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CONGREGAÇÃO PARA A DOUTRINA DA FÉ

Carta Placuit Deo


aos Bispos da Igreja católica
sobre alguns aspectos da salvação cristã

I. Introdução

1. «Aprouve a Deus na sua bondade e sabedoria, revelar-se a Si mesmo e dar a conhecer o


mistério da sua vontade (cfr. Ef 1,9), segundo o qual os homens, por meio de Cristo, Verbo
encarnado, têm acesso ao Pai no Espírito Santo e se tornam participantes da natureza divina (cfr.
Ef 2,18; 2 Pe 1,4). [...] Porém, a verdade profunda tanto a respeito de Deus como a respeito da
salvação dos homens, manifesta-se-nos, por esta revelação, em Cristo, que é, simultâneamente, o
mediador e a plenitude de toda a revelação». 1 O ensinamento sobre a salvação em Cristo exige
sempre ser aprofundado novamente. A Igreja, tendo o olhar fixo em Cristo Senhor, dirige-se com
amor materno a todos os homens, para anunciar-lhes o inteiro desígnio de Aliança do Pai que,
mediante o Espírito Santo, deseja «submeter tudo a Cristo» (Ef 1,10). A presente Carta pretende
destacar, na linha da grande tradição da fé e com especial referência ao ensinamento de Papa
Francisco, alguns aspectos da salvação cristã que possam ser hoje difíceis de compreender por
causa das recentes transformações culturais.

II. O impacto das transformações culturais de hoje sobre o significado da salvação cristã

2. O mundo contemporâneo questiona, não sem dificuldade, a confissão de fé cristã, que


proclama Jesus o único Salvador de todo o homem e da humanidade inteira (cf. At 4,12; Rom
3,23-24; 1 Tm 2,4-5; Tit 2,11-15).2 Por um lado, o individualismo centrado no sujeito autônomo,
tende a ver o homem como um ser cuja realização depende somente das suas forças. 3 Nesta
visão, a figura de Cristo corresponde mais a um modelo que inspira acções generosas, mediante
suas palavras e seus gestos, do que Aquele que transforma a condição humana, incorporando-
nos numa nova existência reconciliada com o Pai e entre nós, mediante o Espírito (cf. 2 Cor 5,19;
Ef 2,18). Por outro lado, difunde-se a visão de uma salvação meramente interior, que talvez
suscita uma forte convicção pessoal ou um sentimento intenso de estar unido a Deus, mas sem
assumir, curar e renovar as nossas relações com os outros e com o mundo criado. Com esta
perspectiva, torna-se difícil compreender o significado da Encarnação do Verbo, através da qual
Ele se fez membro da família humana, assumindo a nossa carne e a nossa história, por nós
homens e para a nossa salvação.

3. O Santo Padre Francisco, no seu magistério ordinário, referiu-se muitas vezes a duas
tendências que representam os dois desvios antes mencionados, e que se assemelham em alguns
aspectos a duas antigas heresias, isto é, o pelagianismo e o gnosticismo. 4 Prolifera em nossos
tempos um neo-pelagianismo em que o homem, radicalmente autônomo, pretende salvar-se a si
1
CONC. ECUM. VAT. II, Const. dogm. Dei Verbum, n. 2.
2
Cf. CONGREGAÇÃO PARA A DOUTRINA DA FÉ, Decl. Dominus Iesus (6 de agosto de 2000), nn. 5-8: AAS 92 (2000),
745-749.
3
Cf. FRANCISCO, Exort. apost. Evangelii gaudium (24 de novembro de 2013), n. 67: AAS 105 (2013), 1048.
2

mesmo sem reconhecer que ele depende, no mais profundo do seu ser, de Deus e dos outros. A
salvação é então confiada às forças do indivíduo ou a estruturas meramente humanas, incapazes
de acolher a novidade do Espírito de Deus.5 Um certo neo-gnosticismo, por outro lado, apresenta
uma salvação meramente interior, fechada no subjetivismo.6 Essa consiste no elevar-se «com o
intelecto para além da carne de Jesus rumo aos mistérios da divindade desconhecida». 7 Pretende-
se, assim, libertar a pessoa do corpo e do mundo material, nos quais não se descobrem mais os
vestígios da mão providente do Criador, mas se vê apenas uma realidade privada de significado,
estranha à identidade última da pessoa e manipulável segundo os interesses do homem. 8 Por
outro lado, é claro que a comparação com as heresias pelagiana e gnóstica pretende somente
evocar traços gerais comuns, sem entrar, nem fazer juízos, sobre a natureza destes erros antigos.
De fato, a diferença entre o contexto histórico secularizado de hoje e o contexto dos primeiros
séculos cristãos, nos quais estas heresias nasceram, é grande. 9 Todavia, enquanto o gnosticismo e
o pelagianismo representam perigos perenes de equívocos da fé bíblica, é possível encontrar uma
certa familiaridade com os movimentos de hoje apenas referidos acima.

