itália, Alemanha, 1969-1970, 100 min, 16 mm, Cor

Filmado em locações na Itália e em estúdios da Elios Studios, onde havia uma cidade-
faroeste como cenário, entre 16 de junho e 16 de julho de 1969

Direção
Grupo Dziga Vertov (JL, CM)
Grupo Dziga Vertov (Jean-Luc Godard, Jean-Pierre Gorin, Gérard Martin) – (WD,
MoMA, IMDB)
Roteiro
Jean-Luc Godard, Daniel Cohn-Bendit, Jean-Pierre Gorin, Gianni Barcelloni, Sergio
Bazzini (JL)
Jean-Luc Godard, Daniel Cohn-Bendit, Sergio Bazzini (WD, CM, MoMA, IMDB)
Fotografia
Mario Vulpiani (JL, MoMA, IMDB)
Mario Vulpiani, Mario Bagnato, Paul Bourron (CM)
Som
Antonio Ventura, Carlo Diotalevi (CM, JL, WD, MoMA)
Montagem
Christine Aya (CM)
Jean-Pierre Gorin, Enzo Micarelli (JL)
Jean-Luc Godard e Jean-Pierre Gorin (WD, MoMA, IMDB)
Elenco
Gian Maria Volonté (homem da cavalaria), Anne Wiazemsky (mulher de casaco),
Marie Dedieu, Glauber Rocha (como ele mesmo), José Varela, George Götz,
103
Fabio Garriba, Jean-Luc Godard e a equipe de filmagem (como eles mesmos),
Allen Midgette (índio), Marco Ferreri, Paolo Pozzesi (representante do sindicato),
Vanessa Redgrave (mulher com a câmera de cinema), Daniel Cohn-Bendit (como
ele mesmo), Franco Bucceri, Marco Vergine (citados dessa forma por Lesage
e MacCabe)
Faroeste revolucionário que usa simbolicamente os personagens fantasiados para
representar teatralmente as hierarquias sociais. O argumento foi sugerido por
Daniel Cohn-Bendit, que propunha documentar uma greve de mineiros como
ponto de partida para Vento do Leste. O filme apresenta um grupo de jovens
deitados em local ermo e a voz over discutindo política, mas também vozes femi-
ninas contando histórias do ponto de vista feminino. Entrecortando imagens de
personagens teatrais, fotos de Lenin e Stalin, cartazes com frases que se referem
a conceitos a serem discutidos, imagens de uma fábrica. No que se refere a luta
armada, são dadas instruções sobre como fazer bombas e explodir o inimigo.
O filme, antes de tudo, trata de questões sobre a ideologia das composições do cinema
que são antecipadamente consideradas “naturais”, como a junção da imagem e
do som, por meio de um grupo de pessoas que supostamente farão um filme.
A idéia parte daquilo que Godard chama de “conceito burguês de representação”,
que nas artes visuais pode ser relacionado à perspectiva central, mas cujo tom da
identificação entre filme e espectador seria dado, no cinema, pelo som. Glauber
Rocha participa de uma seqüência pequena, mas crucial. Ele se encontra em uma
encruzilhada, parado em pé, com os braços abertos, cantando, quando é aborda-
do por uma mulher grávida que pergunta: “Desculpe-me por interromper sua
luta de classes, mas você poderia me mostrar o caminho que leva ao cinema
político?”. E então Glauber mostra o caminho do “cinema perigoso, divino e
maravilhoso”, o cinema do Terceiro Mundo.
Gianni Barcelloni, da produtora de cinema Cineriz, teria investido 1 milhão de dólares
no filme, pagos antecipadamente. Conta-se também que o filme causou tumulto
ao ser exibido em Cannes em 1970, com projeção promovida à revelia de Go-
dard. Os diálogos do filme foram publicados na Cahiers du Cinéma, n. 240, de
julho/agosto de 1972, creditados a Godard e de Gorin. Esse filme é o primeiro a
oficializar a responsabilidade do Grupo Dziga Vertov na direção e produção,
inclusive mostrando um livro com foto do cineasta russo. Embora oficialize o
104
grupo, restringe-o à dupla Godard-Gorin, que trabalhará cada vez com mais
proximidade. Allen Midgette, que faz o papel de índio, trabalhou em vários
filmes de Andy Warhol e ficou conhecido ao se fazer passar pelo próprio
Warhol. Foi feita uma cópia em 35 mm da cópia de 16 mm, que, segundo
MacBean, no artigo publicado neste catálogo, reproduz com mais intensidade os
verdes do interior da Itália e os vermelhos das ruínas. O DVD de Vento do Leste
foi recentemente lançado pela distribuidora Nippon Columbia no Japão.
Lutas na Itália
Lotte in Italia

