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Transcrição Julie Camarões

Julie: Ok, perfeito! Cheguei à estação de trem.

Serge: ok... então podemos começar com uma pergunta bem simples. Sei que é
advogada, mas se considera também como uma ativista?

Julie: Sim! Claramente, porque utilizo minhas diversas facetas profissionais para
defender direitos, fazer com que alguns direitos avancem na África. Sim, pelo menos
tomo claramente partido, me posiciono sobre os assuntos; não sou do tipo que fica se
escondendo e fogem dos debates. Não, eu tomo partido e tenho uma atuação. Me
considero como uma ativista, sim.

Serge: também vi que você trabalha para Internet Sem Fronteiras que eu não conhecia
muito bem. Mas o que é exatamente? Grosso modo, qual é o trabalho de Internet Sem
Fronteiras?

Julie: Internet Sem Fronteiras é uma ONG, uma associação do direito francês, mas
também que tem representação no Brasil. Tenho que te apresenta à coordenadora da
associação no Brasil. Então, estamos no Brasil e em diversos países da África que não
posso citar agora, mas estamos especialmente presentes na África francófona.

Nosso objetivo é de perseguir a utopia de construir uma internet verdadeiramente sem


fronteiras, isto é, uma internet onde de qualquer lugar possamos aceder a todos os
conteúdos disponíveis online. Isto por uma parte. E por outra, uma internet que respeite
as liberdades fundamentais: o direito à informação, à liberdade de expressão, o direito à
vida privada e evidentemente uma internet acessível a todos. Portanto, nos interessamos
também à questão da fratura digital, notadamente do ponto de vista econômico e
também olhando para a questão do gênero e das desigualdades digitais envolvendo
homens e mulheres.

Serge: Você estabelece uma distinção entre o ativismo digital e o ativismo normal,
digamos antes das redes sociais, no contexto africano atual, existe realmente essa
diferença?
Julie: Eu não faço diferença na medida em que não estabeleço hierarquia, não digo que
um vale mais que outro, eu acho que os dois são importantes e apresentam riscos nos
dois casos aos que os praticam. Mas é verdade que com o ativismo digital temos a
impressão, pelo menos é a impressão que eu tenho, que às vezes os resultados podem
ser mais imediatos, mais rápidos. Podemos apontar diretamente algumas pessoas,
autoridades, instituições que antes eram inacessíveis no ativismo tradicional. Talvez seja
a grande diferença, a questão do alcance da mensagem, mas do ponto de vista da
eficácia, do ponto de vista da utilidade acho que os dois são importantes.

Serge: também observei que você é bilíngue... fala duas línguas. Na minha pesquisa
estou me focalizando apenas nos países de língua francesa. Mas você, faz essa
separação no seu trabalho, na maneira como aborda seu trabalho?

Julie: Boa pergunta! No início não! Quando comecei a militar, a trabalhar com Internet
Sem Fronteiras, eu fiz isso porque eu disse a mim mesma, na época era 2010, só se
falava do Quênia, da África do Sul, da Uganda quando se falava da internet na África e
eu pensei: “é como se nada acontecesse na parte francófona, mas não é verdade”.
Portanto, para mim, me juntar com Internet Sem Fronteiras era somente uma forma de
dizer que coisas acontecem também na África francófona. Justamente para que as
pessoas não façam mais a diferença, que não digam: “tem uma parte que é mais ativa
que outra”.

Mas é verdade também que com a prática somos obrigados de certa forma de fazer a
diferença porque evidentemente os contextos não são os mesmos. Existem práticas que
observo na África francófona que jamais poderia encontrar na África de língua inglesa e
inversamente. Boas e más práticas, porque é preciso deixar claro também que os
anglófilos não fazem tudo corretamente, como querem muitas vezes que acreditemos.

Tento justamente não me enganar, quer dizer, a diferença existe por causa dos contextos
que são diferentes, isto está certo. Mas no meu trabalho, tento construir pontes para ver
como uma experiência aqui pode inspirar prática ali, onde podemos denunciar, nos dois
casos, diga-se. Porque penso que o que se algo está errado na Costa de Marfim e que
pessoas no Quênia denunciam, será muito mais forte o impacto. Tento fazer essa ponte
para multiplicar o impacto da ação.

Serge: É justamente um aspecto que abordarei logo mais, mas antes, isso me remete a
um caso interessante. Você acompanhou o caso dos “Revû” em Angola?
Julie: Que caso?