4. Seja o individualismo neo-pelagiano que o desprezo neo-gnóstico do corpo, descaracterizam a


confissão de fé em Cristo, único Salvador universal. Como poderia Cristo mediar a Aliança da
família humana inteira, se o homem fosse um indivíduo isolado, que si autorrealiza somente com
as suas forças, como propõe o neo-pelagianismo? E como poderia chegar até nós a salvação
mediante a Encarnação de Jesus, a sua vida, morte e ressurreição no seu verdadeiro corpo, se
aquilo que conta fosse somente libertar a interioridade do homem dos limites do corpo e da
matéria, segundo a visão neo-gnóstica? Diante destas tendências, esta Carta pretende reafirmar
que, a salvação consiste na nossa união com Cristo, que, com a sua Encarnação, vida, morte e
ressurreição, gerou uma nova ordem de relações com o Pai e entre os homens, e nos introduziu

4
Cf. ID., Carta enc. Lumen fidei (29 de junho de 2013), n. 47: AAS 105 (2013), 586-587; Exort. apost. Evangelii
gaudium, nn. 93-94: AAS (2013), 1059; Discurso aos representantes do V Congresso nacional da Igreja italiana,
Florença (10 de novembro de 2015): AAS 107 (2015), 1287.
5
Cf. ID., Discurso aos representantes do V Congresso nacional da Igreja italiana, Florença (10 de novembro de
2015): AAS 107 (2015), 1288.
6
Cf. ID., Exort. apost. Evangelii gaudium, n. 94: AAS 105 (2013), 1059: «o fascínio do gnosticismo, uma fé
fechada no subjetivismo, onde apenas interessa uma determinada experiência ou uma série de raciocínios e
conhecimentos que supostamente confortam e iluminam, mas, em última instância, a pessoa fica enclausurada na
imanência da sua própria razão ou dos seus sentimentos»; PONTÍFICIO CONSELHO PARA A CULTURA –– PONTIFÍCIO
CONSELHO PARA O DIÁLOGO INTE-RELIGIOSO, Jesus Cristo, portador da água viva. Uma refelexão cristã sobre a
“New Age” (janeiro de 2003), Cidade do Vaticano 2003.
7
FRANCISCO, Carta enc. Lumen fidei, n. 47: AAS 105 (2013), 586-587.
8
Cf. ID., Discurso aos participantes da peregrinação da diocese de Brescia (22 de junho de 2013): AAS 95 (2013),
627: «neste mundo onde nega-se o homem, onde se prefere andar na estrada do gnosticismo, [...] do “sem carne” –
um Deus que não se fez carne [...]».
9
De acordo com a heresia Pelagiana, desenvolvida durante o século V ao redor de Pelágio, o homem, para cumprir
os mandamentos de Deus e ser salvo, precisa da graça apenas como um auxílio externo à sua liberdade (como luz,
exemplo, força), mas não como uma sanação e regeneração radical da liberdade, sem mérito prévio, para que ele
possa realizar o bem e alcançar a vida eterna.
Mais complexo é o movimento gnóstico, surgido nos séculos I e II, que manifestou-se de formas muito
diferentes. Em geral, os gnósticos acreditavam que a salvação é obtida através de um conhecimento esotérico ou
"gnose". Esta gnose revela ao gnóstico sua essência verdadeira, isto é, uma centelha do Espírito divino que habita
em sua interioridade, que deve ser libertada do corpo, estranho à sua verdadeira humanidade. Somente assim o
gnóstico retorna ao seu ser originário em Deus, de quem ele afastou-se pela queda original.
3

nesta ordem graças ao dom do seu Espírito, para que possamos unir-nos ao Pai como filhos no
Filho, e formar um só corpo no «primogênito de muitos irmãos» (Rom 8,29).