França, Itália, 1970, 76 min, Cor, 16 mm

Praticamente filmado no apartamento de Godard e Wiazemsky na Rue Saint-Jacques,


em Paris, em dezembro de 1969. Algumas poucas partes em fábrica na Itália,
segundo Lesage, e em Roma e Milão, segundo MacCabe. Há uma versão italiana
com 55 minutos

Direção
Grupo Dziga Vertov (Jean-Luc Godard e Jean-Pierre Gorin) – (JL, WD, MOMA,
IMDB)
Grupo Dziga Vertov (CM)
Roteiro
Grupo Dziga Vertov (CM)
Grupo Dziga Vertov (Jean-Luc Godard e Jean-Pierre Gorin) – (WD, MOMA, IMDB)
“Provavelmente Jean-Pierre Gorin, primeiramente” (JL)
Montagem
Jean-Pierre Gorin e Jean-Luc Godard (JL)
Christine Aya (CM)
Grupo Dziga Vertov – Jean-Luc Godard, Jean-Pierre Gorin (IMDb)
Fotografia
Armand Marco (CM)
Mixagem de som
Antoine Bonfanti (CM)
Elenco
Comentários falados por Christina Tullio Altan (Paola Taviani), Anne Wiazemsky
104
(balconista), Jérôme Hinstin (homem jovem), Paolo Pozzesi (narrador, italiano)
(Jl, CM)
Produtor
Gianni Barcelloni (CM)
No lugar de apresentar imagens de trabalhadores ou estudantes militantes, o
filme apresenta uma personagem, a jovem Paola, estudante universitária que
trabalha para a Lotta Continua, uma organização comunista da esquerda do
partido comunista italiano. Ela é apresentada por voz over ao mesmo tempo em
que fala. Estas vozes continuam ao longo do filme em francês, mas uma voz
masculina apresenta e comenta seções como “universidade”, “militantismo”,
“identidade”, enquanto Paola representa em italiano. Dividido em quatro seções,
o filme repete e reavalia cenas anteriores para mostrar diferentes faces ideoló-
gicas do discurso militante. Antes de tudo, trata-se de apresentar o processo de
conscientização de uma jovem que se vê como anticapitalista, mas começa
aos poucos a perceber suas contradições num mundo burguês. Assim, o filme
trabalha com a proposta dialética entre conceito e prática.
O roteiro foi baseado no conceito de “ideologia” de Louis Althusser a partir do livro
Lenin et la Philosophie (Paris, Maspero, 1969) e seus diálogos foram publicados
na revista Cahiers du Cinéma, nº 238-239, de maio/junho de 1972. Lutas
na Itália tem sido considerado o mais coerente, política e teoricamente, dos
trabalhos do Grupo Dziga Vertov. Segundo Gorin, citado por MacCabe em artigo
publicado neste livro, Althusser teria se emocionado ao ver o filme ainda na sala
de montagem. Quando Godard e Gorin estiveram nos Estados Unidos
dando entrevistas, Godard afirmou não ter dinheiro para a legendagem em inglês,
mas queria providenciar uma cópia em Super-8 com uma versão dublada neste
idioma. Disse também que se não fosse tão caro teria feito o filme em vídeo1 .
Na mesma época, Cacá Diegues, em entrevista para a Cahiers du Cinéma (nº 225
de novembro/dezembro de 1970), disse que Lutas na Itália talvez fosse “o mais
dialético dos filmes políticos” já feitos na Europa.

