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Artigo
Doença de Alzheimer: a experiência única de cuidadores familiares
Emanuela Bezerra Torres Mattosa*
Maria Julia Kovácsb
a
Instituto Saúde e Sociedade da Unifesp, Departamento Saúde Educação e Sociedade. São Paulo, SP, Brasil
b
Instituto de Psicologia da USP, Departamento de Psicologia da Aprendizagem,
do Desenvolvimento e da Personalidade. São Paulo, SP, Brasil
Resumo: A demência é uma síndrome de curso lento, progressivo e de natureza crônica, sendo o subtipo doença
de Alzheimer (DA) a mais comum. Muitos estudos são realizados a partir das demandas da pessoa com demência,
porém na perspectiva do cuidador eles são escassos. A pesquisa qualitativa teve como objetivo conhecer aspectos
singulares da experiência do cuidar na perspectiva de cuidadoras familiares de idosos com DA, a partir de
abordagem qualitativa. Foi utilizado o método fenomenológico proposto por Giorgi e Sousa. Participaram nove
cuidadoras familiares (quatro esposas e cinco filhas) que cuidam de seus familiares. Esta pesquisa acompanhou o
cuidar na fase inicial, moderada, avançada, em diferentes estágios da doença e no pós-óbito. A partir da questão
central: “Como é para você a experiência de acompanhar seu familiar com a doença de Alzheimer?”, emergiram
treze unidades temáticas que foram associadas às fases da doença. Os resultados apontaram as necessidades dos
cuidadores, que vão desde o diagnóstico em fases iniciais até a criação de espaço para escuta e acolhimento diante
das perdas graduais vivenciadas ao longo do processo de cuidar. Assim, é urgente o investimento em formação de
profissionais em todas as áreas envolvidas no cuidar para promover qualidade de vida e bem-estar aos cuidadores.
bem como a necessidade de equipes interdisciplinares para a experiência singular do cuidado em demência.
http://dx.doi.org/10.1590/0103-6564e180023
Emanuela Bezerra Torres Mattos& Maria Julia Kovács
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crônicas degenerativas, dentre elas, a demência. Serviço Serviço de Atendimento ao Envelhecimento
Nesse contexto, o luto antecipatório na perspectiva do Cognitivo (SAEC) e pela Associação Brasileira de
cuidador diante das perdas cognitivas de seu familiar Alzheimer (ABRAz) Sub-regional Santos, localizados
implica o luto vivenciado pelo futuro desconhecido e na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp/Campus
pelas mudanças ocorridas no presente em relação ao Baixada Santista).
passado vivido. Além disso, cabe ressaltar que o modelo Os critérios de inclusão foram: ser cuidadora
postula que a forma de manifestação do luto antecipatório principal de idoso com diagnóstico de DA e ser familiar,
sofre influência de variáveis psicológicas, sociais e independentemente do grau de parentesco e do estágio
fisiológicas de quem desempenha esse cuidado. da doença do idoso; no caso das entrevistas pós-óbito, ter
Em contraste com a literatura sobre o luto sido cuidador por pelo menos seis meses no último ano
experimentado imediatamente antes ou após a morte de vida. Os critérios de exclusão eram: não ser familiar;
de um familiar, relativamente pouco se sabe a respeito do ser familiar, mas receber algum tipo de remuneração para
luto e das perdas relacionadas com a demência durante a exercer essa função; ou estar há menos de seis meses
trajetória do período de cuidado (Doka, 2004). nesse papel.
Das nove cuidadoras (C) familiares (F)
Método entrevistadas, quatro eram esposas e cinco, filhas.
A idade variou entre 51 a 80 anos. Sete moravam junto
Esta pesquisa teve como objetivo conhecer a com o familiar, e duas das filhas não dormiam na mesma
experiência do cuidar na perspectiva de cuidadoras residência de seus familiares com DA. Para a descrição
familiares de idosos com DA. Para isso, a abordagem e análise dos relatos, elas foram enumeradas de C1
qualitativa em pesquisa parece ser a mais adequada a C9, de acordo com a ordem cronológica das
por considerar a análise da experiência dos atores entrevistas. Duas delas vivenciaram no momento da
envolvidos, além da subjetividade do pesquisador e do entrevista a experiência de cuidar da pessoa com DA
pesquisado, a abrangência do fenômeno investigado, situar na fase leve, três na moderada, uma participou tanto
e contextualizar os demais fenômenos, sejam eles sociais, na fase avançada quanto no pós-óbito e apenas uma
culturais, econômicos, emocionais e/ou psicológicos no pós-óbito.