III. O desejo humano de salvação

5. O homem percebe, direta ou indiretamente, de ser um enigma: eu existo, mas quem sou eu?
Tenho em mim o princípio da minha existência? Toda pessoa, a seu modo, procura a felicidade e
tenta alcançá-la recorrendo aos meios disponíveis. No entanto, esse desejo universal não é
necessariamente expresso ou declarado; ao contrário, esse é mais secreto e oculto do que parece,
e está pronto a revelar-se diante de situações específicas. Com frequência, tal desejo coincide
com a esperança da saúde física, às vezes assume a forma de ansiedade por um maior bem-estar
econômico, mais difusamente expressa-se através da necessidade de uma paz interior e de uma
convivência pacífica com o próximo. Por outro lado, enquanto o desejo de salvação se apresenta
como um compromisso na direção de um bem maior, esse conserva também uma característica
de resistência e de superação da dor. Ao lado da luta pela conquista do bem se coloca a luta de
defesa do mal: da ignorância e do erro, da fragilidade e da fraqueza, da doença e da morte.

6. Com relação a estas aspirações, a fé em Cristo ensina-nos, rejeitando qualquer pretensão de


auto-realização, que as mesmas somente podem realizar-se plenamente se Deus mesmo as torna
possíveis, atraindo-nos a Ele. A salvação plena da pessoa não consiste nas coisas que o homem
poderia obter por si mesmo, como o ter ou o bem-estar material, a ciência ou a técnica, o poder
ou a influência sobre os outros, a boa fama ou a auto-realização. 10 Nada da ordem do criado pode
satisfazer completamente ao homem, porque Deus nos destinou à comunhão com Ele, e o nosso
coração permanecerá inquieto até que não repouse Nele. 11 «A vocação última de todos os
homens é realmente uma só, a divina».12 A revelação, desta forma, não se limita a anunciar a
salvação como resposta à expectativa contemporânea. «Se a redenção, ao contrário, devesse ser
julgada ou medida pela necessidade existencial dos seres humanos, como poderíamos evitar a
suspeita de termos simplesmente criado um Deus-Redentor à imagem de nossas próprias
necessidades?» .13

7. Além disso, è necessário afirmar que, segundo a fé bíblica, a origem do mal não se encontra
no mundo material e corpóreo, experimentado como um limite e como uma prisão da qual
deveríamos ser salvos. Pelo contrário, a fé proclama que o mundo inteiro é bom, enquanto criado
por Deus (cf. Gen 1,31; Sab 1,13-14; 1Tim 4,4), e que o mal que mais prejudica o homem é
aquele que provém do seu coração (cf. Mt 15,18-19; Gen 3,1-19). Pecando, o homem abandonou
a fonte do amor, e se perde em falsas formas de amor, que o fecham cada vez mais em si mesmo.
É esta separação de Deus – isto é, Daquele que é fonte de comunhão e de vida – que leva à perda
de harmonia entre os homens e dos homens com o mundo, introduzindo a desintegração e a
morte (cf. Rom 5,12). Consequentemente, a salvação que a fé nos anuncia não diz unicamente
respeito à nossa interioridade, mas ao nosso ser integral. De facto, é a pessoa inteira, em corpo e
alma, criada pelo amor de Deus à sua imagem e semelhança, que é chamada a viver em
comunhão com Ele.
10
Cf. TOMÁS, Summa theologiae, I-II, q. 2.
11
Cf. AGOSTINHO, Confissões, I, 1: Corpus Christianorum, 27,1.
12
CONC. ECUM. VAT. II, Const. past. Gaudium et spes, n. 22.
13
COMISSÃO TEOLÓGICA INTERNACIONAL, Algumas questões sobre a teologia da redenção, 1995, n. 2.
4