106

[ 1 ] Michael GOODWIN, T. LUDDY e N. WISE. The Dziga Vertov Film Group in America. Take One: The Film Maga-

zine, março de 1970.


Vladimir e Rosa
Vladimir et Rosa

França, 1971, 103 min, 16 mm, Cor

Filmado no outono de 1970, em Paris

Direção
Grupo Dziga Vertov (Jean-Luc Godard e Jean-Pierre Gorin) – (JL, WD, MoMA,
IMDb)
Grupo Dziga Vertov (CM)
Roteiro
Grupo Dziga Vertov (Jean-Luc Godard e Jean-Pierre Gorin) – (MoMA, IMDb)
Montagem
Christine Aya e Chantal Colomer (CM)
Fotografia
Armand Marco e Gérard Martin (CM)
Grupo Dziga Vertov (Jean-Luc Godard e Jean-Pierre Gorin) – (MoMA)
Mixagem de som
Antoine Bonfanti (CM)
Elenco
Jean-Luc Godard (Vladimir Lenin), Jean-Pierre Gorin (Karl Rosa e depois Rosa de
Luxemburgo), Anne Wiazemsky (Ann, militante da libertação feminista),
Juliet Berto (Juliet, mulher do tempo e hippie), Ernest Menzer (Juiz Julius
Hoffman, segundo Dixon. Ator citado por MacCabe), Yves Afonso (Yves, estu-
dante revolucionário de Berkeley), Larry Martin (citado apenas por MacCabe),
Claude Nejar (Dave Dellinger, segundo Dixon), voz over em francês de Jean-
Pierre Gorin e Jean-Luc Godard (elenco baseado em Lesage. Dixon apresenta
107
Godard como “Rosa”)
Produtor
Claude Nedjar (CM)
Este filme foi anteriormente intitulado Sexo e revolução. Godard faz o papel de Vla-
dimir Lenin e Gorin, de Rosa Luxemburgo. O filme pergunta como os filmes de-
veriam ser feitos, inclusive o próprio filme que o espectador vê, e anuncia que
este filme foi feito para financiar outro que está sendo rodado na Palestina,
Jusqu’à la victoire. Para refletir sobre questões políticas, como a noção de
“ruptura” de Althusser, Godard e Gorin conversam com microfone, fone de
ouvido e gravador, ambos gaguejando, em uma quadra de tênis com a partida
em jogo. Esse “gaguejar” permite uma série de piadas pela repetição de sílabas
ou palavras ditas com diferentes sons. O grupo representa, de forma estilizada,
o julgamento de militantes radicais acusados de incitar a revolta na Convenção
Nacional de 1968, conhecidos como os “Chicago 8”, insinuando que o
julgamento teria sido armado pela própria polícia. O filme apresenta a sentença
do julgamento através de monitores de televisão, com personagens vestindo
camiseta da rede CBS. Quem também está em julgamento é o próprio elenco
cujos nomes de seus integrantes são mantidos, de forma que a teatralidade do
filme reflete a teatralidade do julgamento. A obra questiona o conceito de
justiça entre a teoria e a prática, mas com uma boa dose de humor e ironia.
É interessante ver Godard e Gorin como personagens de seus filmes, principalmente
nesse, que parece uma grande brincadeira, sem compromisso com o ato de
filmar. Gorin, vestido com uma capa vermelha e preta, retira um projetor
de dentro da roupa. Godard, fantasiado de policial, retira um bastão de dentro de
suas calças. Mais tarde, vestidos com roupas coloridas – nesse momento
Godard veste camiseta com o nome “Rosa” – começam a brincar no meio de
uma representação de uma coletiva de imprensa, com uma bola e uma vassoura,
interferindo como dois cômicos na suposta seriedade do momento. A inspira-
ção pode ter vindo tanto da commedia dell’arte italiana como da comédie fran-
çaise ou dos irmãos Marx.
Godard e Gorin se comprometeram com a Grove Press na produção de vários filmes,
108
mas apenas esse, co-produzido pela televisão alemã Tele-Pool, foi terminado.
Aqui e acolá
Ici et ailleurs