Serge: Os angolanos que foram presos ano passado com a acusação de planificar um
golpe de Estado. Eles eram na verdade ativistas.

Julie: Então, não. Não acompanhei pessoalmente. Por que? Porque no caso por exemplo
da África de língua inglesa, quando você tem uma história, terão pelo menos dez
organizações que ficaram sabendo e vão se envolver, então às vezes elas tratam de
problemas que apresentam uma proximidade linguística. A maioria das organizações
que defendem a internet hoje e estão em cima das questões das liberdades na internet,
trabalham com o inglês. É por isso que nós, no caso dos angolanos, estaremos mais
como apoio, passamos a informação, convidamos pessoas a assinarem petições, etc. É
verdade que não seremos talvez os primeiros informados porque existem outros que, em
primeiro lugar, têm muito mais recursos que nós e também tem mais ressonância.

Serge: também vi no site que vocês fazem formações. Nesses casos, quem é o seu
público alvo?

Julie: Então, temos organizado formações e ainda continuamos organizando


essencialmente para jornalistas da região, para os ativistas políticos, mas política não
no sentido partidário, os ativistas políticos no sentido de “ação para a cidade”, e
evidentemente os defensores dos direitos humanos, aqueles que oficiam em associações
que defendem os direitos humanos. Pronto, esses eram nossos alvos prioritários e ainda
é de certa forma porque pensamos que aquelas pessoas federam comunidades, como nós
talvez não tenhamos a possibilidades de alcançar diretamente os cidadãos de uma país,
pensamos que talvez apoiando pessoas que federam suas comunidades conseguiremos
alcançar esse outro objetivo porque eles têm a facilidade de repassar a informação. Mas
hoje, somos também levados a oferecer essas formações às pessoas que nos solicitam.
Nesses casos, a formação não é tão puxada porque em geral ela se faz em situação
emergencial. No caso do Gabão por exemplo recebemos muitas ligações, sobretudo e-
mails onde a pessoa te pede e você é obrigado a fazer na hora, não tem tempo para
organizar uma formação em vários dias. Nós nos viramos como podemos em duas ou
três horas.

Serge: Me lembro que numa entrevista para France 24 você afirmou que os militantes
gaboneses se preparam muito tempo em silêncio...
Julie: Então, eu disse isso porque eu li em vários lugares que a sociedade civil gabonesa
não sabe o que quer, eles não são muito espertos, e eu queria dizer que não. Pelo
contrário, essas pessoas se preparam desde pelo menos 2008. Naquele ano o que houve?
Dois ativistas foram presos, entre eles Georges Panga, e eles foram presos pelo Bongo
“pai”, sob a acusação de preparar um golpe de Estado com a ajuda da França, estamos
acostumados a essas acusações. E então na época as pessoas saíram na rua. Era uma
das raras vezes desde os anos 1990 onde os gaboneses se expressaram abertamente
contra o presidente Omar Bongo. Já era um sinal. Depois quando houve eleições em
2009, onde houve claramente uma fraude, foi um roubo, digamos claramente, essas
mesmas pessoas que foram ativas durante a campanha não sumiram depois da
proclamação dos resultados, eles formaram diferentes grupos. Teve vários grupos como
o “Ça suffit comme ça”, teve por exemplo, o “regab”, “os anjos de guarda do Gabão”,
ou seja, teve muitos grupos da sociedade civil que se reuniram por causa dos eventos
que acontecia durantes aqueles anos e durante anos eles organizaram campanhas. Em
2012, por exemplo, “Ça suffit comme ça” na ocasião da primeira edição do The New
York Forum Africa, que é organizado faz quatro anos no país, é um fórum de relações
públicas na verdade, organizado com o ex-marido de Cecília Sarkozy; eles
simplesmente servem para dizer aos investidores que está tudo bem no Gabão, podem
vir investir, é uma terra de oportunidades, etc.