IV. Cristo, Salvador e Salvação

8. Em nenhum momento do caminho do homem, Deus deixou de oferecer a sua salvação aos
filhos de Adão (cf. Gen 3,15), estabelecendo uma Aliança com todos os homens em Noé (cf. Gen
9,9) e, mais adiante, com Abraão e a sua descendência (cf. Gn 15,18). Assim, a salvação divina
assume a ordem da criação compartilhada por todos os homens e percorre os seus caminhos
concretos na história. Escolhendo para Si um povo, a quem ofereceu os meios para lutar contra o
pecado e para se aproximar Dele, Deus preparou a vinda de «um poderoso Salvador, na casa de
David, seu servidor» (Lc 1,69). Na plenitude dos tempos, o Pai enviou ao mundo seu Filho, o
qual anunciou o reino de Deus, curando todo tipo de doenças (cf. Mt 4,23). As curas realizadas
por Jesus, através das quais se tornava presente a providência de Deus, eram um sinal que se
referia à sua pessoa, Àquele que se revelou plenamente como Senhor da vida e da morte no
acontecimento pascal. Segundo o Evangelho, a salvação para todos os povos começa com o
acolhimento de Jesus: «Hoje veio a salvação a esta casa» (Lc 19,9). A Boa Nova da salvação tem
um nome e um rosto: Jesus Cristo, Filho de Deus Salvador. «No início do ser cristão, não há uma
decisão ética ou uma grande ideia, mas o encontro com um acontecimento, com uma Pessoa que
dá à vida um novo horizonte e, desta forma, o rumo decisivo».14

9. Ao longo da sua tradição secular, a fé cristã tornou presente, através de muitas figuras, a obra
salvífica do Filho encarnado. Fê-lo sem nunca separar o aspecto regenerador da salvação, no qual
Cristo nos resgata do pecado, do aspecto da elevação, pelo qual Ele nos faz filhos de Deus,
participantes da sua natureza divina (cf. 2 Pe 1,4). Considerando a perspectiva salvífica no seu
significado descendente, isto é, a partir de Deus que vem para resgatar os homens, Jesus é
iluminador e revelador, redentor e libertador; Aquele que diviniza o homem e o justifica.
Assumindo a perspectiva ascendente, isto é, a partir dos homens que se dirigem a Deus, Ele é
Aquele que, como Sumo Sacerdote da Nova Aliança, oferece ao Pai o culto perfeito em nome
dos homens: se sacrifica, repara os nossos pecados e permanece sempre vivo para interceder a
nosso favor. Desta forma, verifica-se na vida de Jesus uma sinergia maravilhosa do agir divino
com o agir humano, que mostra a falta de fundamento de uma perspectiva individualista. Assim,
por um lado, o sentido descendente testemunha a primazia absoluta da acção gratuita de Deus; a
humildade em receber os dons de Deus, antes mesmo do nosso agir, é essencial para poder
responder ao seu amor salvífico. Por outro lado, o sentido ascendente recorda-nos que, através do
agir plenamente humano de seu Filho, o Pai quis regenerar o nosso agir, para que, assemelhados
a Cristo, possamos realizar «as boas obras que Deus de antemão preparou para nelas
caminharmos» (Ef 2,10).

10. Para além disso, é claro que a salvação que Jesus trouxe na sua própria pessoa não se realiza
somente de modo interior. Assim, para poder comunicar a cada pessoa a comunhão salvífica com
Deus, o Filho se fez carne (cf. Jo 1,14). É exatamente assumindo a carne (cf. Rom 8,3; Heb 2,14;
1 Jo 4,2), e nascendo de uma mulher (cf. Gal 4,4), que «o Filho de Deus se fez filho do
homem»15 e, também, nosso irmão (cf. Heb 2,14). Assim, entrando a fazer parte da família

14
BENTO XVI, Carta enc. Deus caritas est (25 de dezembro de 2005), n. 1: AAS 98 (2006), 217; cf. FRANCISCO,
Exort. apost. Evangelii gaudium, n. 3: AAS 105 (2013), 1020.
15
IRINEU, Adversus haereses, III, 19,1: Sources Chrétiennes, 211, 374.
5

humana, «uniu-se de certo modo a cada homem»16 e estabeleceu uma nova ordem nas relações
com Deus, seu Pai, e com todos os homens, na qual podemos ser incorporados para participar na
sua própria vida. Consequentemente, assumir a carne humana, longe de limitar a acção salvífica
de Cristo, permite-Lhe mediar de maneira concreta a salvação de Deus com todos os filhos de
Adão.