França, 1976 (1974, segundo catálogo do MoMA), 50 min, 16 mm e vídeo, Cor

Filmado na Palestina em 1969 e 1970, e em Paris nos anos 1970; montado mais tarde
por Godard e Miéville. O filme incorporou material do filme inacabado Jusqu’a la
victoire (ou Méthode de pensée et travail de la revolution palestinienne), que foi
dirigido por Godard e Gorin como Grupo Dziga Vertov e fotografado por
Armand Marco (segundo MacCabe)

Direção
Jean-Luc Godard e Anne-Marie Miéville (CM, MoMA)
Jean-Luc Godard, Anne-Marie Miéville e Jean-Pierre Gorin (WD)
Jean-Luc Godard, Jean-Pierre Gorin, Grupo Dziga Vertov, Anne-Marie Miéville (IMDb)
Montagem
Anne-Marie Miéville (CM, WD, IMDb)
Roteiro
Jean-Luc Godard, Anne-Marie Miéville e Jean-Pierre Gorin (WD)
Jean-Luc Godard e Anne-Marie Miéville (MoMA)
Jean-Luc Godard, Jean-Pierre Gorin, Grupo Dziga Vertov, Anne-Marie Miéville (IMDb)
Fotografia
Armand Marco, William Lubtchansky (CM)
William Lubtchansky (WD, MoMA, IMDb)
Vídeo
Gérard Teissèdre (CM)
Elenco
Comentários de Jean-Luc Godard e Anne-Marie Miéville (CM)
109
Produtores
Jean-Pierre Rassam, Anne-Marie Miéville, Jean-Luc Godard (JL, CM, IMDb)
Música original
Jean Schwarz (IMDb)
Em 1970, Godard e Gorin aceitam a proposta do grupo militante palestino
Al-Fatah para fazer um filme sobre a situação política do Líbano e da Jordânia.
Eles vão ao Oriente Médio e filmam imagens como os campos de treinamento
palestinos, locais de guerrilha, homens e mulheres atirando, adultos e crianças se
exercitando. Depois de um certo tempo, com o dinheiro acabando, os dois
tiveram de voltar para casa e aceitar as propostas da televisão alemã e da Grove
Films, para arrecadar mais fundos e terminar o filme. Daí a referência, no início de
Vladimir e Rosa, ao propósito daquele filme como sendo feito apenas se termi-
nar o outro. Muito apropriadamente, ele se chamaria Jusqu’à la victoire (“Até a vi-
tória”), mas não foi levado adiante. Nesse ponto, também o Grupo Dziga Vertov
se desmancha. Depois do massacre de Amã, conhecido como “Setembro Negro”,
Godard tem dificuldade em finalizá-lo. Num letreiro em néon, afirma que quase
todos os atores estariam mortos.
Mais tarde, Godard e Miéville reeditariam esse material, juntamente com um outro no-
vo, discutindo justamente os propósitos do Grupo Dziga Vertov. O novo filme ale-
ga que o “som” da guerrilha, dos discursos políticos inflamados, era muito
alto para que se pudesse ver as imagens. Este filme inicia um processo de
extensivo uso do vídeo na obra de Godard, que também usa fotos de jornal, ima-
gens conhecidas da televisão, imagens do holocausto. O filme é também uma re-
flexão de Godard sobre os propósitos do Grupo Dziga Vertov, por meio das ima-
gens da Jordânia. As reflexões progressivamente se estendem para os lugares de
onde se filma, de onde se projeta e de onde se vê o filme: aqui, na televisão da
família francesa, e lá, na revolução palestina. Para Godard, o lugar do cinema (mais
precisamente, da imagem) está no et (e) que liga ici (aqui) a ailleurs (acolá).
No dia da primeira exibição do filme em Paris, em setembro de 1976, uma bomba foi
encontrada na sala Quintette e o filme foi retirado de exibição, sendo mantido
apenas em outra sala. A situação na época da montagem de Jusqu’à la victoire
estava tão complicada que Godard chegou a pedir ao seu produtor proteção
especial para a porta da sala de edição, local onde também vivia na época.
110
Julia Lesage, em seu guia sobre a obra de Godard, reproduz a maior parte dos
diálogos de Aqui e acolá.
Tudo vai bem
Tout va bien

