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01/03/2020 Bom Humor e Brincar em S.

Tomás de Aquino

[volta]
BOM HUMOR E BRINCAR EM S. TOMÁS DE
AQUINO

Luiz Jean Lauand

( O Tratado sobre o brincar de Tomás de Aquino corresponde ao


In X Libros Ethicorum, IV, 16 - Comentário à Ética de
Aristóteles. A presente tradução foi feita a partir do texto latino
da edição de Marietti, Turim, 1934).

Apresentamos, a seguir, o Tratado sobre o Brincar de


S. Tomás de Aquino (1225-1274), o principal
pensador medieval.
Dentre os diversos preconceitos a respeito da Idade
Média, um dos mais injustos é o que a concebe como
uma época que teria ignorado, ou mesmo combatido,
o riso e o brincar. Na verdade, o homem medieval é
muito sensível ao lúdico; convive a cada instante com
o riso e com a brincadeira.
Comecemos pela fundamentação teológica do lúdico.
Recordemos que o cristianismo (tão marcante na
Idade Média), ao dar ao homem um vivo sentido de
mistério e uma humildade anti-racionalista (não anti-
racional; anti-racionalista!), dá-lhe também o senso de
humor. Pois a leveza do riso pressupõe a aceitação da
condição de criatura, de que o homem não é Deus, do
mistério do ser, da não-pretensão de ter o mundo
absoluta e ferreamente compreendido e dominado
pela razão humana. O racionalismo, pelo contrário, é
sério; toma-se demasiadamente a sério e, por isto
mesmo, é tenso e não sabe sorrir.

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O homem medieval brinca porque acredita vivamente


naquela maravilhosa sentença bíblica que associa o
brincar da Sabedoria divina à obra da Criação:
quando Deus criou o mundo e fez brotar as águas das
fontes, assentou os montes, fez a terra e os campos,
traçou o horizonte, firmou as nuvens no alto, impôs
regras ao mar e assentou os fundamentos da terra "ali
estava Eu (a Sabedoria divina) com Ele como artífice,
brincando (ludens) diante dEle todo o tempo;
brincando (ludens) sobre o globo terrestre, e minhas
delícias são estar com os filhos dos homens" (Prv
8,30-31).

Já de outro ponto de vista, o histórico-psicológico,


também é facilmente compreensível a atitude lúdica
da Idade Média, uma época jovem. A juventude e a
velhice não se predicam só das pessoas singulares,
mas também das épocas e regiões. A atitude jovem
que distingue hoje a América é semelhante à que
caracteriza a Idade Média.

Assim, a Idade Média (sobretudo a Primeira Idade


Média), na ingenuidade de sua juventude, valorizou,
mais do que qualquer outra época, a cultura popular.
Fomentou-a. Os mais sábios mestres dirigem-se a
seus alunos de modo informal e lúdico (aliás um dos
sentidos derivados de ludus é escola; fenômeno
paralelo ao da derivação de escola de scholé, lazer).
Em Alcuíno (séc. VIII), por exemplo, encontramos
diálogos repletos de enigmas, brincadeiras e piadas,
pois - é a sua norma pedagógica - "deve-se ensinar
divertindo". Para a época, é perfeitamente natural que
um intelectual do porte de um Alcuíno ensine às
crianças através de brincadeiras, como a seguinte:
"Se me lês na ordem certa, comes-
me;

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se me lês de trás para diante,


cavalgas-me.
Quem sou eu?"
O exemplo acima é um típico exercício da escola
elementar medieval, unindo o didático ao lúdico.
"Cavalgar" exige complemento direto, acusativo. O
aluno que esquecesse deste ponto da gramática não
resolveria a adivinha; já aquele que se lembrasse,
saberia que a palavra em questão começa e termina
por m: malum (pomo) e mula (ou, no acusativo,
mulam) é a solução.