11. Concluindo, e para responder, quer seja ao reducionismo individualista da tendência


pelagiana, quer seja ao reducionismo neo-gnóstico que promete uma libertação interior, é
necessário recordar o modo como Jesus é Salvador. Ele não se limitou a mostrar-nos o caminho
para encontrar Deus, isto é, um caminho que poderemos percorrer por nós mesmos, obedecendo
às suas palavras e imitando o seu exemplo. Cristo, todavia, para abri-nos a porta da libertação,
tornou-se Ele mesmo o caminho: «Eu sou o caminho» (Jo 14,6). 17 Além disso, esse caminho não
é um percurso meramente interior, à margem das nossas relações com os outros e com o mundo
criado. Pelo contrário, Jesus ofereceu-nos um «caminho novo e vivo que Ele abriu para nós
através [...] da sua carne» (Heb 10,20). Enfim, Cristo é Salvador porque Ele assumiu a nossa
humanidade integral e viveu em plenitude a vida humana, em comunhão com o Pai e com os
irmãos. A salvação consiste em incorporar-se nesta vida de Cristo, recebendo o seu Espírito (cf.
1 Jo 4,13). Assim, Ele tornou-se «em certo modo, o princípio de toda graça segundo a
humanidade».18 Ele é, ao mesmo tempo, o Salvador e a Salvação.

V. A Salvação na Igreja, corpo de Cristo

12. O lugar onde recebemos a salvação trazida por Jesus é a Igreja, comunidade daqueles que,
tendo sido incorporados à nova ordem de relações inaugurada por Cristo, podem receber a
plenitude do Espírito de Cristo (cf. Rom 8,9). Compreender esta mediação salvífica da Igreja é
uma ajuda essencial para superar qualquer tendência reducionista. De fato, a salvação que Deus
nos oferece não é alcançada apenas pelas forças individuais, como gostaria o neo-pelagianismo,
mas através das relações nascidas do Filho de Deus encarnado e que formam a comunhão da
Igreja. Além disso, uma vez que a graça que Cristo nos oferece não é, como afirma a visão neo-
gnóstica, uma salvação meramente interior, mas que nos introduz nas relações concretas que Ele
mesmo viveu, a Igreja é uma comunidade visível: nela tocamos a carne de Jesus, de maneira
singular nos irmãos mais pobres e sofredores. Enfim, a mediação salvífica da Igreja, «sacramento
universal de salvação»,19 assegura-nos que a salvação não consiste na auto-realização do
indivíduo isolado, e, muito menos, na sua fusão interior com o divino, mas na incorporação em
uma comunhão de pessoas, que participa na comunhão da Trindade.

13. Tanto a visão individualista como a visão meramente interior da salvação contradizem a
economia sacramental, através da qual Deus quis salvar a pessoa humana. A participação, na
16
CONC. ECUM. VAT. II, Const. past. Gaudium et spes, n. 22.
17
Cf. AGOSTINHO, Tractatus in Ioannem, 13, 4: Corpus Christianorum, 36, 132: «Eu sou o caminho, a verdade e a
vida (Jo 14, 6). Se você busca a verdade, siga o caminho; porque o caminho é o mesmo que a verdade. A meta que
se busca e o caminho que se deve percorrer, são a mesma coisa. Não se pode alcançar a meta seguindo um outro
caminho; por outro caminho não se pode alcançar a Cristo: a Cristo se pode alcançar somente através de Cristo. Em
que sentido se chega a Cristo através de Cristo? Se chega a Cristo Deus através de Cristo homem; por meio do
Verbo feito carne se chega ao Verbo que era no princípio Deus junto a Deus.
18
TOMÁS, Quaestio de veritate, q. 29, a. 5, co.
19
CONC. ECUM. VAT. II, Const. dogm. Lumen gentium, n. 48.
6

Igreja, à nova ordem de relações inauguradas por Jesus realiza-se por meio dos sacramentos,
entre eles, o Baptismo que é a porta,20 e a Eucaristia que é fonte e culmine. 21 Assim, se vê, a
inconsistência das pretensões de auto-salvação, que contam apenas com as forças humanas. Pelo
contrário, a fé confessa que somos salvos por meio do Baptismo, que imprime o caráter indelével
de pertencer a Cristo e à Igreja, do qual deriva a transformação do nosso modo concreto de viver
as relações com Deus, com os homens e com a criação (cf. Mt 28,19). Assim, purificados do
pecado original e de todo pecado, somos chamados a uma nova vida em conformidade com
Cristo (cf. Rom 6,4). Com a graça dos sete sacramentos, os crentes continuamente crescem e se
regeneram, sobretudo, quando o caminho se torna mais difícil e as quedas não faltam. Quando
eles pecam, abandonam o amor por Cristo, podendo ser reintroduzidos, por meio do sacramento
da Penitência, à ordem das relações inaugurada por Jesus, para caminhar como Ele caminhou (cf.
1 Jo 2,6). Desta forma, olhamos com esperança para o juízo final, no qual cada pessoa será
julgada pelo amor (cf. Rm 13,8-10), especialmente pelos mais fracos (cf. Mt 25,31-46).

