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O jato de sangue (1925)

de Antonin Artaud

RAPAZ – Eu te amo e tudo é belo.


MOÇA - (com a voz muito trêmula) – Você me ama e tudo é belo.
RAPAZ (quase sussurrando) - Eu te amo e tudo é belo.
MOÇA (com voz ainda mais sussurrante) – Você me ama e tudo é belo.
RAPAZ (afastando-se bruscamente) - Te amo. (Pausa) Fique de frente.
MOÇA (afastando-se e se colocando de frente para ele) – Pronto.
RAPAZ (em tom exaltado, agudíssimo) - Te amo, sou grande, sou lúcido, sou musculoso,
sou denso.
MOÇA (em um mesmo tom agudíssimo) - Nós nos amamos.
RAPAZ - Somos intensos. Ah! Que bem organizado está o mundo!

Pausa. Se ouve o ruído de uma imensa roda que gira, expelindo vento. Um furacão
separa-os. Nesse momento, dois astros se chocam e começam a cair, em carne viva,
pernas, pés, mãos, cabeleiras, máscaras, colunas, pórticos, templos, alambiques; caem,
mas cada vez mais devagar, como se caíssem no vácuo; em seguida, três escorpiões, um
atrás do outro, e por último uma rã e um escaravelho, que passa com uma lentidão
desesperadora, uma lentidão de dar ânsia de vomito.

RAPAZ (gritando com toda sua força) - O céu ficou louco. (Olha para o céu) Vamos sair
correndo.

Empurra a Moça. E entra um Cavalheiro medieval com uma armadura enorme, seguido de
uma Ama-de-leite, que segura os peitos com as mãos, resfolegante por causa de seus seios
muito inchados.

CAVALHEIRO - Deixa em paz os seus peitos e traga os papéis.


AMA-DE-LEITE (lançando um grito agudíssimo) - Ai! Ai! Ai! Ai!
CAVALHEIRO - Porra! Que foi?
AMA-DE-LEITE - Nossa filha, ali, com ele.
CAVALHEIRO – Não tem nenhuma moça lá. Cala a boca!
AMA-DE-LEITE - Digo que estão fornicando.
CAVALHEIRO - E que me importa se estão fornicando ou não.
AMA-DE-LEITE - Incesto.
CAVALHEIRO – Bisbilhoteira.
AMA-DE-LEITE (metendo as mãos nos bolsos, tão volumosos como seus peitos) -
Cafetão.

Atira-lhe os papéis.
2

CAVALHEIRO – Me deixe comer.

Foge a Ama-de-leite. Então o Cavalheiro apruma-se e de cada folha tira uma enorme
fatia de queijo suíço. De repente, começa a tossir e engasga.

CAVALHEIRO - Ei! Ei! Deixa eu ver os seus peitos. Deixa eu ver os seus peitos. Onde ela
se meteu?

Sai correndo. Entra o Rapaz.

RAPAZ - Vi, ouvi, entendi. Aqui a praça, o padre, o sapateiro, a verdureira, a entrada da
igreja, o lampião do prostíbulo, a balança da justiça. Não posso mais!

Como sombras vão chegando um padre, um sapateiro, um sacristão, uma alcoviteira, um


juiz, uma verdureira.

RAPAZ – Eu a perdi. Me devolve!


TODOS (em diferentes tons) - Quem? Quem? Quem? Quem?
RAPAZ - A minha esposa.
SACRISTÃO (astuto) - A sua esposa? Qual é, gozador!
RAPAZ - Gozador? Queria ver, se fosse a sua!
SACRISTÃO (batendo na testa) – Vai ver que é verdade.

Sai correndo. Por sua vez, o Padre se afasta do grupo e passa o braço em torno do
pescoço do Rapaz.

PADRE (como em um confessionário) - A que parte de seu corpo você se refere com mais
frequência?
RAPAZ - A Deus.

O Padre, desconcertado pela resposta, adota imediatamente um sotaque suíço.

PADRE (com sotaque suíço) – Isso já não se faz. Não nos interessa. Temos de deixá-lo
para os vulcões, os terremotos. Nós nos sustentamos com as imundícies dos homens no
confessionário. E isso é tudo. É a vida.
RAPAZ (muito impressionado) - Ah! Com que então é a vida! Pois que se danem!
PADRE (com sotaque suíço) - Assim seja.

Nesse instante a escuridão invade repentinamente o palco. Treme a terra. Retumbam os


trovões, com relâmpagos que zig-zagueiam por toda parte, e com os zig-zags dos
relâmpagos vê-se todos os personagens que correm, se enredam uns nos outros, caem no
chão, voltam a se levantar e correm como loucos. Em certo momento, uma mão enorme
arrebata a cabeleira da Alcoviteira, que se inflama e cresce a olhos vistos.

VOZ DESCOMUNAL – Cadela, olha seu corpo!


3

O corpo da alcoviteira aparece inteiramente desnudo e repugnante sob o corpete e a saia,


que são como que de vidro.

ALCOVITEIRA – Deixa-me, Deus!

Morde o punho de deus. Um imenso jorro de sangue dilacera o cenário e, enquanto soa um
relâmpago mais longo que os outros, vê-se o padre que se persigna. Quando volta a luz,
todos os personagens estão mortos e seus cadáveres jazem no solo por toda parte. Apenas
ficam o Rapaz e a Alcoviteira, que se devoram com os olhos. A Alcoviteira cai nos braços
do Rapaz.

ALCOVITEIRA (suspirando e a ponto de ter um orgasmo) - Conta como ocorreu.

O Rapaz esconde a cara entre as mãos. Volta a Ama-de-leite levando a Moça, como um
fardo, em baixo do braço. A Moça está morta. Solta-a e ela se estatela no chão, onde fica
como uma panqueca. A Ama-de-leite já não tem peitos, é completamente plana. Nesse
momento entra o Cavalheiro, que se atira sobre ela e a sacode com veemência.

CAVALHEIRO (com voz terrível) Onde você os meteu? Me dê o queijo.


AMA-DE-LEITE (com picardia) - Toma.

Levanta a saia. O Rapaz quer fugir, mas fica rígido como um marionete petrificado.

RAPAZ (como que suspenso no ar, com voz de ventríloquo) - No faça mal à mamãe.
CAVALHEIRO – Maldita.

Cobre o rosto horrorizado. Então sai de debaixo da saia da Ama-de-leite um formigueiro


de escorpiões que pululan por seu sexo que incha, racha, se torna vítreo e espelha como
um sol. O Rapaz e a Alcoviteira fogem como se estivessem derretendo.

MOÇA (levantando-se deslumbrada) - A virgem! Ah! Era o que eu buscava!

FIM

Tradução provisória: Silvana Garcia

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