(Morais, 2011). Foram respeitados os princípios éticos de sigilo,
O estudo foi submetido e aprovado pelo privacidade, confidencialidade, não identificação das
Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos colaboradoras, liberdade de participação e garantia de
da Universidade Federal de São Paulo, sob parecer apoio psicológico, se necessário. Todos os depoimentos
nº 647.560. Após o aceite da instituição para o foram gravados e transcritos na íntegra a partir da
desenvolvimento da pesquisa, foram contatados, entrevista aberta com uma questão norteadora: “Como
via telefone, todos os cuidadores familiares que é para você a experiência de acompanhar seu familiar
participavam de projetos realizados na instituição. com a demência da doença de Alzheimer?”.
Nesse momento eles foram esclarecidos a respeito dos As unidades de significado (US) emergiram
objetivos do estudo, dos procedimentos de coleta dos tendo como fundamento o método fenomenológico
relatos e das questões éticas. Aqueles que mostraram adaptado e proposto por Giorgi e Sousa (2010). Este é
interesse em colaborar agendaram uma conversa em um método utilizado na abordagem qualitativa que
dias, horários e locais predeterminados, de acordo propõe passos metodológicos para identificar unidades
com suas disponibilidades de tempo e demandas. de significado que são: (1) estabelecer o sentido
Doze cuidadoras assinaram o Consentimento Livre e do todo; (2) determinar as partes e dividir as unidades
Esclarecido (TCLE), porém apenas nove participaram de significado; e (3) transformar as US em expressões de
do estudo. Duas não conseguiram encaixar dias caráter psicológico para alcançar as unidades temáticas
e horários para a entrevista, após três contatos que resultaram nesta pesquisa. Foram estabelecidas treze
telefônicos feitos pela pesquisadora. Uma preferiu unidades de significados, obtidas a partir da análise dos
não colaborar devido ao falecimento recente da mãe nove depoimentos. Elas foram associadas às três fases da
e à vivência de um processo doloroso de luto. doença nas quais as cuidadoras vivenciaram a experiência
Apenas uma das nove cuidadoras optou por do cuidar e do pós-óbito.
dar seu depoimento fora do ambiente domiciliar e
justificou que não seria o ambiente propício, devido Resultados
às demandas constantes de seu familiar com DA.
As demais optaram pela entrevista no domicílio no Compreender a experiência de cuidadores
horário de sono, descanso ou de atividades externas familiares de idosos com demência ao longo do
de seus familiares. processo de cuidar permitiu desmistificar que o cuidado
Participaram, assim, nove cuidadoras familiares é essencialmente voltado à pessoa com demência.
(quatro esposas e cinco filhas) acompanhadas pelos Faz-se necessário ampliar o olhar para o cuidador
grupos de suporte e apoio ao cuidador oferecidos no familiar, na medida em que as unidades de significados
As três unidades de significados que compõem a A participação em grupos de apoio pode ser tão
fase inicial são: essencial para cuidadores, quanto os medicamentos são
para pessoas com demência (Dizazzo-Miller, Samuel,
A demora no diagnóstico Barnas, & Welker, 2014). Estudo de follow-up por
oito anos indicou que um programa intensivo de dez
O diagnóstico precoce e preciso da demência, dias de treinamento para cuidadores impulsionado por
bem como a discussão do prognóstico e do manejo acompanhamento e conferências telefônicas retardou a
são cruciais e podem ter efeitos significativos a longo institucionalização de pessoas com demência (Brodaty,
prazo para os pacientes, seus cuidadores e famílias. Green, Koschera, & Koschera, 2003; Brodaty, Gresham,
O diagnóstico de demência requer a coordenação eficaz & Luscombe, 1997). Outros estudos sugerem que os
entre serviços de cuidados primários e especializados. grupos de apoio voltados aos cuidadores não atendem
No entanto, em todo o mundo, famílias relatam atrasos adequadamente às suas expectativas (Eloniemi-Sulkava
no reconhecimento e diagnóstico das demências pela et al., 2009; Raivio, Laakkonen, & Pitkälä, 2011).
dificuldade no acesso a serviços de saúde, o que resulta Na realidade brasileira, a maior parte dos serviços
em cuidados inconsistentes (Frank, 2017; Jamieson, disponíveis às pessoas com DA e/ou seus cuidadores/
Grealish, Brown, & Draper, 2016; World Health famílias se dá em instituições privadas, em função
Organization [WHO], 2012). da limitação na oferta de serviços públicos. Prorok,
Nesse sentido, são paradigmáticos os depoimentos Horgan e Seitz (2013) identificaram que o caminho para
de C2 (esposa/62a): “Por que nenhum médico foi capaz acessar a assistência na atenção primária e nos serviços
de identificar?” e de C7(filha/58a): “O meu irmão especializados foi longo.