14. A economia salvífica sacramental opõe-se ainda às tendências que propõem uma salvação
meramente interior. De facto, o gnosticismo está associado a um olhar negativo sobre a ordem da
criação, inclusive, como uma limitação da liberdade absoluta do espírito humano.
Consequentemente, a salvação é vista como libertação do corpo e das relações concretas que a
pessoa vive. Pelo contrário, como somos salvos «por meio da oferta do corpo de Jesus Cristo»
(Heb 10,10; cf. Col 1,22), a verdadeira salvação, longe de ser libertação do corpo, compreende
também a sua santificação (cf. Rom 12,1). O corpo humano foi modelado por Deus, que nele
inscreveu uma linguagem que convida a pessoa humana a reconhecer os dons do Criador e a
viver em comunhão com os irmãos.22 O Salvador restabeleceu e renovou, com a sua Encarnação
e o seu mistério pascal, esta linguagem originária, e comunicou-a na economia corporal dos
sacramentos. Graças aos sacramentos, os cristãos podem viver fielmente à carne de Cristo e,
consequentemente, em fidelidade à ordem concreta das relações que Ele nos deu. Esta ordem de
relações requer, de maneira especial, o cuidado pela humanidade sofredora de todos os homens,
através das obras de misericórdia corporais e espirituais.23

VI. Conclusão: comunicar a fé, esperando o Salvador

15. A consciência da vida plena, na qual Jesus Salvador nos introduz, impulsiona os cristãos à
missão de proclamar a todos os homens a alegria e a luz do Evangelho. 24 Neste esforço, eles
estarão também prontos para estabelecer um diálogo sincero e construtivo com os crentes de
outras religiões, na confiança que Deus pode conduzir à salvação em Cristo «todos os homens de
boa vontade, em cujos corações a graça opera ocultamente». 25 Ao dedicar-se com todas as suas
forças à evangelização, a Igreja continua a invocar a vinda definitiva do Salvador, porque «na
esperança fomos salvos» (Rom 8,24). A salvação do homem será plena somente quando, depois
de ter vencido o último inimigo, a morte (cf 1 Cor 15,26), participaremos plenamente da glória
de Cristo ressuscitado, que leva à plenitude a nossa relação com Deus, com os irmãos e com toda
20
Cf. TOMÁS, Summa theologiae, III, q. 63, a. 3.
21
Cf. CONC. ECUM. VAT. II, Const. dogm. Lumen gentium, n. 11; Const. Sacrosanctum Concilium, n. 10.
22
Cf. FRANCISCO, Carta enc. Laudato si’ (24 de maio de 2015), n. 155: AAS 107 (2015), 909-910.
23
Cf. ID., Carta apost. Misericordia et misera (20 de novembro de 2016), n. 20: AAS 108 (2016), 1325-1326.
24
Cf. JOÃO PAULO II, Carta enc. Redemptoris missio (7 de dezembro de 1990), n.40: AAS 83 (1991), 287-288;
FRANCISCO, Exort. apost. Evangelii gaudium, nn. 9-13: AAS 105 (2013), 1022-1025.
25
CONC. ECUM. VAT. II, Const. past. Gaudium et spes, n. 22.
7

a criação. A salvação integral, da alma e do corpo, é o destino final ao qual Deus chama todos os
homens. Fundamentados na fé, sustentados pela esperança, operantes na caridade, seguindo o
exemplo de Maria, a Mãe do Salvador e a primeira dos que foram salvos, estamos certos de que
nossa cidadania "está nos céus, de onde certamente esperamos o Salvador, o Senhor Jesus Cristo.
Ele transfigurará o nosso pobre corpo, conformando-o ao seu corpo glorioso, com aquela energia
que o torna capaz de a si mesmo sujeitar todas as coisas"(Fil 3,20-21).

O Sumo Pontífice Francisco, no dia 16 de fevereiro de 2018, aprovou esta Carta, decidida na
Sessão Plenária desta Congregação no dia 24 de janeiro de 2018, e ordenou a publicação.

Dado em Roma, na Sede da Congregação para a Doutrina da Fé, no dia 22 de fevereiro de 2018,
Festa da Cátedra de São Pedro.

+ LUIS F. LADARIA, S.I.


Arcebispo titular de Thibica
Prefeito

+ GIACOMO MORANDI
Arcebispo titular de Cerveteri
Secretário

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