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Da aparência

Há poucos dias, falei da questão da aparência como um “modo” que o público, as


pessoas, “encaram” a realidade que lhes surge. Disse que, em algumas muitas
situações, aquilo que “se apresenta”, apresenta-se não como irreal, mas hiper-real,
isto é, como que tem o poder de manifestar “em si”, mas não por si mesmo, algo
“de outro lugar” como que sendo o próprio lugar. Numa inversão fenomenológica
do tipo e como causa de/em si mesma, como uma transcendia do corpo em direção
ao próprio corpo, algo como apresentar o mapa como substituto do lugar (geofísico)
que apenas projeta, ou ainda, quando o book fotográfico é mais elogiado que a
pessoa-causa que o engendrou. O mapa e o book são, portanto, simulacros da
realidade com a qual se relacionam, independentemente de uma “ideia”. Adiante,
gostaria de explicar, entre outras coisas, o porquê uso “se apresenta”
entreaspadamente.

Estas reflexões me levaram a outro lugar. A partir da leitura que venho fazendo de
Kant (como uma tentativa de me aproximar um pouco mais das posições
hegelianas da natureza), vi-me instado a perceber (esta palavra me vem quase sem
querer, neste momento) a importância de se pensar um dos maiores e mais
importantes idealistas alemães (junto com Hegel, os dois maiores) como um marco
inflexional da filosofia ocidental: em seu trabalho de constituição transcendental da
realidade, vemos que a filosofia era entendida apenas uma ciência geral do Ser,
uma (mera) descrição universal de toda a realidade e que, após ele, uma diferença
fundamental é estabelecida, qual seja, aquela entre a realidade ôntica e o horizonte
ôntico dessa realidade, conforme Zizek (2013). Com isso, Kant 1 repensa o modo de
determinação da rede a priori de categorias que determinam o modo como
compreendemos a realidade, isto é, o modo como compreendemos aquilo que nos
“aparece” como realidade.

Para entender melhor o que representa a inflexão do pensamento kantiano para a


filosofia, podemos comparar o pensamento de Aristóteles ao do alemão. Para o
filósofo grego, o ser vivo é definido enquanto real/existente a partir de categorias
da física, isto é, cinematicamente, em termos de movimento. Assim, um ser vivo é
ser vivo porque se movimenta, porque tem em si a causa do próprio movimento.
Aristóteles não explora de fato a realidade dos seres vivos, mas o seres enquanto
reais. Para este filósofo, o ser é um conjunto de noções preexistentes.

Kant então estabelece uma outra distinção de ordem fenomenológico-ontológica: a


aparência enquanto uma ilusão (schein) e a aparência enquanto um fenômeno
(eischeinung). O primeiro sentido, o de ilusão, é anterior a Kant e um pensamento
predominante na filosofia até ele. Por ele, nossa tarefa consiste em alcançar, para
além das falsas aparências, o modo como as coisas realmente são (o que ocorre
desde o mundo das Ideias de Platão até a “realidade objetiva” científica). Mas, o
que pensa Kant?

Para o idealista alemão, a aparência não tem mais essa característica do falso, do
pejorativo, da ilusão, como pretendeu Platão em seu Mito da Caverna (o texto mais
mal interpretado da história da filosofia – ou, interpretado conforme “a vontade do
freguês”). A aparência, em Kant, passa a designar o modo como as coisas
aparecem (são) para nós naquilo que percebemos como realidade e a tarefa
não é mais tachá-las como “meras aparências ilusórias do real” e ter de ultrapassá-
las para se chegar à realidade transcendental, mas sim, diferentemente disso, ter a
“capacidade” de discernir as condições de possibilidade desse aparecer das
1
Apesar de sua crítica radical à ilusão metafísica, deve-se considerar que Kant, por outro lado, propõe
em sua obra uma clara e nova tentativa de dar suporte à religião. Para Zizek, sua transgressão é uma
falsa transgressão. A questão é saber se há mais verdade na máscara do que no rosto real por trás dela.
coisas, de sua “gênese transcendental”. E, “o que pressupõe tal aparição, o que
deve sempre-já ter acontecido para que as coisas apareçam para nós da maneira
como aparecem?”, pergunta Zizek?