Portanto, em 2012, eles se organizaram para fazer um barulho contra esse fórum a tal
ponto que RFI foi obrigada a reformular sua linha de cobertura do evento. Eles antes
pensavam em relatar simplesmente o fórum, de maneira clássica, com a versão oficial;
mas eles foram obrigados a mostrar esse lado da sociedade civil que apontavam para a
contradição de organizar um fórum sobre investimento no Gabão para dizer que está
tudo bem quando na verdade as pessoas não têm acesso à água nem à eletricidade.
Desde pelo menos 2009, a sociedade civil gabonesa se organiza, faz campanhas, ela
investe em sua formação no campo do ativismo digital, especialmente sobre o uso das
plataformas como Twitter para fazer emergir suas mensagens. Eles conseguiram até
juntar os Anonymous à sua causa, parte deles pelo menos já que funcionam de maneira
decentralizada. Eles conseguiram sabotar várias comunicações do presidente atual Ali
Bongo, porque ele é muito ativo no Twitter, portanto eles conseguem interferir e sabotar
suas mensagens sobre a política que aplica no Gabão.
Portanto, como eu dizia em France 24, eles não esperaram 2015 para começar a refletir
sobre o fato de colocar observadores nas salas de votações, eles simplesmente
colocaram. Eles tinham pensado antes, eles possuíam as listas de todos os locais de
votação, eles tinham o senso da população, eles tinham seus representantes em todos os
locais de votação para informa-los do estado da contagem; eles também tinham pessoas
com câmeras filmando cada vez que se apresentava uma irregularidade. Isso tudo não se
faz em um ano. É nesse sentido que digo que é preciso olhar mais atentamente, não
aconteceu de repente.

Serge: Estou curioso para saber se você coloca, para si mesma, limites em termos de
seu campo de atuação. Existem regiões, países sobre os quais você pensa talvez não tem
competência nem legitimidade para falar?

Julie: Não, não coloco limites à minha ação; se vejo uma coisa que é inadmissível e
sobretudo quando sou informada de algo, uma vez que sei o que está acontecendo, eu
vou me expressar como cidadã, primeiramente, e depois como africana. Porque
considero que o que acontece num canto da África, enfim, somos ligados, por causa da
história, vivemos mais ou menos os mesmos esquemas de repressão, de violações da
liberdade e dos direitos fundamentais, ou seja, não me limito a questões geográficas,
óbvio que serei mais sensível ao que acontece nos Camarões do que quando ocorre em
Ruanda, mas, se sua questão é relativa à legitimidade, não me coloco limites. Do ponto
de vista político, tenho uma visão continental. Apesar das especificidades, existem
regiões mais livres que outras, mas eu acredito realmente no projeto pan-africano. Eu
sei que não estamos de acordo, você e eu sobre esse ponto...

Serge: É interessante você falar disso porque minha tese é o pan-africanismo como
modelo de governança vindo de cima foi um fracasso, mas me parece que há um
movimento de pan-africanismo que vem da sociedade civil que está acontecendo e o
que tento verificar.

Julie: Se essa é sua tese estou completamente de acordo. Posso até te explicar porque o
primeiro modelo de pan-africanismo foi um fracasso. Dois motivos: O pan-africanismo
tal como foi teorizado pelos dirigentes, especialmente Nkrumah, ele nasceu numa época
em que os países africanos ganhavam sua independência, eles saíam do domínio
colonial, mas eles eram fechados, quer dizer, eu uma camaronesa não sabia o que estava
acontecendo na Nigéria. Da mesma maneira que um queniano não sabia o que estava
acontecendo na Argélia. Ou então, era preciso estar em países hiper-repressivos como a
África do Sul, ser considerado como um pária da sociedade, um combatente que escolhe
a luta armada como Mandela para estar em contato, justamente, com pessoas que em
Argélia também faziam uma luta armada. Eu acho que esse fechamento, essa falta de
visibilidade, essa falta de ação à informação sobre o que ocorria em outros lugares fez
com que, evidentemente, cada um estando isolado, não seja mais possível construir
algo, também por isso estamos com pessoas sem nenhuma formação chefiando nossos
países hoje.

Mas com a internet, é isso que mudou minha visão do pan-africanismo porque também
era dubitativa, o fato de saber que o meu vizinho tem o mesmo problema que eu, que ao
contrário do que achava não sou a única vítima, que meu caso não é uma exceção,
infelizmente, no continente, de alguma forma, isso dá uma abertura que permite
imaginar um ponto de vista global das coisas na África. É uma pena que durante muito
tempo essa visão global tenha sido durante muito tempo rejeitada na África ao passo
que em outros lugares foi justamente uma visão global que motivou os movimentos
políticos, na Europa, a União Europeia é isso. Não vejo porque isso seria aceitável para
a Europa e não para a África. A menos que não queiramos que na África a política seja
uma ferramenta para servir os cidadãos.