França, 1972, 95 min, 35 mm, Cor

Filmado no estúdio Epinay de 1º a 23 de fevereiro de 1972


e nas redondezas de Paris, nos períodos de 17 a 31
de janeiro de 1972 e de 24 a 6 de março de 1972.

Godard e Gorin
Monólogos baseados em Viva a sociedade de
consumo, de Jean Saint-Goeurs, na revista CGT, no
monólogo oficial do sindicato A Vida Trabalhadora,
na revista Maoist e no monólogo do trabalhador de
esquerda A causa do povo

Direção
Jean-Luc Godard e Jean-Pierre Gorin (CM, JL, WD,
MoMA, IMDb, DVD)
Roteiro
Jean-Luc Godard e Jean-Pierre Gorin (CM, JL, WD,
MoMA, IMDb, DVD)
Montagem
Kenout Peltier, Claudine Merlin (CM, JL, DVD)
Kenout Peltier (MoMA, WD)
Fotografia
Armand Marco, Yves Agostini, Edouard Burgess (CM)
Armand Marco (WD, JL, MoMA, DVD)
Operadores de câmera
Yves Agostini, Édouard Burgess (DVD)
Assistentes de direção
111
Isabelle Pons, Jean-Hughes Nelkene (CM)
Direção de arte
Jacques Dugied, Olivier Girard, Jean-Luc Dugied (JL)
Jacques Dugied (DVD, como cenógrafo)
Efeitos especiais
Jean-Claude Dolbert, Paul Trielli, Roger Jumeau,
Marcel Vantieghem (JL)
Jean-Claude Dolbert, Paul Trielle (DVD)
Som
Bernard Orthion, Gilles Orthion (CM, JL)
Bernard Orthion, Armand Bonfati (MoMA, DVD)
Música
Eric Charden, Thomas Rivat, Paul Beuscher (CM, MoMA)
Canção
“Il y a du soleil sur la France”
Mixagem de som
Antoine Bonfanti (CM, JL)
Still
Alain Miéville e Anne-Marie Michel (Miéville) – (JL, DVD)
Produção
Allain Coffier (JL, DVD chama de “administração”)
Alain Coiffier, J.P.Rassam, Jean-Luc Godard (WD)
Produção executiva
Jean-Pierre Rassam (JL, CM, DVD chama de “produção representativa”)
Elenco
Yves Montand (Jacques ou ele mesmo, segundo Lesage), Jane Fonda (Suzanne),
Vittorio Caprioli (chefe da fábrica), Jean Pignol (atendente da CGT), Pierre Oudry
(Frédéric), Elisabeth Chauvin (Geneviève), Anne Wiazemsky (mulher
esquerdista), Marcel Gassouk (segundo atendente da CGT), Didier Gaudron
(Germain), Michel Marot (representante do Partido Comunista), Huguette
Miéville (Georgette), Luce Marnaux (Armande), Natalie Simon (Jeanne), Eric
Chartier (Lucien), Bugette (George), Castel Casti (Jacques), Jean-René Defleurieu
(esquerdista), Louise Rioton (Lyse), Ibrahim Seck