Esta reflexão nos faz perceber duas coisas importantes: aquilo que se faz perceber,
ou que é percebido, é inquestionavelmente 1. um fenômeno e 2. Possui uma causa.
A causa não é aparente nem se explica como imanente ao fenômeno (Aristóteles)
nem exterior a ele, como uma ideia (Platão). O que Kant está dizendo é que não há
uma realidade presente no mundo das ideias [mundo perfeito (o céu...o sagrado)
que é causa do que é imperfeito (corpo de pecado) / corpo e alma], a ser revelada,
mas uma profunda incapacidade de se discernir entre o que determinamos, ou se
determina em algures, como realidade (causa) e aquilo que “se apresenta” (ou,
apresentamos) como realidade (efeito).

A realidade é, portanto, algo profunda e contraditoriamente determinada, imposta,


agenciada como linguagem/língua (sempre palavra de ordem como propôs Deleuze)
pelo sujeito e para o sujeito (que também é uma realidade, mas nunca uma
realidade-em-si, mas uma realidade determinada): um fenômeno que não surge,
mas que “fenominiza” algo como um sempre-ser, com aparência (não falsa)
autônoma, independente, transparente... A realidade não falseia nada (não esconde
nada, por isso não há irrealidade – realidade falseada por excelência- , mas hiper-
realidade), ela é quem produz a falsidade que ela quer. Ela é o próprio falso (uma
coisa é a realidade ôntica, outra é o horizonte em que habita o horizonte ontológico,
como vimos em Kant).

Não há que se confundir: para além da ficção da realidade, existe a realidade da


ficção e, nisto, distinguimos mais facilmente a diferença entre ateus e agnósticos:
enquanto os aqueles situam seu problema-deus na ordem ôntico-empírica (deus é
uma ficção, um falseamento da realidade), estes situam o problema-deus no campo
de um problema maior: o do não discernimento (incapacidade) da crença entre a
ficção da realidade e a realidade da ficção. Deus é real! diriam determinados
agnósticos...isto é: não um fenômeno que se apresenta como falso, mas um
fenômeno cuja aparência é recoberta pelas condições de possibilidade desse
“aparecer de deus”, condições oriundas da incapacidade de discernimento dos
homens.

Por fim, quando observo bolsonaristas devotados ao presidente Bolsonaro, com


seus discursos de ódio contra as classes mais socialmente hipossuficientes e em
nome de sua sobrevivência, não enxergo um fenômeno-em-si, um falseamento da
realidade cuja causa habita o mundo das ideias, mas sim uma realidade constituída
por uma transcendência tal em que interesses pessoais/liberais, ao se sobreporem
aos do coletivo, engendram a realidade atribuindo à imperfeição política (as
inveteradas “ideologias de esquerda”, “esquerdistas do PT” – campo das ideias) os
males que só deus (que habita o mundo das ideias) será capaz de resolver, pelo
carisma de profetas como o presidente. Isto talvez explique o fato de Bolsonaro se
apresentar sempre com o discurso de “embaixador da verdade” envolto que é
inverdades. Entretanto, quem é capaz de a ver? Quem discerne verdade de não-
verdade? Neste campo, não há interesses pessoais, mas sim interesses da
máquina-sem-nome que nos movimenta a todas e todos.

O que está aí não apenas é um acidente, uma explicação verídica da totalidade do


ser, das coisas-como-são. O salto epistemológico kantiano, e que a meu ver explica
muito nosso atual de coisas, é que cabe à filosofia (e as ciências críticas), antes,
explicar as ilusões, mas não só por que as ilusões são ilusões, mas também por que
são estruturalmente necessárias, inevitáveis, e não apenas um acidente.

(...)

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