Serge: Chegamos quase ao fim. Só um comentário. Na América Latina tenho a


impressão que é o contrário, não vejo ativistas de um país se envolverem realmente
naquilo que acontece no outro. Por exemplo o que está acontecendo no Brasil não virar
pauta dos ativistas venezuelanos ou argentinos. É uma coisa muito peculiar à África e
por isso me interessa.

Julie: Ah é? Pensa que o que acontece no Brasil é diferente? Porque eu tinha a


impressão que a direita conservadora está ganhando terreno em toda a América Latina.

Serge: Sim, mas não vejo essa solidariedade entre os ativistas... enfim. Outra coisa que
observo na África são os grupos de ativistas digitais que se reúnem independentemente
dos países, como por exemplo, o grupo dos Afriktivistes, não sei se os conhece,
provavelmente que sim... o que está por trás disso, qual é a inspiração dessa união, é
algo espontâneo ou será que existem orientações externas para talvez otimizarem suas
ações agindo em grupos internacionais como esse?
Julie: No projeto Afriktivistes em particular posso falar com propriedade porque seu
fundador Cheik Fall participou de uma das formações que nos organizamos com a
Internet Sem Fronteiras em Abidjan e justamente uma das discussões que animou a
formação era que os ativistas estavam um pouco cansados da pouca repercussão das
coisas que aconteciam na África subsaariana ao contrário do que ocorria no mundo
árabe onde quando algo acontecia com um ativista era todo o mundo árabe que entrava
em ebulição. Nesses casos os ativistas árabes “assediavam” até os jornais internacionais
como o New York Times até que eles falassem disso. Na África não ocorria isso.

Em nosso caso, era preciso esperar a ONG Repórter Sem Fronteiras decidir falar de um
caso de violação para que virasse pauta. Se ela não falasse, não era publicitada. É assim
que surgiu a ideia de criar uma comunidade física, colocar os ativistas da África numa
rede para que eles fossem os porta-vozes e os guardiães de cada deles. O nascimento
desse tipo de movimento trans-fronteiras responde realmente a uma lacuna. A uma falta
de infraestrutura que, pelo menos os africanos têm a impressão que não existe uma
infraestrutura que vá além das fronteiras e saiba defende-los suficientemente, e também
que seja capaz de levar suas mensagens com maior alcance.

Na maioria das vezes observamos redes regionais que se restringem a essas regiões e
não têm o mesmo impacto que se todo o continente fala de um assunto. Acho que
nasceu primeiro de uma constatação de falta e acho que elas vão se multiplicar. Foi o
caso de 2013, quando dois ativistas da Costa de Marfim foram presos, o Cyriac, e na
época foi um escândalo continental e isso motivou de alguma forma a criação desses
espaços. Podemos estar mais ou menos de acordo com algumas coisas, têm coisas que
funcionam, outras não, mas tem coisas em construção, mas é simples ideia de ter essas
redes que é importante.

Serge: Penúltima pergunta porque não quero... porque você ainda está na estação.
Então, como fazem para trabalhar com as diferenças de penetração de internet na
África, no Congo, por exemplo, somente 4 % da população tem acesso, e quanto mais
você se aproxima do Saara mais aumenta o número acho... isso deve fragilizar suas
ações?

Julie: é verdade que a taxa de penetração da internet é diferente de um lugar para outro,
isso está certo, mas observamos também que aqueles que hoje investem no ativismo
digital são jovens, e eles, mesmo que a internet seja fraca, pode ter certeza que eles vão
encontrar uma forma de trabalhar porque são pessoas que nasceram com a internet. Na
maior parte do tempo é com essas pessoas que trabalhamos. E como também essa
geração está no campo, in loco, eles dirigem ações no mundo off-line, nós oferecemos
sobretudo um apoio logístico, tentamos fazer com que a infraestrutura na qual eles
trabalham e que é ameaçada, como digo na TV e na rádio; Facebook, Twitter, e
sobretudo pelos Estados africanos. Portanto, para que esses jovens tenham esse espaço
para poderem trabalhar é preciso que associações como a nossa continuem atuação na
defesa do direito ao acesso, e à liberdade na internet.

Realmente essa questão da penetração ela é problemática em si, mas ela não nos impede
de atuar ou de identificar ativistas que estão no terreno. Há complicações, mas não
impede.

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