112
O filme conta a história de um casal intelectual da mídia. Suzanne (Jane Fonda) é
uma americana que trabalha como jornalista para uma rádio, e Jacques (Yves
Montand) é um diretor de filmes da Nouvelle Vague que se radicalizou politica-
mente em 1968, mas desistiu de suas posições e agora faz filmes publicitários.
Ambos vão ao frigorífico Salumi, que está em greve, e acabam sendo aprisionados
pelos trabalhadores no mesmo escritório que o diretor da empresa.
Em um cenário aberto de onde se pode ver vários compartimentos do edifício e que
permite a visão das histórias individuais sem privilegiar apenas um ponto de vista,
os trabalhadores, o diretor e o casal são mostrados ao mesmo tempo. Logo no
início, esse chefe faz um longo monólogo sobre a situação política atual, argumen-
tando que as lutas marxistas já não fazem sentido e os sindicatos não protegem os
trabalhadores. Uma cena engraçada em nome da vingança das classes desfavore-
cidas é quando o chefe tenta ir ao banheiro, mas o seu está ocupado, ele então
tenta ir ao banheiro sujo do andar de baixo, mas é obrigado a seguir a regra
comum aos trabalhadores, de só usá-lo por três minutos. Ele volta correndo para
sua sala e em desespero quebra a janela de vidro e urina para fora do prédio.
Como a inspiração do filme é Bertolt Brecht, cenas com certo tom humorístico
fazem parte do enredo. Aos poucos, as preocupações individuais vão se tornando
mais importantes que a luta em favor dos oprimidos, e o filme termina concluin-
do que é a história individual que faz a grande história. A reflexão se dirige para a
conscientização da alienação de cada um, na medida em que os personagens reca-
pitulam maio de 1968 em relação aos novos tempos políticos e consumistas. O
filme não deixa nunca de se referir a si mesmo e logo no início mostra closes de
uma mão assinando cheques, mostrando os gastos da sua própria produção. No
fim, uma cartela final diz: “Esta é uma conta para aqueles que não têm nenhuma.”
O filme, que custou, segundo Lesage, 1,2 milhão de dólares, foi em parte financiado
pela Gaumont, responsável pelo pagamento dos atores Jane Fonda e Yves
Montand. A Paramount também esteve interessada no filme. Yves Montand
parece ter sempre desejado trabalhar com Godard. Jane Fonda, na época
113
recém-separada de Roger Vadim, a princípio não aceitou a proposta, pois não
queria trabalhar com dois homens, mas voltou atrás depois de ser convencida
por Gorin. Ao final, o filme foi um fracasso comercial e de crítica, segundo
MacCabe. Um exemplo interessante da crítica da época é o artigo de Pierre
Baudry, “La critique et Tout va bien”, em Cahiers du Cinéma, n. 240, de
julho/agosto 1972, no qual ele analisa a recepção analítica não só do filme, mas
da idéia de esquerda, do trabalho coletivo e da dupla Godard-Gorin.
Um DVD da Criterion Collection foi lançado nos Estados Unidos em 2005 com
os filmes Tout va bien e Letter to Jane, além de um pequeno catálogo com
artigos sobre os filmes.
Carta para Jane
Letter to Jane (An investigation about a still)

EUA, 52 min, 1972, 16 mm, Cor

Filmado em Frankfurt em 6 de novembro de 1974 e na Avenue du Maine, em Paris

Direção
Jean-Luc Godard e Jean-Pierre Gorin (CM, WD, DVD, MoMA, IMDb)
Jean-Luc Godard (JL)
Roteiro
Jean-Luc Godard e Jean-Pierre Gorin (CM, WD, DVD, MoMA, IMDb)
Jean-Luc Godard (JL)
Elenco
Jean-Luc Godard e Jean-Pierre Gorin fazem comentários em voz over analisando
a fotografia de John Kraft que apareceu na revista L’Express (31 de julho – 6 de
agosto de 1972) mostrando Jane Fonda em sua viagem ao Vietnã do Norte
Produção
Jean-Luc Godard e Jean-Pierre Gorin (CM, MoMA)