começou a perceber que tinha alguma coisa diferente As cuidadoras participantes desta pesquisa
e, no começo, a gente até relutou”. No aparecimento (C4/filha/62a, C5/filha/70a, C6/esposa/65a, C9/
dos primeiros sintomas o médico teve dúvida ao dar filha/70a) demonstraram interesse na busca e acesso
o diagnóstico de Alzheimer para a mãe de C7, que aos grupos de apoio psicoeducacional da Associação
aponta: “para eles (médicos) o Alzheimer ainda é uma Brasileira de Alzheimer (ABRAz) como possibilidade
coisa confusa, não é clara. Eles (os médicos) sabem de troca de experiências e orientação no manejo dos
pouco sobre isso”. sintomas cognitivos e comportamentais. Sobre isso,
Apesar de ser uma doença incurável, o tratamento C4 (filha/61a) fala:
farmacológico da DA em fases iniciais pode proporcionar
a estabilização da doença por alguns anos e abrir Então, a gente quer uma ajuda para ver como é
possibilidades de encaminhamento de todos os envolvidos que a gente pode fazer para melhorar. Por isso que
para outras especialidades, quando se fizer necessário, no eu procurei o grupo de apoio. . . . Você estando
intuito de acolher as demandas advindas com a doença, no grupo de apoio, os depoimentos são diferentes.
que tende a mudar de acordo com o perfil de cada pessoa São várias pessoas, então, cada um dá o seu depoimento
e família (Frank, 2017). de vida. Você vê que você também não está sozinha.
Abstract: Dementia is a slow-progressing chronic syndrome with the subtype of Alzheimer‘s disease being the most commom
(Burlá, 2015). This study verified the experience of care from the perspective of family caregivers of older adults with AD from the
qualitative approach. The phenomenological method proposed by Giorgi and Sousa (2010) was adopted. Nine family caregivers
(4 wives and 5 daughters) participated during different stages of the disease and after death. From the main question “How is
your experience of caring for your relative with Alzheimer‘s disease?“ emerged 13 thematic units associated with each stage of
the disease. The findings raise the need of caregivers, which include initial diagnosis and goes through the creation of a space
for listening and care, given the gradual loss experienced throughout the caring process. Thus, there must be investments in
forming professionals of all fields related to healthcare in order to promote quality of life and well-being for caregivers, as well
as the need for interdisciplinary teams for the unique experience of dementia care.
Résumé : La démence est un syndrome à évolution lente et progressive, de nature chronique, et son sous-type la maladie
d’Alzheimer étant le plus fréquent (Burlá, 2015). De nombreuses études sont réalisées en fonction des demandes du patient,
mais du côté de l’aidant familial, elles sont rares. Cette recherche a eu pour objectif connaître l’expérience des soins du point
de vue des aidants familiaux des personnes âgées atteints de la MA à travers une abordage qualitative. En ce qui concerne la
méthodologie, nous avons choisi l’approche phénoménologique proposée par Giorgi et Sousa (2010). Y ont participé neuf
Resumen: La demencia es un síndrome de curso lento y progresivo, de naturaleza crónica, en la cual se destaca como subtipo
más común la enfermedad de Alzheimer –EA– (Burlá, 2015). Se han realizado muchos estudios acerca de las demandas del
individuo con demencia, pero son pocos desde la perspectiva del cuidador. A partir de un abordaje cualitativo, la investigación
tuvo como objetivo conocer la experiencia del cuidado en la perspectiva de cuidadoras familiares de ancianos con EA. Se utilizó
el método fenomenológico propuesto por Giorgi y Sousa (2010). Participaron nueve cuidadoras familiares (4 esposas y 5 hijas).
El estudio acompañó el proceso del cuidado en las etapas inicial, intermedia y avanzada, en diferentes fases de la enfermedad
y en el postóbito. Desde la cuestión central: “Cómo es para usted la experiencia de acompañar a su familiar con la enfermedad
de Alzheimer?”, emergieron trece unidades temáticas que se asociaron a las fases de la enfermedad. Los hallazgos apuntan
las necesidades de los cuidadores, desde el diagnóstico en la etapa inicial hasta la creación de un espacio para la escucha y
el acogimiento en el proceso vivenciado a lo largo del cuidado. Es imprescindible invertir en la formación de profesionales de
todas las áreas asociadas al cuidado para promover la calidad de vida y el bienestar de los cuidadores, así como son necesarios
equipos interdisciplinarios para la experiencia singular del cuidado en demencia.
Referências
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