E no ensino de Aritmética é freqüente encontrarmos


problemas com enunciado lúdico. Por exemplo:
"Numa escada com 100 degraus, no 1º. degrau está
pousada uma pomba; no 2º., 2; no 3º., 3; e assim por
diante até o 100º. Diga, quem puder, quantas pombas
há no total? (1)"

Não só o conteúdo do ensino era apresentado de


forma jocosa; pratica-se nas escolas dos monges o
lúdico também para "aguçar o engenho das crianças".
Misturados em listas medievais de ensino elementar
de Aritmética, encontramos problemas como este:
"Um homem devia passar de uma a outra margem de
um rio, um lobo, uma cabra e um maço de couves. E
não pôde encontrar outra embarcação a não ser uma
que só comportava dois entes de cada vez, e ele tinha
recebido ordens de transportar ilesa toda a carga.
Diga, quem puder, como fez ele a travessia?
Resposta: Primeiro leva a cabra, deixando o lobo e a
couve. Depois volta e retorna com o lobo. Deixado o
lobo, toma a cabra etc.".
O lúdico como atitude recebe também uma
fundamentação filosófica, particularmente em Tomás
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de Aquino, que entoa o elogio do brincar. A


atualidade de seu pensamento manifesta-se de modo
mais agudo na Ética, campo em que Tomás situa o
lúdico.
Tomás trata tematicamente do brincar no Comentário
à Ética de Aristóteles (IV,16) e na Suma Teológica, II-
II, questão 168, artigos 2, 3 e 4, que comentaremos
brevemente, a seguir.
Observemos desde já que em todos os textos de
Tomás recolhidos neste trabalho, traduziremos ludus
por brincar. E deixemos claro que o ludus de que
Tomás trata nestes textos é sobretudo:
- o brincar do adulto (embora nada impeça
que - com as devidas adaptações - se aplique
também às crianças).
- a graça, o bom humor, a jovialidade e
leveza no falar e no agir, que tornam o
convívio humano descontraído, acolhedor,
divertido e agradável (ainda que possam se
incluir nesse conceito de brincar também as
brincadeiras formalmente estabelecidas como
tais).
- virtude da convivência, do relacionamento
humano.
Ainda uma observação sobre as palavras ludus e
jocus. No latim, a palavra jocus é originalmente
reservada para as brincadeiras verbais: piadas,
enigmas, charadas etc. Já ludus - de que se originaram
as palavras: aludir, iludir, ludibriar, eludir, prelúdio
etc. - refere-se, originalmente, ao brincar não-verbal,
mas por ação. No século XIII, jocus e ludus são
usadas como sinônimas: "As palavras ou ações - diz
Tomás em II-II, 168, 2, c - nas quais só se busca a
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diversão chamam-se lúdicas ou jocosas" e "a


distração se faz pelas brincadeiras (ludicra) de
palavra e ação (verba et facta)".
Assim, o lúdico assume diversas dimensões: o estado
de espírito de brincar e suas eventuais manifestações
em brincadeira verbal, a de ação e a de jogos. Porém,
para bem compreendermos o tratamento que Tomás
dá ao brincar, é necessária uma breve exposição de
sua concepção de ética.
Para Tomás, a moral é o ser do homem, doutrina
sobre o que o homem é e está chamado a ser. A moral
é entendida como um processo de aperfeiçoamento,
de auto-realização do homem; um processo levado a
cabo livre e responsavelmente e que incide sobre o
nível mais fundamental, o do ser-homem: "Quando,
porém, se trata da moral, a ação humana é vista como
afetando não a um aspecto particular, mas à totalidade
do ser do homem... ela diz respeito ao que se é
enquanto homem" (I-II, 21, 2 ad 2).
A moral, nesse sentido, pressupõe antes e acima de
tudo conhecimento sobre o ser do homem; um
conhecimento que, insistamos, remete a um único
fundamento: a natureza humana. Deste modo, toda
norma moral deve ser entendida como um enunciado
a respeito do ser do homem e toda transgressão moral
traz consigo uma agressão ao que o homem é. Para
Tomás, cada norma moral é, na verdade, um
enunciado sobre o ser. Os imperativos dos
mandamentos ("Farás x...", "Não farás y...") são, no
fundo, enunciados sobre a natureza humana: "O
homem é um ser tal que sua felicidade, sua realização,
requer x e é incompatível com y".
Neste quadro, podemos compreender a doutrina de
Tomás sobre a virtude. A virtude - como também seu
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oposto: o vício - é um hábito (naturalmente, a virtude


é hábito bom; e o vício, mau). O nosso tempo anda
tão desorientado no que diz respeito à Educação
Moral que a própria palavra hábito nos causa aversão:
associamos hábito a condicionamento, domesticação
etc. Porém, o verdadeiro sentido do hábito, o que lhe
dá Tomás, nada tem que ver com essas deformações.
Hábito é pura e simplesmente uma qualidade
adquirida (auto-adquirida e livremente desenvolvida)
que facilita e aperfeiçoa a ação e aperfeiçoa também o
próprio homem.