114
Godard e Gorin desconstroem a fotografia de John Kraft que apareceu na
revista L’Express em julho/agosto de 1972, mostrando Jane Fonda no Vietnã do
Norte. Na época, Jane Fonda era conhecida pelo apelido Hanoi Jane e tinha ido
ao Vietnã com propósitos pacifistas. O filme foi levado a Nova York para ser apre-
sentado junto com Tudo vai bem. Segundo MacBean (Film and Revolution, p.
167), nessa ocasião Godard e Gorin afirmaram que o filme foi feito em poucas
semanas, com 300 dólares, com o propósito de discutir Tudo vai bem.
A análise parte da contradição entre a legenda da revista “Jane Fonda questions the
citizens of Hanoi about American bombings” (Jane Fonda questiona os cidadãos
de Hanói sobre os bombardeios americanos) e a foto, que mostra Fonda ouvindo,
mais que perguntando, de um vietnamita anônimo, de costas para a câmera.
A atriz está em foco, enquanto um vietnamita ao fundo está desfocado. Além
disso, o ângulo da câmera posicionada abaixo dos fotografados faz parecê-los
maiores do que são. Para a dupla, nada disso é acidental, mas sim uma forma
imperialista de ser pacifista. O rosto de Fonda, em expressão trágica na foto,
é comparado com outros diversos momentos da atriz, em vários outros filmes,
inclusive em Tudo vai bem, e com o de seu pai Henry Fonda, evidenciando a
similaridade de expressão em momentos emocionais completamente diferentes.
O filme reflete sobre o status da imagem e o papel do intelectual de forma
minimalista e critica ironicamente a iconografia e o star system hollywoodiano.
Trata-se de uma reflexão sobre a representação na mídia contemporânea.
O próprio fato de a foto ter sido publicada pela L’Express é, para os diretores,
um sintoma de que a revolução é tratada apenas de forma simplificada, sem
nenhuma contradição e sem apresentar minimamente a dialética dos poderes.
De certa forma, visto de hoje, o filme soa mesmo como um alerta ao que o
sistema estaria fazendo aos movimentos revolucionários, simplificando e “fagoci-
tando” as idéias em nome de si mesmo.
O filme foi considerado uma lição de leitura de imagem por Susan Sontag em seu
115
livro Sobre a fotografia, mas também foi considerado um estupro de dois
homens a uma mulher, um a cada vez, como conta Gorin sobre o comentário
do diretor iugoslavo Makavejev depois de assisti-lo (MacBean, Film and
Revolution, p. 176).
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Jane de Almeida é professora da PUC/SP e do Programa de Pós-graduação em
Educação, Arte e História da Cultura da Universidade Mackenzie. Foi professora
convidada da Universidade Harvard (2005). É curadora independente de mostras
de filmes e artes como Metacinemas, Estratégias da Imagem e Ordenação e
Vertigem.
José Carlos Avellar é crítico de cinema e integrante do conselho de redação da
revista Cinemais. Dirige a distribuidora de filmes Martim 21 e foi diretor da
Riofilme de 1993-2000. Co-autor de trabalhos sobre o cinema brasileiro e latino-
americano — entre eles Le cinéma brésilien (Centre Pompidou, Paris) e Hojas de
cine (Universidad Autonoma Metropolitana, México) e também de vários livros,
entre eles Deus e o diabo na terra do sol (ed. Rocco) e A ponte clandestina
(Edusp).
Kent Jones é crítico de cinema da revista Film Comment e diretor de programação
do Walter Reade Theater/ Film Society of Lincoln Center. É autor de L’argent (BFI
Modern Classics).
James Roy MacBean, crítico de cinema, é autor do livro Film and Revolution
(Indiana University Press) e de artigos publicados nas revistas Film Quarterly e
Sight and Sound.
Colin MacCabe é professor da Universidade de Pittsburgh. MacCabe escreveu
vários trabalhos sobre Godard, como o artigo “Jean-Luc Godard: Son + Image”
(Catálogo do Museu of Modern Art — MoMA) e os livros Godard: Images,
Sounds, Politics (MacMillan) e Godard: a Portrait of the Artist at Seventy (Farrar,
Straus & Giroux).
Erik Ulman é autor de artigos sobre música, cinema e litertura para revistas como
Perspectives of New Music e Senses of Cinema, assim como para o livro Sound
as Sense. Organizou com Marcia Scott o primeiro e o segundo Poto Festival
(2004-2005), encontro com artistas de várias mídias em Grass Valley, California.
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São Paulo: witz edições, 2005
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