O bem objetivo sobre o qual incide a virtude costuma


situar-se como um termo médio entre dois extremos
de vício: o do excesso e o do defeito. Daí o adágio "in
medio virtus", a virtude está no meio, com o que,
naturalmente, não se afirma ser a virtude uma
burguesa mediocridade de média, mas sim um agudo
pico entre dois abismos de erro. Assim, por exemplo,
a virtude da liberalidade, o reto uso do dinheiro, é
termo médio entre a avareza e o malbaratar
irresponsável.
Ao tratar do brincar na Suma, a afirmação central de
Tomás (fundamentada na concepção de ética que
indicamos) encontra-se no ad 3 do art. 3: Ludus est
necessarius ad conversationem humanae vitae, o
brincar é necessário para a vida humana (e para uma
vida humana). A razão dessa afirmação, como
sempre, a encontraremos no ser do homem,
desenvolvida no artigo 2, que passamos a resumir.
Nele, Tomás afirma que assim como o homem precisa
de repouso corporal para restabelecer-se (sendo suas
forças físicas limitadas, não pode trabalhar
continuamente), assim também precisa de repouso
para a alma, o que é proporcionado pela brincadeira.

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Daí decorrem importantes conseqüências para a


educação: o ensino não pode ser aborrecido e
enfadonho: o fastidium é um grave obstáculo para a
aprendizagem (2). A tristeza e o fastio produzem um
estreitamento, um bloqueio, ou, para usar a metáfora
de Tomás, um peso (aggravatio animi) (3). Daí que
Tomás recomende o uso didático de brincadeiras e
piadas: para descanso dos ouvintes (ou alunos). E,
tratando do relacionamento humano, Tomás chega a
afirmar que ninguém agüenta um dia sequer com uma
pessoa aborrecida e desagradável (4).
Após estabelecer a necessidade do brincar, o Aquinate
indica três precauções a tomar nessa matéria:

1. Evitar brincadeiras que envolvam agir ou falar


torpe ou nocivo.

2. Não se deixar envolver tão desenfreadamente pelo


brincar a ponto de perder a gravidade da alma. E
aplica ao adulto o mesmo critério do brincar que se
impõe às crianças: "não permitimos às crianças toda
espécie de brincadeiras, mas só as que não sejam
moralmente más".
3. Cuidar de que sejam adequados o momento
("brincadeira tem hora!"), o lugar ("Aqui não é lugar
de brincadeira!") e as pessoas envolvidas.
Feitas essas considerações, Tomás conclui: "Vê-se
pois que as brincadeiras devem ser ordenadas pela
regra da razão (e razão, no caso, significa:
conhecimento objetivo do ser). E o hábito que opera
segundo a razão é a virtude moral. Há portanto uma
virtude do brincar que é o que Aristóteles chama de
eutrapelia".
 

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(1) Este problema (e o seguinte) encontra-se na antologia de


textos didáticos medievais, por nós publicada sob o título
Educação, Teatro e Matemática Medievais, 2ª. ed., S. Paulo,
Perspectiva, 1990.

(2) Suma Teológica, prólogo. Em outro lugar da Suma Teológica,


no tratado sobre as paixões, Tomás analisa um interessante efeito
da alegria e do prazer na atividade humana, o que ele chama
metaforicamente de dilatação: que amplia a capacidade de
aprender tanto em sua dimensão intelectual quanto na da vontade
(o que designaríamos hoje por motivação): "A largura é uma
dimensão da magnitude dos corpos e só metaforicamente se
aplica às disposições da alma. 'Dilatação' indica uma extensão,
uma ampliação de capacidade e se aplica à 'deleitação' (Tomás
joga com as palavras dilatatio-delectatio) com relação a dois
aspectos. Um provém da capacidade de apreender que se volta
para um bem que lhe convém e por tal apreensão o homem
percebe que adquiriu uma certa perfeição que é grandeza
espiritual: e por isso se diz que pela deleitação sua inteligência
cresceu, houve uma dilatação. O segundo aspecto diz respeito à
capacidade apetitiva que assente ao objeto desejado e repousa
nele como que abrindo-se a ele para captá-lo mais intimamente.
E, assim, dilata-se o afeto humano pela deleitação, como que
entregando-se para acolher interiormente o que é agradável" (I-
II, 33, 1)

(3) I-II, 37, 2, ad 2.

(4) I-II, 114, 2 ad 1.

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